Gestão do SUS em regiões interestaduais de saúde: análise da capacidade de governo

Ítalo Ricardo Santos Aleluia Maria Guadalupe Medina Ana Luíza Queiroz Vilasbôas Ana Luiza D’Ávila Viana Sobre os autores

Resumo

Esta pesquisa apresenta uma análise da gestão do SUS em região interestadual de saúde brasileira. Realizou-se um estudo avaliativo com níveis de análise regional e produção de dados, combinando entrevistas com informantes-chave e análise documental. Cotejaram-se fontes e dados com as categorias analíticas do Triângulo de Governo, apresentando um recorte dos resultados e da análise da capacidade de governo. Há baixa capacidade de governo de regiões interestaduais de saúde quando os gestores e espaços de cogestão têm não conseguem influenciar as decisões políticas regionais, limitando-se a estratégias de governo normativas e homologatórias. Assimetrias na capacidade de gestão entre os estados da fronteira impedem a sustentabilidade de articulação das agendas decisórias estaduais, revelando que as estratégias de gestão são insuficientes para institucionalizar a regionalização interestadual. Predomina baixa capacidade de governo do SUS em regiões interestaduais de saúde, e seu desenho político tende a se tornar projeto incerto e restrito ao plano ideológico. A ampla apreciação documental com uso de potente referencial teórico são contribuições metodológicas deste estudo para análise política da gestão do SUS em espaços pouco investigados, como as fronteiras interestaduais.

Palavras-chave:
Sistema Único de Saúde; Regionalização; Política de Saúde; Federalismo

Introdução

O Brasil possui 440 regiões de saúde instituídas11 Reis AAC, Sóter APM, Furtado LAC, Pereira SS S. Reflexões para a construção de uma regionalização viva. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1045-1054. e distribuídas em uma organização federativa com poder compartilhado entre a União, estados e municípios22 Aikes S, Rizzotto MLF. Integração regional em cidades gêmeas do Paraná, Brasil, no âmbito da saúde. Cad Saude Publica 2018; 34(8):1-11.. Isto contribui para uma arquitetura complexa de governo do Sistema Único de Saúde (SUS) nas fronteiras interestaduais, que agregam, além dessa composição tríplice, no mínimo, dois estados.

Apesar das Regiões Interestaduais de Saúde (RIS) serem espaços complexos, não assumiram centralidade na política de regionalização do SUS, dada a ausência de instrumentos normativos para sua regulamentação em nível nacional33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional dos Secretários de Saúde. Relatório de progresso do Projeto QualiSUS-Rede. Brasília: MS; 2013. e métodos para viabilizar a gestão interestadual do sistema de saúde44 Decreto nº 7.508, de 28 de junho 2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União; 2011..

As proposições de regionalização de sistemas de saúde não são recentes. Contudo, no Brasil, essa discussão foi tardia em relação a outros países da Europa Ocidental e América Latina55 Viana ALD, Lima LD. O processo de regionalização na saúde: contextos, condicionantes e papel das Comissões Intergestores Bipartite. In: Viana ALD, Lima LD. Regionalização e relações federativas na política de saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011.. A regionalização foi adotada como forma de organização do SUS desde os anos 1980, mas somente na década de 2000 alcançou destaque nas decisões e nas normas de governo66 Lima LD, Queiroz LFN, Machado CV, Viana ALD. Descentralização e regionalização: dinâmica e condicionantes da implantação do Pacto Pela Saúde no Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(1):1903-1904., sem, no entanto, formular diretrizes específicas para construção de projetos destinados à gestão interestadual do sistema e, também, a outras áreas e regiões, em contextos singulares, como são as áreas de fronteira e regiões metropolitanas.

Por mais de uma década o foco da descentralização nos municípios marginalizou os entes estaduais no processo de gestão do SUS, e as tentativas de resgate do papel estadual não foram exitosas55 Viana ALD, Lima LD. O processo de regionalização na saúde: contextos, condicionantes e papel das Comissões Intergestores Bipartite. In: Viana ALD, Lima LD. Regionalização e relações federativas na política de saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011.,77 Menicucci TMG, Costa LA, Machado JA. Pacto pela saúde: abordagens e colisões na arena federal. Cien Saude Colet 2018; 23(1):29-40., num primeiro momento, tornando mais frágil a participação das Secretarias Estaduais de Saúde (SES) na gestão de regiões interestaduais de saúde.

