Comunicação em saúde nas vivências de discentes e docentes de Enfermagem: contribuições para o letramento em saúde

Adelia Karla Falcão Soares Caio Heinrich Correia de Sá Rayanne da Silva Lima Mirelly da Silva Barros Maria Wanderleya de Lavor Coriolano-Marinus Sobre os autores

Resumo

Este estudo tem como objeto a comunicação em saúde no processo formativo de enfermeiros, e como objetivo analisar concepções dos professores e estudantes do curso de graduação em enfermagem acerca da comunicação em saúde à luz do constructo do letramento em saúde. Trata-se de pesquisa descritiva, exploratória, com abordagem qualitativa. Os dados foram coletados por meio de narrativas individuais dos estudantes e entrevistas semiestruturadas com professores vinculados a uma universidade pública. Os dados foram analisados pela codificação indutiva, apoiada pelo software Atlas T.I, versão 8.0, e no referencial teórico do letramento em saúde. Os resultados identificaram duas categorias: 1) comunicação no cuidado de enfermagem e letramento em saúde; 2) prática na habilidade de comunicação durante a graduação. Discentes e docentes reconheceram a comunicação e sua importância no processo relacional com usuários e no contexto de sala de aula. Identifica-se a necessidade de ferramentas práticas e reflexivas para que a comunicação seja vivenciada de forma mais dialógica e participativa, tanto com usuários como em contextos de ensino-aprendizagem, com integração de elementos afetivos, motivacionais e de suporte.

Palavras-chave:
Comunicação; Estudante de enfermagem; Professor; Professor universitário; Letramento em saúde

Introdução

A comunicação se constitui como uma das bases da assistência de enfermagem, pois envolve os relacionamentos interpessoais, a fala, as expressões faciais e os meios de sensopercepção, que expressam o cuidado. Portanto, é uma habilidade a ser desenvolvida por graduandos da área para que a sistematização de enfermagem seja realizada de forma eficaz e humana11 Oliveira KRE, Trovo MM, Risso ACMC, Braga EM. The teaching approach on communicative skills in different teaching methodologies. Rev Bras Enferm 2018; 71(5):2447-2453..

O letramento em saúde (LS) tem sido conceituado a partir de uma perspectiva funcional e interativa. Enquanto conceito funcional, tem sido abordado como capacidades básicas e individuais para ler, escrever e compreender questões relacionadas à saúde. A perspectiva interativa tem sido mais ampla e associada ao adequado acesso, compreensão e habilidade de acessar informações precisas. Letramento em saúde interativo se refere à capacidade de combinar habilidades cognitivas, sociais e funcionais para extrair informações e usá-las para o cuidado em saúde. Dimensões importantes nesse campo envolvem senso de compreensão e suporte dos profissionais de saúde, interação efetiva e coordenação adequada de sistemas de saúde22 Sorensen K, Broucke SV, Fullam J, Doyle G, Pelikan J, Slonska Z, Brand H. Health literacy and public health: a systematic review and integration of definitions and models. BMC Public Health 2012; 12:80..

O modelo do LS crítico, proposto por Sorensen et al. (2012), vem sendo uma estratégia de fortalecimento do conhecimento e da motivação das pessoas para acessar, compreender, avaliar e aplicar informações de saúde a fim de fazer julgamentos e tomar decisões na vida cotidiana em relação à sua própria saúde22 Sorensen K, Broucke SV, Fullam J, Doyle G, Pelikan J, Slonska Z, Brand H. Health literacy and public health: a systematic review and integration of definitions and models. BMC Public Health 2012; 12:80.. Essas quatro habilidades/competências do LS precisam ser compreendidas por discentes, docentes e profissionais de enfermagem durante o processo de formação. O fortalecimento do letramento em saúde dos futuros profissionais da área constitui missão das instituições formadoras, de modo que sejam capazes de compreender e atuar perante os desafios que as pessoas enfrentam ao tentar encontrar, compreender e utilizar os serviços de saúde33 Elsborg L, Krossdal F, Kayser F. Health literacy among Danish university students enrolled in health-related study programmes. Scand J Public Health 2017; 45(8):831-838..

