Doenças crônicas não transmissíveis e suas implicações na vida de idosos dependentes

Ana Elisa Bastos Figueiredo Roger Flores Ceccon José Henrique Cunha Figueiredo Sobre os autores

Resumo

Este estudo tem como objetivo investigar as implicações das doenças crônicas não transmissíveis em idosos dependentes. Trata-se de um estudo multicêntrico com abordagem qualitativa em que foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 59 idosos dependentes que tinham diagnóstico de doença crônica. Para a análise das informações, utilizou-se a técnica da Análise Temática. A maioria dos idosos era do sexo feminino, da raça branca, com baixa escolaridade e vivia com a filha. Todos faziam tratamento medicamentoso e as doenças cardiocirculatórias foram as mais prevalentes. As implicações das doenças crônicas se manifestam no uso de medicamentos, que também se constituem como fator de risco; na condição da dependência e na vivência com doenças crônicas, que denotam em maior uso dos serviços de saúde; no alto impacto econômico das doenças crônicas para as famílias e para o Estado; e na precariedade da renda familiar, que condicionam os idosos a contarem com poucos dispositivos de apoio social e comunitário.

Palavras-chave:
Doenças crônicas não transmissíveis; Idosos dependentes; Envelhecimento; Pesquisa qualitativa

Introdução

As doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) se caracterizam por um conjunto de patologias de múltiplas causas e fatores de risco, longos períodos de latência e curso prolongado. Além do mais, têm origem não infecciosa e podem resultar em incapacidades funcionais11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Diretrizes e Recomendações para o Cuidado Integral de Doenças crônicas Não-Transmissíveis: promoção da saúde, vigilância, prevenção e assistência. Brasília: MS; 2008..

No início do século XX, as doenças infecciosas eram as principais causas de óbito na população mundial, enquanto que, atualmente, as DCNT se constituem como as principais causas de mortalidade, resultado das melhores condições socioeconômicas e de saúde nas últimas décadas. Em 2008, houve 36 milhões de mortes no mundo, sendo 63% por DCNT, destacando-se as doenças do aparelho circulatório, diabetes, câncer e doença respiratória crônica. Os idosos e as pessoas com baixa escolaridade e renda foram as mais atingidas22 Alwan A. Monitoring and surveillance of chronic non-communicable diseases: progress and capacity in high-burden countries. Lancet 2010; 376(9755):1861-1868..

No Brasil, as DCNT representam a principal carga de doenças e mortes na população, constituindo-se como um importante problema de saúde pública. Em 2009, o Disability Adjusted Life Years (DALY), que mede simultaneamente o efeito da mortalidade e da morbidade das doenças na população, respondia por 72% dos anos de vida perdidos22 Alwan A. Monitoring and surveillance of chronic non-communicable diseases: progress and capacity in high-burden countries. Lancet 2010; 376(9755):1861-1868.,33 Schramm JMA, Oliveira AF, Leite IC, Valente JG, Gadelha AMJ, Portela MC, Campos MR. Transição epidemiológica e o estudo de carga de doenças no Brasil. Cien Saude Colet 2004; 9(4):897-908. Em 2012 as doenças crônicas correspondiam a quase 70% de anos de vida perdidos por incapacidade no Brasil. Essa proporção aumenta com a idade, chegando a quase 90% de todo o DALY entre os idosos de 70 anos ou mais44 Boccolini CS. Morbimortalidade por doenças crônicas no Brasil: situação atual e futura. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016.. Os idosos com mais de 80 anos têm maior índice de mortalidade (74%) que os com 60 a 79 anos (25%)55 Schmidt MI, Duncan BB, Azevedo e Silva G, Menezes AM, Monteiro CA, Barreto SM, Chor D, Menezes PR. Chronic noncommunicable diseases in Brazil: burden and current challenges. Lancet 2011; 377(9781):1949-1961..

As DCNT em idosos dependentes estão associadas à perda da funcionalidade e são a principal causa de disfuncionalidade na maioria dos países sul-americanos, incluindo o Brasil. A disfuncionalidade se refere a deficiências, limitação de atividades ou restrição na participação comunitária e social66 Cabrera MAS, Andrade SM, Wajngarten M. Causes of mortality in elderly people: a 9-year follow-up study. Geriatria & Gerontologia. 2007; 1(1):14-20

7 Hansen EO, Tavares STO, Cândido SA, Pimenta FAlP, Moraes EN, Rezende NA. Classificação internacional de funcionalidade, de doenças e prognóstico médico em pacientes idosos. Rev Med Minas Gerais 2011; 21(1):55-60.
-88 World Health Organization (WHO). International Classification of functioning, disability and health: ICF. Genebra: WHO; 2001..

As DCNT acarretam custo econômico elevado tanto para o sistema de saúde como para a sociedade, impactando negativamente sobre o desenvolvimento dos países. Além do mais, os profissionais de saúde estão pouco preparados para atender as necessidades desse grupo, já que menos de 15% dos programas de graduação em ciências da saúde nas Américas e menos de 10% das principais especialidades médicas incluem Envelhecimento e Saúde Geriátrica em seus planos de ensino99 Pereira RA, Alves-Souza RA, Vale JS. Processo de transição epidemiológica no Brasil: uma revisão de literatura. Revista Científica da Faculdade de Educação e Meio Ambiente 2015; 6(1):99-108.,1010 Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Brasil. Envelhecimento e Saúde. Brasília: OPAS; 2018..

