Fatores associados ao estado nutricional de crianças menores de cinco anos da Paraíba, Brasil

Factors associated with nutritional status of children under five years old from Paraíba, Brazil

Maria Mônica de Oliveira Eduarda Emanuela Silva dos Santos Ítalo de Macedo Bernardino Dixis Figueroa Pedraza Sobre os autores

Resumo

Objetivou-se analisar se o estado nutricional de crianças menores de cinco anos de idade está relacionado às condições biológicas de suas mães, ao acesso a serviços de saúde, ao benefício de programas sociais e às condições socioeconômicas. Trata-se de um estudo transversal realizado no contexto da Estratégia Saúde da Família, em sete municípios do interior do estado da Paraíba. A metodologia incluiu o diagnóstico do déficit de estatura e do excesso de peso (sobrepeso e obesidade) das crianças, cujos determinantes foram analisados por meio de árvore de decisão. Como resultado, foram avaliadas 469 crianças, das quais 7,9% apresentaram déficit de estatura e 12,8% excesso de peso. Encontrou-se associação desses desfechos com o estado nutricional materno. A baixa estatura também teve como exposições relevantes a idade da criança inferior a dois anos (p = 0,018) e a insegurança alimentar e nutricional moderada/grave (p = 0,008). Para o excesso de peso, não ser beneficiário do Programa Bolsa Família (p = 0,049) e a pior situação socioeconômica (p = 0,006) também representaram fatores associados ao desfecho. Como conclusão do presente estudo, podemos afirmar que existe uma associação entre o estado nutricional materno e o da criança.

Key words:
Nutritional Status; Overweight; Growth; Family Health Strategy; Child

Abstract

This paper aimed to analyze whether the nutritional status of children under 5 years of age is related to the biological conditions of their mothers, access to health services, the benefit of social programs, and socioeconomic conditions. This is a cross-sectional study carried out in the context of the Family Health Strategy in seven municipalities in inland Paraíba State. The methodology included the diagnosis of stunting and excess weight (overweight and obesity) in children, which determinants were analyzed through the Decision Tree. As a result, 469 children were evaluated, of which 7.9% had stunting and 12.8% had excess weight. An association of these outcomes was found with maternal nutritional status. Also, the relevant exposures of stunting were the age of the child of less than 2 years (p = 0.018) and the moderate/severe food and nutritional insecurity (p = 0.008). For excess weight, not being a beneficiary of the Programa Bolsa Família (p = 0.049) and the worst socioeconomic situation (p = 0.006) were also factors associated with the outcome. As a conclusion of the present study, we can affirm that there is an association between the maternal and child nutritional status.

Key words:
Nutritional Status; Overweight; Growth; Family Health Strategy; Child

Introdução

Estados nutricionais extremos de déficits e excessos constituem importantes problemas de saúde pública que tendem a ser graves entre mulheres em idade reprodutiva e crianças menores de cinco anos. Essas condições afetam negativamente as funções reprodutivas das mulheres e estão associadas a morbi-mortalidade, desenvolvimento cognitivo e crescimento da criança, bem como prejudicam a produtividade econômica11 Mia MN, Rahman MS, Roy PK. Sociodemographic and geographical inequalities in under and overnutrition among children and mothers in Bangladesh: a spatial modelling approach to a nationally representative survey. Public Health Nut 2018; 21(13):2471-2481.,22 Felisbino-Mendes MS, Villamor E, Velasquez-Melendez G. Association of Maternal and Child Nutritional Status in Brazil: A Population Based Cross-Sectional Study. PLoS ONE 2014; 9(1):e87486.. Metas globais foram propostas para melhorar a nutrição materna e infantil até 2025, reconhecendo-se a necessidade de resolver o problema generalizado da dupla carga de desnutrição33 World Health Organization (WHO). Global nutrition targets 2025: policy brief series. Geneva: WHO; 2014.. A esse propósito se conectam os objetivos de desenvolvimento sustentável, que em uma de suas metas visa acabar com todas as formas de má nutrição até 203044 Organização das Nações Unidas no Brasil (ONU Brasil). Fome zero e agricultura sustentável. Brasília: ONU Brasil; 2017..

O atual cenário do estado nutricional da população brasileira, caracterizado pelo processo de transição nutricional, reflete as mudanças vivenciadas no perfil demográfico e epidemiológico do país ao longo das últimas três décadas55 Pereira IFS, Andrade LMB, Spyrides MHC, Lyra CO. Estado nutricional de menores de 5 anos de idade no Brasil: evidências da polarização epidemiológica nutricional. Cien Saude Colet 2017; 22(10):3341-3352.. Embora se evidencie que a prevalência global da desnutrição esteja diminuindo tanto em crianças quanto em mulheres, nos países de baixa e média renda, como o Brasil, observa-se a coexistência da baixa estatura com o sobrepeso e/ou obesidade11 Mia MN, Rahman MS, Roy PK. Sociodemographic and geographical inequalities in under and overnutrition among children and mothers in Bangladesh: a spatial modelling approach to a nationally representative survey. Public Health Nut 2018; 21(13):2471-2481.,22 Felisbino-Mendes MS, Villamor E, Velasquez-Melendez G. Association of Maternal and Child Nutritional Status in Brazil: A Population Based Cross-Sectional Study. PLoS ONE 2014; 9(1):e87486., que pode acontecer no mesmo país ou cidade, na mesma família (binômio mãe/filho) ou no mesmo indivíduo em diferentes estágios de sua vida66 Rachmi CN, Agho KE, Li M, Baur LA. Stunting, Underweight and Overweight in Children Aged 2.0-4.9 Years in Indonesia: Prevalence Trends and Associated Risk Factors. PLoS ONE 2016; 11(5):e0154756..

