Vitor Valla: uma vida de reflexão e militância em educação popular e saúde

André Luiz da Silva Lima Tania Maria Dias Fernandes Sobre os autores

Resumo

O presente artigo busca estabelecer uma narrativa sobre alguns aspectos da trajetória acadêmica e militante do professor e educador popular Victor Valla, tendo como destaque uma problemática assinalada por ele em vários textos e debates, sobre a recorrente incompreensão de alguns pesquisadores e técnicos (assistentes sociais, educadores, médicos, enfermeiros, etc.) sobre as classes populares e suas falas. Valla ressaltava a existência de produção de conhecimento para além do circuito tradicional das universidades e centros de pesquisa, especialmente no âmbito das classes populares, que, para ele, estaria imbricada em suas práticas. Neste sentido, advogava uma nova postura teórica e metodológica para os projetos sociais, educacionais culturais e de saúde junto aos grupos populares, o que seria totalmente coerente e compatível com as premissas de um sistema de saúde democrático e equânime, apregoado pelos envolvidos com a área da Saúde.

Palavras-chave
História da saúde; Biografia; Educação popular


Foto: Peter Ilicciev

A trajetória de Victor Valla pode ser narrada sob três aspectos que marcaram, de forma singular, sua atuação tanto no meio acadêmico, como enquanto agente participativo de movimentos sociais. Operando como teórico e militante da Educação popular, como pesquisador das classes populares ou como pesquisador e militante do tema participação em saúde, Valla reconhecia a existência de produção de conhecimentos para além do circuito tradicional das universidades e centros de pesquisa que, para ele, nas classes populares estaria imbricado em suas práticas, evidenciando regularmente uma forte influência do pensamento de Paulo Freire. Ressaltava, de forma bastante crítica, que no processo educativo de mediação junto aos grupos populares, havia uma incompreensão dos pesquisadores e técnicos (assistentes sociais, educadores, médicos, enfermeiros, etc.) quanto a estes grupos e suas falas.

Se estivesse vivo, em agosto de 2017, Victor Valla teria completando 80 anos. Nascido na Califórnia (EUA), chegou ao Brasil, com 27 anos, em 1964, ano em que se instaurou o Golpe Civil-Militar no país. Atuou ao longo de sua vida em várias instituições assumindo como seu foco central questões relacionadas à educação popular.

Apesar de se apresentar como ‘despolitizado e vinculado à uma congregação religiosa’, em entrevista à Eymar Vasconcelos, no ano de 2005, Valla narrou que tinha a consciência de que não seria possível mudar a vida dos pobres, e, nesse sentido, indicava como estratégia para sua atuação “que tinha que morar junto com os pobres, principalmente nas favelas. Não iria resolver o problema, mas, pelo menos, iria compartilhá-lo”11 Valla VV. Entrevista: Victor Valla. Trab. educ. saúde 2005; 3(1):227-238..

Na sua trajetória de vida, se aproximou de seguidores da Teologia da Libertação, o que se refletiu na sua postura sensível à população empobrecida tanto em sua atuação no âmbito acadêmico, como nos movimentos sociais, onde desenvolveu estudos e projetos em Educação popular, corrente epistemológica a qual se vinculou até o fim de sua vida.

No que tange à sua formação acadêmica, chegou ao Brasil graduado em Educação pela Saint Edward´s University, mas foi em território nacional que desenvolveu seus estudos Stricto Senso no campo da história, na Universidade de São Paulo (USP). Ao longo do Mestrado, defendido em 1969, procedeu uma análise da influência dos Estados Unidos e de outras nações estrangeiras na economia brasileira entre os anos de 1904 e 1928, o que aprofundou na investigação que culminou com seu doutoramento em História, na mesma Instituição de Ensino Superior, em 1972.

Pouco tempo depois da conclusão de seu Doutorado, assumiu o cargo de docente na Universidade Federal Fluminense, cujas primeiras disciplinas ministradas traziam consigo elementos do que seria a marca de toda a sua produção: o estudo sobre educação popular. No seu currículo lattes, ainda disponível na internet, a referência da 1ª publicação sobre o tema educação popular remonta ao ano de 1971, ou seja, antes mesmo da conclusão do Doutorado.

