O sistema cultural de saúde biomédico em perspectiva na comunidade Ilé Alákétu Asè Ifá Omo Oyá

Daniella Pinto Pereira Boccuto Ana Cláudia Moraes Barros Leite Mor Diogo Virgilio Teixeira Sobre os autores

Resumo

Este estudo foi desenvolvido na interseção entre as ciências da saúde e a antropologia, com finalidade de compreender a importância da medicina tradicional afro-brasileira retratada nas casas de candomblé, explorando interações de seus membros com o sistema biomédico de saúde. A antropologia da saúde objetiva compreender o fenômeno da saúde como uma elaboração sociocultural, e partir disso desenvolve a noção de sistema cultural de saúde, operador teórico deste estudo. Esta proposta pode contribuir para superar os desafios enfrentados no campo da saúde coletiva, ao possibilitar diálogo entre sistemas culturais de saúde, favorecendo a criação de políticas mais eficazes. Este artigo, de inspiração etnográfica, foi desenvolvido a partir do levantamento bibliográfico específico, seguido de observações participantes e entrevistas com membros da comunidade Ilé Alákétu Asè Ifá Omo Oyá, localizada em São Paulo. A prática em saúde no candomblé consegue alcançar lacunas deixadas pela biomedicina, associando de forma não autoritária, colonialista ou excludente saberes de saúde distintos, considerando os processos simbólicos, culturais, subjetivos e espirituais envolvidos nos processos de adoecimento.

Palavras-chave:
Antropologia da saúde; Saúde coletiva; Medicina tradicional; Sistema de saúde tradicional; Medicina tradicional afrodescendente

Introdução

A antropologia da saúde no Brasil tem sua origem na década de 1940, com a abordagem antropológica das práticas populares de saúde em contraste com a biomedicina. De acordo com Langdon et al.11 Langdon EJ, Follér MJ, Maluf SW. Um balanço da antropologia da saúde no Brasil e seus diálogos com as antropologias mundiais. Anuário Antropológico 2012; 37(1):51-89., desde então, a antropologia da saúde brasileira contribui para superar os desafios do campo da saúde ao possibilitar o diálogo do sistema oficial com os sistemas populares e tradicionais, favorecendo a criação de políticas publicas mais eficazes.

Como Langdon22 Langdon EJ. Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições para as políticas públicas. Cien Saude Colet 2014; 19(4):1019-1029. e Langdon e Wiik33 Langdon EJ, Wiik FB. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Rev Lat Am Enfermagem 2010; 18(3):173-181. salientam, um componente fundamental dos sistemas de atenção à saúde é a cultura. Tal perspectiva aponta a relevância dos múltiplos conhecimentos, percepções e cognições estabelecidos pelos sistemas de atenção à saúde para que sejam definidos, classificados e percebidos os fenômenos de saúde/doença em dado contexto. A partir dessas premissas, é estabelecida a noção de sistema cultural de saúde, operador teórico deste estudo.

Segundo levantamento de Mello e Oliveira44 Mello ML, Oliveira SS. Saúde, religião e cultura: um diálogo a partir das práticas afro-brasileiras. Saude Soc 2013, 22(4):1024-1035., desde 1978 a Organização Mundial de Saúde (OMS) incentiva que as nações pesquisem e fomentem o fortalecimento das medicinas tradicionais regionais de seus territórios, bem como favoreçam o diálogo dessas com o sistema de saúde oficial. Com a publicação de estratégias para o desenvolvimento das medicinas tradicionais, primeiro em 200255 World Health Organization (WHO). WHO traditional medicine strategy 2002-2005. Geneva: WHO; 2002., depois em 201466 World Health Organization (WHO). WHO traditional medicine strategy: 2014-2023. Geneva: WHO; 2013., a OMS pretende auxiliar globalmente autoridades e gestores em saúde a encontrar soluções que propiciem melhoras na qualidade de saúde e autonomia de pacientes por meio do reconhecimento e da utilização das medicinas tradicionais.

As medicinas tradicionais brasileiras estão resguardadas no escopo religioso que envolve as matrizes afro-brasileiras e indígenas. Rabello77 Rabelo MC. Religião e cura: algumas reflexões sobre a experiência religiosa das classes populares urbanas. Cad Saude Publica 1993; 9(3):316-325. aponta a convergência de diversos estudos que colocam os cultos religiosos no papel de agências terapêuticas. As religiosidades oferecem narrativas compartilhadas por curador, doente e comunidade, que ajudam a organizar a experiência caótica do sofrimento vivido.

Identificar, compreender e refletir sobre a prática das medicinas indígena e afro-brasileiras têm muito a contribuir na promoção de saúde no Brasil, em consonância com o princípio da integralidade do SUS. A análise e interpretação dos processos de saúde/doença dentro dos contextos socioculturais específicos em que as populações e grupos estão inseridos permite valorizar a diversidade de cuidados de saúde, compreender as razões para baixas adesões às políticas e promover trabalhos em conjunto com outros agentes sociais.