Na tentativa de produzir subsídios para a elaboração de uma Política Pública que contemple as especificidades relativas aos efeitos das DCNT na vida de idosos em situação de dependência1111 Minayo MCS. O imperativo de cuidar da pessoa idosa dependente. Cien Saude Colet 2019; 24(1):247-252., este estudo tem como objetivo investigar as implicações das DCNT em idosos dependentes em municípios de diferentes regiões do Brasil.

Desenho metodológico

Estudo qualitativo cujo marco teórico se insere na perspectiva da hermenêutica-dialética, o qual valorizou o exercício crítico e compreensivo da linguagem, das relações e das práticas sociais das pessoas envolvidas com a dependência dos idosos no Brasil. Faz parte de pesquisa multicêntrica cujo foco é formular subsídios para a construção de políticas públicas sobre dependência. A investigação foi realizada pelo Claves/ENSP/Fiocruz em conjunto com oito instituições de ensino: Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Universidade Federal do Piauí (UFPI), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Ministério da Previdência Social do Brasil.

A investigação, durante o ano de 2019, abrangeu oito municípios brasileiros: Araranguá (SC), Brasília (DF), Fortaleza (CE), Manaus (AM), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ) e Teresina (PI).

Do total de 64 idosos entrevistados na pesquisa, participaram deste estudo 59 pessoas (Tabela 1), cujos critérios de inclusão envolveram: idade igual ou superior a 60 anos; de ambos os sexos; com algum tipo de dependência física, mental ou cognitiva; com diagnóstico de DCNT e em condições para responderem à entrevista. Excluíram-se os idosos vinculados à Instituições de Longa Permanência ou residindo sozinhos. Os idosos foram identificados pelos profissionais da Estratégia de Saúde da Família, Hospitais e outros serviços de saúde dos municípios investigados.

Tabela 1
Frequência absoluta e relativa de Doenças Crônicas Não Transmissíveis entre os idosos dependentes em municípios de diferentes regiões do Brasil, 2019.

As informações foram coletadas por meio de entrevistas semiestruturadas, orientadas por instrumento padronizado e construído por pesquisadores de universidades brasileiras, e realizadas por pesquisadores devidamente capacitados. Os temas tratados nas entrevistas compreenderam informações relativas aos dados sociodemográficos; DCNT; constituição familiar; dependência funcional, cognitiva, mental/emocional e social.

A quantificação dos aspectos sociodemográficos foi realizada através do Software Statistical Package for the Social Sciences, versão 20.0. Foi apresentada a medida de frequência das características dos participantes, que envolveu aspectos relativos ao sexo, raça, estado civil, faixa etária, quantidade de filhos e netos, religião e escolaridade; quantitativo de doenças por idoso, medicação e grupo de DCNT (neoplasias, diabetes, doenças respiratórias e doenças cardiocirculatórias).

As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas. Destaca-se que os enunciados qualitativos e os dados para quantificação dos aspectos sociodemográficos selecionados para este estudo foram coletadas do corpus textual gerado pelas transcrições realizadas pelos pesquisadores.

Os enunciados qualitativos foram analisados segundo a ótica da Análise Temática (AT). A análise temática descrita por Braun e Clarke1212 Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology 2006; 3(2):77-101. é um método analítico utilizado nas investigações de cunho qualitativo, que busca analisar fenômenos, com base nos dados trabalhados, tematizando significados e possibilitando a codificação temática. A análise foi realizada em seis fases: 1. Familiarização com os dados; 2. Produção de códigos iniciais; 3. Busca por temas; 4. Revisão dos temas; 5. Definição e nomeação dos temas; 6. Seleção de exemplos vividos pelos entrevistados que foram convertidos em temas, subtemas e análise final. Na Figura 1 são apresentados os temas e subtemas que emergiram dos relatos dos entrevistados.

Figura 1
Temas e subtemas.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz).

Resultados e discussão

Características sociodemográficas

Neste estudo foram utilizadas informações de 59 idosos dependentes que referiram ser portadores de DCNT. A maioria dos idosos dependentes era do sexo feminino (62,7%), da raça branca (56,3%), com baixa escolaridade e de religião católica; 54,7% eram longevos, com idade superior a 80 anos, viviam sem a presença de companheiro, tinham filhos e netos. Do total, 37,5% moravam com uma filha e 31,3% com o companheiro, em casa própria e adaptada às necessidades (Tabela 2).

Tabela 2
Características sociodemográficas dos idosos dependentes que vivem com Doenças Crônicas Não Transmissíveis. Municípios em diferentes regiões do Brasil, 2019.

Os dados corroboram a projeção demográfica para o Brasil, que aponta maior proporção de mulheres brancas entre as pessoas idosas, em decorrência da mortalidade diferencial por sexo e raça, que afeta precocemente a população negra e masculina1313 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Tábua completa de mortalidade para o Brasil 2018: Breve análise da evolução da mortalidade no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2019.. Baixa escolaridade e piores condições socioeconômicas estão associadas à perda da capacidade física e funcional entre idosos, pois possivelmente os mesmos acumularam uma maior carga de doenças ao longo da vida, desempenharam atividades laborais insalubres, possuem hábitos de vida prejudiciais e menor acesso aos serviços de saúde. Ademais, a população com 80 anos ou mais está aumentando no Brasil, sendo a mais vulnerável aos vários tipos de dependência1414 Camarano AA. Quanto custa cuidar da população idosa dependente e quem paga por isto? In: Camarano AA, organizador. Novo regime demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento? Rio de Janeiro: Ipea; 2014. p. 605-623..

