Sergio Arouca, construtor de instituições e inovador democrático

Sergio Arouca, institution builder and democratic innovator

Monika Dowbor Sobre o autor

Resumo

O artigo aborda a trajetória de Sergio Arouca (1941-2003), observando sua atuação enquanto militante de saúde coletiva por meio das e nas instituições. A análise de episódios mostra uma combinação fértil entre as oportunidades institucionais e políticas a surpreendente capacidade de Arouca de pensar fora do padrão, seu carisma e a presença de pessoas que compartilhavam os mesmos valores. Em algumas situações, essa combinação gerou inovações democratizantes. Os exemplos incluem o projeto de Paulínia nos anos 1970, no qual Arouca com sua equipe convidaram a população para participar da gestão de serviços de saúde; a abertura da a 8a Conferência Nacional de Saúde à participação da sociedade civil; a instalação da gestão democrática na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e idealização da Secretaria de Gestão Participativa do Ministério da Saúde no primeiro governo Lula.

Sergio Arouca; Movimento pela Reforma Sanitária; Inovações democráticas; Participação; Instituições

Abstract

The article discusses the trajectory of Sergio Arouca (1941-2003), observing his performance as a public health activist via and within institutions. The analysis of episodes reveals a fertile combination between Arouca’s surprising ability to think in a non-standard way, his charisma, and the presence of people who shared the same values. In some situations, this combination generated democratizing innovations. Examples include the Paulínia project in the 1970s, in which Arouca with his team invited the population to participate in the management of health services; the opening of the 8th National Health Conference to the participation of civil society; the installation of democratic management in the Oswaldo Cruz Foundation (Fiocruz) and the creation of the Participative Management Department of the Ministry of Health during the first Lula administration.

Sergio Arouca; Health Reform Movement; Democratic innovations; Participation; Institutions


Fonte: Biblioteca Virtual Sergio Arouca (http://bvsarouca.icict.fiocruz.br/)

Introdução

O que mais poderia ser escrito sobre Sergio Arouca? A lista de entrevistas e publicações a respeito deste defensor da saúde pública no Brasil é abundante e rica em evidências11. Marques MB. Sergio Arouca: um cara sedutor. São Paulo: Editora Brasiliense; 2007.

2. Netto GF, Abreu R. Arouca, meu irmão: uma trajetória a favor da saúde coletiva. Rio de Janeiro: Editora Contra-Capa; 2009.

3. Abreu R, Franco Netto G, coordenadores. Projeto Memória e patrimônio da saúde pública no Brasil: a trajetória de Sérgio Arouca. Relatório Sérgio Arouca 1967-1975. Rio de Janeiro; 2005. [acessado em 2011 Nov 10]. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/relatorios/relatorio19671975.pdf
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4. Abreu R, Franco Netto G, coordenadores. Projeto Memória e patrimônio da saúde pública no Brasil: a trajetória de Sérgio Arouca. Relatório Sérgio Arouca 1976-1988. Rio de Janeiro; 2005. [acessado 2012 Set 17]. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/relatorios/relatorio19761988.pdf
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5. Abreu R, Franco Netto G, coordenadores. Projeto Memória e patrimônio da saúde pública no Brasil: a trajetória de Sérgio Arouca. Relatório Sérgio Arouca 1989-2003. Rio de Janeiro; 2005. [acessado 2012 Set 17]. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/relatorios/relatorio19892003.pdf
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-66. Escorel S. Sergio Arouca: Democracia e Reforma Sanitária. In: Hochman G, Lima NT. Médicos Intérpretes do Brasil. São Paulo: Editora Hucitec; 2015.. Qualquer curioso ou pesquisador será bem servido por essas fontes que descrevem sua trajetória, por um lado, entrelaçando-a com a história do Brasil e do setor de saúde e, por outro, reconstruindo aspectos pessoais e idiossincrasias diversas. Guiada por esses materiais, optei por focar Arouca como ativista de movimento social, o que em si não seria nenhuma novidade, salvo que se trata de movimento social que, como um dos primeiros, optou por erguer e carregar suas bandeiras não pelas ruas e sim pelas instituições. É por esta dupla face que quero tratar aqui dele: como construtor institucional e como inovador democrático. Sergio Arouca desenvolveu sua militância no Movimento pela Reforma Sanitária por meio das instituições e nas instituições públicas, ocupando diversos cargos e funções. O que um ativista pode fazer quando entra no Estado? Há um conjunto de repostas para essa pergunta77. Abers R, Tatagiba L. Institutional activism: mobilizing for women’s health from inside the Brazilian bureaucracy. In: Rossi FM, Bülow MV, organizadores. Social movement dynamics: new perspectives on theory and research from Latin America. London: Ashgate; 2015. p. 73-101., e o caso de Arouca mostra a chance da inovação. Há uma combinação fértil nesse sentido entre a capacidade de Arouca de pensar fora do padrão, seu carisma e a presença de pessoas que compartilhavam os mesmos valores. Inspiradora, sua trajetória revela o potencial de transformação incremental das instituições no sentido de maior participação. Por esse foco, a vida de Arouca espelha um construtor de saúde coletiva, nome dado à série de artigos da qual este texto faz parte, sob o lema que ele próprio cunhou: saúde é democracia. Antes de iluminar esses episódios, em alguns parágrafos, situo o argumento de forma mais ampla.