No Brasil, a prevalência de excesso de peso estimada por meio da pesquisa Vigitel de 2019 para a população feminina adulta residente nas capitais dos estados e no Distrito Federal foi de 53,9%77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Vigitel Brasil 2019: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2019. Brasília: MS; 2020.. Essa proporção equivale à reportada em nível mundial entre os países mais afetados pelo problema88 Finucane MM, Stevens GA, Cowan MJ, Danaei G, Lin JK, Paciorek CJ, Singh GM, Gutierrez HR, Lu Y, Bahalim AN, Farzadfar F, Riley LM, Ezzati M. National, regional, and global trends in body mass index since 1980: systematic analysis of health examination surveys and epidemiological studies with 960 country-years and 9.1 million participants. Lancet 2011; 377(9765):557-567.. Para os menores de cinco anos, a prevalência do excesso de peso no Brasil foi de 7,3% em 200699 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher - PNDS 2006: dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. Brasília: MS; 2009., enquanto mundialmente é estimada em 5,6%1010 United Nations Children's Fund, World Health Organization (WHO), World Bank Group. Joint child malnutrition estimates - levels and trends. Washington: WHO; 2018.. Em relação ao déficit de estatura, as prevalências são mais distantes: 7,1% no caso das crianças brasileiras99 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher - PNDS 2006: dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. Brasília: MS; 2009. e 22,2% globalmente1010 United Nations Children's Fund, World Health Organization (WHO), World Bank Group. Joint child malnutrition estimates - levels and trends. Washington: WHO; 2018..

Na etiologia desses problemas, destaca-se a influência da interação de fatores biológicos, ambientais, comportamentais, sociais, econômicos e políticos. Assim, o estado nutricional infantil resulta da sinergia de determinantes que incluem o estado nutricional materno, o peso ao nascer, o estado de saúde e as práticas alimentares da criança, os cuidados com a criança, a segurança alimentar e nutricional (SAN) da família, o acesso aos serviços de saúde e o status socioeconômico11 Mia MN, Rahman MS, Roy PK. Sociodemographic and geographical inequalities in under and overnutrition among children and mothers in Bangladesh: a spatial modelling approach to a nationally representative survey. Public Health Nut 2018; 21(13):2471-2481.,1111 Akombi BJ, Agho KE, Hall JJ, Wali N, Renzaho AMN. Stunting, wasting and underweight in Sub-Saharan Africa: a systematic review. Int J Environ Res Public Health 2017; 4(8):863.. Nesse contexto, o ambiente familiar se sobressai como meio no qual os múltiplos fatores de risco podem se manifestar e influenciar a situação de saúde1111 Akombi BJ, Agho KE, Hall JJ, Wali N, Renzaho AMN. Stunting, wasting and underweight in Sub-Saharan Africa: a systematic review. Int J Environ Res Public Health 2017; 4(8):863.,1212 Wang Y, Min J, Khuri J, Li M. A Systematic examination of the association between parental and child obesity across countries. Adv Nutr 2017; 8(3):436-448., com as características maternas representando uma importante interface entre a criança e o meio ambiente1313 Figueroa Pedraza D. Preditores de riscos nutricionais de crianças assistidas em creches em município de porte médio do Brasil. Cad Saude Colet 2017; 25(1):14-23.. Além disso, não se deve descartar a possibilidade de influência dos cuidados prestados pelos serviços de saúde no estado nutricional, como constatado em uma revisão da literatura que apontou maiores chances de déficit de estatura entre crianças usuárias de serviços públicos de saúde ou de programas sociais1414 Sousa CPC, Olinda RA, Figueroa Pedraza D. Prevalence of stunting and overweight/obesity among Brazilian children according to different epidemiological scenarios: systematic review and meta-analysis. Sao Paulo Med J 2016; 34(3):251-262..

Apesar de vasta literatura sobre a temática, a compreensão da etiologia do estado nutricional das crianças brasileiras ainda precisa de ênfases relacionadas à SAN e nos cuidados de saúde, inclusive da influência do Programa Bolsa Família (PBF)1414 Sousa CPC, Olinda RA, Figueroa Pedraza D. Prevalence of stunting and overweight/obesity among Brazilian children according to different epidemiological scenarios: systematic review and meta-analysis. Sao Paulo Med J 2016; 34(3):251-262.,1515 Martins APB, Canella DS, Baraldi LG, Monteiro CA. Transferência de renda no Brasil e desfechos nutricionais: revisão sistemática. Rev Saude Publ 2013; 47(6):1159-1171.. Na perspectiva da assistência à saúde, recomenda-se a necessidade de estudos com foco no desempenho das equipes do Programa Mais Médicos (PMM) em relação às convencionais1616 Kemper ES, Mendonça AVM, Sousa MF. Programa Mais Médicos: panorama da produção científica. Cien Saude Colet 2016; 21(9):2785-2796..

O objetivo desse trabalho foi analisar se o estado nutricional de crianças menores de cinco anos de idade está relacionado às condições biológicas de suas mães, ao acesso a serviços de saúde, ao benefício de programas sociais e às condições socioeconômicas.