Os idosos apresentam elevado número de filhos, netos e contam com a presença do cônjuge ou da pessoa que os cuida, embora muitos se sintam sozinhos. Este paradoxo pode ser resultado das mudanças e das dinâmicas familiares marcadas pela coexistência de bisnetos, netos e filhos na mesma residência, ao mesmo tempo em que se constata a perda do vínculo e da solidariedade1414 Camarano AA. Quanto custa cuidar da população idosa dependente e quem paga por isto? In: Camarano AA, organizador. Novo regime demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento? Rio de Janeiro: Ipea; 2014. p. 605-623..

Foi possível observar que a maioria sofria com duas doenças (50,3%) e todos faziam tratamento medicamentoso. As doenças cardiocirculatórias apresentaram maior prevalência (88,1%), seguida da diabetes (23,1%), neoplasias (8,5%) e problemas respiratórios (3,4%) (Tabela 3).

Tabela 3
Características das Doenças Crônicas Não Transmissíveis em idosos dependentes. Municípios de diferentes regiões do Brasil, 2019.

Alves et al.1515 Alves LC, Leimann BCQ, Vasconcelos MEL, Carvalho MS, Vasconcelos AGG, Fonseca TCO, Lebrão ML, Laurenti R. A influência das doenças crônicas na capacidade funcional dos idosos do Município de São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica 2007; 23(8):1924-1930. apontam que as doenças crônicas apresentam forte influência na capacidade funcional do idoso. A presença de hipertensão arterial aumenta em 39% a chance de se tornar dependente nas AIVD; a doença cardíaca em 82%; e a doença pulmonar, 50%. Câncer e diabetes são apontados como causadores de impacto moderado na funcionalidade dos idosos1515 Alves LC, Leimann BCQ, Vasconcelos MEL, Carvalho MS, Vasconcelos AGG, Fonseca TCO, Lebrão ML, Laurenti R. A influência das doenças crônicas na capacidade funcional dos idosos do Município de São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica 2007; 23(8):1924-1930.. Para a dependência nas AIVDs e AVDs, a chance mais do que dobrou para a presença de cada uma dessas doenças crônicas, aumentando quando os idosos apresentam mais de uma DCNT1414 Camarano AA. Quanto custa cuidar da população idosa dependente e quem paga por isto? In: Camarano AA, organizador. Novo regime demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento? Rio de Janeiro: Ipea; 2014. p. 605-623..

A manutenção da capacidade funcional pode contribuir para a qualidade de vida dos idosos, por estar relacionada com as condições do indivíduo se manter ativo, desfrutando sua independência até as idades mais avançadas. Assim, a prevenção e o controle das DCNT podem melhorar as atividades e, consequentemente, promover o bem-estar desta população1616 World Health Organization (WHO). Relatório mundial de envelhecimento e saúde. Geneva: WHO; 2015..

Características socioambientais

Relações familiares, sofrimento e resiliência

O grupo de idosos entrevistados apresentou múltiplas DCNT, assim como dependia - em vários níveis de gravidade - de terceiros para o desempenho de suas atividades de vida diária e atividades instrumentais de vida diária. A maioria relatou residir com filha, esposo, companheiro, irmã e neto (apenas três viviam sozinhos: Moro sozinho (Rio de Janeiro, Masc.,80 anos); Vivo muito só, o que eu queria mesmo era uma pessoa que passasse o dia aqui para conversar comigo (Piauí, Fem., 86 anos) o que é compatível com as colocações de Finucane1717 Finucane TE. How is geriatrics diferent from general internal medicine? Geriatr Gerontol Int 2004; 4:259-266. sobre esse tema, ao sinalizar que idosos dependentes são mais frágeis e vulneráveis e têm maior possibilidade de morrer precocemente se não forem cuidados.

O fato dos idosos precisarem estar aos cuidados de familiares foi visto por 26 deles com sentimento de tristeza, desgosto e de viver acuado:

Me sentindo triste (choro). Me sinto bem não, porque eu gosto de trabalhar, eu gosto de fazer minhas coisas, eu fico desgostosa (Fortaleza, Fem., 89 anos).

Me sinto acuada, porque não posso fazer nada (Fortaleza, Fem., 96 anos).

A tristeza percebida nas falas resulta do sentimento de inutilidade e pela impossibilidade de realizar atividades que antes da DCNT eram prazerosas. Essa tristeza pode conduzir o idoso ao isolamento social e à solidão e se tornar um círculo vicioso que precisa ser rompido, pois quanto maior a tristeza, maior o isolamento e a solidão, e quanto mais cresce o isolamento e a solidão, maior o sentimento de tristeza. A tristeza é um sentimento compreensível em idosos com doença crônica pois as incertezas quanto a sua resposta ao tratamento, tempo de sobrevida e de cura causam ansiedade e são fatores estressantes.

Já 33 idosos mostram-se conformados pois desenvolveram estratégias para continuar vivendo:

Alegria, de poder ainda agir com alguma coisa, (referindo-se a conseguir pentear o cabelo). Me sinto bem, sinto que ainda estou ativa para alguma coisa. (Manaus, Fem., 79 anos).

