Shah S. The fever: how malaria has ruled humankind for 500,000 years. India: Penguin Random House India; 2018.

Lucas Mauro de Andrade Sucena Arthur Giovane Campos Batista Carla Jorge Machado Sobre os autores
2018.

A eliminação da malária, doença das mais antigas e mortais do mundo, desafia a saúde pública11 World Health Organization (WHO). Malaria fact sheet: world malaria day 2016 [Internet]. [acessado 9 Jun 2019]. Disponível em: http://www.who.int/malaria/publications/world-malaria-report-2016/report/en/
http://www.who.int/malaria/publications/...
. Em 2017 houve 219 milhões de casos da doença e 435.000 mortes no mundo. O número de casos cresceu de 2016 a 2017 justamente nos dez países com maior carga de doença e mais pobres, quais sejam, da África11 World Health Organization (WHO). Malaria fact sheet: world malaria day 2016 [Internet]. [acessado 9 Jun 2019]. Disponível em: http://www.who.int/malaria/publications/world-malaria-report-2016/report/en/
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Dos casos de malária no Brasil, 99% ocorrem na Amazônia. O Amazonas e o Acre respondem por 60 a 70% dos casos na Região e no país22 Carlos BC, Rona LDP, Christophides GK, Souza-Neto JA. A comprehensive analysis of malaria transmission in Brazil. Pathog Glob Health 2019; 113(1):1-13. e aqueles por Plasmodium falciparum atingem 75% do total de casos pelo protozoário. A maior parte desses casos ocorrem em municípios que fazem fronteira com o Peru. Credita-se esse fenômeno à: mudança do meio pelo homem; aceleração da atividade de pesca; migração22 Carlos BC, Rona LDP, Christophides GK, Souza-Neto JA. A comprehensive analysis of malaria transmission in Brazil. Pathog Glob Health 2019; 113(1):1-13.. Contudo, responsável por 90% dos casos no Brasil é o P. vivax33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Guia prática de tratamento da malária no Brasil. Brasília: MS; 2010., com desafios para o seu controle que incluem anos de latência e infecções assintomáticas que favorecem a manutenção do reservatório do parasita22 Carlos BC, Rona LDP, Christophides GK, Souza-Neto JA. A comprehensive analysis of malaria transmission in Brazil. Pathog Glob Health 2019; 113(1):1-13..

Não há estado brasileiro que não conviva com a presença da malária, com três sistemas de transmissão da doença identificados no país: da Floresta Amazônica, da Floresta Atlântica e da Costa Brasileira (maioria de estados do Nordeste, com parte do Norte e Nordeste, na região litorânea)22 Carlos BC, Rona LDP, Christophides GK, Souza-Neto JA. A comprehensive analysis of malaria transmission in Brazil. Pathog Glob Health 2019; 113(1):1-13.. Os dois primeiros são os principais22 Carlos BC, Rona LDP, Christophides GK, Souza-Neto JA. A comprehensive analysis of malaria transmission in Brazil. Pathog Glob Health 2019; 113(1):1-13..

O mosaico da situação da malária no Brasil, com diferentes espécies de plasmódio infectante envolvidas e com casos em todos os estados, sugere a necessidade de estudos continuados para que sejam desenvolvidas políticas públicas. A obra “The Fever: how Malaria has ruled humankind for 500,000 years” da jornalista norte-americana Sonia Shah, portanto, é oportuna. No livro, a relação entre o homem e o plasmódio é densamente explorada pela autora, que não é da área de saúde, mas possui inserção nesse campo do conhecimento. A origem da relação de Shah com a malária vem da sua relação familiar com a Índia; desde sua infância a autora visitava o país, o que chamou sua atenção para a doença no contexto de iniquidade e pobreza. Esse aspecto pessoal é um ponto forte para os que procuram uma obra dotada de lembranças e de narrações extensas e detalhadas, que se aproxima da literatura. Contudo, há, nessa opção, também desvantagens: as descrições sobre as pesquisas sobre a malária, um tema claramente de preferência da autora, são bastante longas e Shah ainda dedica espaço desproporcional, por exemplo, ao Harvard Malaria Initiative. Em outro momento do livro há longa incursão ao tema parasitismo sem necessariamente se referir à malária, levando o leitor à distração do foco da obra.