Métodos

Desenho do estudo

Trata-se de um estudo transversal com crianças menores de cinco anos de idade. A pesquisa foi desenvolvida em 2018.

Contexto

Foram selecionadas para observação municípios do estado com população entre 30.000 e 149.999 habitantes que recebem incentivos de custeio para a implementação de ações de prevenção e controle do sobrepeso em crianças1717 Brasil. Portaria nº 2.706, de 18 de outubro de 2017. Lista os Municípios que finalizaram a adesão ao Programa Saúde na Escola para o ciclo 2017/2018 e os habilita ao recebimento do teto de recursos financeiros pactuados em Termo de Compromisso e repassa recursos financeiros para Municípios prioritários para ações de prevenção da obesidade infantil com escolares. Diário Oficial da União 2017; 20 out.. Do total de 12 municípios com esse benefício, um foi excluído por não possuir cobertura total da ESF, e outro por não ter no sistema de saúde equipes da ESF predeterminadas como de interesse para o estudo (equipes convencionais vinculadas a Núcleo de Apoio à Saúde da Família sem a inclusão de nutricionista e equipes do PMM vinculadas a Núcleo de Apoio à Saúde da Família com a atuação de nutricionista). Além disso, três municípios não fizeram parte do estudo devido à sua inserção em outra proposta com características similares. Em cada município foram incluídas todas as equipes de saúde com os critérios de seleção, totalizando 22 estabelecimentos (11 convencionais e a mesma quantidade do PMM), e uma escola de educação infantil, selecionada por sorteio aleatório simples, por equipe de saúde participante do Programa Saúde na Escola, totalizando 11 instituições.

Considerou-se como população de estudo as crianças de 0 a 59 meses de idade residentes em áreas urbanas dos municípios do interior da Paraíba selecionados para participar da pesquisa e usuárias da ESF. Por terem particularidades relacionadas ao estado nutricional, crianças gêmeas, adotadas e de mães com idade inferior a 18 anos foram excluídas.

O tamanho da amostra foi definido considerando N = 23.089, p = 18,7% (proporção de menores de cinco anos com excesso de peso nos municípios de estudo em 2017 segundo dados do SISVAN: http://dabsistemas.saude.gov.br/sistemas/sisvanV2/relatoriopublico/index), erro amostral máximo de 4% sob nível de confiança de 95% e 25% para o controle de perdas e confundimento, estimando-se a necessidade de observar 479 indivíduos. Essa amostra também é suficiente para o déficit de estatura, desfecho para o qual haveria a necesidade de estudar 226 crianças, considerando prevalência esperada de 7,7%, com base no SISVAN, e as mesmas características de cálculo estabelecidas para o excesso de peso. A quantidade de crianças por município foi estabelecida de forma proporcional. A seleção das crianças foi por sorteio aleatório simples, com base nos registros das equipes de saúde e escolas de educação infantil. O fluxograma do desenho de seleção da amostra de estudo está disponivel na Figura 1.

Figura 1
Fluxograma do desenho de seleção da amostra de estudo para análise de associação do estado nutricional de crianças menores de cinco anos com características materno-infantis em municípios do interior do estado da Paraíba, 2018.

Dados coletados

Os entrevistadores aplicaram individualmente, em local apropriado, um questionário estruturado às mães das crianças, e antropometristas treinados realizaram a avaliação antropométrica das crianças/mães. As informações foram organizadas em blocos: condições biológicas das mães/crianças (sexo da criança, idade da criança, idade da mãe, estatura da mãe, peso da mãe), acesso a serviços de saúde (trimestre de início do pré-natal, suplementação de vitamina A no pós-parto, tipo de equipe de saúde da ESF), condições socioeconômicas (trabalho materno, convivência da mãe com companheiro, SAN, classificação socioeconômica) e benefício de programas sociais (frequência na escola de educação infantil, benefício do PBF).

As crianças e suas mães foram medidas (comprimento em menores de 24 meses e estatura para crianças de 25-60 meses e mães) e pesadas com equipamentos e técnicas padronizados1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Orientações para a coleta e análise de dados antropométricos em serviços de saúde: Norma Técnica do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional - SISVAN. Brasília: MS; 2011.. O comprimento foi aferido utilizando antropômetro infantil de madeira com amplitude de 130 cm e subdivisões de 0,1 cm (posição deitada). A estatura foi medida usando estadiômetro (WCS) com escala em milímetros (mm) (posição em pé e descalço). Para o peso, utilizou-se balança eletrônica do tipo plataforma com capacidade para 150 kg e graduação em 100g (Tanita UM-080) (descalço e com uso de peças leves). Todas as medidas foram realizadas duas vezes e a média foi utilizada para fins de registro.

Os escores-Z de estatura-para-idade (E/I) e Índice de Massa Corporal-para-idade (IMC/I) das crianças foram calculados com o uso do software WHO Anthro v.3, considerando como referência a população do Multicentre Growth Reference Study1919 Onis M, Onyango AW, Van den Broeck J, Chumlea WC, Martorell R. Measurement and standardization protocols for anthropometry used in the construction of a new international growth reference. Food Nutr Bull 2004; 25(Supl. 1):15-27.. Crianças com escores-Z < -2 de E/I foram classificadas com déficit de estatura. Crianças com Escores-Z > 2 de IMC/I foram consideradas com excesso de peso (sobrepeso e obesidade)1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Orientações para a coleta e análise de dados antropométricos em serviços de saúde: Norma Técnica do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional - SISVAN. Brasília: MS; 2011..