Apesar da publicação de diversas normativas para organizar estratégias de governo do SUS nas regiões de saúde, no Brasil, diferentemente de países como Itália88 Giusti A, Perra A, Lombardo F. The experience of a nationwide Community of Practice to set up Regional Prevention Plans in Italy. Health Res Policy Syst 2017; 15(1):63., Japão99 Tung YC, Chang GM. The Relationships Among Regionalization, Processes, and Outcomes for Stroke Care: A Nationwide Population-based Study. Medicine (Baltimore) 2016; 95(15):e3327. e Inglaterra1010 Metcalfe D. Regionalisation of trauma care in England. Bone Joint J 2016; 98-B(9):1253-1261., ainda há baixa capacidade de planejamento regional1111 Viana ALD, Ferreira MP, Cutrim MA, Fusaro ER, Souza MR, Mourão L, Pereira APCM, Mota PHS, Iozzi FL, Uchimura LYT. O Processo de Regionalização no Brasil: influência das dimensões Política, Estrutura e Organização. Rev Bras Saude Mater Infant 2017; 17(1):545-561., de estabelecimento de acordos e cooperações interfederativas1212 Moreira LCO, Tamaki EM. A Programação Pactuada e Integrada como instrumento de garantia da integralidade da atenção à saúde no SUS. Interações (Campo Grande) 2017; 18(4):99-108., de poder decisório sobre aspectos políticos1313 Machado CV, Lima LD, Viana ALD, Oliveira RG, Iozzi FL, Albuquerque MV, Scatena JHG, Mello GA, Pereira AMM, Coelho APS. Federalismo e política de saúde: os comitês intergovernamentais no Brasil. Rev Saude Publica 2014; 48(4):642-650.

14 Silva EC, Gomes MHA. Regionalização da saúde na região do Grande ABC: os interesses em disputa. Saude Soc 2014; 23(4):1383-1396.
-1515 Geremia DS, Dain S. Federalismo e gestão metropolitana: subsídios para o planejamento territorial dos serviços de saúde. Tempus Actas Saude Colet 2018; 11(2):255-256. e de institucionalidade dos colegiados deliberativos regionais77 Menicucci TMG, Costa LA, Machado JA. Pacto pela saúde: abordagens e colisões na arena federal. Cien Saude Colet 2018; 23(1):29-40., principalmente nas regiões Norte e Nordeste1313 Machado CV, Lima LD, Viana ALD, Oliveira RG, Iozzi FL, Albuquerque MV, Scatena JHG, Mello GA, Pereira AMM, Coelho APS. Federalismo e política de saúde: os comitês intergovernamentais no Brasil. Rev Saude Publica 2014; 48(4):642-650.. Nem mesmo as proposições mais recentes de Contratos Organizativos de Ação Pública (COAP) foram exitosas para ampliar a capacidade de pactuações interfederativas no SUS77 Menicucci TMG, Costa LA, Machado JA. Pacto pela saúde: abordagens e colisões na arena federal. Cien Saude Colet 2018; 23(1):29-40.. Esse cenário tem maiores implicações para RIS, que carecem de espaços deliberativos interestaduais e apresentam várias estruturas decisórias regionais concomitantes, sob dinâmicas e perfis singulares.

Destarte, a coexistência de autonomia e interdependência de poder entre entes federativos, sem uma autoridade sanitária regional para coordenar essa relação, fragiliza a capacidade de governar regiões de saúde1616 Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG. Quem governa e como se governam as regiões e redes de atenção à saúde no Brasil? Contribuições para o estudo da governança regional na saúde. São Paulo: Região e Redes; 2017., desafio que se apresenta mais significativo nas fronteiras interestaduais, onde a articulação interfederativa é crucial para garantir capacidade de gestão do SUS.