Uma importante parte da vida de Arouca foi vinculada ao Movimento pela Reforma Sanitária. O termo Reforma Sanitária foi usado no Brasil, a partir de meados dos anos 1970, para se referir a um conjunto de postulados sobre as mudanças e transformações necessárias na área de saúde. Continha tanto a versão das reformas administrativo-financeiras setoriais para a construção de um sistema universal e público de saúde quanto uma visão mais ampla que entendia a saúde como decorrência de relações sociais mais amplas (os determinantes sociais de saúde) e portanto abrangia propostas de mudança na sociedade que iam para além do acesso público, universal, gratuito e integral de saúde88. Paim JS.A Reforma Sanitária e o CEBES. Rio de Janeiro: CEBES; 2012. [acessado 2017Nov 20]. Disponível em http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/11/E-Book-1-A-Reforma-Sanitária-Brasileira-e-o-CEBES.pdf
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,99. Cohn A. Caminhos da reforma sanitária. Lua Nova 1989; 19:123-140..

O portador e divulgador dessas propostas foi justamente o Movimento pela Reforma Sanitária. Não cabe aqui uma apresentação do Movimento, demasiadamente conhecido para a maioria dos leitores desta revista, porém é relevante realçar um traço específico deste movimento: sua atuação por meio das instituições. Composto por profissionais de saúde, professores, estudantes, diversas redes e organizações envolvidos na luta pelo sistema público, universal, gratuito e integral de saúde no Brasil, o movimento começou a se organizar e promover suas primeiras mobilizações no fim dos anos 19701010. Escorel S. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998. e não deixou de atuar nas décadas seguintes, engajando-se em diversas campanhas1111. Dowbor M. A arte da institucionalização: estratégias de mobilização dos sanitaristas (1974-2006) [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2012.. Uma das suas estratégias consistia nas mudanças incrementais, e seu repertório de ação incluiu diversas táticas via instituições – o que no jargão do movimento era chamado de ocupação de espaços institucionais ou de reformas por dentro do Estado. Muito pautada, no início, por seus membros filiados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), sua opção política pela linha reformista e pela articulação com o MDB em uma frente democrática como forma de combater o regime militar adotada no VI Congresso, em 19671212. Silva FP. Utopia Divida: crise e extinção do PCB (1979-1992) [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2005., a atuação por dentro das instituições se difundiu entre outros quadros do Movimento. Longe de ser unânime, essa estratégia e táticas relacionadas ganharam legitimidade para levar adiante a Reforma Sanitária. Arouca, militante do PCB, foi adepto dessa forma de atuação.

A atuação por meio das instituições era possível porque o Estado brasileiro é em algum grau permeável a atores sociais1313. Marques E. Redes sociais e poder no Estado brasileiro: aprendizados a partir de políticas urbanas. Revista Brasileira de Ciências Sociais 2006; 21(60):15-41., ainda que não de forma constante e igual. Essa permeabilidade, no caso de movimentos sociais, é entendida aqui como a possibilidade de se encaixar nos pontos de acesso que o Estado abre a certos atores enquanto os fecha a outros e que permitem algum grau de influência nos processos decisórios e por tempo limitado. Os cargos comissionados são exemplo desses pontos. Inserir-se neles exige a leitura estratégica das oportunidades políticas e o emprego de capacidades e recursos do movimento, e a permanência neles é ditada pelas coalizões governamentais. Arouca conquistou um desses cargos com alto grau decisório quando assumiu a presidência da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz). Além de certa e cambiável permeabilidade, o Estado brasileiro é heterogêneo. A existência de pontos de acesso varia de acordo com o setor de políticas públicas, sendo que as instituições oferecem a ativistas e suas organizações diferentes níveis de possibilidades e constrangimentos. A trajetória de Arouca revela esse aspecto. Apesar do jeito carismático e visionário, sua capacidade de mudar e de moldar a ação pública e as instituições não foi igual. De um lado, com a conquista da Presidência da Fiocruz nos meados dos anos 1980 foi possível realizar ações ousadas e inovadoras. Por outro, a experiência na Secretaria Municipal de Saúde no Rio de Janeiro, na mesma época, realça os constrangimentos institucionais e políticos à atuação dos ativistas por dentro do Estado. As regras de funcionamento do Congresso Nacional claramente não ajudaram muito o gesto visionário de Arouca nos oito anos nos quais permaneceu lá como deputado.