Faz-se necessário o fomento e realização de mais pesquisas para fortalecer o reconhecimento do sistema cultural de saúde afro-brasileiro, como coloca Mandarino e colaboradores88 Mandarino ACS, Jesus NA, Passy SR, Gomberg E. Percursos e significados terapêuticos na religião afro-brasileira Candomblé. Fórum Sociológico 2012; 22(1):43-51., para que possamos subsidiar adequadamente a formação de profissionais de saúde capacitados e sensibilizados para dialogar e construir elos de complementaridade com tais saberes e práticas. Silva99 Silva JM. Religiões e saúde: a experiência da Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde. Saude Soc 2007; 16(2):171-177. afirma que as práticas e relações estabelecidas nas comunidades de terreiro possibilitam a promoção da saúde, a prevenção de agravos e a renovação de práticas de cuidado milenares.

Este artigo relata o estudo de campo exploratório e de inspiração etnográfica realizado na comunidade de terreiro Ilé Alákétu Asè Ifá Omo Oyá, localizada na região metropolitana de São Paulo. O estudo objetivou descrever o sistema cultural de saúde desta comunidade e explorar as interações e interfaces de seus membros com o sistema biomédico.

O terreiro de candomblé Ilé Alákétu Asè Ifá Omo Oyá está situado em um bairro residencial periférico da cidade metropolitana de Guarulhos, o Jardim Angélica, na própria casa da dirigente do terreiro: a Iyalorisa Cláudia Ty’ Oyá, mais conhecida como Mãe Cláudia de Oyá. O terreiro segue a linhagem das tradições das nações Ketu, que são ligadas aos povos Yorubás. Além das atividades religiosas, o terreiro também realiza ações afirmativas de cunho cultural, com atividades para toda a comunidade, por meio da Associação Cultural Ilé Omo Oyá, que se tornou referência na busca por diálogo com esferas governamentais desde 1999.

O presente artigo segue então divido em quatro sessões: 1) estudo metodológico desenvolvido a partir da antropologia, bem como descrição do método e estruturação das visitas de campo e da coleta de dados; 2) relato de campo, no qual descrevemos atividades, itinerários e percepções de saúde-adoecimento da casa de Asè Ilé Alákétu Asè Ifá Omo Oyá; 3) discussão das relações entre religiosidade, espiritualidade e saúde que permeiam os dados de campo; e 4) discussão dos itinerários percebidos entre os sistemas culturais de saúde do candomblé e da biomedicina nos participantes da pesquisa, e por fim as considerações finais, que trazem uma síntese reflexiva do estudo, bem como propostas e disposições para sua continuidade.

Metodologia

O estudo caracterizou-se como pesquisa de campo de cunho qualitativo e inspiração etnográfica. Consideramos que esta pesquisa não se trata propriamente de uma etnografia, visto que o período de tempo no campo foi restrito. No entanto, os referenciais da etnografia, da etnologia e da antropologia influenciaram largamente o método e a disposição da pesquisadora no campo. Este estudo foi desenvolvido em duas etapas, sendo a primeira o levantamento e estudo bibliográfico referentes ao campo da antropologia da saúde e das tradições afro-brasileiras, bem como o estudo do método etnográfico para a estruturação metodológica. Na segunda etapa foi desenvolvido o estudo de campo, em que foram realizadas observações participantes registradas em caderno de campo e entrevistas com os dirigentes e praticantes da casa.

Posteriormente à fundamentação da pesquisa, foi desenvolvido o estudo de campo entre os meses de junho e dezembro de 2019, com seis visitas ao terreiro Alákétu Asè Ifá Omo Oyá, nas quais foram realizadas observações participantes em festas rituais, além de duas entrevistas em profundidade com a dirigente da casa, Mãe Cláudia de Oyá, e duas entrevistas em grupo com mais sete membros da comunidade, filhos de santo. O projeto desta pesquisa foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), parecer 23131019.6.0000.5492, de forma que a pesquisa foi esclarecida para os participantes e foram seguidos todos os procedimentos de consentimento. O manuscrito deste artigo também passou por aprovação de Mãe Cláudia de Oyá antes de ser enviado para publicação.

Para a retenção das informações obtidas em campo, foi utilizado o recurso antropológico do caderno de campo, onde todas as primeiras impressões e falas mais importantes das vivências foram registradas. Também foi utilizado o recurso de gravação de áudio para retenção das entrevistas e suas posteriores transcrições.

Para DaMatta1010 DaMatta R. O ofício de etnólogo, ou como ter anthropological blues. Boletim do Museu Nacional: Antropologia 1974; 27:1-12., a antropologia objetiva a compreensão dos sentidos que são atribuídos às experiências dos atores sociais, sentidos esses informados pela cultura que permeia as subjetividades dos fenômenos. A aplicação das referências da etnografia nesta pesquisa se deu pela intencionalidade da pesquisadora em perceber as nuances e as relações culturais e sociais, bem como as trocas de saberes que aconteceram nas entrevistas e as observações realizadas em campo, com o olhar e a escuta que estiveram aguçados e compenetrados para apreensão de detalhes que permeiam os fenômenos socioculturais em saúde que ali se davam, concordando com os apontamentos de Oliveira1111 Oliveira RC. O Trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Revista de Antropologia 1996, 39(1):13-36. sobre a prática etnográfica.

