Gurgel AM, Santos MOS, Gurgel IGD, organizadoras. Saúde no campo e agrotóxicos: vulnerabilidades socioambientais, político-institucionais e teórico-metodológicas. Recife: Editora Universitária da UFPE; 2019.

Solange Laurentino dos Santos Frédéric Mertens Sobre os autores
2019

A questão da produção agrícola brasileira, se pelo lado do discurso econômico, é vista como o principal setor para retomada econômica após a COVID-1911 Brasil. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Tereza Cristina lança Plano Safra 2020/2021 e destaca o papel fundamental do agro [Internet]. [acessado 2020 jun 19]. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/tereza-cristina-lanca-plano-safra-2020-2021-e-destaca-o-papel-fundamental-do-agro.
https://www.gov.br/agricultura/pt-br/ass...
, no aspecto da contaminação ambiental e da saúde humana, devido à ampliação do uso de agrotóxicos, é a temática discutida pelas organizadoras dessa obra, que reúne uma série de artigos contextualizados com a realidade de vida dos agricultores e as vulnerabilidades que afetam as populações expostas aos produtos, no campo, no trabalho e na cidade. Por ter sido publicada no período pré-pandemia da COVID-19, mostra-se uma leitura oportuna como linha de base, podendo ser útil para uma reflexão dos caminhos apresentados para o futuro em nosso país.

Esta obra reúne uma série de artigos contextualizados com a vida dos agricultores e as vulnerabilidades que afetam as populações expostas aos agrotóxicos no campo, no trabalho e na cidade. Está dividida em 4 partes distribuídos em 15 capítulos nos quais são abordados de forma extensa e consistente, a relação do agronegócio com o Estado brasileiro, as vulnerabilidades no processo saúde-doença das populações expostas, os danos à saúde e no ambiente e, as alternativas da agroecologia na perspectiva emancipatória em defesa da reforma agrária.

A atualidade dos temas abordados nos permite compreender o modelo de desenvolvimento adotado no país nas últimas décadas e, intensificado no momento atual, com a retórica de ampliação da oferta de alimentos para matar a fome da população, mas que embute os interesses econômicos no lucro e nas exportações, em detrimento de investimentos em políticas de apoio à agricultura familiar que possibilite a manutenção das famílias viverem no campo com qualidade de vida.

As organizadoras Aline do Monte Gurgel, Mariana Olívia Santana dos Santos e Idê Gomes Dantas Gurgel, integram o Laboratório Saúde, Ambiente e Trabalho (Lasat) do Departamento de Saúde Coletiva do Instituto Aggeu Magalhães (IAM) da Fiocruz em Pernambuco onde desenvolvem estudos acerca da relação Saúde, Ambiente e Vulnerabilidades Sociais. Percebe-se uma predominância feminina entre os autores, demonstrando um comprometimento com a problemática.

A primeira parte do livro, com o tema “Agrotóxicos: registro, regulação estatal e a indústria da dúvida”, contempla três extensos capítulos com detalhamento dos aspectos econômicos envolvidos na produção de alimentos no modelo do agronegócio brasileiro. O capítulo 1, mostra de modo didático, um resgate histórico de como os termos agrotóxicos, venenos, fertilizantes são produzidos para influenciar nas crenças, opiniões e, omitir os perigos existentes pela sua utilização. No capítulo 2, os autores evidenciam a fragilidade existente no processo de registro e reavaliação de agrotóxicos no país. Destaca-se a interferência na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) nos processos de reavaliações toxicológicas de ingredientes ativos, bem como a retirada de poderes desse órgão proposta pelo Projeto de Lei nº 6.299/2002 conhecido como “pacote do veneno”.

Finalizando esta parte, os autores demonstram no capítulo 3, como se dá a substituição do controle estatal pelo Mercado dentro de uma lógica capitalista de rentabilidade interferindo no mecanismo regulatório. Essa perda de função regulatória vem delineada com o discurso de que a reprimarização da economia tem papel central na geração de saldos comerciais positivos, acarretando um progresso técnico com custos sociais em consequência da superexploração de recursos naturais.