A baixa estatura materna foi definida pelo ponto de corte 155,0 cm, que corresponde ao percentil cinco da relação estatura/idade em ≥ 20 anos, segundo o National Center for Health Statistic (CDC Growth Charts. http://www.cdc.gov/growthcharts/cdc_charts.htm, acessado em 18 de setembro de 2018). O Índice de Massa Corporal (IMC) da mãe foi calculado pela razão entre o peso (kg) e a estatura (metros) ao quadrado. Para diagnóstico, utilizaram-se os seguintes pontos de corte de IMC: baixo peso (< 18,5), peso adequado (18,5-24,9) e sobrepeso e obesidade (≥ 25)1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Orientações para a coleta e análise de dados antropométricos em serviços de saúde: Norma Técnica do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional - SISVAN. Brasília: MS; 2011..

Como parte do questionário, a situação da SAN das famílias foi estimada com base na Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, com 14 itens, que classifica as famílias em segurança alimentar, insegurança alimentar leve, insegurança alimentar moderada e insegurança alimentar grave2020 Segall-Corrêa AM, Marin-León L, Melgar-Quiñonez H, Pérez-Escamilla R. Refinement of the Brazilian Household Food Insecurity Measurement Scale: Recommendation for a 14-item EBIA. Rev Nutr 2014; 27(2):241-251.. A SAN familiar foi dicotomizada em segurança alimentar/insegurança alimentar leve e insegurança alimentar moderada/grave.

A classificação socioeconômica da família se baseou nos critérios da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa2121 Brasil. Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP). Critério de classificação econômica Brasil. São Paulo: ABEP; 2016.. Para essa classificação, considera-se a existência de vaso sanitário no domicílio, a contratação de empregada doméstica, a posse de bens, o grau de instrução do chefe de família e o acesso a serviços públicos. As famílias foram classificadas nas classes A/B/C ou D/E.

O grupo de variáveis independentes foi formado pelas seguintes características: idade da criança (≥ 2; < 2 anos), sexo da criança (masculino; feminino), idade materna (≥ 20; < 20 anos), estatura da mãe (adequada; inadequada), IMC da mãe (adequado; sobrepeso e obesidade), trimestre de início do pré-natal (1º trimestre de gestação; após 1º trimestre de gestação), suplementação de vitamina A no pós-parto (sim; não), tipo de equipe de saúde da ESF (PMM; convencional), trabalho materno (sim; não), convivência da mãe com companheiro (sim; não), SAN (segurança alimentar/insegurança alimentar leve; insegurança alimentar moderada/grave), classificação socioeconômica (classes A/B/C; classes D/E), frequência da criança à escola de educação infantil (sim; não), benefício do PBF (sim; não). O déficit de estatura e o excesso de peso (sobrepeso e obesidade) das crianças representaram as variáveis dependentes. O modelo conceitual proposto encontra-se na Figura 2.

Figura 2
Modelo conceitual da análise de associação do estado nutricional de crianças menores de 5 anos com características materno-infantis em municípios do interior do estado da Paraíba, 2018.

Análise estatística

Inicialmente, foram calculados as frequências absolutas e os percentuais de todas as variáveis em estudo. Em seguida, utilizando o teste χ2 ou o teste exato de Fisher, foi realizada a análise bivariada para testar a associação entre o déficit de estatura e o excesso de peso da criança com as variáveis independentes.

Para explicar o déficit de estatura e o excesso de peso das crianças, foram inseridas todas as variáveis em modelos de árvore de decisão por meio do algoritmo CHAID2222 Bernardino IM, Barbosa KGN, Nóbrega LM, Cavalcante GMS, Ferreira EF, D'Avila S. Violência contra mulheres em diferentes estágios do ciclo de vida no Brasil: um estudo exploratório. Rev Bras Epidemiol 2016; 19(4):740-752.. Esse método consiste em regras de decisão que realizam sucessivas divisões no conjunto de dados, de modo a torná-lo cada vez mais homogêneo com relação à variável dependente. A árvore de decisão utiliza um gráfico que começa com um nó raiz em que todas as observações da amostra são apresentadas. Os nós produzidos em sequência representam subdivisões dos dados em grupos cada vez mais homogêneos, sendo denominados nós-filhos. Quando não há mais possibilidade de divisão, os nós são chamados de nós-terminais ou folhas2222 Bernardino IM, Barbosa KGN, Nóbrega LM, Cavalcante GMS, Ferreira EF, D'Avila S. Violência contra mulheres em diferentes estágios do ciclo de vida no Brasil: um estudo exploratório. Rev Bras Epidemiol 2016; 19(4):740-752.,2323 Soárez PC, Soares MO, Novaes HMD. Modelos de decisão para avaliações econômicas de tecnologias em saúde. Cien Saude Colet 2014; 19(10):4209-4222.. O modelo foi ajustado mediante sucessivas divisões binárias (nós) nos conjuntos de dados. O critério de parada adotado foi o valor p < 0,05 da estatística χ22 Felisbino-Mendes MS, Villamor E, Velasquez-Melendez G. Association of Maternal and Child Nutritional Status in Brazil: A Population Based Cross-Sectional Study. PLoS ONE 2014; 9(1):e87486.usando a correção de Bonferroni. O ajuste do modelo final foi avaliado pela estimativa de risco geral, que compara a diferença entre o valor esperado e o observado pelo modelo, indicando em que medida a árvore corretamente prediz os resultados. Só permaneceram nos gráficos finais as variáveis que obtiveram valor p < 0,05.