A casa de Asè Ilé Alaketu Asè Ifà Omo Oyá e suas atividades

A trajetória de Cláudia se inicia no candomblé de Angola, porém teve seguimento como zeladora no candomblé da nação Ketu, caminho que percorre há 21 anos. Militante do movimento negro de Guarulhos, representando as tradições de matriz africana dentro do poder público, é a 1ª Iyalorisà a ministrar palestras em universidades de São Paulo.

Sua história, que atualmente é cheia de bênçãos e graças, como ela mesma define, nem sempre foi assim. Até tomar para si a responsabilidade religiosa, passou por muitos percalços, hiatos e provações. A zeladora do Ilé Alákétu Asè Ifá Omo Oyá perdeu um filho com 1 ano e 7 meses por causas até hoje desconhecidas pelos médicos. Mais tarde, sua filha foi acometida por uma doença grave cujos tratamentos oferecidos pelos médicos eram muito custosos e traziam poucas expectativas para plena cura. Contra as recomendações dos profissionais de saúde, Cláudia conseguiu encontrar cura para sua filha entregando-a aos orixás, realizando todas as suas obrigações. Apóes esse acontecimento marcante, Cláudia aceitou definitivamente as funções do sacerdócio.

Mãe Cláudia diz não conseguir elencar de cabeça doenças que percebe acometer mais ou menos quem procura o seu terreiro, mas ressalta que são inúmeros os trabalhos de cura realizados. Ela comparou o trabalho na casa de candomblé ao feito nos hospitais, devido à variedade dos problemas de saúde que chegam para atendimento, bem como o movimento constante de trabalho na Casa, estando sempre aberta a quem necessita, 24 horas por dia.

O médico cuida do corpo, da carne. O babalorixá e a yialorixá, o padre, o pastor, eles cuidam da Alma, e é tão importante quanto, porque se esses dois não tiverem nivelados a coisa não anda. Então, ser yialorixá pra mim é tão importante quanto se eu fosse uma médica da carne, e como psicóloga eu sei, e essa importância redobrou dentro de mim(Mãe Cláudia).

A sede da Casa de Asè Ilé Alákétu Asè Ifà Omo Oyá possui três andares, que abarcam o salão de beleza, a residência da família e, no último andar, o espaço destinado ao trabalho do candomblé. Mãe Cláudia de Oyá sempre quis ter um espaço próprio e separado para as atividades do candomblé, porém as condições financeiras nunca foram favoráveis a isso.

O local foi visitado pela primeira vez apenas com o intuito de uma primeira apresentação para Mãe Cláudia em uma conversa aberta e livre, falando de minha trajetória e as intenções do trabalho.

A segunda visita ocorreu no mês de julho, para participar da festa pública mensal que o terreiro oferece a toda comunidade. Essas festas são chamadas de Xirê e acontecem tradicionalmente no candomblé, homenageando um orixá. No Ilé Alaketu Asè Ifà, são realizadas sempre no último sábado do mês.

Uma grande preparação é necessária para o Xirê, que tende a mobilizar todos os filhos de santo da casa. Há uma decoração especial de acordo com os elementos e características do orixá que será reverenciado na cerimônia, uma outra cerimônia de reza para os internos da casa dias antes da celebração, bem como o preparo das comidas do orixá que são distribuídas a todos ali presentes.

A festa se inicia sempre com saudação a todos os orixás, seguindo uma ordem específica. Depois, os filhos do orixá homenageado vão ao quarto se preparar com vestimentas adequadas para receber o santo. Após o momento em que os orixás no recinto são recebidos com danças que contam histórias mitológicas, é comum que seja servida a comida sagrada deles. A comida de santo contém Asè, com poder de curar questões físicas, mentais, emocionais e reestabelecer o equilíbrio daqueles que vão usufruir do alimento. O momento de comer é o tempo de socialização entre os presentes na festividade, e alguns dos participantes já começam a ir embora. Depois, prossegue o ritual até o fechamento da cerimônia e o encerramento da festa.

A festa desse segundo dia de visita era de Olubajé, que reverencia Omulu e Obaluaiê, ritual imprescindível para os terreiros de candomblé, momento especial para rogar por saúde e longevidade a todos os que estão presentes. O terceiro momento de visita aconteceu no dia da festa dos Ibejis, a festa das crianças, também conhecida como festa de Cosme e Damião. O quarto momento ocorreu na festa dos Guardiões (Exu e as Damas), que não é original da tradição Ketu, entretanto a zeladora da casa incorporou essa festa ritual em seus trabalhos por respeito e gratidão às entidades da noite e sua história no candomblé de Angola.