No depoimento acima se observa uma ressignificação da dor e do sofrimento em sentimentos de aceitação e prazer, por parte da idosa valorizando sua capacidade de enfrentamento de situações adversas.

O que é compatível com a concepção de resiliência na velhice, uma vez que suas “reservas afetivas e cognitivas se manifestam por meio dos recursos de enfrentamento e de regulação afetiva, da motivação, das metas e das autocrenças de capacidade”1818 Fontes AP, Liberalesso AN. Resiliência e velhice: revisão de literatura. Cien Saude Colet 2015; 20(5):1475-1495..

O convívio no ambiente domiciliar e a proteção oferecida pelos membros da família, que demonstram compreensão, empatia e estímulo às experiências positivas, são fatores que dignificam a vida dos idosos, na etapa final de seu ciclo existencial, principalmente aqueles portadores de DCNT. Particularmente, o apoio familiar é referido às trocas interpessoais emocionalmente favoráveis, junto ao cuidado necessário e adequado dão-lhe segurança1919 Figueiredo AEB, Silva RM, Vieira LJE, Mangas RMN, Sousa GS, Freitas JS, Conte M, Sougey EB. É possível superar ideações e tentativas de suicídio? Um estudo sobre idosos. Cien Saude Colet 2015; 20(6):1711-1719..

Tem esse menino ai que me ajuda (filho), tem as meninas também que estão dormindo (netas). Elas todas me ajudam. Graças a Deus que aqui não tem negócio de desunião não, aqui é tudo na paz (Piauí, Fem., 87).

Alguns idosos entrevistados referiram que são cuidados por apenas um familiar.

Agora eu estou por conta dela (referindo-se à filha) (Rio de Janeiro, Fem., 97 anos).

Observando as falas desses idosos, constata-se que o cuidado é realizado pelo familiar por uma necessidade movida pela incapacidade física ou mental deles para cuidarem de si. Esse fato traz à tona a questão do desgaste do familiar que cuida sozinho, sem divisão de responsabilidades entre os membros da família. Como se constatou neste estudo, essa sobrecarga pode levar o familiar a perdas das suas relações sociais anteriores e insatisfação por não poder concretizar projetos pessoais e profissionais2020 Osório AR, Pinto FC. As pessoas idosas: contexto social e intervenção educativa Lisboa: Instituto Piaget; 2007.. Além das dificuldades dos filhos e outros parentes dividirem seu tempo e suas responsabilidades com a pessoa que cuida, no Brasil, as políticas de saúde e sociais disponibilizam recursos insuficientes para atenuar a carga que recai unicamente na família.

Experiência de doença e questões de gênero

Procurou-se nos relatos dos idosos dependentes observar como a experiência da doença2121 Alves PC, Rabelo M. Significação e metáforas: aspectos situacionais no discurso da enfermidade. In: Pitta A, organizador. Saúde e Comunicação: visibilidades e silêncios. São Paulo: Hucitec/Abrasco; 1995. [informar as páginas do capítulo] afeta suas vidas e de que maneira buscam compensar essa vivência. Concorda-se com Ricoeur2222 Ricoeur P. Teoria da Interpretação. Lisboa: Edições 70; 1987. quando diz que a linguagem é o processo pelo qual a experiência privada se torna pública e é exteriorizada. No caso, a experiência de doença dos idosos dependentes aqui estudados foi exteriorizada pelo relato de suas vivências. Foi em seus depoimentos que se buscou conhecer suas realidades. Nesses estratos de falas, há pelo menos três atitudes: aflição e descontentamento; aceitação e atitude positiva; e, pensamentos extremos sobre a morte.

Ao refletir sobre o estado de saúde dos idosos, marcado por limitações e incômodos físicos, fica evidente o peso da perda de autonomia física, da dependência funcional e do fato de precisarem de uma terceira pessoa para apoiá-los. Assim se expressaram alguns idosos sobre sua tristeza e descontentamento:

Estou me sentindo um inútil, dando trabalho para o povo aí. É porque estou dependendo para tudo, ai me sinto inútil, porque quero ser produtivo, eu quero trabalhar, eu não quero ficar nessa situação. (Piauí, Masc., 60 anos).

O relato contundente deste entrevistado aponta para a importância do trabalho e da produção na vida dos homens em qualquer idade, pois o trabalho é um pilar identitário da masculinidade e possui um forte elo com a forma de inserção na família que ele constitui2323 Zanello V. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris; 2018..

A experiência de doença que cria dependência interpela integralmente o idoso, expondo suas fragilidades e aflições. A impossibilidade de realizar tarefas cotidianas e a desilusão causada pela incerteza quanto ao futuro inicia uma reação de muito sofrimento:

Triste, acho ruim viver desse jeito. (Santa Catarina, Fem., 87 anos).

Há idosos que, ao contrário, se sentem bem e relatam sua experiência de forma resiliente e positiva. Dar sentido positivo às contingências da dependência é enfatizado por Dias2424 Dias LF. Doença como experiência: seus episódios e suas narrativas Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília 2016; 2(1):78-89. quando afirma que: “Quando a vida não sorri da maneira exata como se gostaria, por exemplo, diante de um episódio de doença, pegam-se alguns atalhos para resolver os problemas práticos e aflições existenciais”.

Eu me sinto bem, graças a Deus. (Piauí, Fem., 86 anos).

A minha vida é uma felicidade por eu ter meus filhos ao redor de mim. (Piauí, Fem., 87 anos).