Os mecanismos facilitadores para o ensino-aprendizagem da comunicação durante a formação de enfermeiros, bem como sua avaliação e acompanhamento, devem ser intenções propostas no currículo e desenvolvidas pelos docentes. Estes, por sua vez, por meio de sua postura e relação de ensino-aprendizagem, podem contribuir para o desenvolvimento dessa habilidade nos discentes, desde configurações mais simples até as mais complexas. Para tal, o docente precisa assumir o papel de orientador e apresentar clareza nas habilidades comunicativas a serem estimuladas e dominadas pelos alunos11 Oliveira KRE, Trovo MM, Risso ACMC, Braga EM. The teaching approach on communicative skills in different teaching methodologies. Rev Bras Enferm 2018; 71(5):2447-2453.

2 Sorensen K, Broucke SV, Fullam J, Doyle G, Pelikan J, Slonska Z, Brand H. Health literacy and public health: a systematic review and integration of definitions and models. BMC Public Health 2012; 12:80.

3 Elsborg L, Krossdal F, Kayser F. Health literacy among Danish university students enrolled in health-related study programmes. Scand J Public Health 2017; 45(8):831-838.
-44 Oliveira KRE, Braga EM. The development of communication skills and the teacher's performance in the nursing student's perspective. Rev Esc Enferm USP 2016; 50(spe.):32-38..

Ao longo do processo formativo do estudante de enfermagem, deve-se considerar diferentes contextos e fatores que podem repercutir na prática profissional, com valorização das relações entre profissionais com usuários e famílias. Isso a partir de informações concretas e acuradas, empatia e ferramentas que possibilitem melhorar a tomada de decisão por parte dos usuários, apoiados por sua rede de apoio e pelos profissionais de saúde que os assistem55 Chan ZCY. A qualitative study on communication between nursing students and the family members of patients. Nurse Educ Today 2017; 59:33-37..

Durante a graduação, estratégias como aulas com enfoque teórico e prático, voltadas para o desenvolvimento da competência comunicativa dos estudantes de enfermagem, possibilitam o aprendizado de conceitos e habilidades para a melhora da comunicação de profissionais de enfermagem com familiares de pacientes66 Chan ZCY, Tong CW, Henderson, S. Power dynamics in the student-teacher relationship in clinical settings. Nurse Educ Today 2017; 49:174-179..

Na perspectiva de valorização da comunicação em saúde e sua articulação com os pressupostos do letramento em saúde, a pesquisa teve como objetivo responder à seguinte questão norteadora: Quais as concepções dos professores e estudantes do curso de graduação de enfermagem acerca das habilidades de comunicação e como essas concepções se articulam ao constructo letramento em saúde na formação dos enfermeiros?

Método

Trata-se de uma pesquisa exploratória, com abordagem qualitativa realizada em uma instituição de ensino superior pública do estado de Pernambuco, Brasil. Os participantes do estudo foram estudantes do curso de enfermagem, regularmente matriculados, do 1º ao 9º período, e docentes efetivos do curso de enfermagem da referida instituição.

Como critérios de inclusão para os estudantes, estes deveriam estar regularmente matriculados, do 1º ao 9º período do curso. Foram excluídos discentes que estavam com matrículas trancadas. Como critérios de inclusão para os docentes, estes deveriam ser professores efetivos do curso.

Utilizou-se duas técnicas de coleta de dados. Para os estudantes de enfermagem foi disponibilizado um formulário/questionário, e com os docentes realizou-se entrevistas seguindo um roteiro semi-estruturado. Os discentes foram abordados por meio do convite em sala de aula, com a anuência dos professores, por duas graduandas em enfermagem que receberam treinamento teórico-prático sobre pesquisa qualitativa em saúde, tutoradas pela orientadora, que possui experiência na abordagem escolhida.

Após aceite dos estudantes, estes foram convidados a produzirem narrativas individuais a partir de questões norteadoras sobre a comunicação durante a formação. As perguntas abordavam a comunicação de forma geral, a comunicação com usuários e a comunicação em sala de aula na relação docentes-discentes. Os dados das narrativas foram coletados ao longo de 2017.

Os estudantes não contactados também foram abordados durante os intervalos das aulas para a participação. As narrativas são descritas como uma metodologia em que o participante consegue contribuir a partir de suas experiências vividas acerca do tópico. As narrativas se caracterizam por relatos de eventos mais contextualizados. A aplicação do instrumento ocorreu por meio da aplicação auto-dirigida77 Monrouxe LV, Bullock A, Gormley G, Kaufhold K, Kelly N, Roberts CE, Mattick K, Rees C. New graduate doctors' preparedness for practice: a multistakeholder, multicentre narrative study. BMJ Open 2018; 8(8):e023146..