As desigualdades política, de oferta de serviços, fiscal e administrativa dos entes federativos são fatores limitantes para governar regiões de saúde1515 Geremia DS, Dain S. Federalismo e gestão metropolitana: subsídios para o planejamento territorial dos serviços de saúde. Tempus Actas Saude Colet 2018; 11(2):255-256., aprofundando-se em territórios interestaduais, cujo desenho territorial compõe maior diversidade de entes municipais e estaduais. Soma-se a isso iniquidades de repasses financeiros1717 Teles AS, Coelho TCB, Ferreira MPS. Sob o prisma da equidade: financiamento federal do Sistema Único de Saúde no estado da Bahia. Saude Soc 2016; 25(3):786-799., que em territórios fronteiriços entre países ou estados não contemplam as migrações de usuários do sistema1818 Siqueira JC. Regionalização da assistência à saúde no Norte Fluminense: uma avaliação sobre a assistência hospitalar [tese]. Rio de Janeiro: ENSP; 2011..

Na literatura, os estudos sobre gestão regional do SUS estão centrados em territórios intraestaduais, e pouco elucidaram questões políticas da gestão do sistema nas fronteiras interestaduais. Os únicos identificados referem-se à análise de implementação da gestão regionalizada1919 Casanova AO, Cruz MM, Giovanella L, Alves GR, Cardoso GCP. A implementação de redes de atenção e os desafios da governança regional em saúde na Amazônia Legal: uma análise do Projeto QualiSUS-Rede. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1209-1224. e da conformação de uma Rede Interestadual de Saúde2020 Pereira APCM. Redes interestaduais de saúde: o caso da rede de atenção à saúde Pernambuco/Bahia [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017.. Há, ainda, superficialidade dos estudos nacionais sobre regionalização, cujas abordagens são mais “exploratórias” e menos avaliativas2121 Fernandes FMB. Regionalização no SUS: uma revisão crítica. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1311-1320..

Neste estudo, buscou-se analisar qual a capacidade de governo de gestores municipais e estaduais para governar uma Região Interestadual de Saúde. Este artigo apresenta um recorte dos resultados de uma tese de doutorado que tomou como objeto de estudo o desenho político e a dinâmica de poder em uma região interestadual de saúde do Nordeste brasileiro. Pretende-se contribuir para a análise política da capacidade de governar sistemas de saúde em fronteiras interestaduais, a partir de estudo sustentado em ampla apreciação documental e rede de informantes-chave, ligados a diferentes espaços de poder. Parte-se da análise de experiência pioneira de Rede Interestadual de Saúde no Brasil, cujo desenho político contemplou a criação de Comissão de Cogestão Interestadual de Saúde (CRIE) e Central de Regulação Interestadual de Leitos (CRIL).

Método

Trata-se de um estudo avaliativo cuja estratégia metodológica foi a realização de um estudo de caso único com abordagem intensiva e um nível de análise, adotando-se como elementos teórico-conceituais a teoria da ação de Calos Matus, em especial, o Triângulo de Governo e a Teoria da Produção Social2222 Matus C. Teoria do Jogo Social. São Paulo: FUNDAP; 2005.. Neste artigo, apresenta-se um recorte do estudo cujo foco é “capacidade de governo”, entendida como a “capacidade de condução e direção, acumulada na pessoa, na equipe ou numa organização ou um conjunto de técnicas, métodos, destrezas e habilidades, necessários para conduzir processos teóricos, metodológicos e técnicos de governo”2222 Matus C. Teoria do Jogo Social. São Paulo: FUNDAP; 2005..

Cenário do estudo

O estudo foi realizado em região do Nordeste brasileiro, com desenho político composto por 53 municípios, dois estados e a União. Refere-se à fronteira interestadual entre a macrorregião Norte da Bahia e o Vale do São Francisco, em Pernambuco, sendo 28 municípios baianos e 25 pernambucanos. Cada macrorregião contava com três regiões de saúde com Comissão Intergestora Regional (CIR) implantada, e as sedes da Região eram os municípios de Juazeiro-BA e Petrolina-PE2323 Brasil. Portaria nº 1.989, de 23 de setembro de 2008. Constitui Grupo de Trabalho para Implementação da Rede de Atenção à Saúde Interestadual na Macrorregião do Vale do Médio São Francisco, compreendendo as regiões de Juazeiro-BA e de Petrolina-PE. Diário Oficial da União; 2008.. A população regional era de aproximadamente dois milhões de habitantes2424 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativa populacional 2018 do IBGE. Rio de Janeiro: IBGE; 2018., distribuída em extensão territorial de 127.887,91 km². A região em questão sediou as primeiras experiências: de regionalização interestadual do SUS (iniciada em 2008), com envolvimento do ente federal; de regulação interestadual de leitos, gerida por dois estados; e de instituição de uma CRIE, com proposta de gestão tripartite.