Por fim, vale sublinhar que a militância de Arouca levava forte coloração carismática. As pessoas próximas o retratam como uma pessoa cativante, capaz de gostar de quase todo o mundo, sedutor, contador de histórias, amador de conversas de boteco noite afora. Nos espaços públicos, mostrou seu dom da palavra, da fala focada, clara e empolgante. Enquanto dirigente nas instituições era contrário à figura de um gestor técnico. Tinha jeito irreverente de tratar os assuntos institucionais, atrasava muito, faltava nos compromissos, mas toda essa “insubordinação” vinha junto com a capacidade visionária de pensar para além do seu tempo, de gerar ideias que possibilitavam ampliar a Reforma Sanitária.

As suas visões poderiam ser miragens quixotescas, não houvesse do lado dele outros militantes engajados pela causa, contaminados pela empolgação de Arouca e prontos para colocar as ideias em ação. As inovações geradas incluíram o projeto de Paulínia nos anos 1970, no qual convidou a população para participar da gestão de serviços de saúde. Foi essa a tônica que sugeriu dar à 8a Conferência Nacional de Saúde, abrindo-a à participação da sociedade civil e alargando suas portas pelas quais, até então, só passavam técnicos e profissionais. Nesse sentido, não foi diferente sua forma de gestão à frente da Fiocruz, quando instalou a gestão democrática, e foi este conteúdo da novíssima secretaria que ele assumiria no primeiro governo Lula.

Entre e para além dos muros da academia

Embora visto como acadêmico, Arouca fez da atuação política lato sensu o fio condutor de sua existência. Começou-a aos 15 anos e a estendeu até o fim da vida, enquanto a trajetória acadêmica propriamente dita se encerrou num arco temporal que não passa do fim dos anos 1970. Nascido em Ribeirão Preto, em 20 de agosto de 1941, Arouca se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1956 e iniciou a militância na área rural do município. Continuou militando quando ingressou no curso de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), no campus de Ribeirão Preto (SP), que era a única possibilidade de fazer um curso de nível superior na cidade. Ganhou as eleições para a diretoria da Faculdade de Medicina e, em 1965, tornou-se secretário municipal de Organização do PCB. Dois anos depois, foi nomeado professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade de Campinas (Unicamp). Este foi um período francamente acadêmico de Arouca, dedicado a estudos, pesquisa e docência, ainda que os espaços pelos quais circulava estivessem perpassados pelos debates e ideias altamente politizadas de saúde. Fez o curso de especialização em Saúde Pública em São Paulo, do qual se originaram vários militantes do Movimento. Como consultor da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) investigou criticamente a formação médica. Participou dos encontros docentes dos Departamentos de Medicina Preventiva e Social nos anos 1960 e 1970, nos quais germinavam novas ideias e se reuniam docentes que construíam e compartilhavam um novo projeto de saúde para o país1414. Abreu R, Franco Netto G. Trajetória de Sérgio Arouca (1967-1975): os caminhos possíveis. In: Abreu R, Franco Netto G, coordenadores. Projeto Memória e patrimônio da saúde pública no Brasil: a trajetória de Sérgio Arouca. Relatório Sérgio Arouca 1967-1975. Rio de Janeiro; 2005. p. 15-23. [acessado 2011 Nov 10]. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/relatorios/relatorio19671975.pdf
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. Foi nesse período que escreveu a tese de doutorado intitulada O Dilema Preventivista que se tornou um dos principais fundamentos teóricos do Movimento pela Reforma Sanitária11. Marques MB. Sergio Arouca: um cara sedutor. São Paulo: Editora Brasiliense; 2007. 1515. Teixeira SMF. O dilema reformista da reforma sanitária brasileira. Revista de Administração Pública 1987; 21(4):94-113.. O cerne do trabalho consistiu na crítica da Medicina Preventiva que se apresentava na época como um projeto transformador e inovador ao propor a mudança da relação entre médico e paciente, incorporando aspectos preventivos, curativos e de reabilitação. Arouca, ele próprio professor do Departamento de Medicina Preventiva, mostrou como os postulados de Medicina Preventiva sobre a “atitude de atenção integral”, apesar de sua promissora proposta em relação ao modelo até então existente, reproduziam o poder médico, a individualização e financeirização da saúde ao não questionar as estruturas sociais quais derivavam os problemas do campo médico1616. Abreu R. O Legado de Sérgio Arouca. [acessado 2017 Set 17]. Disponível em http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/desdobramentos/olegado.htm
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. Arouca escreveu: O movimento preventivista, em síntese, possui uma baixa densidade ideológica ao não realizar modificações nas relações sociais concretas e uma alta densidade ideológica ao constituir, através do seu discurso, uma construção teórico-ideológica daquelas relações1717. Arouca AS. O Dilema Preventivista. Contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 1975..