Aspectos éticos

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual da Paraíba. Todos os participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Pautado em aspectos éticos, no final da coleta dos dados, um município no qual os gestores inicialmente se recusaram a participar da pesquisa foi reincluído por solicitação deles próprios. Dessa forma, as perdas na coleta dos dados foram compensadas no município em questão, preservando-se o tamanho da amostra desenhado para a pesquisa.

Resultados

Das 479 crianças que participaram do estudo, foram analisados os dados das 469 que tiveram avaliação antropométrica completa. Para o caso do excesso de peso, oito casos com déficit de peso fora excluídos das análises. As prevalências de déficit de estatura e excesso de peso foram 7,9% (IC 95%: 6,1-10,0) e 12,8% (IC 95%: 10,1-15,3), respectivamente.

Do total de crianças avaliadas, observa-se que 217 (46,3%) eram menores de dois anos e 243 (51,8%) do sexo masculino. Quanto ao estado nutricional materno, evidenciou-se baixa estatura de 35,4% (IC 95%: 31,1-37,9) e sobrepeso e obesidade de 59,7% (IC 95%: 56,5-63,2). A maioria das mães (80,6%) relatou ter iniciado o pré-natal no 1º trimestre de gestação e apenas 39,8% informam ter sido suplementadas com vitamina A no pós-parto. Das famílias, 17,5% estavam em insegurança alimentar moderada/grave, 64,0% pertenciam às classes socioeconômicas D/E e 73,8% recebiam benefício do PBF. A frequência da criança na escola de educação infantil girou em torno de 50% (Tabela 1).

Tabela 1
Estado nutricional expresso em escore z da estatura-para-idade, de acordo com condições biológicas das mães/crianças, acesso a serviços de saúde, benefício de programas sociais e condições socioeconômicas, de crianças menores de cinco anos residentes em municípios do interior do estado da Paraíba, 2018.

Segundo análises bivariadas, ser menor de dois anos de idade (p = 0,018) foi a única condição associada ao déficit de estatura (Tabela 1). O início do pré-natal após o 1º trimestre de gestação (p = 0,023) e não ser beneficiário do PBF (p = 0,049) se associaram ao excesso de peso (Tabela 2).

Tabela 2
Estado nutricional expresso em escore z do Índice de Massa Corporal-para-idade, de acordo com condições biológicas das mães/crianças, acesso a serviços de saúde, benefício de programas sociais e condições socioeconômicas, de crianças menores de cinco anos residentes em municípios do interior do estado da Paraíba, 2018.

Por meio do modelo final da árvore de decisão para o déficit de estatura, foi possível constatar que, além da idade da criança, a SAN e a estatura materna influenciaram os resultados. O modelo ficou constituído por sete nós, tendo a idade da criança como primeiro nó-filho, com ramificação apenas para as menores de dois anos, que foram as que apresentaram maior prevalência do desfecho (p = 0,018). Nessas crianças, a insegurança alimentar moderada/grave exerceu importante influência na prevalência de baixa estatura (p = 0,008). Nas crianças de famílias em segurança alimentar/insegurança alimentar leve, a baixa estatura foi mais acentuada quando a mãe teve o mesmo diagnóstico (p = 0,028) (Figura 3).

Figura 3
Análise multivariada por meio da árvore de decisão para o déficit de estatura, ajustada pelos fatores investigados, em crianças menores de cinco anos residentes em municípios do interior do estado da Paraíba, 2018.

Para o excesso de peso, o modelo final da árvore de decisão apresentou nove nós. Segundo o modelo, não ser beneficiário do PBF foi a condição que mais influenciou o desfecho (p = 0,049), com prevalência de 17,9%, enquanto nos beneficiários do Programa foi de 10,9%. Entre as crianças não beneficiárias do PBF, ser das classes socioeconômicas D/E representou uma prevalência de excesso de peso quase três vezes maior em comparação às crianças das classes A/B/C (p = 0,006). Na sequência da situação socioeconômica, como nós-terminais, observa-se que nas crianças das classes A/B/C o excesso de peso foi quase sete vezes maior nas crianças de mães com a mesma classificação (p = 0,027); nas crianças das classes socioeconômicas D/E, a baixa estatura materna influenciou a presença de excesso de peso em seus filhos (p = 0,019), que tiveram prevalência de 53,3% versus 18,5% na condição contrária da mãe. O trimestre de início do pré-natal perdeu a significância estatística após ajuste do modelo pelo nível socioeconômico (Figura 4).

Figura 4
Análise multivariada por meio da árvore de decisão para o excesso de peso (sobrepeso e obesidade), ajustada pelos fatores investigados, em crianças menores de cinco anos residentes em municípios do interior do estado da Paraíba, 2018.

Discussão

O estudo em questão avaliou fatores associados a desvios nutricionais em crianças em vulnerabilidade assistidas pela ESF. Nesse sentido, destacaram-se prevalências expressivas de déficit de estatura e de excesso de peso associadas ao estado nutricional materno. Contudo, o estado nutricional da criança não apresentou associação com o tipo de equipe de saúde, o que talvez reflita padrões semelhantes no acesso aos serviços de saúde e a multiplicidade de fatores envolvidos na implantação das ações de cuidado nutricional1414 Sousa CPC, Olinda RA, Figueroa Pedraza D. Prevalence of stunting and overweight/obesity among Brazilian children according to different epidemiological scenarios: systematic review and meta-analysis. Sao Paulo Med J 2016; 34(3):251-262.,2424 Figueroa-Pedraza D. Implementation of food and nutrition actions in the context of family health strategy, Paraíba, Brazil. Rev Fac Nac Salud Pública 2019; 37(3):98-109..