O agente causador da malária, protozoários Plasmodium spp, merece destaque no livro. A partir da reflexão de que doenças tornam-se, progressivamente, menos virulentas, Shah mostra como a sua ação parasitária contraria a ecologia. Aborda a evolução do protozoário desde os seus ancestrais e como evoluíram junto aos mosquitos Anopheles sp. e, posteriormente aos humanos, incorporando meios de burlar seus sistemas imunes e usar os organismos ao seu favor. Estudo em animais, de pesquisadores brasileiros, aponta que o plasmódio aproveita, de fato, a ingestão de alimento do hospedeiro e a disponibilidade de nutrientes para proliferar44 Hirako IC, Assis PA, Hojo-Souza NS, Reed G, Nakaya H, Golenbock DT, Coimbra RS, Gazzinelli RT. Daily Rhythms of TNF a Expression and Food Intake Regulate Synchrony of Plasmodium Stages with the Host Circadian Cycle. Cell Host Microbe 2018; 23(6):796-808.; o estudo avançou ao identificar que os níveis de glicose, ao serem controlados, concorreriam para a diminuição da replicação do parasita, e esse achado é capaz de ajudar na formulação de terapêuticas44 Hirako IC, Assis PA, Hojo-Souza NS, Reed G, Nakaya H, Golenbock DT, Coimbra RS, Gazzinelli RT. Daily Rhythms of TNF a Expression and Food Intake Regulate Synchrony of Plasmodium Stages with the Host Circadian Cycle. Cell Host Microbe 2018; 23(6):796-808..

A transmissão da malária depende de condições ambientais específicas e de como distúrbios ambientais se associam a novas epidemias da doença. Na obra são abordados como a interferência do homem sobre o meio e as consequentes mudanças epidemiológicas permitiram: ascensão e queda do Império Romano; formação geopolítica norte-americana; definição dos cursos da primeira guerra mundial. Ademais, a autora menciona como a expansão agrícola e mineral brasileira criou ambientes favoráveis à transmissão do protozoário no país. Sabe-se ainda que, no Brasil, a abolição da escravatura em 1888 levou ao abandono da agricultura e consequente interrupção dos sistemas de irrigação e drenagem nas plantações no Rio de Janeiro e em São Paulo, e a malária passou a acometer essa população por décadas55 Griffing SM, Tauil PL, Udhayakumar V, Silva-Flannery L. A historical perspective on malaria control in Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz 2015; 110(6):701-718.. Adequada drenagem de águas pluviais e outras estratégias de saneamento ambiental, já identificadas como importantes no controle de doenças associadas à inundações, em áreas urbanas, ainda não são plenamente adotadas no Brasil66 Giatti LL. Reflexões sobre água de abastecimento e saúde pública: um estudo de caso na Amazônia brasileira. Saúde Soc 2007; 16(1):134-144.. A obra, ao descrever o efeito dessas condições desfavoráveis, pode ajudar a alavancar políticas ambientais com o intuito de reduzir a transmissão da malária no Brasil.

A ascenção de drogas, como quinina, cloroquina e artemisinina, cada uma considerada em seu devido momento histórico, é também merece destaque na obra “The Fever”; é discutido que sempre foram apresentadas como esperança para a erradicação do parasito. No Brasil não é e não foi diferente, com ênfase para a estratégia desacertada do sal de Cloroquina. Recentemente, artemisina em associação com lumefantrina para tratamento – de acordo Shah, droga lançada pela Novartis para conter a resistência do parasito – é usada nos principais hospitais do Amazonas55 Griffing SM, Tauil PL, Udhayakumar V, Silva-Flannery L. A historical perspective on malaria control in Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz 2015; 110(6):701-718.. Shah discute que a eficácia de todos os medicamentos testados até então, no mundo, diminuem com o tempo, pela seleção de cepas resistentes, e mais, que a queda da eficácia supera em velocidade a capacidade de produção de novos fármacos. Essa visão é corroborada por Griffin et al.55 Griffing SM, Tauil PL, Udhayakumar V, Silva-Flannery L. A historical perspective on malaria control in Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz 2015; 110(6):701-718.: o século XX mostrou que os antimaláricos e inseticidas são métodos de controle eficazes, se não falharem. Infelizmente, todos eles parecem falhar55 Griffing SM, Tauil PL, Udhayakumar V, Silva-Flannery L. A historical perspective on malaria control in Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz 2015; 110(6):701-718.(p.715, tradução nossa).

A experiência brasileira de políticas públicas passou pelo uso do DDT (diclorodifeniltricloroetano) para eliminação da população de mosquitos adultos, e esse aspecto também é apresentado na obra. Com a descoberta do DDT o foco das estratégias de controle no mundo voltou-se à eliminação da população de mosquitos adultos. No Brasil, o uso do DDT ocorreu em toda a Amazônia em 1960, e o uso em locais fechados foi banido em 1999 dados os riscos toxicológicos e ecológicos comprovados55 Griffing SM, Tauil PL, Udhayakumar V, Silva-Flannery L. A historical perspective on malaria control in Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz 2015; 110(6):701-718.,77 Lapouble OMM, Santelli ACFS, Muniz-Junqueira MI. Situação epidemiológica da malária na região amazônica brasileira, 2003 a 2012. Rev Panam Salud Publica 2015; 38(4):300-306.. A autora realmente aponta que houve contaminação de toda a cadeia alimentar pelo DDT, em escala mundial.