No mês seguinte, fui ao terreiro fora de data comemorativa ao público para realizar a primeira entrevista em profundidade com Mãe Cláudia. A utilização da analogia da Casa de Asè como hospital foi muito presente, assim como a importância da especialização de Mãe Cláudia em psicologia, já que diversas correntes da psicologia dialogam com as suas vivências dentro do terreiro e trazem algumas semelhanças com os ensinamentos dos Itãns. Todos os pensadores que vêm construindo a psicologia eu escuto de cada um dos Itãns. Só muda o jeito de falar, mas a história é a mesma, o ensinamento é o mesmo. De formas diferentes, de épocas diferentes, mas o mesmo ensinamento que só reforça tudo o que eu aprendi como yialorixá.

Por último, houve observação participante na festa de encerramento do ano, a festa de Ifá, comandada pelo Awô Ifá da casa, Pai João. É uma cerimônia africanista da linha seguida por Pai João, então Mãe Cláudia assume o lugar de mantenedora da ordem. Após o momento do café, o pai-de-santo vai a um quarto superior com alguns dos filhos de santo realizar rezas e oferendas a portas fechadas, enquanto os demais ficam no salão concentrados e orando em conjunto.

Durante toda a manhã de reza ocorreu a formação de dois grupos de filhas-de-santo, um com quatro mulheres e outro com três, com os quais utilizei as mesmas perguntas norteadoras para fomentar a conversa: desde quando está no candomblé? O que significa saúde para você? Existe alguma história de cura de doenças por intermédio do terreiro? Dessa maneira foram coletados mais dados para aprofundar este ensaio de base etnográfica, que serão trabalhados na próxima seção.

Após a reza e a oferenda para Ifá, Pai João convoca todos a pegarem suas sementes de Ifá (foram entregues a todos) e, em fila, subir ao quarto para bater cabeça na esteira, pedir proteção e saúde para Ifá, receber banho de pipoca consagrada e um bilhete, recebido aleatoriamente, com ensinamentos que dizem respeito à caminhada evolutiva de cada um para o momento atual e para o ano que se aproxima. O banho de pipoca não faz parte do ritual da festa de Ifá no final do ano. Esse movimento atípico se deu porque nas previsões de Ifá para o ano de 2020 foi abordado um enorme número de mortes, o que atualmente é interpretado por Mãe Cláudia como uma previsão da grande pandemia de COVID-19 que enfrentamos. Finalizados todos os processos desse ritual de Ifá e a consagração para o novo ano, um almoço preparado comunitariamente é posto à mesa para encerrar o dia de atividades com confraternização entre a família-de-santo.

Para além das festas Xirê, que são os rituais abertos ao público geral, acontecem rezas semanais para o orixá que será cultuado naquele mês. O dia da reza começa com a preparação das comidas sagradas do orixá a ser cultuado. Ao chegar, os filhos de santo vão se banhar com banhos sagrados de ervas, em seguida vestem suas roupas brancas e se posicionam nas esteiras para a reza, que é toda em Yorubá antigo, a língua dos ancestrais, agradecendo por todos os feitos e pedindo as bênçãos dos seus orixás.

Tradicionalmente, o jogo de búzios movimenta a Casa durante a semana com Pai João, responsável pelos rituais e magias de Ifá e pela maioria das consultas. Essa é a única atividade do terreiro que é paga. Os búzios são o grande oráculo de Ifá, importantes para todo o processo de busca e cura dentro das atividades do candomblé. São os búzios que comunicam os orixás da Casa com os orixás da cabeça de cada um que se senta para jogar. São eles também que determinam se e quando se deve passar pela feitura de santo, o cultivo de Iawô.

Os jogos são de minha total importância, mas como você viu, a minha vida tem um monte de coisas e como eu fui presenteada com esse apoio do João quando ele se tornou um Awô Ifá, quando ele entrou para essa liturgia, ele vem me apoiando nisso (Mãe Cláudia).

A feitura de Iawô, saída do santo, por si só é suficiente para fazer com que o terreiro de candomblé esteja ativo o ano todo, a qualquer hora. Cultivar Iawô significa passar pela iniciação, o que requer uma obrigação de 21 dias resguardados dentro da Casa de Asè, sem contato com o mundo externo, fazendo rezas e comendo apenas o que lhe é especificado pelos orixás, cuidado que é diário e ininterrupto até que se passe a festa de saída do santo.

Em sábados alternados, não conflitando com o último sábado do mês reservado para o Xirê, a mãe-de-santo da Casa recebe seu caboclo, que faz sessões de passe e conversas individuais com aqueles que estão necessitando dessa forma de atendimento. Não é habitual da nação Ketu esse tipo de trabalho, entretanto, assim como a festa homenageando os Guardiões, Mãe Cláudia trouxe esse tipo de assistência, pois ao longo de sua trajetória recebeu tratamentos fundamentais em sessões de passe e conversas com entidades, benefício que ela gosta de passar para outras pessoas também.

Outros segredos, as magias dispostas para o auxílio e a resolução das angústias e dos problemas trazidos pelos que buscam os terreiros, são reservados aos membros da comunidade, descobertas que são reveladas aos que aceitam a vida do candomblé, se iniciam e permanecem no trabalho dessa espiritualidade. Ao longo das observações participantes, pude notar a importância do Ifá, da cozinha, das ervas, da reverência aos ancestrais e do próprio existir junto a uma comunidade.