A situação nutricional evidenciada no presente estudo revela um quadro epidemiológico de relevância em saúde pública, caracterizado pela coexistência de déficit de estatura e sobrepeso e obesidade entre crianças menores de cinco anos, refletindo a realidade de países da América Latina2525 Rivera JA, Pedraza LS, Martorell R, Gil A. Introduction to the double burden of undernutrition and excess weight in Latin America. Am J Clin Nutr 2014; 100(6):1613S-1616S. e do Brasil2626 Conde WL, Monteiro CA. Nutrition transition and double burden of undernutrition and excess of weight in Brazil. Am J Clin Nutr 2014; 100(6):1617S-1622S.. Esse panorama também representa a situação das crianças brasileiras que frequentam as unidades básicas de saúde ou que fazem parte de cadastros sociais, cujas prevalências de déficit de estatura (7,3%) e de sobrepeso/obesidade (11,0%) estimadas em metanálise1414 Sousa CPC, Olinda RA, Figueroa Pedraza D. Prevalence of stunting and overweight/obesity among Brazilian children according to different epidemiological scenarios: systematic review and meta-analysis. Sao Paulo Med J 2016; 34(3):251-262. são semelhantes às encontradas.

Neste estudo, ser menor de dois anos representou a exposição mais próxima do déficit de estatura, o que respalda os achados divulgados na literatura2727 Abdulahi A, Shab-Bidar S, Rezaei S, Djafarian K. Nutritional Status of Under Five Children in Ethiopia: A Systematic Review and Meta-Analysis. Ethiop J Health Sci 2017; 27(2):175-188.,2828 Figueroa Pedraza D, Souza MM, Rocha ACD. Fatores associados ao estado nutricional de crianças pré-escolares brasileiras assistidas em creches públicas: uma revisão sistemática. Rev Nutr 2015; 28(4):451-464.. Desse modo, é importante reforçar a necessidade de investimentos em medidas preventivas, como a garantia de saneamento ambiental, a suplementação durante a gravidez e da criança e a promoção do aleitamento materno exclusivo e da alimentação complementar de qualidade2929 Cunha AJ, Leite AJ, Almeida IS. The pediatrician's role in the ?rst thousand days of the child: the pursuit of healthy nutrition and development. J Pediatr 2015; 6(1):44-51..

O comprometimento do crescimento linear associado à IAN3030 Gubert MB, Spaniol AM, Bortolini GA, Pérez-Escamilla R. Household food insecurity, nutritional status and morbidity in Brazilian children. Public Health Nutr 2016; 19(12):2240-2245.

31 Monteiro F, Schmidt ST, Costa IB, Almeida CCB, Matuda NS. Bolsa Família: insegurança alimentar e nutricional de crianças menores de cinco anos. Cien Saude Colet 2014; 19(5):1347-1357.
-3232 Betebo B, Ejajo T. Alemseged F, Massa D. Household Food Insecurity and its association with nutritional status of children 6-59 months of age in East Badawacho District, South Ethiopia. J Environ Public Health 2017; 2017:6373595., inclusive entre menores de dois anos3131 Monteiro F, Schmidt ST, Costa IB, Almeida CCB, Matuda NS. Bolsa Família: insegurança alimentar e nutricional de crianças menores de cinco anos. Cien Saude Colet 2014; 19(5):1347-1357., também foi observado no atual estudo. O modo como a IAN influencia o crescimento da criança reflete, principalmente, o déficit qualitativo e quantitativo da alimentação3131 Monteiro F, Schmidt ST, Costa IB, Almeida CCB, Matuda NS. Bolsa Família: insegurança alimentar e nutricional de crianças menores de cinco anos. Cien Saude Colet 2014; 19(5):1347-1357.. Essas hipóteses se revestem de significados relevantes com base nos resultados obtidos na Pesquisa de Orçamentos Familiares, por meio da qual foi possível observar maior gravidade da IAN em domicílios com menor aquisição alimentar per capita, inclusive para grupos de alimentos saudáveis3333 Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2020..

A importância dos antecedentes nutricionais da gestação e o compartilhamento de fatores genéticos, ambientais e socioeconômicos por parte da díade mãe-filho justificam a influência da estatura materna no potencial de crescimento de seus filhos22 Felisbino-Mendes MS, Villamor E, Velasquez-Melendez G. Association of Maternal and Child Nutritional Status in Brazil: A Population Based Cross-Sectional Study. PLoS ONE 2014; 9(1):e87486.,1313 Figueroa Pedraza D. Preditores de riscos nutricionais de crianças assistidas em creches em município de porte médio do Brasil. Cad Saude Colet 2017; 25(1):14-23.. A observação das crianças desta pesquisa permitiu confirmar achados concernentes a essa relação obtidos em estudos prévios22 Felisbino-Mendes MS, Villamor E, Velasquez-Melendez G. Association of Maternal and Child Nutritional Status in Brazil: A Population Based Cross-Sectional Study. PLoS ONE 2014; 9(1):e87486.,66 Rachmi CN, Agho KE, Li M, Baur LA. Stunting, Underweight and Overweight in Children Aged 2.0-4.9 Years in Indonesia: Prevalence Trends and Associated Risk Factors. PLoS ONE 2016; 11(5):e0154756.,1313 Figueroa Pedraza D. Preditores de riscos nutricionais de crianças assistidas em creches em município de porte médio do Brasil. Cad Saude Colet 2017; 25(1):14-23.,2727 Abdulahi A, Shab-Bidar S, Rezaei S, Djafarian K. Nutritional Status of Under Five Children in Ethiopia: A Systematic Review and Meta-Analysis. Ethiop J Health Sci 2017; 27(2):175-188..