O projeto do Centro de Saúde de Paulínia, desenvolvido pelo Laboratório de Estudos em Medicina Comunitária (LEMC) e dirigido por Arouca e por um grupo de seus alunos, foi justamente uma modificação nas “relações sociais concretas” ao introduzir um elemento inovador para a época. Financiado pela Fundação Kelloggs, o projeto se propunha implementar os pressupostos da Medicina Preventiva, enquanto o coletivo liderado por Arouca foi bem além dos termos acordados. Vislumbrou um papel para os movimentos sociais e a população para além do caráter reivindicativo: convidou a comunidade a se tornar parte do Centro. A ideia consistiu em organizar os usuários para que esses ajudassem a formular a gestão ao participar do Conselho Gestor1818. Canesci AM. Depoimento. In: Abreu R, Franco Netto G, coordenadores. Projeto Memória e patrimônio da saúde pública no Brasil: a trajetória de Sérgio Arouca. Relatório Sérgio Arouca 1976-1988. Rio de Janeiro; 2005; p.70-80. [acessado 2012 Set 17]. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/relatorios/relatorio19761988.pdf
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. Algo que soa complemente natural hoje se configurava como sui generis e inovador 45 anos atrás. Apesar de inovadora, foi uma ideia considerada subversiva, tendo repercussão negativa na agência financiadora. Porém enquanto piloto serviu como modelo na ampliação de acesso à saúde já nas eleições ganhas pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) em 1976, em Campinas.

A atividade considerada comunista no Centro de Paulínia, a tese com conteúdo também subversivo, forte repressão dos militantes do PCB pelo regime militar e a oposição política ao Reitor da época são algumas das razões da expulsão de Arouca e seu grupo da Unicamp. Saída, decerto, marcada pelo clima de tensão e perseguição próprios do regime militar. Era um mundo que expulsava por um lado, mas também era uma realidade de instituições abertas. Arouca, junto a vários integrantes do seu grupo de Campinas, foi acolhido pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) no Rio de Janeiro, no interior do Programa de Estudos Sócio-Econômicos em Saúde (PESES). Era uma combinação entre uma cidade na qual se engendrava o pensamento da saúde coletiva, principalmente no Instituto de Medicina Social, com a oportunidade de um projeto que possuía recursos, mas não tinha ninguém para geri-lo1919. Góes S. Depoimento. In: Abreu R, Franco Netto G, coordenadores. Projeto Memória e patrimônio da saúde pública no Brasil: a trajetória de Sérgio Arouca. Relatório Sérgio Arouca 1976-1988. Rio de Janeiro; 2005. p.57. [acessado 2012 Set 17]. Disponível em http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/relatorios/relatorio19761988.pdf
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Na direção do PESES, Arouca deixou de ser pesquisador – por opção própria. Sonia Fleury conta que certa vez escutou dele: “Eu não quero mais fazer pesquisa, eu não gosto mais disso, eu vou fazer política”2020. Fleury S. apud. Abreu R, Franco Netto G, coordenadores. Projeto Memória e patrimônio da saúde pública no Brasil: a trajetória de Sérgio Arouca. Relatório Sérgio Arouca 1976-1988. Rio de Janeiro; 2005. p. 22. [acessado 2012 Set 17]. Disponível em http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/relatorios/relatorio19761988.pdf
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. E foi fazer a política no Movimento Sanitário.

Nessa época, foi fundada a primeira organização do Movimento, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 1976, com a finalidade de agrupar as pessoas que estavam estudando, fazendo e pensando a saúde de outra forma e de fazer intervenções políticas no sistema de saúde. A atuação do Cebes foi marcada pela estratégia de atuação por meio das instituições. Não por acaso, o Movimento realiza sua primeira mobilização e ganha visibilidade no Congresso Nacional, onde é realizado pelo Cebes de Brasília, em 1979, o 1o Simpósio Nacional sobre a Política de Saúde. É Arouca que lê nesse evento em voz alta “A Questão Democrática na Área da Saúde”, documento que se tornou a diretriz do Movimento.

O próximo tópico nos levará ao período da transição democrática e à atuação de Arouca nela. Antes disso, porém, vale registrar as experiências internacionais de Arouca. Nos anos 1970, atuou como consultor da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e representou o Brasil em missões em diversos países. Na mesma posição, entre 1980 e 1982, transferiu-se para a Nicarágua, onde trabalhou no programa de governo da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), visando à reorganização do sistema de saúde do país.