Em Pernambuco, cada região de saúde contava com uma Gerência Regional de Saúde (GERES), relativa à coordenação estadual dos municípios. Na Bahia, havia apenas uma estrutura similar para as três regiões de saúde, simultaneamente, denominada de Núcleo Regional de Saúde (NRS) Norte2222 Matus C. Teoria do Jogo Social. São Paulo: FUNDAP; 2005.. No âmbito interestadual, existia uma CRIE, instituída desde 2010 enquanto espaço deliberativo, composto por representantes municipais, estaduais, federais e de Universidade Federal. Também havia a CRIL, criada em 2011, financiada e gerida pelos estados.

Produção e análise dos dados

A produção da base empírica de análise, entre outubro de 2017 e agosto de 2018, combinou a análise documental, entrevistas com informantes-chave e diários de campo dos pesquisadores. Utilizaram-se documentos com recorte temporal de 2008 a 2018, considerando as primeiras discussões para construção do desenho regional e a finalização do trabalho de campo, respectivamente. Analisaram-se 499 documentos, a saber: relatórios de cobertura de serviços, de grupos de trabalho na RIS, da CRIL, cartas institucionais, resoluções estaduais, portarias federais, projeto de implementação da Região, subprojeto e documentos-base da iniciativa federal QualiSUS-Rede e dossiê da região, notas técnicas do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, atas das CIR e da CRIE, planos e relatórios de gestão nacional, estadual e municipal e Plano Diretor de Regionalização (PDR) dos estados.

Incluíram-se atores que ocuparam posição estratégica no processo de formulação ou implementação da Região ou pertenciam a espaços de articulação, de decisão e gestão de ações e serviços de saúde na região ou aqueles apontados como influentes na dinâmica de poder regional. As entrevistas foram registradas em gravador digital e transcritas na íntegra. Entrevistaram-se 35 informantes-chave, vinculados ao âmbito da gestão municipal, estadual, regional e interestadual, à Universidade Federal, a organizações da administração indireta, ao Ministério Público Federal, a grupos econômicos influentes e ao sindicato de médicos na região. Adotou-se o critério de saturação para encerramento do campo da pesquisa.

As informações documentais foram reunidas do nível nacional ao municipal, e sua sistematização utilizou o apoio matrizes-síntese das informações documentais, cujo material foi compilado em arquivo único, intitulado de “apreciação documental”, para facilitar seu processamento. Os dados foram processados no programa QRS NVivo11, pelo qual triangularam-se as fontes de dados, além de codificar a base empírica por categorias analíticas do Triângulo de Governo, a saber: o projeto, a governabilidade e a capacidade de governo2222 Matus C. Teoria do Jogo Social. São Paulo: FUNDAP; 2005.. Em seguida, os dados empíricos foram balizados com um plano analítico de dados (Quadro 1), que orientou a construção dos resultados.

Quadro 1
Recorte do plano analítico do estudo com as categorias analíticas, a definição, a operacionalização e o detalhamento.

A dinâmica das CIR e da CRIE foi analisada a partir das atas de reunião e entrevistas. Concernente às CIR aprofundou-se a análise nas regiões-sede da fronteira (Juazeiro-BA e Petrolina-PE) por concentrarem maior parte dos serviços de referência interestadual. Também foram analisadas as decisões das SES entre 2008 e 2018, por meio das resoluções e atas das Comissões Intergestores Bipartite (CIB). No desenho político da Região, previa-se que os estados atuassem como principais articuladores dos municípios na fronteira interestadual e que as decisões entre as SES se articulassem para construir uma agenda que permitisse superar obstáculos para gestão interestadual do SUS.

O estudo foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), da Universidade Federal da Bahia (CAAE 74178617.4.0000.5030). Os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), sob anuência para participar do estudo.