Para os docentes, foi utilizada a entrevista com roteiro semi-estruturado com perguntas abertas. Os docentes foram convidados em reuniões de pleno pela orientadora do projeto, e posteriormente foram convidados pelos estudantes de graduação a definirem o melhor dia e horário para realização. As entrevistas foram feitas no ambiente de trabalho, em sala reservada, geralmente na sala do professor, ao longo de 2018.

A quantidade de entrevistados foi estabelecida a partir do critério de saturação dos dados88 Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad Saude Publica 2008; 24(1):17-27.. As entrevistas tiveram duração média de 15 minutos, foram gravadas e imediatamente transcritas. Posteriormente, os dados das narrativas dos estudantes e as entrevistas semiestruturadas foram compilados para a codificação no software Atlas T.I., versão 8.0.

Para realizar a análise dos dados, foi usado o referencial teórico de Yin99 Yin R. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso; 2016., sendo empreendida em cinco etapas. Na primeira etapa, foram compilados de forma a possuírem uma ordem, caracterizando-os como uma base de dados. A segunda etapa consistiu na decomposição dos dados em fragmentos e elementos menores, os quais foram denominados com códigos descritivos, próximos ao texto. A terceira foi a recomposição, fase em que os fragmentos menores foram reagrupados em categorias temáticas a partir de seus códigos. A quarta etapa consistiu na interpretação, momento em que os dados recompostos foram utilizados para se criar novas narrativas que se tornaram parte da análise. A quinta e última etapa foi a conclusão, cujo conteúdo adveio da interpretação dos dados e demais etapas do ciclo, articulando ao referencial do letramento em saúde.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (CEP) do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), parecer de nº 815.383, atendendo aos requisitos da Resolução 466/12. Foi solicitada a anuência formal dos participantes por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Este artigo foi proposto a partir da publicação do estudo “Comunicação no cuidado em saúde: concepções e vivências de discentes e docentes de Enfermagem” nos anais do 10º Congresso Ibero-Americano em Investigação Qualitativa em julho de 2021, sendo reconhecido como um dos melhores trabalhos do evento.

Os resultados apresentados neste manuscrito trazem outros dados, não apresentados no trabalho anterior.

Para manter o anonimato dos participantes, foram utilizados códigos formados por uma sequência de letras e números. As letras iniciais correspondem à categoria profissional de cada participante, e são seguidas por numerais cardinais que identificam a ordem de participação do entrevistado na pesquisa. Seguindo a sequência da codificação, uma segunda ordem de letras foi utilizada, sendo E para estudante e D para docente.

Resultados

Foram coletados dados narrativas de 131 estudantes, distribuídos do 1º ao 9º período, e dez entrevistas de docentes. No grupo de estudantes participantes, 121 foram do sexo feminino e 10 do sexo masculino. A faixa etária desse grupo variou de 17 a 37 anos. Nos docentes, nove foram do sexo feminino e um do sexo masculino. Neste grupo a idade variou entre 27 e 67 anos. A partir da análise qualitativa das respostas de discentes e docentes, foram elaboradas as categorias temáticas a seguir, exploradas de acordo com os principais subtemas que emergiram das falas de ambos os grupos.

A categoria 1 comporta os códigos analíticos relacionados à comunicação no cuidado de enfermagem e às dimensões relacionadas ao letramento em saúde (Quadro 1). A categoria 2 compõe os códigos relacionados à comunicação no contexto da formação, abordando o aprendizado em sala de aula e no contexto dos serviços de saúde (Quadro 2).

Quadro 1
Comunicação no cuidado de enfermagem e letramento em saúde. Recife, Brasil, 2021.
Quadro 2
Prática na habilidade de comunicação durante a graduação. Recife, Brasil, 2021.

Os resultados destacam o reconhecimento da comunicação no contexto da atuação da enfermagem por discentes e docentes, articulando-a principalmente a duas dimensões do letramento em saúde, o acesso e a compreensão dos usuários, fundamentando-se em pressupostos de participação e diálogo na relação comunicativa, como a participação e o empoderamento dos usuários na tomada de decisões relacionadas aos procedimentos técnicos e informações relacionadas à promoção de saúde e cuidados. Também foram valorizados aspectos como empatia nas relações, direito do usuário e relevância do trabalho em equipe. Em menor proporção, destaca-se a articulação da comunicação com as dimensões de avaliação e aplicação do conhecimento.

Durante a formação, estudantes e professores reconheceram as interações em sala de aula e nos serviços de saúde como oportunidades para exercitarem a comunicação, apoiados por metodologias participativas e pelo papel docente enquanto mediador das relações com os discentes.

