Capellano T, Carramenha B. Trabalho e sofrimento psíquico: histórias que contam esta história. São Paulo: Atarukas Editora Ltda; 2019.

Sérgio Roberto de Lucca Sobre o autor
2019

O livro faz uma radiografia precisa e ao mesmo tempo desalentadora do processo de marginalização social dos trabalhadores/as, cada vez mais reféns do cenário econômico e das novas exigências do mercado de trabalho. As reformas neoliberais iniciadas na década de 1990 provocaram no país um declínio progressivo de ocupações e aprofundamento da desigualdade social. No cenário atual 12% da PEA estão desocupadas e o setor de serviços concentra 62,7% dos postos de trabalho do mercado11 Pochmann M. Tendências estruturais do mundo do trabalho no Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(1):89-99..

O mundo do trabalho não é favorável ao trabalho e estabilidade no emprego. O processo de globalização e as novas tecnologias provocaram restruturações produtivas e a eliminação de postos de trabalho. Além disso, o Brasil acompanhou a tendência global de desregulamentação de direitos sociais e de maior fragilização das condições em que o trabalho se realiza.

Neste contexto, a originalidade deste livro é a adoção pelas autoras da classificação do IBGE como critério de escolha dos participantes da pesquisa. De acordo com o tipo de vínculo e absorção no mercado de trabalho, os trabalhadores/as foram segmentados em: formalmente empregados (servidores públicos e trabalhadores/asceletistas), por conta própria (profissionais liberais e autônomos), trabalhadores informais eos desempregados e desalentados. Entre os formais também são identificados os afastados por doença. Entretanto, antes mesmo de adoecerem e se afastarem do trabalho, o que se observa é que os trabalhadores estão sofrendo, alguns mais outros menos, em função do desemprego e das novas exigências do trabalho.

O desemprego estrutural e o medo de perder o emprego dos que estão empregados, ainda que precariamente, gera muito sofrimento psíquico nos trabalhadores. O sentido de “sofrimento” utilizado pelas autoras tem como referencial teórico os conceitos de Dejours no estudo da Psicopatologia do Trabalho22 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré; 1987. e a Psicodinâmica do Trabalho33 Dejours C, Abdoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do Trabalho. São Paulo: Atlas; 1994.. O método de estudo de caso ampliado e abordagem quanti-qualitativa utilizado na pesquisa analisou as narrativas de 80 pessoas de 25 grupos focais e 754 respostas de questionário online. As autoras decifraram as dificuldades destes sujeitos em estabelecerem formas de resistência ao adoecimento, seja através dos vínculos entre os colegas e no desenvolvimento de estratégias de defesas dos coletivos de trabalho ou de se reconheceremou serem reconhecidos em um trabalho que faça sentido e que realize.

As narrativas expressam certa naturalização da injustiça nas relações de trabalho e na quebra de vínculos entre os colegas. A Banalização da Injustiça Social44 Dejours C. A Banalização da Injustiça Social. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2000. é uma realidade no mundo do trabalho atual cada vez mais competitivo, onde a falta de solidariedade entre os colegas de trabalho e as práticas de gestão assediadoras das organizaçõessão aceitas passivamente. Os trabalhadores/as suportam o sofrimento como meio de sobrevivência, em um processo de submissão consentida. O estresse, as dores nas costas e a ansiedade foram relatados por 75% dos participantes. Se houvesse escolha, somente 39% permaneceriam em suas atividades atuais.

As autoras identificaram diferentes formas de luta da força de trabalho para sobrevivência neste sistema, tipificando-os, em “vencedores” e “heróis”, aqueles com maior estabilidade de trabalho, e em “guerreiros” e “sobreviventes” os trabalhadores com menor estabilidade. Já as pessoas afastadas, desempregadas e os desalentados foram agrupados na condição de “feridos”.

Nos grupos focais e entrevistas individuais emergiram cinco categorias de análise: “O trabalho é sempre violência”; “O mercado de trabalho não sabe o que quer”; “O sofrimento vem de cima”; “Renda importa, o acesso à saúde escraviza e o ócio liberta” e “O (não) futuro do (não) trabalho”.

“O trabalho é sempre violência” e não deveria. O trabalho digno e decente, além de dar sustento deve possibilitar o exercício da subjetividade e, neste sentido, pode ser fonte de prazer e contribuir para identidade dos/as trabalhadores/as33 Dejours C, Abdoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do Trabalho. São Paulo: Atlas; 1994.. Entretanto, os entrevistados relataram “fazer qualquer coisa” para manterem o emprego, por imposição familiare sustento da família, ainda que gere sofrimento. Para os feridos, o afastamento do trabalhoé visto com desconfiança pela chefia e colegas de trabalho. Os desempregados precisam demonstrar aos amigos e familiares que se empenham continuamente na procura de trabalho, pouco importa se satisfatório ou condizente com a qualificação profissional. Os desalentados não são permitidos desistirem. Os sobreviventes, como ainda trabalham na informalidade, também são cobrados pelas atividades domésticas. Por outro lado, os guerreiros, terceirizados ou não, administrativos ou da produção, precisam estender a jornada de trabalho para atenderem as expectativas dos gestores e dos familiares. Já os vencedores, trabalhadores em funções executivas, também sofrem quando precisam demitir seus subordinadose justificam as atitudes em prol da sobrevivência da organização.