Instituições e movimento

Na transição democrática, após a eleição do primeiro presidente civil em 1985, os militantes do Movimento ocuparam alguns dos cargos mais importantes no setor de saúde. Esses cargos foram conquistados por meio de campanhas em busca do suporte das bancadas partidárias no Congresso, coordenadas e levadas adiante por outros ativistas do Movimento. Esse foi o caso de Hesio Cordeiro, que assumiu o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), e de Eleutério Rodrigues Neto, que assumiu o cargo de Secretário Geral do Ministério da Saúde, ambos militantes do PCB. A campanha de Arouca para o cargo da presidência do maior instituto de pesquisa de saúde, a Fundação Osvaldo Cruz, durou mais de cinco meses2121. Morel C, Tavares C, Gomez AFS, Ferreira LF. Depoimentos. In: Abreu R, Franco Netto G, coordenadores. Projeto Memória e patrimônio da saúde pública no Brasil: a trajetória de Sérgio Arouca. Relatório Sérgio Arouca 1976-1988. Rio de Janeiro; 2005. p. 20-39. [acessado 2012 Set 17]. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/relatorios/relatorio19761988.pdf
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. Arouca deixou de fora o então Presidente da Fiocruz, major Guillardo Martins Alves, apoiado por um senador da Bahia com acesso a Sarney, e outro candidato que tinha suporte de um deputado do PMDB.

Na direção da Fiocruz, Arouca foi responsável por mudanças relevantes, tais como: a reintegração dos pesquisadores cassados na ditadura; a criação da Casa de Oswaldo Cruz, voltada para o estudo da história da ciência no Brasil, e de um centro Politécnico orientado para o ensino médio; o direcionamento de maiores investimentos para a produção de vacinas; a elaboração de pesquisas entre as quais se destaca a da tecnologia para exame de AIDS e o isolamento, pela primeira vez, do vírus no Brasil44. Abreu R, Franco Netto G, coordenadores. Projeto Memória e patrimônio da saúde pública no Brasil: a trajetória de Sérgio Arouca. Relatório Sérgio Arouca 1976-1988. Rio de Janeiro; 2005. [acessado 2012 Set 17]. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/relatorios/relatorio19761988.pdf
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. Ao integrar os cassados, Arouca reconquistava a legitimidade para a instituição, e o dinamismo e a divulgação do amplo leque de ações traziam destaque público tanto à instituição quanto ao Arouca, que internamente contava com amigos e ativistas do Movimento de diferentes filiações partidárias na sua assessoria. No meio dessas diversas medidas, uma chama atenção especial pelo seu caráter inovador democratizante. Dirigida por Arouca, a Fiocruz foi alvo de uma reengenharia institucional, que consistiu na ampliação da participação e do poder decisório para além do núcleo dos dirigentes. Não se tratava de medida gerencial. Era uma medida política, ousada e visionária. De uma estrutura centralizada de poder, chamada de “núcleo central de decisões” (composto pelo presidente, três vice-presidentes e chefe de gabinete nomeados pelo presidente), passou-se, na gestão de Arouca, para a estrutura de um congresso interno, no qual todos pudessem participar proporcionalmente ao tamanho das unidades: unidade maior teria mais delegados e unidade menor, menos2222. Morel C. Depoimento. In: Abreu R, Franco Netto G, coordenadores. Projeto Memória e patrimônio da saúde pública no Brasil: a trajetória de Sérgio Arouca. Relatório Sérgio Arouca 1976-1988. Rio de Janeiro; 2005. p. 120-133. [acessado 2012 Set 17]. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/relatorios/relatorio19761988.pdf
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. Nesse primeiro congresso interno, decidiu-se pela criação do Conselho Deliberativo da Fiocruz, composto pelos presidentes das unidades como órgão interno máximo da Fiocruz. Esse foi um embrião da gestão democrática que foi se aprimorando até alcançar a máxima institucionalização com a assinatura do Presidente da República, Luiz Ignácio Lula da Silva – 16 anos depois.

Nesse mesmo período da transição democrática, ainda como presidente da Fiocruz, Arouca teve outra ideia “fora da caixa” que mudou as regras do funcionamento de um evento que já podia ser considerado uma instituição pela sua longevidade: a Conferência Nacional de Saúde. Na sua 8a edição, em 1986, a Conferência Nacional romperia com o perfil tecnoburocrático, abrindo as portas para a participação da sociedade civil2323. Escorel S, Bloch RA. As Conferências Nacionais de Saúde na construção do SUS. In: Lima NT, Gerschman S, Edler FC, Suaréz JM, organizadores. Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p. 83-120..