Essa relação interpessoal entre a díade docente-discente no contexto do aprendizado no espaço universitário é marcado pela diversidade de pessoas, e sua constante comunicação durante as atividades de ensino-aprendizado contribuem para o exercício, a manutenção e o aperfeiçoamento do comunicar-se. Ao ministrar aulas, dialogar e decodificar conteúdos, o docente torna os conhecimentos acessíveis para o uso contextual.

É necessário refletir que, para o comunicar-se com o outro no exercício profissional ou durante a formação profissional, para produzir melhor entendimento, execução e avaliação do LS do usuários e de si, torna-se fundamental refletir sobre as competências pessoais de cada estudante e professor. Portanto, para pensar o cuidado do outro, é necessário refletir a partir do cuidado de si.

Discussão

A comunicação, enquanto ferramenta do trabalho dos enfermeiros, foi valorizada por discentes e docentes a partir do enaltecimento de múltiplas abordagens, incluindo a comunicação oral, escrita e as dimensões não verbais. A enfermagem, em seu cerne, carrega consigo o cuidado como objeto principal de trabalho. Em sua rotina, o profissional de enfermagem precisa estabelecer múltiplas relações interpessoais com a equipe multidisciplinar de saúde e os usuários dos serviços. Para isso, o enfermeiro utiliza a comunicação como ferramenta para o estabeler essas relações.

A comunicação entre o profissional de enfermagem e o usuário é considerada um dos métodos clínicos mais importantes e constitui a base do cuidado de enfermagem11 Oliveira KRE, Trovo MM, Risso ACMC, Braga EM. The teaching approach on communicative skills in different teaching methodologies. Rev Bras Enferm 2018; 71(5):2447-2453.,1010 Gutiérrez-Puertas L, Márquez-Hernández VV, Gutiérrez-Puertas V, Granados-Gámez G, Aguilera-Manrique G. Educational interventions for nursing students to develop communication skills with patients: a systematic review. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(7):22-41.. Essa dimensão da comunicação enquanto aspecto que relaciona o trabalho do enfermeiro dentro da equipe de saúde foi vislumbrada tanto por estudantes como por docentes.

Outra dimensão envolvida no ato comunicativo, presente nos depoimentos de estudantes e professores, foi a possibilidade de estabelecer relações de troca e diálogo. A comunicação em saúde requer, para sua efetividade, o conhecimento de valores e crenças específicos da cultura do usuário. Isso se dá por meio da adequação cultural do profissional de saúde às especificidades culturais do usuário dos serviços de saúde. A partir dessa aproximação com a realidade do usuário, o profissional terá ciência de quais valores podem condicionar o comportamento em saúde e, mais especificamente, quais valores facilitam esse comportamento e quais o dificultam1111 Tan NQP, Cho H. Cultural appropriateness in health communication: a review and a revised framework. J Health Commun 2019; 24(5):492-502..

A comunicação no cuidado de enfermagem e no letramento em saúde descrito nos relatos de discentes e docentes permitiram identificar nas dimensões “acesso” e “compreensão” a reflexão sobre a importância de uma comunicação horizontalizada, clara, objetiva, de forma que o profissional seja um mediador que respeita as necessidades e sentimentos do usuário e facilite aspectos como o respeito aos direitos dos usuários e a tomada de decisão consciente diante de procedimentos invasivos. Outro aspecto valorizado foi a importância do trabalho em equipe para um cuidado centrado no usuário.

Pesquisadores da área do LS, entre eles Osborne (2013), enfatizam a importância da comunicação bidirecional e defendem o uso de métodos participativos e dialógicos que favorecem uma melhor comunicação entre profissional e usuário, com vistas a aprimorar o nível de LS do público que utiliza os serviços de saúde1212 Osborne R, Batterham HRW, Elsworth GR, Hawkins M, Buchbinder R. The grounded psychometric development and initial validation of the Health Literacy Questionnaire (HLQ). BMJ Public Health 2013; 13:658.,1313 Passami SH. Letramento funcional em saúde: as habilidades do usuário e o Sistema Único de Saúde. Curitiba: CRV; 2019. .

Embora as dimensões “avaliação” e “aplicação” das informações de saúde pelos usuários tenham sido encontradas nas falas dos discentes, aparecem de forma mais secundária, como resultado da comunicação em saúde.