Os dois casos citados, encontram respaldo nas palavras de Laplantine2525 Laplantine F. Antropologia da Doença. São Paulo: Martins Fontes; 2004., segundo o qual, o normal e o patológico não são mais pensados em termos de ser (alguma coisa em algum lugar) mas em termos de harmonia e desarmonia, de equilíbrio e desequilíbrio. A doença, portanto, passa a não ser considerada uma entidade inimiga e estranha, mas um desarranjo por excesso ou falta. Desse modo, as consequências existenciais geradas a partir de uma situação de dependência estão sujeitas, em grande medida, à forma como o idoso se expõe ao mundo e de sua receptividade em relação às circunstâncias de sua condição, mas particularmente, da rede de apoio que possui e amealhou durante a vida. Nesse sentido, a última etapa do ciclo existencial reflete a história e a trajetória do ser humano.

Alguns outros idosos mostraram que para eles é insuportável estar vivendo em situação de sofrimento por causa de suas comorbidades e pela situação de dependência. Por isso, apresentam pensamentos extremos como o desejo dar cabo à vida, como forma de silenciar as vivencias de aflição, como na seguinte fala:

Minha vida atual é pensar em morrer duma vez para tão logo descansar. (Santa Catarina, Fem., 80 anos).

Essa última fala remete ao que foi ressaltado por Shneidman2626 Shneidman ES. Comprehending suicide. Washington: American Psychological Association; 2001., mostrando que o comportamento suicida é fruto de um sentimento de dor intolerável relacionado com frustrações pelas necessidades psicológicas básicas não satisfeitas; por atitudes de autodesvalorização; por uma autoimagem que não consegue aguentar a dor psicológica intensa da incapacidade de exercer as tarefas do dia-a-dia; pela sensação de isolamento e desesperança de solucionar as causas da dor intolerável.

As desigualdades de gênero aparecem como importantes neste estudo desde o percentual de mulheres (62,7%) que vivem com DCNT que é maior que entre os homens (37,3%). Embora essa questão não tenha sido aprofundada nas entrevistas, merecem algumas considerações.

A predominância do sexo feminino pode se dar pelo fato das mulheres apresentarem maior expectativa de vida na sociedade brasileira, embora também sejam as principais vítimas de violência doméstica e de discriminação no acesso à educação, renda, alimentação, trabalho e assistência à saúde. Esse aspecto contribui para a propensão de apresentar mais disfuncionalidade do que os homens em idades mais avançadas, o que foi observado também nos estudos de Botev2727 Botev N. Older persons in countries with economies in transitions. Population Ageing: Challenges for Policies and Programmes in Developed and Developing Countries. Nova York: Fundo Populacional das Nações Unidas; 1999.

Inegavelmente, gênero é uma categoria fundamentalmente social útil à história das relações entre homens e mulheres, além de oferecer um campo promissor para estudos sobre desigualdades e hierarquias sociais2828 Filho AT. Uma questão de gênero. Cadernos Pagu 2005; (24):127-152..

Culturalmente, as mulheres são vistas como mais cuidadosas, terem mais paciência, obterem atendimento mais rápido nos serviços de saúde e desfrutarem de maior disponibilidade. O que pode estar relacionado a uma suposta fragilidade feminina e também por serem estimuladas, desde jovens, a buscar o médico. Ou ao papel de cuidar da família, o que exige dela um cuidado maior consigo mesmo.

É importante considerar as palavras de Freud2929 Freud S. Consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos. Rio de Janeiro: Imago; 1996 quando afirma: “todos os indivíduos humanos, em consequência de sua constituição bissexual e de sua herança cruzada, possuem ao mesmo tempo traços masculinos e traços femininos, de modo que o conteúdo das construções teóricas da masculinidade pura e da feminilidade pura continua a ser incerto.”

Vivenciar doença crônica para idosos de diferentes sexos, implica em considerar e intensificar estudos e pesquisas relacionadas a gênero como estratégia fundamental para a implementação e a implantação de políticas públicas de modo a responder de forma positiva a essa diversidade.

Funcionalidade e disfuncionalidade

A maior causa das dependências entre os idosos é a perda da funcionalidade, provocada, principalmente, pelas DCNT. O que se pode observar na fala dos idosos:

Depois que fiz 92 anos eu perdi a visão. Eu gostava de trabalhar, arrumar a casa, fazia comida, lavava roupa, passava. (Minas Gerais, Fem., 97 anos).

A importância de realizar atividades domésticas para a idosa é sentida como o abortamento de suas possibilidades de se apresentar como produtiva. Essa foi a realidade com que essa idosa de 97 anos viveu. Sua importância como ser social no seio da sua família está intimamente relacionada com seu destino de gênero

A perda da minha funcionalidade. Me sinto muito triste e desanimado. Eu estou tomando antidepressivo (Piauí, Masc., 60 anos)

Como vimos no relato dos dois entrevistados, a importância da disfuncionalidade no estudo das DCNT ultrapassa a questão saúde/doença pois sua compreensão oferece a possibilidade de ser trabalhada visando a promoção da saúde, a prevenção e a melhoria da participação comunitária e social. Dessa forma, expande a percepção da doença do binômio saúde/doença ao inserir nessa percepção as dificuldades sociais e estimular a adoção de redes de apoios e de facilitadores77 Hansen EO, Tavares STO, Cândido SA, Pimenta FAlP, Moraes EN, Rezende NA. Classificação internacional de funcionalidade, de doenças e prognóstico médico em pacientes idosos. Rev Med Minas Gerais 2011; 21(1):55-60.. Mais do que a própria dependência, a falta desse estímulo provoca nos idosos sentimentos de desanimo, isolamento e desespero, como se observa na fala a seguir:

Estou acabado agora, olha estou desesperado Eu choro sozinho. Ai eu começo a pensar, tudo que passou! É, não dá para resistir, 89 anos... (Santa Catarina, Masc., 89 anos)

No cuidado com a pessoa idosa com DCNT é importante ressaltar a diferença entre desempenho, que avalia o que é feito no dia-a-dia, e a capacidade funcional, que avalia o potencial remanescente na sua condição. Não é aceitável deduzir que uma limitação da capacidade se deve a uma ou mais deficiências, ou que a restrição de desempenho ocorre apenas por causa de uma ou mais limitações. É importante obter o maior número possível de informações sobre a experiência de doença vivida pelo idoso e investigar as inter-relações entre essa experiência e os aspectos socioambientais (exógenos) e pessoais (endógenos) de maneira independente.

Hoje, muitos campos de conhecimento em saúde como a fisioterapia, a educação física, a nutrição, a odontologia, dentre outros, podem contribuir para que os idosos recuperem a autonomia ou minorem seu sofrimento. Por exemplo, vários autores2727 Botev N. Older persons in countries with economies in transitions. Population Ageing: Challenges for Policies and Programmes in Developed and Developing Countries. Nova York: Fundo Populacional das Nações Unidas; 1999,2828 Filho AT. Uma questão de gênero. Cadernos Pagu 2005; (24):127-152.,3030 Damo CC, Doring M, Alves ALS, Portella MR. Risco de desnutrição e os fatores associados em idosos institucionalizados. Rev. Bras. Geriatr. Gerontol. 2018; 21(6):711-717. ressaltam que muitas pessoas nesse grupo social, por falta de conhecimento ou de cuidado se desnutre, o que agrava sua saúde física e mental, agravando seu nível de dependência. Ou ainda, hoje sabe-se que um idoso com incapacidade funcional de mobilidade pode se beneficiar com ajuda de tecnologias ou agravar seu desempenho no ambiente familiar e social, pela ausência dessa oportunidade3030 Damo CC, Doring M, Alves ALS, Portella MR. Risco de desnutrição e os fatores associados em idosos institucionalizados. Rev. Bras. Geriatr. Gerontol. 2018; 21(6):711-717..

Em resumo, todos os aspectos são importantes na investigação das possibilidades de melhorar o desempenho dos idosos dependentes. Uma disfuncionalidade num dos aspectos de sua vida, não significa que eles sejam disfuncionais em todos os outros. No entanto, discriminação por conta de uma doença crônica ou por problemas sociais pode limitar suas chances de desempenho.

Relações extrafamiliares

Relações sociais com pessoas da comunidade e outras foram relatadas por 33 idosos. Essa abertura para continuar presente e para participar, na medida do possível, do mundo em que vivem é um sinal importante de resiliência e de um envelhecimento saudável. O que pode ser constatado, como exemplo, no relato a seguir:

Recebo a visita dos filhos, irmãos e vizinhas. As vizinhas participam muito da minha vida (Santa Catarina, Fem., 80 anos)

No entanto, essa abertura para o outros, não é uma construção do final da vida. Ela é fruto de uma existência em que a interação foi e continua a ser um valor social.

Independentemente da integração social da família, o apoio comunitário precisa ser cultivado, pois a sociedade é parte (junto com a família e o Estado) da responsabilidade pelo suporte emocional, instrumental e material oferecida aos idosos, particularmente, nos casos de pessoas em condições sociais adversas1919 Figueiredo AEB, Silva RM, Vieira LJE, Mangas RMN, Sousa GS, Freitas JS, Conte M, Sougey EB. É possível superar ideações e tentativas de suicídio? Um estudo sobre idosos. Cien Saude Colet 2015; 20(6):1711-1719..

Os dispositivos de apoio comunitários devem estar acessíveis a todos os familiares e não somente aos que têm condições financeiras de pagar. E no caso do papel do Estado, é importante que os órgãos públicos responsáveis pelos cuidados aos idosos dependentes promovam ações que melhorem seu desempenho e reabilitação. Ao mesmo tempo, apoiem as famílias por meio de orientações e colaborem para que tenham condições adequadas para levar a cabo a função de cuidar. Nesse sentido e como exemplo de uma política de apoio concreto aos idosos dependentes e seus familiares mencionam-se aqui as recomendações do Ministério do Trabalho e Assistência Social aos serviços públicos e conveniados na Espanha3131 Silva JL, Marques APO, Leal MCC, Alencar DL, Melo EMA. Fatores associados à desnutrição em idosos institucionalizados. Rev Bras Geriatr Gerontol 2015; 18(2):443-451.. Essa citação leva em conta a proximidade cultural entre os dois países: 1) prevenção das situações de dependência e promoção da autonomia pessoal; 2) ajuda em domicílio (apoio para atividades domésticas e cuidados pessoais); 3) centros-dia/noite; 4) atenção institucionalizada, por meio de residências geriátricas e centros de atenção para pessoas com incapacidade mental ou incapacidade física; e 5) teleassistência domiciliar, proporcionando segurança e melhor qualidade de vida à pessoa em seu próprio domicílio.