Conta a anedota2424. Nunes FA, Vasconcelos LCF. A construção do SUS: histórias da Reforma Sanitária e do Processo Participativo. Brasília: Ministério da Saúde (MS); 2006. de que a ideia de estender a participação na Conferência Nacional de Saúde a amplos e diversificados segmentos da sociedade, um evento até então restrito à burocracia estatal e políticos, foi compartilhada numa reunião, durante um almoço, da qual fizeram parte o então ministro da Saúde, Carlos Sant’anna, do PMDB baiano; Eleutério Rodrigues Neto, sanitarista no cargo de secretário-geral do Ministério de Saúde; e Sérgio Arouca. O clima tenso da reunião se devia ao impasse instalado no Movimento Sanitário e que estaria comprometendo a carreira do político baiano. Sant’anna não era um militante do Movimento, todavia compartilhava de suas ideias e convivia com alguns dos ativistas. Por força desses contatos, havia se tornado autor de uma lei, aprovada pelo Congresso, que passava ao presidente da República a prerrogativa de transferir, em momento oportuno, o Inamps ao Ministério da Saúde. Esse era um dos objetivos elementares do movimento, defendido desde o 1º Simpósio, em 1979, por meio do qual seriam instalados o comando único e o controle sobre o setor de saúde, que, na visão do movimento, estava nas mãos da burocracia inampsiana articulada com o setor privado de medicina.

Porém, apesar desse potencial legal, o sanitarista Hésio Cordeiro, contrariamente à sua conhecida posição a favor da unificação, uma vez no cargo, recuou. Alegava que era preciso avançar as reformas parciais – as Ações Integradas de Saúde (AIS) –, possibilitadas pelo poder e pelos recursos que o Inamps oferecia, ao invés de entregá-las à lentidão da máquina administrativa do Ministério da Saúde, o que poderia frear a sua implementação2525. Cordeiro H. Depoimento. Edler FC, Nascimento DR. In Reforma ou contra-reforma? História e perspectivas do Sistema Único de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz; 2004.. Durante a reunião, Sant’anna deixava claro que havia assumido publicamente essa lei como a sua bandeira política e que, naquele momento, estava diante da necessidade de uma tomada de decisão, razão que o fazia querer saber qual era a posição dos presentes. O impasse foi rompido na hora por Arouca, que sugeriu que se fizesse uma parte da unificação incorporando a Central de Medicamentos (CEME) ao Ministério da Saúde, bem como propôs a legitimação da transferência do Inamps pela voz da sociedade. O espaço dessa legitimação seria, segundo Arouca, a Conferência Nacional de Saúde.

Mas a Conferência não podia continuar restrita no seu perfil de participação. A ideia de aproveitar esse espaço institucionalizado, estabelecido na agenda e dotado de recursos para envolver um público bem mais amplo era uma bela sacada, viabilizada pelo apoio do Ministro da Saúde e dos sanitaristas que ocupavam na época importantes cargos no setor. A proposta de Arouca inovava por dentro das instituições. Aproveitava o espaço já existente, ampliando a participação. Mais do que reunir uma rede de pessoas e organizações conhecidas, os militantes do Movimento percorreram o país, reunindo entidades, associações e grupos em encontros para a discussão e divulgação do projeto do Movimento Sanitário2626. Belisário SA. Associativismo em saúde coletiva: um estudo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2002.. Ary Carvalho de Miranda, pesquisador da ENSP, por exemplo, fez uma reunião de três dias num convento com 38 sindicatos rurais do Maranhão44. Abreu R, Franco Netto G, coordenadores. Projeto Memória e patrimônio da saúde pública no Brasil: a trajetória de Sérgio Arouca. Relatório Sérgio Arouca 1976-1988. Rio de Janeiro; 2005. [acessado 2012 Set 17]. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/relatorios/relatorio19761988.pdf
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. Foi possível realizar as pré-conferências em todos os estados e, em quatro deles – Minas Gerais, Paraná, Sergipe e Pará – foram organizados os encontros municipais preparatórios22. Netto GF, Abreu R. Arouca, meu irmão: uma trajetória a favor da saúde coletiva. Rio de Janeiro: Editora Contra-Capa; 2009..