Esse dado pode se relacionar ao entendimento da relevância da comunicação em saúde pelos discentes, mas também à falta de feedbacks avaliativos e processos reflexivos durante o processo de ensino-aprendizagem, de modo que a comunicação possa ser trabalhada de uma forma mais consciente, com estratégias que ajudariam a alcançar resultados voltados para o letramento em saúde dos usuários. Desse modo, os participantes mencionam a necessidade de melhorar a interação/comunicação entre profissional e usuário durante o processo de cuidado. Isso pressupõem que essas dimensões, quando compreendidas, podem promover maior adesão e satisfação dos usuários ao tratamento.

Embora o conceito de LS não tenha sido questionado perante os participantes, verifica-se a compreensão destes quanto à autonomia e à valorização dos saberes dos usuários durante processos de educação em saúde.

Estudo que aborda o letramento em saúde de estudantes de bacharelado e pós-graduação de cursos da saúde (medicina, informática médica, medicina e biomedicina molecular) na Dinamarca aponta que algumas variáveis sociodemográficas estiveram relacionadas às dimensões avaliadas pelo Health Literacy Questionnaire (HLQ), instrumento que avalia o letramento em saúde de forma multidimensional. Os estudantes que foram internados em um hospital tiveram pontuação mais alta nos domínios 1 (sentir-se compreendido e apoiado pelos profissionais de saúde), 5 (avaliação das informações de saúde), 6 (capacidade de se envolver ativamente com os profissionais de saúde) e 8 (capacidade para encontrar boas informações de saúde)33 Elsborg L, Krossdal F, Kayser F. Health literacy among Danish university students enrolled in health-related study programmes. Scand J Public Health 2017; 45(8):831-838..

O LS afeta a equidade e os resultados em saúde por meio de quatro principais vias causais: acesso e utilização do cuidado em saúde; interação com os serviços de saúde; cuidado de si e da saúde dos outros; e a participação em debates e tomadas de decisão1414 Batterham, RW, Hawkins M, Collins PA, Buchbinder R, Osborne RH. Health literacy: applying current concepts to improve health services and reduce health inequalities. Public Health 2016; 132: 3-12..

Esses aspectos parecem relacionar as vivências pessoais como usuários a aspectos que podem influenciar o letramento em saúde em dimensões voltadas para os aspectos afetivos e relacionais, sendo relevante propiciar o encontro reflexivo dos discentes diante de suas interações com usuários dos serviços de saúde.

Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), o conceito de letramento em saúde consiste na “capacidade de obter, processar e compreender as informações em saúde, no intuito de tomar decisões apropriadas para a gestão do autocuidado”, e surgiu como constructo que pode intermediar as atividades educativas nos serviços de saúde1515 Malveira R. O sexto sinal vital da saúde. Pulsares; 2019.,1616 World Health Organization (WHO). Health Promotion Glossary. Geneva: WHO; 1998.. Assim, estudos demonstraram que o LS pode ser um preditor mais forte dos resultados gerais de saúde do que raça, idade, educação e nível socioeconômico1717 Baker DW, Parker RM, Williams MV. The relationship of patient reading ability to self-reported health and use of health services. Am J Public Health 1997; 87(6):1027-1030.,1818 Naomi D, Nahn J. Health equity demands health literacy ethics in the pediatric emergency department. Pediatr Emerg Care 2020; 36(7):e414-e41..

Com isso, utilizar estratégias de comunicação em saúde com o LS podem beneficiar a curto, médio e longo prazos as ações de educação em saúde para a população em todos os aspectos da sociedade, principalmente durante o processo de formação dos profissionais de saúde. A promoção do LS junto a pessoas, comunidades e organizações constitui uma importante oportunidade e um desafio da saúde pública1919 Lopes CA, Almeida CV. Introdução. In: Lopes C, Almeida CV, organizadores. Literacia em saúde na prática. Lisboa: Edições ISPA; 2019. p. 17-23..

O Instituto de Medicina dos EUA (agora Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina) recomenda que “escolas profissionais e programas de educação profissional continuada em saúde e áreas relacionadas, incluindo medicina, odontologia, farmácia, serviço social, tropologia, enfermagem, saúde pública e jornalismo, deve incorporar o letramento em saúde em seus currículos e áreas de competência”2020 Nielsen-Bohlman, L, Panzer AM, Kindig DA, editors. Health literacy: a prescription to end confusion. Washington, DC: National Academies Press; 2004.. Segundo o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, 2010, melhorar o nível de LS dos profissionais de saúde por meio de treinamentos é parte importante para tornar o sistema de saúde cada vez mais centrado no paciente. Dessa forma, é um componente central do Plano de Ação Nacional para Melhorar a Alfabetização em Saúde nos Estados Unidos2121 Coleman C, Hudson S, Pederson B. Prioritized health literacy and clear communication practices for health care professionals. Health Lit Res Prac 2017; 1(3):e91-e99..