Resultados

Os resultados deste estudo foram organizados em duas subseções, baseadas no recorte apresentado da categoria analítica “capacidade de governo”. A primeira aborda a institucionalidade de espaços cogestores regional e interestadual, analisando em que medida eles tiveram capacidade de gestão para operacionalizar uma política interestadual de saúde e contornar seus obstáculos de implementação; a segunda apresenta uma análise da capacidade de gestão das SES e os resultados sobre a análise das estratégias dos estados na articulação de decisões interestaduais em saúde.

A institucionalidade das comissões intergestores e a política interestadual de saúde

No desenho político da Região, no nível intraestadual, previa-se que as CIR atuariam na pactuação das ações e dos serviços entre os gestores municipais e, no nível interestadual, a CRIE atuaria na articulação das pactuações interestaduais. No entanto, esse desenho teve baixa institucionalidade, em virtude das comissões terem uma atuação restrita a debates de âmbito local, a aspectos burocráticos e informativos, com predomínio de pautas sobre habilitação de serviços municipais e informes do âmbito estadual.

A análise das pautas revelou frequente influência das representações estaduais nas Comissões Intergestores, que contava com pouca participação dos gestores municipais da definição à discussão das pautas. Os gestores apresentavam dificuldade de manter sua assiduidade nas reuniões das CIR e CRIE, inclusive representantes das sedes da Região, confirmada pela frequente falta de quórum, constituindo-se como um impasse para construção de capacidade deliberativa no apoio à regionalização interestadual do SUS (Quadro 2).

Quadro 2
Evidências sobre a institucionalidade das Comissões Intergestores em Região Interestadual de Saúde, Brasil, 2019.

Nas CIR, a proposta de regionalização interestadual do SUS não teve sustentabilidade na agenda de debates, em ambas as regiões de saúde, evidenciada pela recorrente supressão de pautas sobre as RIS nas atas analisadas e pela priorização de demandas relacionadas aos municípios. As comissões não desenvolveram estratégias para ampliar a capacidade de articulação interfederativa, resultando em inércia de agendas decisórias tripartite para implementação de uma política interestadual de saúde (Quadro 2).

Os gestores municipais das CIR tinham pouca capacidade de influenciar a definição de pautas das reuniões, frequentemente induzidas pelas representações estaduais. A análise das atas evidenciou uma baixa capacidade decisória e sustentabilidade das agendas previamente definidas, com frequente divergência entre pautas e deliberações, além de uma dinâmica predominantemente homologatória e informativa.

As deliberações das Comissões Intergestores se distanciaram da proposta de regionalização interestadual do SUS, constatando-se, nas pautas analisadas, além do foco centrado no âmbito municipal, uma inércia desses espaços entre 2015 e 2017, onde não houve debate sobre aspectos relacionados ao desenho político da região interestadual de saúde formulado desde 2008.

Assimetrias de poder entre os gestores municipais foram observadas. Representantes estaduais e gestores dos municípios-sede, e atores com maior liderança e capacidade argumentativa, influenciavam as decisões, por terem informações privilegiadas do nível central estadual ou por concentrarem maior poder sobre recursos financeiros e sediarem serviços de referência nas RIS.

As desigualdades de capacidade política dos gestores municipais nas comissões colaboravam para que representações dos municípios-sede imprimissem, de forma arbitrária, decisões com impacto na Região. Nas atas, evidenciaram-se decisões dos gestores municipais da sede da Região que culminaram no descredenciamento de serviços especializados de ortopedia e traumatologia (ponto crítico regional), desestruturando o fluxo de usuários consensuado com outros municípios. Isso evidenciou que pouco se avançou na construção de estratégias para cumprir pactuações interestaduais.

Atores vinculados a serviços de saúde privados tinham alta influência sobre as decisões políticas na Região, utilizando métodos argumentativos e alianças com grupos políticos para cooptar atores estratégicos na tomada de decisão das Comissões Intergestores (Quadro 2). Esses atores concentravam poder administrativo sobre serviços especializados ou de alta complexidade, não ofertados pela rede própria, tendo ampla rede de alianças política e econômica.