Se a educação popular foi um tema central em toda produção epistemológica de Valla, esta se articulou com outras temáticas e problematizações, como a reflexão sobre os processos de produção de desigualdades e da manutenção de grandes contingentes populacionais em situação de pobreza. Na sua aproximação com o campo saúde, a reflexão em torno da educação em saúde o colocava em parceria teórico-metodológica com outros pesquisadores sobre o tema, como Joaquim Alberto Cardoso de Mello, professor e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/ Fiocruz).

Ao longo do ano de 1977 atuou como pesquisador do Instituto de Estudos Avançados em Educação (IESAE), da Fundação Getúlio Vargas, e dedicou-se à docência no Mestrado em Educação da referida instituição. Ainda neste ano desenvolveu estudos sobre processos educativos não formais e ambientes educacionais fora da escola, em pesquisa que não lidava “com a população brasileira como um todo, mas com aquele segmento que hoje se conhece como camadas populares”22 Valla VV, organizador. Educação e favela. Petrópolis: Vozes; 1986.. Ainda em 1977 iniciou sua atuação como professor de um curso supletivo, em projeto situado em uma favela de Santa Tereza, se aproximando, no ano seguinte, da Federação das Associações de Moradores do Rio de Janeiro (FAFERJ) e, neste movimento, temáticas políticas dos moradores de favelas passaram a influenciar seu olhar de militante e pesquisador. Nas palavras de Valla

foi nessa época que fui despertado pelo debate dos moradores sobre a ‘urbanização’ e/ou ‘posse de terra’ versus ‘remoção’, como possíveis soluções para as favelas e para o fato de que esse debate já tinha se travado em épocas anteriores22 Valla VV, organizador. Educação e favela. Petrópolis: Vozes; 1986..

Neste contexto de atuação laboral na FGV e de militância junto à FAFERJ, cabe destacar a implantação do Projeto de Pesquisa “Para uma formulação de uma teoria da educação extraescolar no Brasil: ideologia, educação e as favelas do Rio de Janeiro, 1880-1980”, sob sua coordenação e financiado pela Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP). A pesquisa se desenvolveu entre os anos de 1979 e 1980 e os resultados culminaram na publicação do livro ‘Educação e Favela’, que se estabeleceu como importante referência para os estudos que buscam analisar as favelas na cidade no Rio de Janeiro no decorrer do século XX. Nesta obra, Victor Valla narra a atuação de repartições públicas e agentes governamentais, entre os anos 1940 e início dos 1980, que articulados com organismos internacionais, ou com instituições religiosas, trataram de diferentes formas a população favelada como apática, imbecil, suja, desorganizada, doente, preguiçosa, etc. Neste sentido,

a proposta de integração dos grupos ‘marginalizados’ parte do princípio de que a maioria da população, graças à pobreza, encontra-se ‘fora’ da sociedade. É como se o fato de não usufruir dos produtos e serviços básicos fosse uma decorrência da ignorância e passividade, por parte dessas populações marginais, ou, para utilizar um termo mais atualizado, desses excluídos. Ou seja, estes estariam fora, de um modo ou de outro, por sua própria culpa, precisando ser ‘animados’, ‘incentivados’, ‘esclarecidos’, para poderem participar dos benefícios do progresso econômico e cultural33 Valla VV. Educação e Participação Popular - Revendo o debate em torno da participação popular: ampliando sua concepção em uma nova conjuntura. In: Barata RG, Briceño-Leon RE, organizadores. Doenças Endêmicas: abordagens sociais, culturais e comportamentais. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2000. p. 251-268..

Impactado pela luta que moradores de favelas travavam, quando atuante na FAFERJ, Valla22 Valla VV, organizador. Educação e favela. Petrópolis: Vozes; 1986. salienta que a obra ‘Educação e Favela’ pretendia “ressaltar a ‘atividade’ onde tradicionalmente são vistas a ‘passividade’ e a ‘ociosidade’”.

A educação popular, sob a qual Valla estabelecia sua reflexão, formulando problematização e instituindo vínculo, emergiu como campo de práticas e produção de saberes, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, no seio dos debates em torno de movimentos sociais, tanto no campo como no meio urbano.

Havia então um clima de debate sobre a teoria e prática da educação popular e seu papel na transformação social: as referências teóricas e metodológicas propostas por Paulo Freire, pelo Movimento Popular de Cultura, pelos Centro Populares de Cultura (CPCs) – da UNE (União Nacional dos Estudantes), pelo MEB – Movimento de Educação de Base e por tantas outras iniciativas voltadas para a valorização e fortalecimento da cultura popular44 Marteleto RM, Valla VV. Informação e educação popular - o conhecimento social no campo da saúde. Perspectivas em Ciência da Informação 2007; (n. esp.):8-21..