Embora exista, em um país como os EUA, uma variedade de abordagens e currículos sendo usados para o ensino de profissionais da saúde quanto a LS e comunicação clara, muitos profissionais ainda não recebem treinamento formal para a prestação de serviços de saúde nessa área2121 Coleman C, Hudson S, Pederson B. Prioritized health literacy and clear communication practices for health care professionals. Health Lit Res Prac 2017; 1(3):e91-e99.. No Brasil, o letramento em saúde ainda é pouco explorado no contexto das práticas e gestão em saúde. Não há dados nacionais estimando a condição de LS da população brasileira ou políticas públicas de saúde sobre o tema2222 Moraes KL, Brasil VV, Mialhe FL, Sampaio HA, Sousa AL, Canhestro MR. Validação do Health Literacy Questionnaire (HLQ) para o português brasileiro. Acta Paul Enferm 2021; 34:eAPE02171..

As habilidades práticas de comunicação durante a formação foram reconhecidas tanto em vivências em sala de aula como em seminários, trabalhos em grupo, vivências e contatos com usuários. A relações professor-estudante também foram reconhecidas por ambos os segmentos como interações que promovem o aprendizado de comunicação para a futura atuação dos enfermeiros.

Em estudo de intervenção com estudantes de enfermagem, a partir da estratégia de simulação clínica, eles desenvolveram melhores comunicação e capacidade de tomada de decisão em um ambiente controlado de aprendizagem2323 Raurell-Torreda M, Rascon-Hern C, Malagon-Aguilera C, Bonmatí-Tomas A, Bosch-Farr C, Gelabert-Vilella S, Romero-Collado A. Effectiveness of a training intervention to improve communication between/awareness of team roles: a randomized clinical trial. J Prof Nurs 2021; 37(2):479-487..

Para a criação de um ambiente clínico propício para que o graduando em enfermagem possua uma aprendizagem positiva, é necessário que a relação discente-docente também seja positiva. As atitudes do professor em relação aos estudantes influenciam no desenvolvimento de competências profissionais, socialização e confiança. Portanto, o professor impacta o desenvolvimento das habilidades comunicativas do discente, bem como suas habilidades psicomotoras11 Oliveira KRE, Trovo MM, Risso ACMC, Braga EM. The teaching approach on communicative skills in different teaching methodologies. Rev Bras Enferm 2018; 71(5):2447-2453.,44 Oliveira KRE, Braga EM. The development of communication skills and the teacher's performance in the nursing student's perspective. Rev Esc Enferm USP 2016; 50(spe.):32-38.

5 Chan ZCY. A qualitative study on communication between nursing students and the family members of patients. Nurse Educ Today 2017; 59:33-37.
-66 Chan ZCY, Tong CW, Henderson, S. Power dynamics in the student-teacher relationship in clinical settings. Nurse Educ Today 2017; 49:174-179..

Assim como outras nuances, o relacionamento docente-discente está sujeito às interculturalidades frequentemente experienciadas durante a graduação. A demonstração de empatia por parte do professor pode melhorar a experiência de aprendizagem dos estudantes. Contudo, em casos em que a empatia não é acompanhada da crítica, pode sabotar a aprendizagem do estudante em suas competências como futuro enfermeiro66 Chan ZCY, Tong CW, Henderson, S. Power dynamics in the student-teacher relationship in clinical settings. Nurse Educ Today 2017; 49:174-179..

Um dos docentes reconheceu também a importância das limitações e fragilidades do profissional, seja como enfermeiro ou professor, serem compartilhadas e favorecerem o apoio mútuo.

A ausência de falas a respeito do uso da comunicação para o cuidado de si e as repercussões que esee fato possui sobre o próprio processo de LS dos profissionais em formação e dos docentes formadores gera inquietações acerca da capacidade de autocuidado e do papel do ensino superior nesse contexto, seja durante a formação do graduando ou do próprio docente.

Embora o processo formativo para enfermeiros tenha como princípios condutores de ações a empatia e a alteridade, evidenciando a importância do outro na relação de cuidado, sendo esses aspectos sempre frequentes nos relatos de docentes e discentes, nota-se que a ausência de falas sobre o papel pessoal que cada um exerce sobre si e o próprio estado de saúde podem também ser considerados um fator limitador para o LS.