Nas discussões registradas em atas das CIR, evidenciou-se que o espaço das Comissões Intergestores se tornou uma arena de disputas entre prestadores privados, que tinham como principal mecanismo de influência a participação em reuniões ordinárias, intermediada por representantes de maior poder político no colegiado. Havia um claro objetivo de obter anuência dos gestores para contratação de serviços regionais especializados e de baixa oferta na rede própria, a exemplo da oftalmologia para rastreio de glaucoma, cirurgias de catarata ou urgências e emergências oftalmológicas.

Ainda que instituída desde 2012, a CRIE não conseguiu implementar mecanismos de articulação tripartite para ampliar discussões sobre a regionalização interestadual do SUS, evidente pela descontinuidade de debates sobre a política interestadual de saúde, com ausente participação do ente federal e rara participação dos estados. As atas e entrevistas analisadas revelaram que nem mesmo a regularidade trimestral de reuniões ordinárias, previstas no Regimento Interno, era cumprida, confirmando que a comissão se tornou um espaço retórico, com recorrente falta de quórum e estagnação das atividades entre 2015 e 2017 (Quadro 2).

Os achados deste estudo sobre a baixa institucionalidade das Comissões Intergestores ratificam que esses espaços se tornaram esvaziados, e que mesmo constituindo o desenho político da Região, não assumiram, em suas estratégias de gestão, a regionalização interestadual do SUS como centralidade.

A capacidade de gestão entre as Secretariais Estaduais de Saúde

A proposta de desenho político das RIS incluía os entes estaduais como partícipes da gestão interestadual. Os gestores estaduais tinham inserção nas Comissões Intergestores regional e interestadual, além de participarem da gestão da CRIL. Contudo, este estudo evidenciou desigualdades de capacidade de governo entre as SES, que repercutiam diretamente na gestão interestadual do SUS (Quadro 3).

Quadro 3
Evidências sobre a capacidade de gestão das Secretarias Estaduais de Saúde em Região Interestadual de Saúde, Brasil, 2019.

As disparidades estaduais (extensão territorial, número de municípios, população e regiões de saúde) mostraram-se decisivas na capacidade de governo das SES para coordenarem a política de regionalização do SUS na fronteira estudada. Diferentes delimitações territoriais entre os PDR analisados permitiram evidenciar extensos desenhos macrorregionais, exigindo diferentes capacidades estaduais para atuar nas regiões de saúde mais periféricas às sedes da Região.

Os Planos Estaduais de Saúde (PES) analisados revelaram que as SES construíram diretrizes com raso alinhamento em relação ao território estudado, confirmando um tangenciamento das práticas de planejamento para operar a gestão interestadual do SUS. Na Bahia, esse distanciamento foi maior do que em Pernambuco, principalmente após a instituição de uma nova equipe de gestão, em 2016, identificando-se uma clara ruptura de propósitos para o setor saúde, frente àqueles definidos pela equipe responsável pelo processo de formulação do desenho da Região.

Em Pernambuco, as pactuações regionais apresentavam características pouco participativas quando comparadas com as da Bahia, que conseguiu instituir esse processo de maneira informatizada para todo o estado. As entrevistas revelaram que os tempos institucionais de elaboração dos PDR e de revisão das Programações Pactuadas e Integradas (PPI) dos estados ocorriam em momentos diferentes, contribuindo para baixa capacidade de articulação desses instrumentos entre os entes fronteiriços. Mesmo no âmbito intraestadual, as PPI tornaram-se uma retórica de gestão, pois ambos os estados não conseguiram estabelecer mecanismos de revisão, colaborando para sua estagnação em Pernambuco e na Bahia, desde 2005 e 2010, respectivamente (Quadro 3).

Em análise dos relatórios da CRIL, evidenciou-se que a capacidade de gestão estadual sobre os serviços hospitalares de referência da Região era desigual e diretamente proporcional ao número de unidades sob gestão direta das SES. Em Pernambuco, a Secretaria de Estado da Saúde (SESPE) obtinha maior poder regulatório sobre os prestadores hospitalares, enquanto na Bahia, onde a maioria deles estavam sob administração indireta, havia menor sustentabilidade das ações regulatórias e resolutividade dos serviços, evidenciadas pelo número superior de usuários baianos que cruzavam a fronteira pernambucana em busca de atendimento hospitalar de alta complexidade, sem intermediação da regulação interestadual de leitos.