Religiosidade, espiritualidade e saúde na Casa de Asè Ilé Alákétu Asè Ifà Omo Oyá

O Sistema Único de Saúde (SUS) possui como um de seus princípios a integralidade, isto é, de acordo com Mattos1212 Mattos RA. Princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e a humanização das práticas de saúde. Interface (Botucatu) 2009; 13(Supl. 1):771-780., a compreensão dos processos de saúde e doença a partir de múltiplos aspectos: o biológico, o social, o cultural, o psicológico e o simbólico.

Segundo Andrade et al.1313 Andrade EIG, Cabral ALLV, Martinez-Hemaez A, Cherchiglia ML. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Cien Saude Colet 2011; 16(11):4433-4442., os processos de saúde e adoecimento são inseridos em um contexto ampliado que é determinado também por fatores socioeconômicos e culturais que vão intervir nas escolhas terapêuticas das populações. O entendimento da conjuntura sociocultural compreende a influência exercida pelas crenças religiosas nos itinerários terapêuticos, que muitas vezes também podem envolver em algum momento o SUS, mas não se limitam exclusivamente a ele, uma vez que são construídos na complexidade da cultura, nas subjetividades e na apreensão de significados de forma coletiva, em consonância com o estudo de Mello e Oliveira44 Mello ML, Oliveira SS. Saúde, religião e cultura: um diálogo a partir das práticas afro-brasileiras. Saude Soc 2013, 22(4):1024-1035..

Na Casa de Asè, foi possível observar que o processo terapêutico proposto compreende muitas dimensões do processo de saúde-adoecimento que vão além do nível físico-biológico e seus sintomas. As filhas de santo da Mãe Cláudia (que nos relatos recebem nome fictícios), ao serem questionadas sobre o significado da saúde em suas vidas, ofereceram respostas claras e contundentes:

Para mim, a saúde é primordial, mas não só a saúde física... Então, a saúde vem de dentro para fora, porque a gente tem que estar bem espiritualmente, pessoalmente, em todos os aspectos e todos os âmbitos para que a saúde no seu corpo reflita (Iara).

Como eu já era psicóloga, quando entrei no candomblé, algumas coisas se potencializaram mais no sentido de saúde, porque eu sempre visualizei saúde como saúde mental, então eu acredito que se seu corpo está doente é um sinônimo de que algo no mental está desalinhado. E o espiritual e o mental eles andam muito junto, né?! (Clara).

Olha, saúde para mim é fundamental. [...] Se a gente não tem saúde, a gente não tem nada. Sem saúde a gente não consegue progredir em nenhum aspecto. Sem uma cabeça boa, uma mente boa... Acho que é toda uma junção (Verônica).

Pilar importante e central na vida destas filhas de santo é a saúde como dinâmica complexa, em que não apenas a dimensão física importa, mas a relação de equilíbrio e fluidez entre diversas dimensões da existência humana. Os níveis físico, psicológico e espiritual estão sempre se desenvolvendo mutuamente e se influenciam de maneira dialógica na narrativa de saúde afro-brasileira.

Porque a casa de Axé ela é um hospital, ela é um lugar de cura, ela é um hospital da alma. Ela [a cura] tem que ser de dentro para fora (Verônica).

Ao longo das conversas, inúmeras vezes a mãe e suas filhas de santo empregaram o termo hospital. Seja hospital da alma, ou hospital dos orixás, para se referir às atividades de cura exercidas dentro do terreiro. O emprego dessas expressões, como apontou Gomberg1414 Gomberg, E. Encontros terapêuticos no Terreiro de Candomblé Ilé Axé Opô Oxogum Ladê, Sergipe/Brasil [tese]. Salvador: Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia; 2018., permite entender os itinerários terapêuticos, estabelecendo múltiplas escolhas de diagnósticos e tratamentos, mas não só isso. Mandarino et al.88 Mandarino ACS, Jesus NA, Passy SR, Gomberg E. Percursos e significados terapêuticos na religião afro-brasileira Candomblé. Fórum Sociológico 2012; 22(1):43-51. refletem sobre os interesses de legitimação social das práticas em saúde afro-brasileiras por parte de adeptos e não adeptos.

Na comunidade de terreiro, a cura compreende um processo de transformação geral na vida da pessoa que ali procura cuidado. A família de santo compreende uma rede coesa de apoio que proporciona acolhimento e diferentes influências. Os ensinamentos do terreiro suscitam novas maneiras de compreender os acontecimentos da vida, os cuidados com o próprio corpo e a tomada de responsabilidade.

Ela era assim, uma menina bem louca, não parava em emprego, já tinha sido casada, se separou e era assim... Noitada, racha, bebidas, rock n’ roll, mas era uma menina muito carinhosa, perdida aí nesse mundão... Ela foi se espiritualizando, foi se transformando, conseguiu parar num emprego, deixou mais de gandaia, dos vícios, e foi se transformando (Mãe Cláudia sobre uma de suas filhas de santo).