Nesses três capítulos, o leitor é levado a pensar criticamente sobre o modo como as instituições responsáveis pela liberação de agrotóxicos no Brasil têm atuado há muito tempo22 Sobreira AEG, Adissi PJ. Agrotóxicos: falsas premissas e debates. Cien Saude Colet 2003; 8(4):985-990., na defesa do modelo capitalista de produção em detrimento da proteção à saúde e à vida das pessoas33 Carneiro FR, Augusto LGS, Rigotto, RM, Friedrich K, Búrigo AC. Dossiê Abrasco: Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: EPSJV; 2015..

A parte 2 do livro debate as “Vulnerabilidades no modo capitalista de produção”, em que se discute a relação do processo de trabalho e alienação e, são apresentados resultados de estudos envolvendo vulnerabilidades de grupos específicos. Inicia-se no capítulo 4 sobre a determinação social do processo saúde-doença de mulheres negras quilombolas. A opção pelo método etnográfico permitiu explicitar desigualdades socioeconômicas advindas do processo de dominação e exploração observadas no cotidiano das “Guerreiras Quilombolas do Castainho”. No capítulo 5, discute-se o trabalho como forma originária do ser social, fazendo profunda crítica da dominação pelo capital. Pela crítica contundente sobre o modo de produção, este capítulo poderia ter iniciado esta parte.

As condições de trabalho e vulnerabilização dos trabalhadores canavieiros é a temática dos capítulos 6 e 7. O caso dos jovens trabalhadores migrantes que labutam nos canaviais do Estado de São Paulo, oriundos de famílias camponesas de municípios da Paraíba e Pernambuco, em cujas falas desmistificam a doçura da cana e a pureza do etanol produzido no Brasil44 Costa PFF, Silva MS, Santos SL. O desenvolvimento (in)sustentável do agronegócio canavieiro. Cien Saude Colet 2014; 19(10):3971-3980..

Nesta parte, os relatos duros apresentados por esses grupos vulnerados expressam a dramática situação das condições de trabalho na produção agrícola. Percebe-se nos discursos um disfarce por trás da máscara da sustentabilidade socioambiental.

Dando continuidade, na parte 3 aponta-se as “Nocividades dos agrotóxicos, ameaças no campo e na cidade”, em uma coletânea de seis capítulos - do 8 ao 13 - que permitem um aprendizado tranquilo, apesar da especificidade dos temas abordados. Inicia abordando a composição e histórico dos organofosforados, seu uso na agricultura e em ações na saúde pública e, os efeitos crônicos decorrentes da ingestão de múltiplos agrotóxicos presentes nos alimentos. No capítulo seguinte as autoras demonstram a ocorrência de câncer na região agrícola do Vale do São Francisco em Pernambuco. Seguido pelo estudo caso para averiguar a utilização de agrotóxicos na cultura do tomate em Camocim de São Félix. Observaram-se populações com grande vulnerabilidade socioeconômica pelo uso intenso de agrotóxicos.

Continua esta parte, de forma crítica e embasada em extenso referencial, mostram-se os riscos decorrentes da estratégia de controle vetorial de dengue pelo uso de substâncias químicas. E, finaliza apontando os perigos associados ao uso do Malation no controle vetorial do Aedes aegypti, criticando a opção do Ministério da Saúde pelo uso dessa substância, integrante do grupo das substâncias químicas inibidoras de acetilcolinesterase (AChE), cuja toxicidade para o sistema nervoso central e periférico, pode levar à parada cardiorrespiratória e à morte além, da carcinocenicidade55 World Health Organization (WHO). Agência Internacional de Pesquisa sobre Câncer (IARC). Malathion, Monographs [Internet]. [acessado 2020 jun 24]. Disponível em: https://www.iarc.fr/wp-content/uploads/2018/07/MonographVolume112-1.pdf.
https://www.iarc.fr/wp-content/uploads/2...
.

Aqui, é possível perceber a necessidade de redirecionamento das ações de vigilância e controle de doenças crónicas e de transmissão vetorial. Os autores demonstram importantes fragilidades da vigilância em saúde em agir de forma integrada e sistêmica, bem como os riscos à saúde dos cidadãos, dos trabalhadores e, no ambiente decorrentes da exposição aos venenos.