Segundo o modelo da árvore de decisão do excesso de peso, esse desfecho foi mais prevalente nas crianças não beneficiárias do PBF. Embora esse resultado coincida com o observado em estudos de base nacional3434 Santos LP, Gigante DP. Relação entre insegurança alimentar e estado nutricional de crianças brasileiras menores de cinco anos. Rev Bras Epidemiol 2013; 16(4):984-994.,3535 Pinho Neto VR, Berriel CM. Transferências condicionais de renda e nutrição: efeitos do bolsa família nas áreas rurais e urbanas do Brasil. Econ Aplic 2017; 21(2):185-205., revisões sistemáticas não são conclusivas em relação ao assunto1515 Martins APB, Canella DS, Baraldi LG, Monteiro CA. Transferência de renda no Brasil e desfechos nutricionais: revisão sistemática. Rev Saude Publ 2013; 47(6):1159-1171.,3636 Gamboa-Delgado EM, Cossío TG, Colchero-Aragonés A. Riesgo de sobrepeso en niños preescolares beneficiarios de programas de ayuda alimentaria. Rev Salud Pública 2016; 18(4):643-655.,3737 Groot R, Palermo T, Handa S, Ragno LP, Peterman A. Cash transfers and child nutrition: pathways and impacts. Dev Policy Rev 2017; 35:621-43.. Os efeitos positivos do Programa no estado nutricional da criança podem derivar de melhorias na quantidade e na qualidade da alimentação, assim como de conhecimentos sobre alimentação e do acompanhamento da saúde da criança em decorrência das condicionalidades de saúde3535 Pinho Neto VR, Berriel CM. Transferências condicionais de renda e nutrição: efeitos do bolsa família nas áreas rurais e urbanas do Brasil. Econ Aplic 2017; 21(2):185-205.

36 Gamboa-Delgado EM, Cossío TG, Colchero-Aragonés A. Riesgo de sobrepeso en niños preescolares beneficiarios de programas de ayuda alimentaria. Rev Salud Pública 2016; 18(4):643-655.
-3737 Groot R, Palermo T, Handa S, Ragno LP, Peterman A. Cash transfers and child nutrition: pathways and impacts. Dev Policy Rev 2017; 35:621-43.. Além disso, sugere-se que, nas crianças brasileiras, o peso excessivo atinja principalmente aquelas de melhor situação social, característico de países onde o aumento dos níveis de obesidade ainda é recente3434 Santos LP, Gigante DP. Relação entre insegurança alimentar e estado nutricional de crianças brasileiras menores de cinco anos. Rev Bras Epidemiol 2013; 16(4):984-994..

A relação entre o nível socioeconômico e o excesso de peso infantil, sobretudo nos países de renda média ou baixa, é controversa e complexa, com mecanismos ainda não esclarecidos que distinguem uma multiplicidade de determinantes3434 Santos LP, Gigante DP. Relação entre insegurança alimentar e estado nutricional de crianças brasileiras menores de cinco anos. Rev Bras Epidemiol 2013; 16(4):984-994.,3838 Haire-Joshu D, Tabak R. Preventing obesity across generations: evidence for early life intervention. Annu Rev Public Health 2017; 37:253-271.. Quando o risco de excesso de peso é maior em condições sociais de vulnerabilidade, como no estudo em questão para não beneficiários do PBF de classes socioeconômicas inferiores, cogita-se a influência do acesso limitado à alimentação saudável e da falta de conhecimento sobre os danos relacionados ao problema55 Pereira IFS, Andrade LMB, Spyrides MHC, Lyra CO. Estado nutricional de menores de 5 anos de idade no Brasil: evidências da polarização epidemiológica nutricional. Cien Saude Colet 2017; 22(10):3341-3352.,1313 Figueroa Pedraza D. Preditores de riscos nutricionais de crianças assistidas em creches em município de porte médio do Brasil. Cad Saude Colet 2017; 25(1):14-23.,3838 Haire-Joshu D, Tabak R. Preventing obesity across generations: evidence for early life intervention. Annu Rev Public Health 2017; 37:253-271.. Nessa linha de raciocínio, estudos longitudinais mostraram que o risco de obesidade associado à pobreza pode ser mitigado com melhorias no status econômico capazes de favorecer os comportamentos alimentares3939 Oddo VM, Jones-Smith JC. Gains in income during early childhood are associated with decreases in BMI z scores among children in the United States. Am J Clin Nutr 2015; 101(6):1225-1231.,4040 Goisis A, Sacker A, Kelly Y. Why are poorer children at higher risk of obesity and overweight? A UK cohort study. Eur J Public Health 2016; 26(1):7-13..