Renda e impacto econômico das DCNT

A maioria dos idosos aqui estudados possui renda familiar de mil a dois mil reais por mês. Somente um recebe quatro mil reais. Esse é um dos aspectos exógenos que agravam as consequências da doença, pois a funcionalidade e o desempenho de um idoso num domínio específico de sua vida é resultado da inter-relação complexa e dinâmica entre sua condição de saúde e os aspectos socioambientais (exógenos) e pessoais (endógenos). Uma intervenção direta ou indireta num elemento desse processo relacional pode modificar um ou vários aspectos3232 Pereira RJ, Cotta RMM, Franceschini SCC. Fatores Associados ao Estado Nutricional no Envelhecimento. Rev Med Minas Gerais 2006; 16(3):160-164.

Eu não estou trabalhando agora. E com muito estresse, porque médico ganha de acordo com o que produz, e não estou produzindo. Até para fazer as adaptações em casa, não fizemos ainda. (Piauí, Masc., 60 anos)

O ônus das doenças crônicas pode invariavelmente interferir na renda e na poupança dos indivíduos ou das famílias. Duas abordagens possíveis para explorar o impacto econômico de doenças crônicas são: a perspectiva do custo de não intervir; e a perspectiva de benefício das intervenções oportunas. Em geral, os vários meios pelos quais as doenças podem impactar a economia são discutidos na literatura sobre saúde e crescimento econômico3333 Nóbrega OT, Karnikowski MGO. A terapia medicamentosa no idoso. Cuidados na medicação. Cien Saude Colet 2005; 10(2):309-313..

As abordagens para estimar o impacto econômico de doenças crônicas na literatura se enquadram em três categorias principais: (1) métodos para estimar o custo de uma doença (COI - cost-of-illness); (2) modelos de crescimento econômico que avaliam o custo de doenças crônicas com foco no seu impacto no capital humano ou na oferta de mão-de-obra; e (3) método de renda completa, que agrega o valor dos ganhos em saúde à renda nacional3333 Nóbrega OT, Karnikowski MGO. A terapia medicamentosa no idoso. Cuidados na medicação. Cien Saude Colet 2005; 10(2):309-313..

Certamente, os custos com prevenção são menores do que com internações. Sendo assim, investigações acerca da morbidade e dos gastos associados tornam-se fundamentais para a elaboração de indicadores que orientem a promoção da saúde e a prevenção de doenças crônicas, visando a aprimorar a gestão do sistema de saúde3434 Espanha. Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales Secretaría de Estado de Servicios Sociales, Familias y Discapacidad. Instituto de Mayores y Servicios Sociales (IMSERSO). Madrid: IMSERSO; 2004. Independentemente do quão sensíveis sejam os indicadores, sabe-se que o uso de dispositivos de saúde e de cuidados de longo prazo não deveriam ser considerados gastos e sim, investimento do Estado, pois permitem as sociedades desfrutarem de seus direitos fundamentais, e nisso se incluem as pessoas idosas dependentes1515 Alves LC, Leimann BCQ, Vasconcelos MEL, Carvalho MS, Vasconcelos AGG, Fonseca TCO, Lebrão ML, Laurenti R. A influência das doenças crônicas na capacidade funcional dos idosos do Município de São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica 2007; 23(8):1924-1930.. Uma investigação e análise dos gastos desses idosos e das famílias que cuidam deles, principalmente das pessoas de baixa renda como as que foram entrevistadas, forneceria importante parâmetro para medir sua capacidade de ter uma longevidade saudável.

Apoios médico, de medicamentos e dispositivos de saúde

Entre os recursos terapêuticos disponíveis para cuidar dos idosos dependentes o medicamento é o mais utilizado, constituindo um componente importante, pois a presença de doenças crônicas não transmissíveis em idosos é frequente e exige prescrições às vezes diversas.

Eu tenho só o médico daqui que eu vou lá [...]. Remédio da diabetes, remédio da pressão, remédio da tireoide que agora eu tenho a tireoide também, agora eu não sei de onde. Da tireoide, tem outro doutor do lugar onde eu moro. (Fortaleza, Fem., 89 anos)

A maioria dos idosos entrevistados fazia uso de vários medicamentos, necessários pelo quadro apresentado. No entanto, o uso de muitos ao mesmo tempo, sem controle efetivo e permanente, constitui um fator de risco no sentido de propiciar efeitos adversos ou interações medicamentosas”3535 World Health Organization (WHO). An estimation of the economic impact of chronic noncommunicable diseases in selected countries. Geneva: WHO; 2006.. Segundo Shrank et al.3636 Shrank WH, Polinski JM, Avorn J. Quality indicators for medication use in vulnerable elders. J Am Geriatr Soc 2007; 55(Supl. 2):S373-S382., os efeitos colaterais relacionados à utilização de medicamentos, inclusive de tranquilizantes para insônia, induzem a sofrimento e internações hospitalares de idosos, o que poderia ser evitado.