“O mercado de trabalho não sabe o que quer”, porque além das crescentes exigências de qualificação, exige-se experiência prévia, a análise do cargo ocupado e salário do último emprego. O rebaixamento salarial e funcional daqueles que procuram uma recolocação profissional é proporcional ao tempo de desemprego. A desvalorização profissional também atinge os profissionais liberais e autônomos. As autoras relataram dificuldades para a inclusão na amostra de mulheres negras em cargos de liderança. Alguns relatos evidenciam também a maior dificuldade de recolocação associada à raça e gênero. A percepção de que o trabalho adoece e se pudessem mudariam de emprego foi maior entre as mulheres negras (85%). Os que se mantem no emprego precisam demonstrar engajamento e subserviência aos “valores” da empresa, ainda que não acreditem nos discursos de meritocracia.

“O sofrimento vem de cima”. Para uns, o chefe é o algoz. Para outros a culpa é do sistema e do governo. De fato, as narrativas expressam as práticas assediadoras e de desvalorização profissional perpetrada pelas lideranças. Entretanto, os líderes se sentem vítimas dos seus superiores, de um processo de assediador em cascata, caracterizado pelo assédio moral organizacional. A responsabilização pelo sistema capitalista cada vez mais excludente é consensual nas narrativas. A resignação das pessoas às adversidades e a falta de políticas de proteção social e de emprego e renda retroalimenta o sentimento de injustiça social.

“Renda importa, o acesso à saúde escraviza e o ócio liberta”. A “disciplina da fome” ou trabalhar para sobreviver, ainda que este trabalho faça sofrer é a justificativa para a maioria dos feridos, dos sobreviventes e dos guerreiros que se expõem a riscos e se submetem às humilhações, sem oferecer resistência. “No limite da escravidão” relatam 12 ou 14 horas diárias de trabalho, noites sem dormir e finais de semana trabalhando. Além da renda, o medo para a maioria dos trabalhadores formais é a perda do plano de saúde supletivo e da condição de segurado da Previdência Social. Atualmente cerca de 60% da PEA são exclusivamente SUS dependentes e não possuem nenhuma proteção social, seja na forma de seguro-desemprego ou benefício previdenciário. Neste grupo que incluem os sobreviventes, a angústia da renda é mais intensa porque sofrem com um constante vai e vem entre ocupação e desocupação.

Entre os considerados vencedores, executivos e donos de pequenas empresas, o medo de perder o emprego ou fracasso do próprio negócio flerta com a perda de status social. Para este grupoo desemprego é um fracasso e relataram que alguns colegas cometeram suicídio nesta condição. Por outro lado, contraditoriamente, o período em que ficaram desempregados possibilitou para alguns refletirem que existe vida além do trabalho.

“O (não) futuro do (não) trabalho”. Nas narrativas “Ter trabalho é ter dignidade” e uma esperança de que o futuro não irá repetir o passado. “Sem trabalho não se come, não se veste, não se mora”. Pesquisa do IBGE55 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desemprego cai para 11,8% com informalidade atingindo maior nível da série histórica [Internet]. 2019 [acessado 2020 Mar 14]. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/25534-desemprego-cai-para-11-8-com-informalidade-atingindo-maior-nivel-da-serie-historica
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/ag...
aponta que 27,8 milhões de pessoas não trabalhavam ou trabalhavam menos do que gostariam. Entre os ocupados, 41,4% trabalhavam na informalidade.

Para a maioria dos entrevistados, o significado do trabalho é percebido na sua subjetividade como uma atividade inerente à vida e sinônimo da própria identidade. Entretanto, todos se demonstraram desconectados com as questões sociais e direitosassociados ao trabalho, ao futuro do trabalho e ao impacto negativo das novas tecnologias na geração de emprego e capacidade de absorção de mão de obra cada vez mais qualificada.

O trabalho virou sofrimento para parcela cada vez mais crescente de trabalhadores/as que referem o “uso de psicotrópicos para dormir e aguentar o dia seguinte”, ou se afastam com transtorno mental. Sofrem ainda maisas mulheres e negras que são discriminadas e os desempregados, sem uma renda mínima para sobreviver e se sentirem dignos. Se negarmos o próprio sofrimento, negamos o sofrimento dos outros e assim banalizamos a injustiça social44 Dejours C. A Banalização da Injustiça Social. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2000.. Mais do que uma situação individual, o sofrimento no trabalho e fora dele é um problema coletivo e requer a mobilização de toda a sociedade. Ainda que de modo fragmentado, este livro aponta a dimensão das iniquidades do trabalho no país.

Referências

  • 1
    Pochmann M. Tendências estruturais do mundo do trabalho no Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(1):89-99.
  • 2
    Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho São Paulo: Cortez-Oboré; 1987.
  • 3
    Dejours C, Abdoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do Trabalho São Paulo: Atlas; 1994.
  • 4
    Dejours C. A Banalização da Injustiça Social Rio de Janeiro: Editora FGV; 2000.
  • 5
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desemprego cai para 11,8% com informalidade atingindo maior nível da série histórica [Internet]. 2019 [acessado 2020 Mar 14]. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/25534-desemprego-cai-para-11-8-com-informalidade-atingindo-maior-nivel-da-serie-historica
    » https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/25534-desemprego-cai-para-11-8-com-informalidade-atingindo-maior-nivel-da-serie-historica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Mar 2021
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