Tal transformação geral do modo de vida se mostra gradual conforme o filho de santo se vincula à comunidade e compartilha suas experiências, visões e significados. É possível observar a importância do vínculo, da afetividade e do pertencimento à comunidade como agentes transformadores dos padrões de saúde-adoecimento nos diversos níveis de existência.

Esse achado também corrobora os levantamentos de Rabelo77 Rabelo MC. Religião e cura: algumas reflexões sobre a experiência religiosa das classes populares urbanas. Cad Saude Publica 1993; 9(3):316-325., que salienta a ideia da cura enquanto uma realidade processual continuamente negociada e reafirmada no interior dos cultos. É no convívio cotidiano, permeado pelas festas públicas, rituais fechados, rezas, banhos, iniciações, consultas etc., que são proporcionadas narrativas bem estruturadas para dar sentido aos processos de saúde e doença, trazendo novas possibilidades de rotina e hábitos mais satisfatórios.

Quanto aos processos de adoecimento específicos, as filhas de santo relataram diversas situações de saúde física, mental e espiritual para as quais obtiveram a cura nas práticas do terreiro, tais como dificuldades na gravidez e no pós-parto, depressão, complicações cirúrgicas, desequilíbrios econômicos, sociais e outros adoecimentos inicialmente não diagnosticáveis que, pela perspectiva usual do campo da saúde, não seriam considerados uma doença específica, mas que na comunidade de terreiro obtiveram resultados positivos.

Então, tive muitas dificuldades na saúde em relação à depressão, em relação a muita coisa e o orixá transformou minha vida de uma forma que hoje a depressão não dói tanto, as coisas são um pouco mais leves (Iara).

Da noite para o dia a pessoa tá ótima, e de repente ela cai de cama debilitada... Às vezes o corpo responde coisas que na verdade é como se fosse um filtro, o espiritual filtra, a alma filtra e vai a resposta no corpo, vem no nosso organismo. E eu sentia que não era algo de questão médica, né? Aí eu vim conversar e viram que realmente era questão espiritual que tinha, por ter muitos familiares que já se foram, muitos dos espíritos deles estavam muito em volta da minha avó e isso estava adoecendo, é como se tivesse sugando a energia dela. E aí, ela veio aqui, minha avó fez um monte de trabalho, o Pai também cuidou dela, e assim, é como se tivesse tirado com a mão a doença. E assim, hoje a minha avó está muito bem, muito bem mesmo (Verônica, sobre adoecimento de sua avó).

A cultura afro-brasileira, intrínseca ao candomblé, permite uma nova relação com alimentos e plantas que nessa cosmologia são considerados sagrados e dotados de poderes curativos a partir da energia vital existente, o Asè. O Asè está impregnado nas comidas de santo, nos banhos e bebidas de ervas preparadas dentro do terreiro com a magia da fé daqueles que os cultivam.

Tudo começa na cozinha, essa é uma grande verdade! A grande magia se começa na cozinha. Tudo é na panela, tudo é na comida, o que nos mantém. Sem comida, como o corpo, né? E tudo é energia tirada da onde? Não é dos alimentos? Daquela transformação que a gente faz com o que a terra nos dá? Então tudo começa ali na cozinha, a cozinha é o encanto da coisa (Mãe Cláudia).

Essa cultura de cura é apreendida e compartilhada junto às atividades físicas e mentais, organizando o mundo desse grupo social, integrando e trazendo a sensação de pertencimento à comunidade, o que corrobora as teses de Langdon e Wiik22 Langdon EJ. Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições para as políticas públicas. Cien Saude Colet 2014; 19(4):1019-1029. ao descreverem os sistemas de saúde como sistemas culturais de saúde, abarcando seus símbolos e práticas específicas guiadas pela construção cultural de cada grupo.

O terreiro de candomblé, que mantém seus rituais, festas e rezas em Yorubá, mantém viva uma tradição secular advinda da diáspora. Todo terreiro é um quilombo, que luta contra preconceitos e adversidades que a minoria social negra vivencia. Mandarino et al.88 Mandarino ACS, Jesus NA, Passy SR, Gomberg E. Percursos e significados terapêuticos na religião afro-brasileira Candomblé. Fórum Sociológico 2012; 22(1):43-51. ressaltam essa característica, apontando para a multifuncionalidade das casas de Asè, que visam desenvolver um modelo de atenção à saúde com bases nos valores tradicionais afro-brasileiros. Atuando como resistência, o terreiro se mantém conectado primordialmente com os princípios do respeito e da igualdade, praticando acolhimento de outras minorias. Dessa forma, observamos que a comunidade de terreiro de Mãe Cláudia abraça as lutas LGBT e feminista, e desenvolve a religião do candomblé de forma matrifocal.

O terreiro, se você observar bem, é o lugar que encampa todas as lutas necessárias para gente mudar a humanidade, porque é a luta contra o racismo, é a luta LGBT, é a luta feminista e a luta pela grande matriz africana e pela saúde matriarcal (Tatiana).

Intersecções entre o candomblé a biomedicina

Alguns relatos das filhas de santo da casa Alákétu Asè Ifá Omo Oya exemplificam situações nas quais o sistema cultural de saúde afro-brasileiro trouxe não só alívio, mas a emancipação de processos crônicos de adoecimento, que se tornavam desgastantes e desvitalizantes com o tratamento oferecido pelas práticas biomédicas.