Evidencia-se a necessidade de se desenvolver na formação profissional a reflexão dos pressupostos do LS, com o intuito de aperfeiçoar as competências que colaborem na identificação precoce e na resolução de problemas gerados pelo LS inadequado. Para tanto, é preciso pensar o ato comunicativo num contexto compartilhado entre as díades profissional-paciente, docente-discente ou profissional-profissional2424 Silva VM, Brasil VV, Moraes KL, Magalhães JPR. Letramento em saúde dos profissionais de um Programa de Residência Multiprofissional em Saúde. Rev Eletr Enferm 2020; 22:62315..

Esses diferentes encontros geram diversas possibilidades contextuais para se pensar o LS. No âmbito assistencial, o enfermeiro deve buscar identificar precocemente fatores de risco que envolvem o paciente e repercutem na sua capacidade de usar as informações para manutenção de sua saúde, com vistas a solucioná-los.

Por outro lado, o professor e o discente devem observar a efetividade de suas práticas e ações (incluindo o próprio ato comunicativo) para o alcance/aperfeiçoamento do letramento em saúde de seus clientes, e essa autorreflexão deve existir nos diferentes contextos formativos, graduação (formação de base profissional) e pós-graduação lato (formação de especialistas), na perspectiva de otimizar o LS para os públicos específicos, conscientes das individualidades que surgem no percurso do desenvolvimento humano. Na pós-graduação stricto sensu (mestres e doutores), deve-se atentar para o aprender-ensinar o LS, incluindo a temática enquanto base na formação docente para a área da saúde.

Apontou-se também para o LS dos próprios profissionais, referindo-se ao cuidado de si, desse modo, sendo o autocuidado ineficaz, caracteriza-se como uma limitação pessoal que poderá interferir nas ações de cuidado do outro2424 Silva VM, Brasil VV, Moraes KL, Magalhães JPR. Letramento em saúde dos profissionais de um Programa de Residência Multiprofissional em Saúde. Rev Eletr Enferm 2020; 22:62315..

Considerações finais

A partir das perspectivas de estudantes e docentes, constatou-se que ambos reconhecem a comunicação e sua importância no processo relacional com os usuários, por meio das interações realizadas com os usuários dos serviços de saúde, a família e a equipe de saúde, e ensino-aprendizagem, na relação professor-aluno. Contudo, ainda que saibam da relevância da competência nesses contextos, a comunicação ainda é um tema centralizado no profissional de saúde, embora sejam ressaltados elementos que contribuem para o empoderamento e a participação ativa dos usuários, aspectos-chave que favorecem o letramento em saúde.

Apesar de possuírem ciência da existência da comunicação não-verbal no processo comunicativo, tanto docentes como estudantes não demonstraram conhecimento dos níveis mais profundos que essa comunicação apresenta, nem seus desdobramentos. Apesar da comunicação ser entendida como relevante para as relações humanas, para o processo de trabalho do enfermeiro na relação com usuários e com demais membros da equipe de saúde, as ferramentas práticas e reflexivas para que a comunicação possa ser mais intencional, com reflexões e possibilidades de mudança, ainda faz-se necessária na realidade estudada.

Faz-se necessário também um empoderamento do estudante para práticas que promovam maior dialogicidade com usuários, com maior enfoque em aspectos como voz, toque e demais sinais não-verbais que contribuem decisivamente para a comunicação enquanto habilidade fundamental para o enfermeiro no contexto de educação e cenários do cuidado.

A comunicação em saúde associada ao constructo do letramento em saúde poderá ser melhor abordada durante a formação e seus resultados serem aferidos na realidade dos profissionais de saúde, mediante a relação com os usuários.

A partir da abordagem qualitativa, com utilização de diferentes técnicas de coleta de dados (entrevistas semiestruturadas e narrativas), o estudo alcança o objetivo de analisar vivências de professores e estudantes do curso de graduação de enfermagem em relação à comunicação em saúde, oferecendo subsídios relevantes para a sua articulação processual no favorecimento do letramento em saúde crítico.

Uma das limitações a serem destacadas foi a impossibilidade de agregar a técnica de observação não participante, a qual poderia incorporar elementos adicionais para a melhor compreensão do fenômeno.

