Ser, estar e habitar a desinstitucionalização da saúde mental brasileira

Ana Paula Freitas Guljor André Vinicius Pires Guerrero Barbara Coelho Vaz Fernanda Maria Duarte Severo June Corrêa Borges Scafuto Karine Dutra Ferreira da Cruz Silvio Yasui Sobre os autores

O movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira iniciado na década de 1970 ganhou força ao longo da década de 1980 em meio ao processo de redemocratização do país e da Reforma Sanitária que originou o Sistema Único de Saúde (SUS). A participação social de trabalhadores da saúde, usuários, familiares, pesquisadores, imprensa e outros atores sociais do campo da Saúde Mental/Políticas Públicas foi estratégica ao denunciar a violência dos hospitais psiquiátricos e a mercantilização do sofrimento psíquico pela “indústria da loucura”. A Lei nº 10.216/200111 Brasil. Ministério da Saúde(MS). Lei nº 10.216, Lei da Reforma Psiquiátrica de 06 de abril de 2001. Diário Oficial da União; 6 abr., conquista destes movimentos, é considerada o marco legal da reforma psiquiátrica brasileira por assegurar os direitos civis e humanos das pessoas em sofrimento mental, bem como garantir o cuidado comunitário. As normativas produzidas na década seguinte à publicação da Lei expressam os princípios da desinstitucionalização, objetivando transformações sociais a partir da prática clínica ampliada e da vida em liberdade22 Amarante P, coordenador. Loucos pela Vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2001..

A diversidade das experiências e práticas inovadoras da atenção psicossocial inspiraram a formulação das políticas de saúde mental brasileira em um movimento ascendente entre as três esferas do poder. No âmbito do resgate e garantia dos direitos dos sujeitos em sofrimento psíquico, os dispositivos de moradia, o direito à cidade e o arcabouço de políticas para inclusão social são necessários para consolidação da cidadania, permanecem como o desafio civilizatório para a transformação do lugar social da loucura33 Venturini E. A Linha Curva. O espaço e o tempo da desinstitucionalização. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016..

Esta edição da Ciência e Saúde Coletiva traz para o debate científico a reflexão sobre o direito à cidade-casa e a apropriação de condições de cidadania das pessoas que vivem com sofrimento psíquico. O “morar em liberdade” traz consigo a complexidade do habitar a cidade, para além da casa, a produção e a troca com valor de uso social, a consolidação dos processos identitários e do pertencimento a um ‘lugar’. Neste sentido, as políticas afirmativas, serviços e dispositivos intersetoriais que garantem a sustentabilidade das práticas cotidianas desenvolvidas nas moradias e serviços residenciais terapêuticos e suas estratégias inclusivas de vizinhança, pertença, geração de renda e trabalho, resgates de afetos e ‘culturas’ estão no bojo social do que designamos como direito à cidade.

O morar e o habitar são compostos por uma gama de ações de macro e micro políticas fundamentais à transmutação do sujeito-sujeitado em sujeito-cidadão. O direito à casa é, também, espaço de abrigo e continente para o movimento de ocupação das redes existenciais do urbano. Apesar do ponto de partida (hospício) e do ponto de chegada (cidade-casa) serem aparentemente claros, o trajeto a ser percorrido é transversalizado pelas armadilhas concretas e subjetivas do mundo globalizado.

Reencontrar os espaços da rua se configura como vivências positivas, mas também de retorno a uma cidade que enfrenta as consequências de uma pandemia, permeada pelo racismo estrutural, discriminação de classe e de gênero entre vários outros estigmas historicamente construídos.

Esta edição temática enfoca os desafios da desinstitucionalização refletidos nas práticas cotidianas do direito à cidade para além da lógica manicomial.

Convidamos os leitores para refletir sobre a multiplicidade das experiências locais e sobre os paradigmas científicos interdisciplinares e intersetoriais presentes no cuidado em liberdade a partir da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e seus dispositivos como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços de Residências Terapêuticos (SRT), Centros de Convivência e Programa de Volta para Casa(PVC), como parte do arcabouço das políticas públicas brasileiras reconhecidas internacionalmente que estão sofrendo ameaças e desestruturações sem precedentes.

A travessia entre o hospício e a cidade, no século XXI, segue sendo uma disputa política que convoca para o processo civilizatório democrático. Ocupar as arenas da ciência, da política e da cultura em prol de uma “sociedade sem manicômios” e da continuidade da Reforma Psiquiátrica é a convocação do tempo presente.

Boa leitura!

Referências

  • 1
    Brasil. Ministério da Saúde(MS). Lei nº 10.216, Lei da Reforma Psiquiátrica de 06 de abril de 2001. Diário Oficial da União; 6 abr.
  • 2
    Amarante P, coordenador. Loucos pela Vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2001.
  • 3
    Venturini E. A Linha Curva. O espaço e o tempo da desinstitucionalização. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Jan 2022
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