Quando eu tive meu filho, os pontos [da cesárea] estouraram, começou a vazar e a única coisa que secou meus pontos foi uma garrafada de Jurema. A Jurema é o remédio que a gente toma e ele é preparado com folhas sagradas. A receita dela é uma receita indígena, porque é dos nossos ancestrais também, a gente é ancestral de índio, né? De caboclo (Denise).

Eu não conseguia ter filho. Fiz tratamento com médico e ele começou até a cogitar fertilização in vitro. Eu já estava me preparando, guardando dinheiro para isso. Foi na época que eu conheci o Asè... Vim tirar minha mãe daqui, acabei me apaixonando, acabei ficando e foi o orixá que me deu meu filho (Naila).

O tamanho do meu ovário era o dobro, quase o triplo do tamanho que ele é hoje, então eu sentia muita cólica, sentia muitas dores, tinha muitos problemas menstruais, muitos... Era tudo muito desregulado e eram tratamentos intensivos que eu fazia, de médico atrás de médico... Era sempre um amenizar, mas nunca tinha a palavra cura. E aí eu vim pra cá [terreiro] em março, e quando foi mais ou menos final de março que eu fui no médico já não sentia mais nada, e nos exames que fui fazer depois estava confirmado, não tinha mais nada. (Clara).

Os adeptos do candomblé não excluem de seu itinerário terapêutico a biomedicina. Observou-se que, apesar de assumirem o sistema cultural de saúde do candomblé como referência explicativa e de tratamento dos desequilíbrios, recorrem também aos recursos biomédicos como referência para a constatação da melhora. Ainda, observamos nas falas das filhas de santo que suas explicações sobre os próprios processos de adoecimento, apesar de vinculadas ao candomblé, misturam noções advindas da biomedicina com noções Yorubás, com a do Asè, por exemplo. A saúde mental, expressão atrelada ao sistema biomédico, por exemplo, é recorrentemente utilizada pelos adeptos da casa Ilé Alákétu Asè Ifá Omo Oyá para elucidar a importância de cuidar de pensamentos e emoções.

Para o sistema cultural de saúde da Casa Ilé Alákétu Asè Ifá Omo Oyá, os níveis mental e espiritual estão intrinsecamente conectados. Espiritualmente, o orixá cuida da cabeça, que tem o nome de Ori, mas para que este cuidado espiritual resulte em saúde e bem viver, é necessário que o adepto nutra uma boa dinâmica mental-emocional. De outra forma, sem saúde mental o orixá não conseguiria interagir e trabalhar a favor da vida do adepto. Observamos os participantes da pesquisa demonstrarem a primazia e a centralidade da saúde mental-emocional:

Acho que antes de qualquer coisa a gente tem que cuidar do Ori da gente. Quando eu pus o pé aqui, a Mãe Cláudia, a primeira coisa que ela falou que não é o santo que vai curar o seu Ori. O seu Ori precisa estar assentado. Primeiro a gente cultua ele e depois vai entregar ao santo sabe? É uma outra conexão, que a gente não vê nas outras religiões (Maira).

Não existe uma boa conexão espiritual com os orixás se o estado mental em que a pessoa se encontra for de perturbação. O remédio espiritual para qualquer angústia permeia o desenvolvimento e fortalecimento da saúde mental de todos que estão no terreiro. Neste achado, encontramos consonância com os escritos de Mandarino et al.88 Mandarino ACS, Jesus NA, Passy SR, Gomberg E. Percursos e significados terapêuticos na religião afro-brasileira Candomblé. Fórum Sociológico 2012; 22(1):43-51., Rabelo77 Rabelo MC. Religião e cura: algumas reflexões sobre a experiência religiosa das classes populares urbanas. Cad Saude Publica 1993; 9(3):316-325. e Rabelo1515 Rabelo M. A construção do sentido nos tratamentos religiosos. Rev Electron Comun Inf Inov Saude 2010; 4(3):3-11., que ressaltam o processo terapêutico no candomblé como o fortalecimento do indivíduo frente às adversidades, ambiguidades e incertezas da vida.

A saúde do corpo, em termos biológicos, é resultado da saúde mental e da conexão espiritual adequada. Os rituais, rezas e práticas possuem um impacto direto na saúde mental-emocional. O adoecimento no corpo físico, na religiosidade afro-brasileira, é compreendido como um sinal de que processos não materiais estão desequilibrados. Nesse contexto, o Ifá (jogo de búzios), oráculo responsável pela comunicação com o espiritual, é acionado com a finalidade de elucidar qual desequilíbrio causa os sintomas e adoecimentos físicos e materiais, além de projetar o caminho até a cura e a restauração do equilíbrio vital.

É sempre através dos búzios, porque é através dos búzios que a gente faz a conexão com os orixás e os orixás da pessoa, né?! Os ancestrais da pessoa trazem o que eles precisam, qual é a necessidade, qual é a energia que está faltando para a gente poder colocar. Essa é sempre a base mesmo (Mãe Cláudia).