Willcox et al.3737 Willcox SM, Himmelstein DU, Woolhandler S. Inappropriate drug prescribing for the community-dwelling elderly. JAMA 1994; 272(4):292-296. sinalizam que um aspecto relevante que se encontra em estudos sobre idosos é a alta frequência de “interações medicamentosas”, particularmente no grupo de 80 anos ou mais. Por isso, e de acordo com Rouchon e Gurwitz3838 Rouchon PA, Gurwitz JH. Optimising drug treatment for elderly people. BMJ 2011; 315:1096-1099., a observação do uso de medicamentos pelos idosos deve ser realizada continuamente e em consultas sistemáticas. O surgimento de novos sintomas sem causa aparente precisa ter como hipótese a reação adversa de uma droga e a iatrogenia, ou seja, complicações do uso excessivo e concomitante de vários medicamentos que podem ter como desfecho a morte3939 Sharon M, David U, Himmelstein MD, Woolhandler S. Inappropriate Drug Prescribing for the Community-Dwelling Elderly. JAMA 1994; 272(4):292-296..

Muitas vezes os efeitos colaterais são confundidos com novas doenças ou atribuídos ao próprio envelhecimento por si, dificultando mais ainda o seu diagnóstico4040 Gurwitz JH, Avorn J. The ambiguous relationship between aging and adverse drug reactions. Ann Intern Med 1990; 114(11):956-966..

A maioria dos idosos verbalizou acompanhamento médico e uso de dispositivos de saúde em maior escala: Eles vêm aqui (referindo-se a ESF) toda semana, eles vêm, eles visitam. A assistência é boa, só de eles virem na casa. Eles vindo toda semana ficou muito bom, reclamar de médico eu não posso reclamar. (Minas Gerais, Fem., 78 anos) Isso se explica em função das limitações funcionais provocadas pelas doenças crônicas e comorbidades e ao risco de complicações a elas relacionadas, que, por sua vez, levam ao maior uso de medicamentos.

Este aspecto também foi observado por outros autores. Oliveira-Figueiredo et al.4141 Oliveira-Figueiredo DST, Felisbino-Mendes MS, Malta DC, Velasquez-Melendez G. Prevalência de incapacidade funcional em idosos: análise da Pesquisa Nacional de Saúde. Rev Rene 2017; 18(4):468-475 informam que pessoas com mais de 60 anos com prejuízo da funcionalidade fazem uso dos dispositivos de saúde mais vezes do que os idosos sem disfuncionalidade. Esses dados valem tanto para os serviços públicos como privados.

Gadamer4242 Gadamer HJ. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes; 2006., em relação à saúde, informa que “o custo aumentando cada vez mais impõe, com extrema urgência, que o cuidado com a saúde seja novamente reconhecido e percebido como uma tarefa geral da população”.

Considerações finais

Este estudo evidenciou vulnerabilidades decorrentes do processo de envelhecimento, adoecimento e dependência em idosos dependentes que vivem com DCNT, o que aponta que esse grupo de doenças se configura como um importante problema de saúde pública. Observaram-se aspectos que contribuem para a compreensão da dinâmica das DCNT e a necessidade de intervenção de familiares, serviços de saúde e sociedade:

  1. diferenças entre as três escalas de idade, pois o grupo de 60 a 69 anos representou 10,2% do total de idosos entrevistados; o de 70 a 79 anos, 33,9%; e o de > 90 anos 56,0%, sendo o grupo de 80 a 89 anos e de < de 90 os mais comprometidos. Esse achado corrobora com os dados do estudo de Camarano1414 Camarano AA. Quanto custa cuidar da população idosa dependente e quem paga por isto? In: Camarano AA, organizador. Novo regime demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento? Rio de Janeiro: Ipea; 2014. p. 605-623., quando afirma que os idosos com idade superior a 80 anos são mais frágeis e vulneráveis aos vários tipos de dependência;

  2. maior apoio familiar e social tanto do ponto de vista estrutural como emocional e afetivo, ter menos comorbidades, ter um nível de funcionalidade que permita realizar algumas tarefas e capacidade de resiliência internamente constituída, ou seja, estratégias de enfretamento que funcionam como fatores protetivos para os efeitos adversos, tendo um componente individual e social. Foi observado que 50,8% dos idosos entrevistados conseguem manter uma vida satisfatória, apesar de cientes de suas limitações e restrições nos hábitos e estilos de vida decorrentes das DCNT;

  3. o fato da maioria dos idosos ter renda familiar de mil a dois mil reais foi visto como motivo de estresse para os familiares e para o idoso. De maneira geral, as DCNT merecem atenção de Política Públicas, por isso concordamos com Suhrcke et al.4343 Suhrcke M, Nugent AR, Stuckler D, Rocco L. Chronic Disease: An Economic Perspective. London: Oxford Health Alliance; 2006 quando sinaliza que ainda existem lacunas que apontam para a necessidade de mais pesquisas sobre o ônus e custo dessas doenças, bem como na eficácia das intervenções, principalmente para países em desenvolvimento.

  4. Embora as diferenças culturais possam estar presentes, pelo fato da pesquisa ter sido realizada em várias regiões do Brasil, esse aspecto não apareceu como relevante nas entrevistas. O que precebemos é que o sistema de prevenção, atenção e cuidados ao idoso dependente ainda é precário em todo o Brasil

Todas as vulnerabilidades exploradas neste artigo são questões importantes do ponto de vista científico, para uma abordagem mais continente da dependência dos idosos que tem como fator predominante as DCNT

Desse modo, sugerimos a realização de mais investigações, voltadas especificamente para o conhecimento e a prevenção das DCNT e seu peso na dependência de idosos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Jan 2021

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2020
  • Aceito
    13 Set 2020
  • Publicado
    15 Set 2020
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br