Valla, no entanto, advertia quanto ao ufanismo de se julgar que “a educação popular, por si mesma, [traria] necessariamente no seu bojo as sementes de transformação social”22 Valla VV, organizador. Educação e favela. Petrópolis: Vozes; 1986.. Lembra, neste sentido, que sua emergência no Brasil se deu no contexto em que a Educação ganhou tons de universalidade, no âmbito de projetos de alfabetização e de treinamento profissional de adultos, com forte base em propostas de mudança de comportamento. Um dos eixos de atuação da Educação popular seria o de desenvolvimento comunitário, vertente muito focalizada por Valla, que

durante grande parte do século XX, o Desenvolvimento de Comunidades foi a base de muitos dos projetos de intervenção comunitária nas áreas de saúde, educação e assistência social nos países capitalistas periféricos. Sua concepção teórica e metodológica concentrava-se sobre a mudança de comportamento dos indivíduos atendidos55 Lima ALSL. "Não vou bater palmas para maluco dançar": participação social nas favelas de Manguinhos (Rio de Janeiro, 1993/2011) [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017..

Na percepção de Valla, o Desenvolvimento de Comunidades se fazia presente em diversos projetos de intervenção pública nas favelas cariocas no período entre 1940 e 1980, sobre o qual discorre que

parece haver atrás das propostas dessas instituições um medo de que tomem consciência das reais razões das contradições da vida urbana. Através de programas de controle, tais como desenvolvimento, autoajuda, esforço-próprio, ‘cooperação’, tentam mostrar os problemas como sendo locais, apresentando uma imagem de que não há grupos ou setores dominantes e que o Governo seria uma entidade à parte nessa discussão22 Valla VV, organizador. Educação e favela. Petrópolis: Vozes; 1986..

Na perspectiva da educação, a lógica do modelo de Desenvolvimento de Comunidades assumia atuação num formato vertical junto aos grupos populares e, neste caso, com a mitigação do diálogo com os educandos, constituía-se como uma situação análoga da ‘educação bancária’ identificada nas salas de aula por Paulo Freire.

No ano de 1984, Valla passou a compor os quadros da Escola Nacional de Saúde Pública, na Fiocruz, num contexto de redemocratização do país e da criação do Sistema Único de Saúde. A análise crítica de Valla acerca dos projetos direcionados aos grupos populares assumia, naquele momento, um contorno no qual a área da Saúde passou a ser incluída. Educação Sanitária, Educação em Saúde, Educação Para Saúde e tantos outros termos estavam sendo revisitados, além da participação popular, como uma atividade de educação pelo seu caráter mediador. Aliás, a temática participação se constituía num dos alicerces do movimento sanitário, especialmente na criação de mecanismos institucionais que buscassem garantir a presença das coletividades (especialmente dos grupos populares) nas arenas decisórias dos rumos da política pública.

Um aspecto em disputa era a institucionalização dos mecanismos de participação popular, de base democrática, cujas matrizes nem sempre estavam em sincronia. Algumas eram compostas por elementos que embasavam o Desenvolvimento de Comunidades, para o que Valla alertava que “implementar atividades de melhorias dentro do espírito democrático e de responsabilidade pessoal”, implicava, “na verdade, em manter as camadas populares residentes em favelas desmobilizadas e afastadas da participação política”. Destacava ainda que este era o espaço social onde “se tornaria viável a luta pelas transformações estruturais necessárias à superação do problema”22 Valla VV, organizador. Educação e favela. Petrópolis: Vozes; 1986.. Outras matrizes, estavam calcadas nas experiências dos movimentos sociais, nos circuitos das Comunidades Eclesiais de Base e de partidos políticos que ideologicamente se posicionavam à esquerda. Nesta vertente, cabe destaque aos projetos – ainda que pontuais – alinhados com as premissas do Movimento Pela Reforma Sanitária, valendo aqui, por exemplo, o Projeto Montes Claros desenvolvido na região norte de Minas Gerais.