Houve unanimidade dos entrevistados sobre as práticas de gestão regional na Bahia ter características mais municipalistas, ao passo que a gestão pernambucana tinha uma atuação mais regionalista (Quadro 3). Diante disso, a gestão interestadual do SUS na região pouco avançou, em razão da capacidade assimétrica de coordenação regional dos municípios. Na Bahia, por exemplo, decisões políticas resultaram na extinção das Diretorias Regionais de Saúde (DIRES) em duas das três regiões de saúde pertencentes à Região, desde 2014, ocasionando, de acordo com entrevistados, o deslocamento de pessoal dos postos de trabalho da gestão regional para unidades hospitalares e reduzindo, de forma importante, a capacidade de governo da SESAB na articulação regional dos municípios.

Enquanto a SESPE manteve suas GERES em cada região de saúde pertencente à fronteira interestadual, a SESAB centralizou sua gestão estadual em apenas um NRS para assessorar toda macrorregião de saúde Norte, com 28 municípios, caracterizando, assim, um movimento de recentralização com efeito regressivo sobre a capacidade de governo estadual, exemplificada por vários entrevistados como uma presença desigual dos estados na gestão regional.

A centralização da gestão regional da SESAB em NRS resultou em limitações para definir prioridades e construir planejamentos regionais no Norte baiano, contribuindo para que apenas a região, sede do núcleo, mantivesse autonomia financeira e administrativa em relação às demais que tiveram as DIRES extintas. Esse esvaziamento da gestão regional colaborou para que as regiões ficassem subordinadas à sede no núcleo, e a decisão pela exclusão das DIRES produziu um importante esvaziamento na capacidade de governo regional da SESAB, assim como concentrou decisões em representantes com indicação política, subordinadas ao nível central da SES. Essa situação, de acordo com entrevistados, distanciou o ente estadual dos municípios, colaborando para reforçar uma lógica interfederativa fragmentada e de interesses locais predominantes.

Os informantes foram unânimes em considerar que a gestão baiana possuía características mais político-partidárias em relação à gestão pernambucana. Um exemplo disso estava evidente na ocupação do cargo de coordenador de NRS, via indicação política, o que tornava a capacidade de governo dos Núcleos vulnerável a decisões centrais da SESAB. Em Pernambuco, de acordo com Relatórios Anuais de Gestão 2012-2015, apesar de ser um cargo comissionado, houve registro de seleção pública para contratação de gerentes regionais de saúde e sanitaristas, responsáveis pelo planejamento e gestão regional. Nas entrevistas, todos os gestores regionais pernambucanos confirmaram ser fruto deste processo de livre concorrência.

Na análise documental, identificou-se maior envolvimento da SESPE para implantação de instrumentos de gestão regional do SUS, a exemplo do COAP. Algumas portarias e resoluções analisadas instituíram grupos executivos de regionalização e grupos condutores da Programação Geral de Ações e Serviços de Saúde, em todas as regiões de saúde. Identificou-se documentação comprovando a realização de debates voltados ao COAP, em parceria com secretarias municipais de saúde e Conselho Estadual dos Secretários Municipais de Saúde, contudo, sem contemplar a regionalização interestadual do SUS. Na Bahia, essas iniciativas institucionais não foram identificadas nos documentos.

Existiram tentativas isoladas entre os municípios e estados para organização dos seus sistemas de saúde, mas nem todas foram exitosas e assumiram com fôlego a regionalização interestadual do SUS. Uma delas contemplou qualificações para implantação de programas de prevenção e promoção da saúde na Atenção Primária à Saúde, mas que não ocorreram na mesma velocidade entre os 53 municípios da Região, sendo, portanto, insuficientes para redução de internações evitáveis, como registrado nos relatórios de Grupo de Trabalho para Implementação da Rede Interestadual de Saúde.

Na atenção especializada, houve iniciativas para implantação de novos serviços em ambos os estados. Pernambuco se destacou pela criação de Unidades de Atenção Especializada (UPAE) e a Bahia pela criação dos consórcios intermunicipais para implantação de policlínicas regionais de especialidades. Todos os consórcios da região Norte da Bahia foram celebrados no segundo semestre de 2018, mas nenhum serviço havia sido implantado. Além disso, o estado descontratualizou serviços privados, com o propósito de transferi-los para o Hospital Regional de Juazeiro, mas sem sucesso, em razão de diversos problemas estruturais do hospital, como equipamentos e pessoal.