As fronteiras da participação ao evento do poder público foram abertas, viabilizando a vinda de milhares de pessoas com base nos recursos do Estado. Com o tempo, as Conferências com essa característica inovadora se difundiram para outros setores de políticas públicas e, após a redemocratização, conheceram um amplo e constante crescimento: entre 1995 e 2010 foram organizadas 94 Conferências Nacionais2727. Brasil. Secretaria-Geral da Presidência da República (SGP). Conferências Nacionais Realizadas (1941-2010). Brasília: SGP; 2011 [acessado 2011 Fev 13]. Disponível em: http://www.secretariageral.gov.br/.arquivos/arquivos-novos/CONFERENCIAS%20NACIONAIS__Tabela_1941_%202010_26abril2010.pdf
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O discurso de abertura da Conferência foi proferido por Arouca. A clareza da sua fala e sua capacidade retórica chamam a atenção. Não por acaso, ele assume o papel de vocalizador do Movimento na Constituinte. Atua como representante da sociedade civil, intervindo na confecção do capítulo de saúde da Constituição. Uma vez promulgada a Constituição, o sistema partidário-eleitoral volta a funcionar plenamente como canal de acesso ao Estado. A trajetória institucional de Arouca acompanha essa inflexão.

Dentro dos muros do Parlamento

Arouca se engaja na vida partidária, assumindo cargo de destaque no PCB e no Partido Popular Socialista (PPS), que nasce no lugar do PCB, e, entre 1989 e 1998, disputa seis eleições. A dedicação à vida partidária, eleições e mandatos parece quase exclusiva, incluindo também duas curtas experiências no Poder Executivo como secretário de saúde. São outras instituições e outras regras de jogo, que agora constrangem a ação carismática de Arouca. Seu gesto inovador não encontra espaço para a expressão. Ele não está mais cercado pelos companheiros do Movimento. Mas, como veremos, ele era contido apenas pelas instituições. Em 2002, livre de mandatos parlamentares, Arouca reergue sua postura visionária sobre a saúde no Brasil. E, mais uma vez, o faz por dentro das instituições.

A retomada da vida eleitoral-partidária começa com a candidatura a vice-presidente da República na chapa do PCB encabeçada por Roberto Freire. Em seguida, em 1990, é eleito deputado federal do estado do Rio de Janeiro pelo partido, com cerca de 94.000 votos. Candidata-se a vice-prefeito da cidade do Rio de Janeiro em chapa encabeçada por Benedita da Silva (PT) e, depois da derrota, em 1994, é reeleito deputado, enquanto ocupa cargo de vice-presidente do PPS. Em 1996, é escolhido pelo partido para ser o candidato à prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, pleito do qual sai derrotado. Em 1998, candidata-se à reeleição para deputado federal pelo PPS, mas não obtém êxito. Em termos concretos, Arouca passou oito anos na Câmara dos Deputados. Sua atuação reflete, por um lado, a busca do partido por um novo caráter de esquerda democrática e, por outro, sua postura de oposição moderada ao governo2828. Bezerra GML. Oposição nos governos FHC e Lula: um balanço da atuação parlamentar na Câmara dos Deputados [dissertação]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2012.. Assim são explicados os votos de apoio de Arouca à maioria das propostas apresentadas pelo governo recém-iniciado de Fernando Henrique Cardoso: quebra do monopólio dos governos estaduais na distribuição de gás canalizado e revisão do conceito de empresa nacional entre outros55. Abreu R, Franco Netto G, coordenadores. Projeto Memória e patrimônio da saúde pública no Brasil: a trajetória de Sérgio Arouca. Relatório Sérgio Arouca 1989-2003. Rio de Janeiro; 2005. [acessado 2012 Set 17]. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/relatorios/relatorio19892003.pdf
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. O PPS defendia a ideia do “público” como alternativa à relação dicotômica estatal versus privado. Os votos de Arouca incluíram também a defesa dos grevistas, um projeto de emenda constitucional de sua autoria que permitia às universidades e aos institutos de pesquisa brasileiros contratarem professores estrangeiros mediante concurso público, o voto favorável à emenda da reeleição e o fim da estabilidade no funcionalismo público, que lhe custou caro em termos de apoio para a reeleição2828. Bezerra GML. Oposição nos governos FHC e Lula: um balanço da atuação parlamentar na Câmara dos Deputados [dissertação]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2012..

O próprio Arouca assumiu a vida parlamentar como uma missão que tinha que cumprir em nome do partido. Reclamava das regras institucionais, da obstrução em que ficava o Congresso, das articulações entre as lideranças partidárias que significam as negociações nos bastidores. As regras do funcionamento do Congresso – onde, “[t]omados individualmente, os parlamentares têm escassa capacidade de influenciar o curso dos trabalhos legislativos”2929. Figueiredo AC, Limongi F. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2001. – não deixavam espaço para a atuação inovadora de um indivíduo visionário e ávido por ações concretas e rápidas.