A última parte do livro intitulada “Saúde no Campo e Reforma Agrária: construção de práticas emancipatórias”, apresenta as experiências das pessoas no campo. No capítulo 14 os autores enfatizam a valorização do campesinato em contraponto ao modelo desenvolvimentista, analisam a transição do feudalismo para o capitalismo, passando pela reforma agrária no Brasil66 Pereira JMM, Sauer S. A "reforma agrária assistida pelo mercado" do Banco Mundial no Brasil: dimensões políticas, implantação e resultados. Soc Estado 2011; 26(3):587-612.. E, o capítulo 15 reforça a importância dos movimentos sociais, conquistas e desafios para concretização de uma efetiva “Saúde do Campo”.

Esses dois capítulos demonstram as dificuldades concretas e desafiadoras para enfrentamento do modelo de modernização, que se diz desenvolvimentista, e permite uma compreensão sistêmica da problemática da saúde do campo.

Em alguns momentos se observa uma repetição de temas, mas esta recorrência, ao invés de parecer repetitiva, considero algo positivo pela importância de se reforçar aspectos que apontam as contradições estruturais da crise civilizatória entre os agentes econômicos do capital do agronegócio no Brasil e a desigual distribuição entre os segmentos sociais dos quem dependem e trabalham no campo. Percebe-se que não há interesse dos autores em omitir seus pontos de vista e opções ideológicas, pois entendem não haver outra opção de pensar o modo de trabalho desses grupos já vulnerados historicamente.

Este livro foi escrito para pessoas interessadas e sensíveis às duras e perversas desigualdades que envolvem a realidade dos que vivem, dependem e sofrem as consequências da ausência de ações promotoras para melhoria da vida no campo. Pela forma detalhada com que expõe e visibiliza os interesses dos envolvidos, demonstra lacunas de conhecimento sobre os agrotóxicos utilizados no campo que precisam ser visibilizadas pela saúde coletiva, sendo útil para pesquisadores, estudantes, trabalhadores de saúde, gestores e sociedade em geral.

As organizadoras convidam os leitores a fazer uma reflexão sobre essas diferenciadas nocividades e vulnerabilidades que afetam as populações do campo. Como cita Raquel Rigotto no prefácio da obra: O que pode ser feito para que exista possibilidade de um futuro que não haja barbárie?

O leitor terá a oportunidade de fazer escolhas.

Referências

  • 1
    Brasil. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Tereza Cristina lança Plano Safra 2020/2021 e destaca o papel fundamental do agro [Internet]. [acessado 2020 jun 19]. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/tereza-cristina-lanca-plano-safra-2020-2021-e-destaca-o-papel-fundamental-do-agro
    » https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/tereza-cristina-lanca-plano-safra-2020-2021-e-destaca-o-papel-fundamental-do-agro
  • 2
    Sobreira AEG, Adissi PJ. Agrotóxicos: falsas premissas e debates. Cien Saude Colet 2003; 8(4):985-990.
  • 3
    Carneiro FR, Augusto LGS, Rigotto, RM, Friedrich K, Búrigo AC. Dossiê Abrasco: Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: EPSJV; 2015.
  • 4
    Costa PFF, Silva MS, Santos SL. O desenvolvimento (in)sustentável do agronegócio canavieiro. Cien Saude Colet 2014; 19(10):3971-3980.
  • 5
    World Health Organization (WHO). Agência Internacional de Pesquisa sobre Câncer (IARC). Malathion, Monographs [Internet]. [acessado 2020 jun 24]. Disponível em: https://www.iarc.fr/wp-content/uploads/2018/07/MonographVolume112-1.pdf
    » https://www.iarc.fr/wp-content/uploads/2018/07/MonographVolume112-1.pdf
  • 6
    Pereira JMM, Sauer S. A "reforma agrária assistida pelo mercado" do Banco Mundial no Brasil: dimensões políticas, implantação e resultados. Soc Estado 2011; 26(3):587-612.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br