A educação e envolvimento das populações acometidas para erradicação da doença, em contexto tão difícil de controle da malária, é crucial nas comunidades, mas enfrenta desafios identificados na obra. Para Shah, as vítimas de algumas populações, de tão acostumadas aos sintomas e à frequência das infecções, não procuram atendimento ou não aderem ao tratamento. A busca por ajuda ocorre, muitas vezes, apenas em situações extremas e, frequentemente, irreversíveis, havendo ainda o baixo entusiasmo de equipes locais em tratar a malária, pela sensação de impotência frente à relação de coexistência das comunidades com o parasito. Infelizmente, ainda há práticas equivocadas de controle químico na maior parte dos municípios brasileiros, como a aplicação espacial de inseticidas sem critério técnico entomológico ou epidemiológico na rotina dos serviços de saúde77 Lapouble OMM, Santelli ACFS, Muniz-Junqueira MI. Situação epidemiológica da malária na região amazônica brasileira, 2003 a 2012. Rev Panam Salud Publica 2015; 38(4):300-306.. Muito embora tenha havido evolução no controle da malária na Amazônia, é nos locais com baixa transmissão que ocorre a maior dificuldade para a redução dessa transmissão, exigindo maior mobilização das equipes de saúde, sendo este o grande desafio atual77 Lapouble OMM, Santelli ACFS, Muniz-Junqueira MI. Situação epidemiológica da malária na região amazônica brasileira, 2003 a 2012. Rev Panam Salud Publica 2015; 38(4):300-306.. O uso de novos indicadores para monitoramento da malária tem dado bons resultados no Brasil e reconhece-se também a necessidade de fortalecimento de equipes locais de entomologia para efetuar medidas de controle88 Baia-da-Silva DC, Brito-Sousa JD, Rodovalho SR, Peterka C, Moresco G, Lapouble OMM. Melo GC, Sampaio VS, Alecrim MDGC, Pimenta P, Lima JBP, Lacerda MVG, Monteiro WM. Current vector control challenges in the fight against malaria in Brazil. Rev Soc Bras Med Trop 2019; 52: e20180542., mas não se identificou na literatura brasileira reflexões sobre a mobilização das comunidades. Os aspectos apresentados e discutidos em “The Fever” podem ser úteis na compreensão dessas estratégias de mobilização e envolvimento das comunidades locais.

Em conclusão, para a autora o trabalho antimalárico deve desencadear tecnologia, vontade política e infraestrutura nos países. No Brasil e no mundo, a obra pode auxiliar planejadores de políticas na formulação de estratégias para lidar com as origens do adoecimento por malária e surtos da doença, tendo em vista o retrato apresentado por Sonia Shah, que percorre os vários espaços onde a malária ocorre, buscando compreender como pode ser contida.

Referências

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    World Health Organization (WHO). Malaria fact sheet: world malaria day 2016 [Internet]. [acessado 9 Jun 2019]. Disponível em: http://www.who.int/malaria/publications/world-malaria-report-2016/report/en/
    » http://www.who.int/malaria/publications/world-malaria-report-2016/report/en/
  • 2
    Carlos BC, Rona LDP, Christophides GK, Souza-Neto JA. A comprehensive analysis of malaria transmission in Brazil. Pathog Glob Health 2019; 113(1):1-13.
  • 3
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Guia prática de tratamento da malária no Brasil Brasília: MS; 2010.
  • 4
    Hirako IC, Assis PA, Hojo-Souza NS, Reed G, Nakaya H, Golenbock DT, Coimbra RS, Gazzinelli RT. Daily Rhythms of TNF a Expression and Food Intake Regulate Synchrony of Plasmodium Stages with the Host Circadian Cycle. Cell Host Microbe 2018; 23(6):796-808.
  • 5
    Griffing SM, Tauil PL, Udhayakumar V, Silva-Flannery L. A historical perspective on malaria control in Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz 2015; 110(6):701-718.
  • 6
    Giatti LL. Reflexões sobre água de abastecimento e saúde pública: um estudo de caso na Amazônia brasileira. Saúde Soc 2007; 16(1):134-144.
  • 7
    Lapouble OMM, Santelli ACFS, Muniz-Junqueira MI. Situação epidemiológica da malária na região amazônica brasileira, 2003 a 2012. Rev Panam Salud Publica 2015; 38(4):300-306.
  • 8
    Baia-da-Silva DC, Brito-Sousa JD, Rodovalho SR, Peterka C, Moresco G, Lapouble OMM. Melo GC, Sampaio VS, Alecrim MDGC, Pimenta P, Lima JBP, Lacerda MVG, Monteiro WM. Current vector control challenges in the fight against malaria in Brazil. Rev Soc Bras Med Trop 2019; 52: e20180542.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jun 2020
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