Mas o jogo institucional não lhe pesou apenas no Congresso. A experiência na Secretaria Municipal do Rio de Janeiro, em 2001, mostra como a ação de um ativista carismático e já reconhecido é impedida pela falta de apoio do prefeito e pela escassez de recursos3030. Dowbor M, Houtzager P. The role of professionals in policy reform: cases from the city level, São Paulo. Latin American Politics and Society 2014; 56(3):141-162..

Arouca enxergou a vitória de Lula em 2002 na chave de oportunidades políticas, convencendo o PPS a aderir ao governo3131. Abreu R, Franco Netto G. Trajetória de Sérgio Arouca (1989-2003). In: Abreu R, Franco Netto G, coordenadores. Projeto Memória e patrimônio da saúde pública no Brasil: a trajetória de Sérgio Arouca. Relatório Sérgio Arouca 1989-2003. Rio de Janeiro; 2005. p.132 [acessado 2012 Set 17]. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/relatorios/relatorio19892003.pdf
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. Essa era também a oportunidade para o Movimento pela Reforma Sanitária de ocupar os espaços institucionais e, por isso, houve articulações para que o ativista assumisse o Ministério da Saúde. Todavia, na distribuição dos ministérios entre os aliados da coalizão presidencial, a pasta da Saúde ficou com o Partido dos Trabalhadores, o que não impediu que os demais cargos fossem ocupados pelos militantes petistas do Movimento1111. Dowbor M. A arte da institucionalização: estratégias de mobilização dos sanitaristas (1974-2006) [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2012.. Em busca de um espaço institucional para ele enquanto a figura emblemática da luta pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o próprio Arouca inova e sugere a construção de uma nova Secretaria de Gestão Participativa para fazer a “reforma da reforma sanitária”, como ele próprio dizia. Mais uma vez, estava empurrando as paredes institucionais, ampliando a participação para além do institucionalizado, isto é, desta vez para além do sistema de conselhos, conferências e comissões já existentes.

Arouca acompanhou pouco o processo da implementação da Secretaria, pois sua doença se agravou já no início de 2003. A julgar, porém, pelo conteúdo da nova “Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa no SUS” (ParticipaSUS), apresentada em 2009, seu cerne inovador se manteve. A ParticipaSUS continha reforços aos espaços participativos e, também de forma inovadora, aos mecanismos de mobilização da sociedade em prol do SUS. Os militantes do movimento inscreviam no documento norteador a necessidade de mobilizações futuras, de modo a garantir a constante adesão de novos segmentos em defesa do sistema público de saúde, mobilizações que, a partir de então, estariam a cargo do Estado. Criavam, com efeito, uma nova forma de ação do Estado, pautada pela lógica da atuação do movimento social – criação de relações, grupos e redes, construção da identidade coletiva e potencial para a mobilização –, para aqueles momentos em que o SUS se encontrasse em situações de oportunidades ou ameaças. Conferiam, em outras palavras, ao Estado a diretriz de organização e mobilização dos atores coletivos em prol do SUS e da defesa da Reforma Sanitária como instrumento de gestão pública.

Assim, no último ano da sua vida, duas instituições, o Ministério da Saúde e a 12a Conferência Nacional de Saúde, carregavam de forma explícita o marco de Sergio Arouca e de sua constante busca de reformulação institucional. O Ministério desenvolvia novos instrumentos de mobilização da sociedade e a Conferência homenageava aquele que tornou esse espaço aberto para a participação da sociedade, adotando o lema de sua autoria: Reforma da Reforma Sanitária.

Considerações finais

O legado de Arouca como ativista de movimento social em defesa da saúde pública e coletiva inclui a capacidade de pensar de forma democrática as instituições. Inclui também propor reformas incrementais cujo foco comum era abrir constantemente os espaços institucionais para outros atores, removendo barreiras à circulação de novas ideias e pessoas, de grupos e de novas organizações. Sempre o faz acompanhado por pessoas engajadas no projeto de saúde pública, ao lado de militantes e ativistas que colocavam em prática suas ideias inovadoras.

Sem buscar uma coerência perfeita entre palavras e ações, a seguinte frase proferida na fala da abertura da 8ª Conferência ajuda a entender sua atuação nas instituições:

Essa reforma não pode ser projeto da minha cabeça, não pode ser projeto da cabeça dos técnicos, não pode ser simplesmente o projeto da cabeça dos profissionais. Ele tem que ser construído. Mesmo que o resultado final não seja aquilo que muitos de nós estamos desejando, mas um resultado construído, desejado, montado e inventado pela sociedade brasileira3232. Abreu R, Monteiro HR. Sergio Arouca e o SUS do Brasil. [filme]. [acessado 2012 Set 17]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LvcS2Y_V54w
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Abr 2019

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2017
  • Revisado
    22 Jan 2018
  • Aceito
    24 Jan 2018
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