Considerações finais

A saúde coletiva deve empregar análises por meio de diferentes prismas e pontos de vista para que a tomada de decisão de gestores e profissionais de saúde se alinhem a uma visão complexa dos processos de adoecimento. Concordando com Tesser1616 Tesser CD. Práticas complementares, racionalidades médicas e promoção da saúde: contribuições pouco exploradas. Cad Saude Publica 2009; 25(8):1732-1742., é fundamental valorizarmos os conhecimentos populares e desenvolvermos estratégias dialógicas que conjuguem as perspectivas profissionais biomédicas com os recursos comunitários e tradicionais de promoção da saúde.

A presente pesquisa demonstra que, para a parcela da população adepta do candomblé, o itinerário terapêutico dos que recorrem à biomedicina nos dispositivos do sistema de saúde oficial transita por práticas e concepções não-biomédicas, as quais devem ser integradas de forma complementar, se não integrativa, às proposições de tratamentos e avaliações biomédicas.

No entanto, do ponto de vista da comunidade de terreiro e de seus adeptos, a noção de complementaridade da medicina tradicional com relação à biomedicina se inverte, visto que as concepções e práticas advindas do sistema cultural biomédico são associadas às concepções e práticas da comunidade de terreiro, sem tirar dessas últimas a primazia explicativa sobre as causas do adoecimento e a proposta primeira de caminho terapêutico a ser seguido. Para a comunidade do terreiro Alákétu Asè Ifá Omo Oya, as práticas biomédicas são complementares à medicina tradicional afro-brasileira.

Os achados da pesquisa nos colocam uma discussão de grande valor: parece-nos que o sistema cultural de saúde afro-brasileiro, em sua manifestação no Alákétu Asè Ifá Omo Oya, executa uma dialogia transversal e integrativa de saberes de saúde, ao associar-se de forma não autoritária, colonialista ou excludente, ao saberes biomédicos e a saberes de outras tradições, como os cultos dos guardiões e de caboclos da nação Angola. Essa composição de práticas e saberes operam, na comunidade de terreiro, de forma a potencializar e complexificar suas práticas, tornando-as mais efetivas na resolução de problemáticas de saúde. Atestamos que, na casa de Asè, os saberes e diagnósticos biomédicos caminham lado a lado com os saberes e diagnósticos afro-brasileiros, servindo como ferramentas que, em última instância, ajudam a comprovar a própria eficácia da terapêutica afro-brasileira.

Para aqueles que vivem a realidade da Casa de Alákétu Asè Ifá Omo Oya, a saúde é uma composição complexa, que envolve o físico, o mental e o espiritual (ancestral), que por sua vez estabelecem entre si uma relação dialógica incessante de desenvolvimento, equilíbrio e desequilíbrio. Os processos terapêuticos estão ligados a escolhas que partem do indivíduo, com base nas relações de afeto e suporte da comunidade, e envolvem transformações profundas, mudanças que serão intermediadas pela vida no terreiro, suas comidas sagradas, os ebós, dias de reza, banhos e bebidas de ervas sagradas, respeito à ancestralidade, entre outros fatores, e assim desenvolvendo novas habilidades e sensibilidades, como aponta também Rabelo1515 Rabelo M. A construção do sentido nos tratamentos religiosos. Rev Electron Comun Inf Inov Saude 2010; 4(3):3-11..

A estrutura do sistema cultural de saúde da Casa Alákétu Asè Ifá Omo Oya se mostrou vinculado aos saberes tradicionais. A saúde é promovida na reverência aos ancestrais, nas mudanças dos modos de vida e na incorporação da comunidade como ponto de apoio para os processos individuais, ao mesmo tempo em que reconhece as práticas e saberes biomédicos sem rejeitá-los.

Dessa maneira, a prática em saúde no candomblé consegue alcançar lacunas deixadas pela biomedicina, quando esta desconsidera os processos simbólicos, culturais, subjetivos e espirituais envolvidos nos processos de adoecimento. A prática dessa medicina tradicional traz outros caminhos possíveis de interpretação do processo de tratamento e cura ao cultivar um sistema cultural de saúde que compreende os fenômenos em sua complexidade.

Nossa análise indica que as abordagens que interpretam situações de saúde considerando o viés sociocultural enriquecem as informações para um trabalho em consonância com a realidade do povo brasileiro. Ao descrever as interrelações que são estabelecidas entre o sistema de saúde biomédico e as práticas de saúde tradicionais, aproximamo-nos do princípio da integralidade do SUS, além de darmos novas possibilidades à saúde coletiva.

Este estudo é uma contribuição para reafirmar a importância de voltarmos nossos olhos, enquanto profissionais da saúde, para práticas que vão além da biomedicina, e com isso suscitar debates dentro da saúde coletiva que abranjam a importância da cultura afro-brasileira e como ela pode auxiliar no desenvolvimento de políticas públicas mais humanas e coerentes com as realidades vividas no Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2020
  • Aceito
    04 Jan 2021
  • Publicado
    06 Jan 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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