Diferentemente de muitos de seus contemporâneos, Valla se colocava de maneira crítica ao processo reformista na saúde que viria a se consolidar no SUS. Em entrevista, após citar a influência da Reforma Sanitária Italiana, Valla chamava atenção para o fato de que

as pessoas responsáveis pela criação da Reforma Sanitária eram mais de sala de aula, de gabinetes de políticos, intelectuais das universidades, gente que não queria seguir o mesmo caminho, ou seja, buscar o movimento popular para construir o SUS. Queriam muito mais construir o SUS como proposta e depois chamar os movimentos populares para discutirem11 Valla VV. Entrevista: Victor Valla. Trab. educ. saúde 2005; 3(1):227-238..

Esse era não apenas o pensamento de Valla, mas também de alguns pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública, advindos em sua maioria do Departamento de Ciências Sociais (DCS), que fundaram, ao final da década de 1980, o Núcleo de Estudos sobre Educação, Saúde e Cidadania (NEESC). Para Rosely Magalhães de Oliveira66 Oliveira RM. A produção do conhecimento em saúde em escala local: repensando a relação entre a investigação científica e a experiência dos grupos populares [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000., em sua Tese de Doutorado, os pesquisadores do recém-criado NEESC “criticavam os limites da proposta da Reforma Sanitária”, e ressaltavam que “apesar das boas intenções que pudessem mover os integrantes dos que coordenavam aquele movimento, a sua prática era bastante centralizadora”. A referida autora, afirma, inclusive, que

a população, representada pelas lideranças dos movimentos sociais/populares/comunitários/sindicais estava sendo chamada a participar do movimento, apenas no sentido de legitimar/aderir a uma proposta que já passara a existir na prática66 Oliveira RM. A produção do conhecimento em saúde em escala local: repensando a relação entre a investigação científica e a experiência dos grupos populares [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000..

O NEESC se colocou, desde seu início, a pesquisar as condições de vida de populações residentes na região conhecida como ‘área da Leopoldina’, valorizando o aspecto do cotidiano no processo de apreensão do fenômeno saúde-doença66 Oliveira RM. A produção do conhecimento em saúde em escala local: repensando a relação entre a investigação científica e a experiência dos grupos populares [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000..

Diante das premissas dialógicas e dialéticas evocadas pelo NEESC e pelo DSC da ENSP/Fiocruz e o contato de seus pesquisadores com lideranças comunitárias e ativistas sociais, ergueram-se as condições de possibilidade para a emergência, no âmbito da sociedade civil organizada, da ONG Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina (CEPEL) que teve entre seus principais entusiastas e protagonistas Victor Valla.

O periódico ‘Se Liga no Sinal’, publicação criada pela CEPEL, em junho de 1990, relaciona sua fundação com a

necessidade de criar um centro de estudos e pesquisas [que surgiu] entre pessoas ligadas à experiência de luta pela saúde e educação no bairro da Penha e pesquisadores do DCS/ENSP/Fiocruz, os quais mantiveram os primeiros contatos em início de 198677 CEPEL. Se Liga No Sinal 1991; 1(3):4..

No mesmo momento em que se constituía o periódico ‘Se Liga no Sinal’ surge, na estrutura da ENSP, o Núcleo de Estudos Locais em Saúde (ELOS) com diversos participantes do NEESC e CEPEL transitando neste novo espaço. Nomes como Victor Valla, Eduardo Stotz, Homero de Carvalho, Rosely Magalhães de Oliveira e José Wellington Araújo conviveram nestes distintos ambientes. Vale referenciar que as lideranças sociais com as quais os pesquisadores do CEPEL se relacionavam eram prioritariamente da região das favelas da Maré e da Penha. Em momento histórico correlato, a Fundação Oswaldo Cruz no contexto de articulação com o COEP (iniciativa do sociólogo Betinho para as empresas públicas) e com Projeto Universidade Aberta (com o Professor Szachna Cynamom) constituiu a COOTRAM- Cooperativa de Trabalhadores Autônomos em Manguinhos, com grande difusão na esfera pública. Apesar destas iniciativas se vincularem à Fiocruz e lidarem com grupos populares residentes nas proximidades de seu campus Manguinhos, não ocorreu articulação ou interação permanente entre elas77 CEPEL. Se Liga No Sinal 1991; 1(3):4..