A associação da estatura materna com o excesso de peso da criança pode estar relacionada a mecanismos de adaptação, como catch-up (ganhos maiores do que os da normalidade) e distúrbios hormonais, resultantes de condições do período pré-natal e pós-natal desfavoráveis - a exemplo do nascimento com baixo peso decorrente da estatura materna deficiente - que predispõem ao ganho de peso excessivo4141 Ribeiro AM, Lima MC, Lira PIC, Silva GAP. Low birth weight and obesity: causal or casual casual association? Rev Paul Pediatr 2015; 33(3):340-348.,4242 Kuhn-Santos RC, Suano-Souza FI, Puccini RF, Strufaldi MWL. Fatores associados ao excesso de peso e baixa estatura em escolares nascidos com baixo peso. Cien Saude Colet 2019; 24(2):361-370.. Embora não seja possível precisar a trajetória do catch-up nas crianças desse estudo, presume-se que o fenômeno tenha sido mais forte naquelas de classes socioeconômicas inferiores não beneficiárias do PBF, que foram as que apresentaram maiores prevalências de excesso de peso, assemelhando-se aos achados registrados em estudo de coorte4343 Kiy AM, Rugolo LMSS, De Luca AKC, Corrente JE. Growth of preterm low birth weight infants until 24 months corrected age: effect of maternal hypertension. J Pediatr 2015; 91(3):256-262..

O excesso de peso materno como fator de risco para sobrepeso e obesidade da criança reproduz a interação multinível de determinantes biológicos, comportamentais e sociais, que desde os estágios iniciais da vida (fase pré-concepcional, pré-natal e do nascimento aos dois anos) modelam a predisposição de transferência do status de peso entre gerações22 Felisbino-Mendes MS, Villamor E, Velasquez-Melendez G. Association of Maternal and Child Nutritional Status in Brazil: A Population Based Cross-Sectional Study. PLoS ONE 2014; 9(1):e87486.,3838 Haire-Joshu D, Tabak R. Preventing obesity across generations: evidence for early life intervention. Annu Rev Public Health 2017; 37:253-271.,4444 Tchoubi S, Sobngwi-Tambekou J, Noubiap JJ, Asangbeh SL, Nkoum BA, Sobngwi E. Prevalence and risk factors of overweight and obesity among children aged 6-59 months in Cameroon: a multistage, stratified cluster sampling nationwide survey. PLoS ONE 2015; 10(12):e0143215.. Nesse processo, a influência do ambiente obesogênico, como alimentação não saudável e sedentarismo, que levam a adaptações metabólicas precursoras de obesidade e à hereditariedade dessa condição, respalda a relevância de medidas preventivas com foco na promoção de práticas alimentares saudáveis e do peso ideal22 Felisbino-Mendes MS, Villamor E, Velasquez-Melendez G. Association of Maternal and Child Nutritional Status in Brazil: A Population Based Cross-Sectional Study. PLoS ONE 2014; 9(1):e87486.,1212 Wang Y, Min J, Khuri J, Li M. A Systematic examination of the association between parental and child obesity across countries. Adv Nutr 2017; 8(3):436-448.,3838 Haire-Joshu D, Tabak R. Preventing obesity across generations: evidence for early life intervention. Annu Rev Public Health 2017; 37:253-271., aplicáveis neste estudo para as crianças de melhor situação socioeconômica não beneficiárias do PBF nas quais os resultados registrados foram harmônicos.

Esse estudo tem limitações, uma vez que seu delineamento transversal não permite estabelecer a temporalidade das associações analisadas. Além disso, não foram incluídos alguns fatores que interferem no estado nutricional das crianças menores de cinco anos, como a idade gestacional ao nascimento, o peso ao nascer, as práticas de cuidado, o consumo alimentar e a situação de saúde.

Do ponto de vista metodológico, deve ser ressaltado que este estudo mostra novas perspectivas de análises para a compreensão da baixa estatura e do sobrepeso e obesidade em crianças. Assim, contribui para o avanço do conhecimento ao delimitar exposições que podem ser relevantes para grupos específicos de indivíduos com características semelhantes. A capacidade analítica da árvore de decisão pode ser sublinhada ao permitir identificar associações não predeterminadas nas análises bivariadas, o que traduz, possivelmente, a interação complexa dos fatores estudados.

Conclusões

Os resultados do presente estudo revelam prevalências expressivas de déficit de estatura e de excesso de peso em crianças menores de cinco anos usuárias da ESF, as quais se relacionam ao estado nutricional materno. Embora alguns mecanismos e vias dessa transferência intergeracional ainda não estejam claros, sugere-se a existência de relações mediadas pelo compartilhamento de características biológicas e socioambientais.

Verificou-se, ainda, diferenças nos determinantes dos desvios nutricionais de acordo com certas características. A idade da criança e a SAN se sobressaíram por sua repercussão na baixa estatura. Para o excesso de peso, o PBF e a situação socioeconômica representaram as variáveis mais relevantes.

Esses achados fornecem subsídios para a orientação de estratégias multisetoriais e a elaboração de ações nos municípios direcionadas à prevenção e ao controle de tais problemas. Para esses fins, deve se destacar a importância dos cuidados oferecidos às mães e às crianças, incluindo medidas de saúde pública eficazes que possam assegurar benefícios à saúde tanto de forma imediata quanto a longo prazo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Fev 2022

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2019
  • Aceito
    22 Jan 2021
  • Publicado
    24 Jan 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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