Referências

  • 1
    Oliveira KRE, Trovo MM, Risso ACMC, Braga EM. The teaching approach on communicative skills in different teaching methodologies. Rev Bras Enferm 2018; 71(5):2447-2453.
  • 2
    Sorensen K, Broucke SV, Fullam J, Doyle G, Pelikan J, Slonska Z, Brand H. Health literacy and public health: a systematic review and integration of definitions and models. BMC Public Health 2012; 12:80.
  • 3
    Elsborg L, Krossdal F, Kayser F. Health literacy among Danish university students enrolled in health-related study programmes. Scand J Public Health 2017; 45(8):831-838.
  • 4
    Oliveira KRE, Braga EM. The development of communication skills and the teacher's performance in the nursing student's perspective. Rev Esc Enferm USP 2016; 50(spe.):32-38.
  • 5
    Chan ZCY. A qualitative study on communication between nursing students and the family members of patients. Nurse Educ Today 2017; 59:33-37.
  • 6
    Chan ZCY, Tong CW, Henderson, S. Power dynamics in the student-teacher relationship in clinical settings. Nurse Educ Today 2017; 49:174-179.
  • 7
    Monrouxe LV, Bullock A, Gormley G, Kaufhold K, Kelly N, Roberts CE, Mattick K, Rees C. New graduate doctors' preparedness for practice: a multistakeholder, multicentre narrative study. BMJ Open 2018; 8(8):e023146.
  • 8
    Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad Saude Publica 2008; 24(1):17-27.
  • 9
    Yin R. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso; 2016.
  • 10
    Gutiérrez-Puertas L, Márquez-Hernández VV, Gutiérrez-Puertas V, Granados-Gámez G, Aguilera-Manrique G. Educational interventions for nursing students to develop communication skills with patients: a systematic review. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(7):22-41.
  • 11
    Tan NQP, Cho H. Cultural appropriateness in health communication: a review and a revised framework. J Health Commun 2019; 24(5):492-502.
  • 12
    Osborne R, Batterham HRW, Elsworth GR, Hawkins M, Buchbinder R. The grounded psychometric development and initial validation of the Health Literacy Questionnaire (HLQ). BMJ Public Health 2013; 13:658.
  • 13
    Passami SH. Letramento funcional em saúde: as habilidades do usuário e o Sistema Único de Saúde. Curitiba: CRV; 2019.
  • 14
    Batterham, RW, Hawkins M, Collins PA, Buchbinder R, Osborne RH. Health literacy: applying current concepts to improve health services and reduce health inequalities. Public Health 2016; 132: 3-12.
  • 15
    Malveira R. O sexto sinal vital da saúde. Pulsares; 2019.
  • 16
    World Health Organization (WHO). Health Promotion Glossary. Geneva: WHO; 1998.
  • 17
    Baker DW, Parker RM, Williams MV. The relationship of patient reading ability to self-reported health and use of health services. Am J Public Health 1997; 87(6):1027-1030.
  • 18
    Naomi D, Nahn J. Health equity demands health literacy ethics in the pediatric emergency department. Pediatr Emerg Care 2020; 36(7):e414-e41.
  • 19
    Lopes CA, Almeida CV. Introdução. In: Lopes C, Almeida CV, organizadores. Literacia em saúde na prática. Lisboa: Edições ISPA; 2019. p. 17-23.
  • 20
    Nielsen-Bohlman, L, Panzer AM, Kindig DA, editors. Health literacy: a prescription to end confusion. Washington, DC: National Academies Press; 2004.
  • 21
    Coleman C, Hudson S, Pederson B. Prioritized health literacy and clear communication practices for health care professionals. Health Lit Res Prac 2017; 1(3):e91-e99.
  • 22
    Moraes KL, Brasil VV, Mialhe FL, Sampaio HA, Sousa AL, Canhestro MR. Validação do Health Literacy Questionnaire (HLQ) para o português brasileiro. Acta Paul Enferm 2021; 34:eAPE02171.
  • 23
    Raurell-Torreda M, Rascon-Hern C, Malagon-Aguilera C, Bonmatí-Tomas A, Bosch-Farr C, Gelabert-Vilella S, Romero-Collado A. Effectiveness of a training intervention to improve communication between/awareness of team roles: a randomized clinical trial. J Prof Nurs 2021; 37(2):479-487.
  • 24
    Silva VM, Brasil VV, Moraes KL, Magalhães JPR. Letramento em saúde dos profissionais de um Programa de Residência Multiprofissional em Saúde. Rev Eletr Enferm 2020; 22:62315.

  • Financiamento

    Edital Primeiros Projetos da Fundação de Amparo à Ciência do Estado de Pernambuco.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Maio 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2021
  • Aceito
    28 Nov 2021
  • Publicado
    30 Nov 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br