A partir da fundação do CEPEL, Valla, além de pesquisar sobre a participação social, atuava como Conselheiro de Saúde no Conselho Distrital de Saúde (AP 3.1), no segmento usuários. Isso refletiu em sua produção intelectual, visto que seus textos, tanto artigos, como capítulos de livros ou obras completas, com maior focalização do tema participação, foram quase em sua totalidade publicados após o ano de 1993, ou seja, ano em que Valla experimentou a participação por dentro da engrenagem estatal.

Esta experiência possibilitou a Valla afirmar, numa outra perspectiva, que a aparente despolitização e apatia das camadas populares era de fato uma incompreensão dos técnicos mediadores.

A dificuldade de os mediadores compreenderem o que os membros das classes populares dizem relaciona-se mais à sua postura, a quanto lhes custa aceitar que as pessoas ‘humildes, pobres, moradoras da periferia’ sejam capazes de produzir conhecimento, de organizar e sistematizar pensamentos sobre a sociedade, do que a questões técnicas propriamente, como as linguísticas, por exemplo33 Valla VV. Educação e Participação Popular - Revendo o debate em torno da participação popular: ampliando sua concepção em uma nova conjuntura. In: Barata RG, Briceño-Leon RE, organizadores. Doenças Endêmicas: abordagens sociais, culturais e comportamentais. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2000. p. 251-268..

Sobre esse postulado epistemológico, Valla acena para a produção do sociólogo José de Souza Martins, que assinalava que a ‘crise de interpretação é nossa’88 Martins JS. Caminhando no Chão da Noite. São Paulo: Hucitec; 1989. e problematiza a questão sobre a presença/ausência de inciativa, em que técnicos mediadores acabariam por estabelecer discursividades sobre uma suposta apatia das camadas populares, incapazes por ignorância ou preguiça de se mobilizarem. Existiria ainda, segundo Valla, uma tendência dos mediadores em acharem que as formulações dos grupos populares são um espelho dos códigos e análises advindas da academia, configurando-se assim numa miopia analítica.

Muitas vezes os mediadores solicitam à população que se manifeste em uma reunião, como prova do seu compromisso com a ‘democracia de classe média’. Mas, uma vez passada a fala popular, procuram voltar “ao assunto em pauta”, entendendo que a fala popular foi uma interrupção necessária, mas sem conteúdo, sem valor33 Valla VV. Educação e Participação Popular - Revendo o debate em torno da participação popular: ampliando sua concepção em uma nova conjuntura. In: Barata RG, Briceño-Leon RE, organizadores. Doenças Endêmicas: abordagens sociais, culturais e comportamentais. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2000. p. 251-268..

Se a identificação e o reconhecimento do valor das classes populares postulavam-se como algo a ser perseguido, Valla99 Valla VV. Participação popular e saúde: a questão da capacitação técnica no Brasil. In: Valla VV, Stotz EM, organizadores. Participação popular, educação e saúde: teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 1993. p. 33. complexificou a problemática ao indagar se “a questão é facilitar, simplificar a mensagem ou é possibilitar a construção de um outro conhecimento”? Para Valla, certamente não, pois para ele a questão era trabalhar na perspectiva da construção compartilhada de conhecimento, postulado teórico coerente com a perspectiva da educação popular emancipatória advogada por ele.

Essa postura epistemológica de Valla coloca o conhecimento, no qual se insere na perspectiva de uma pesquisa militante, conforme reconhecido por importantes pesquisadores da área de educação como Maria Tereza Goudard Tavares, Reinaldo Matias Fleuri, Eymard Mourão Vasconcelos, Eveline Bertino Algebaile, em texto produzido em homenagem à Valla na prestigiosa Revista Brasileira de Educação1010 A contribuição de Victor Valla ao pensamento da educação popular. Rev. Bras. Educ 2009; 14(42):576-590..

No ano de 2001, Valla foi acometido por um AVC (Acidente Vascular Cerebral) do qual, em entrevista 4 anos depois, afirmava que ainda estava se recuperando. “Há pequenos avanços que são grandes conquistas, como aprender a amarrar o sapato, por exemplo”, enunciou Valla11 Valla VV. Entrevista: Victor Valla. Trab. educ. saúde 2005; 3(1):227-238.. Estabelecendo uma relação com ‘a força’ observada nas classes populares, Valla continua seu depoimento afirmando:

ainda sofro com certos medos, como o de cair na rua; já caí três vezes. Estou experimentando em mim o que é ser marcado por fortes fragilidades, como tanto acontece no mundo popular. Estou experimentando também o que são a garra e a incrível força de vontade que anima as pessoas das classes populares11 Valla VV. Entrevista: Victor Valla. Trab. educ. saúde 2005; 3(1):227-238..

Sua proximidade com o Pastor Edson Fernando de Almeida, da Igreja Cristã de Ipanema, após o evento AVC aguçou o olhar de Victor Valla para com as Igrejas Cristãs, de matriz neopentecostal. Em décadas de contato com moradores das favelas da Leopoldina, Valla assistiu o crescimento vertiginoso destas organizações, que alcançaram os horários nobres dos meios de comunicação e atuaram de forma direta na política pelo viés eleitoral. Seus últimos artigos publicados refletiram esse olhar sobre as relações entre apoio social das camadas populares e a religiosidade.

Em 2009, Valla deixa-nos fisicamente, mas suas formulações quanto ao processo educativo, especialmente junto aos grupos populacionais menos favorecidos se perpetua em seus ditos e escritos. Homenagens póstumas, como o Prêmio Victor Valla em Educação Popular (concedido anualmente pelo Ministério da Saúde), o texto já referenciado na Revista Brasileira de Educação, ou ainda, nas menções honrosas em Teses, Dissertações, livros e vídeos dão conta da relevante contribuição do pesquisador e militante para processos de reflexão e produção de sentidos sobre a experiência humana. Muitos são os que conviveram com este notável teórico e militante, de imensa generosidade intelectual com seus parceiros no exercício do pensamento em perspectiva coletiva, colaborativa e dialógica1111 Stotz EN. Entre a academia e a rua: Victor Vincent Valla (1937-2009). Interface (Botucatu) 2009; 13(31):461-466.. Lideranças comunitárias, agentes de saúde, discentes dos cursos da ENSP, FGV e da UFF, profissionais de saúde, conselheiros de saúde do CDS AP 3.1 e tantos outros formam essa rede que ainda subsiste problematizando as relações do poder público com as populações das favelas, refletindo sobre as práticas do cuidado e do acolhimento em saúde, bem como nas análises e nas posturas nos conselhos de saúde.

A marca do pensamento de Valla seria o reconhecimento político e epistemológico da potência e da existência de conhecimento nas formulações do heterogêneo contingente de cidadãos a que se referenciava como ‘classes populares’, o que implicaria na busca por novos métodos e adequações dos já existentes, de modo que o conhecimento possa ser construído de maneira compartilhada.

Referências

  • 1
    Valla VV. Entrevista: Victor Valla. Trab. educ. saúde 2005; 3(1):227-238.
  • 2
    Valla VV, organizador. Educação e favela. Petrópolis: Vozes; 1986.
  • 3
    Valla VV. Educação e Participação Popular - Revendo o debate em torno da participação popular: ampliando sua concepção em uma nova conjuntura. In: Barata RG, Briceño-Leon RE, organizadores. Doenças Endêmicas: abordagens sociais, culturais e comportamentais Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2000. p. 251-268.
  • 4
    Marteleto RM, Valla VV. Informação e educação popular - o conhecimento social no campo da saúde. Perspectivas em Ciência da Informação 2007; (n. esp.):8-21.
  • 5
    Lima ALSL. "Não vou bater palmas para maluco dançar": participação social nas favelas de Manguinhos (Rio de Janeiro, 1993/2011) [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017.
  • 6
    Oliveira RM. A produção do conhecimento em saúde em escala local: repensando a relação entre a investigação científica e a experiência dos grupos populares [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000.
  • 7
    CEPEL. Se Liga No Sinal 1991; 1(3):4.
  • 8
    Martins JS. Caminhando no Chão da Noite São Paulo: Hucitec; 1989.
  • 9
    Valla VV. Participação popular e saúde: a questão da capacitação técnica no Brasil. In: Valla VV, Stotz EM, organizadores. Participação popular, educação e saúde: teoria e prática Rio de Janeiro: Relume Dumará; 1993. p. 33.
  • 10
    A contribuição de Victor Valla ao pensamento da educação popular. Rev. Bras. Educ 2009; 14(42):576-590.
  • 11
    Stotz EN. Entre a academia e a rua: Victor Vincent Valla (1937-2009). Interface (Botucatu) 2009; 13(31):461-466.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Out 2019

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2017
  • Aceito
    15 Abr 2019
  • Publicado
    17 Abr 2019
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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