Um dos principais pontos críticos da capacidade de governo na Região eram os serviços de apoio ao diagnóstico e à terapia, que não foram ampliados na rede própria e estavam concentrados nos prestadores privados e filantrópicos. As atas da CIR comprovaram que os gestores não tinham mecanismos efetivos para regular a oferta dos serviços contratualizados, ofertados, seletivamente, pelos maiores valores remunerados da Tabela SUS e não pelas necessidades regionais. As tentativas de organização da atenção especializada no Norte da Bahia fracassaram nas regiões de saúde de Paulo Afonso-BA e Senhor do Bonfim-BA, gerando desigualdades de gestão da atenção especializada na fronteira interestadual.

A análise dos planos regionais de urgência e emergência ratificou que as decisões de governo pouco avançaram para ampliação de serviços, limitando-se a debates sobre os fluxos de regulação interestadual do acesso a hospitais da Região, sem consensos institucionais entre os gestores da CRIL e gerentes de serviços, tornando-se inviável pela não ampliação das estruturas física, tecnológica e de pessoal nos hospitais regionais.

Embora a implantação da CRIL tenha sido uma das principais estratégias para regulação interestadual do SUS, havia pouca capacidade de gestão desse espaço sobre os leitos da Região, sendo justificada, nas atas e relatórios, pela imposição de decisões arbitrárias dos gestores municipais demandantes ou gerentes de serviços executantes que rompiam frequentemente com o fluxo de regulação definido, pela insuficiência de leitos para atender à demanda em algumas regiões de saúde e pela falta de um sistema integrado de regulação entre os estados (Quadro 3).

Os sistemas de apoio logístico, desde a idealização política da Região, eram um ponto crítico da gestão, registrado em diversas atas analisadas. Apesar de tentativas de melhorias, como a descentralização da confecção do Cartão Nacional de Saúde para os serviços e as ações de ampliação do transporte sanitário em alguns municípios, observou-se que essas tentativas ocorreram de forma heterogênea, desarticuladas de uma política de regionalização interestadual de saúde.

Esses achados permitiram sustentar que a ampliação de capacidade de governo do SUS nos territórios interestaduais é desafio tripartite, e as desigualdades de capacidade de gestão das SES contribuem para criar obstáculos à implantação de políticas interestaduais de saúde, pelo fato das RIS serem territórios de grandes incertezas político-institucionais e por exigirem alta capacidade de integração das agendas decisórias dos estados.

As SES não conseguiram produzir decisões integradas, orientando, assim, seus processos de gestão para uma política de regionalização intraestadual. Boa parte das decisões identificadas nas atas da CIB apontou métodos de governo sustentados em viés fortemente descentralizador, caracterizado pelo predomínio de pautas sobre habilitação de serviços de saúde dirigidos aos entes municipais.

Características das decisões estaduais revelaram que não se estabeleceu correspondência entre a agenda decisória das SES e a política de regionalização interestadual do SUS. Nada se evidenciou de estratégias estaduais para articulação das suas equipes gestoras, ratificando que a dinâmica das decisões se manteve fragmentada.

Por fim, as desigualdades na velocidade das decisões entre as SES para implantação de serviços nas regiões de saúde pertencentes à fronteira interestadual limitaram a oferta e distribuição equitativa desses serviços na estrutura do sistema de saúde. Decisões relativas a planos regionais de urgência e emergência e à habilitação de serviços especializados e hospitalares de alta complexidade (ponto crítico da Região) avançaram mais em Pernambuco quando comparado com a Bahia, colaborando para baixa capacidade de regulação interestadual do acesso.

Discussão

A teoria matusiana2424 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativa populacional 2018 do IBGE. Rio de Janeiro: IBGE; 2018. destaca três elementos importantes e interdependentes ao processo de governar: o projeto, a governabilidade e a capacidade de governo. Este último, relaciona-se com a expertise do(s) ator(es) para realizar um projeto. Tal expertise refletiria o domínio do(s) ator(es) sobre os processos teóricos, metodológicos e técnicos de gestão, a partir da experiência, dos conhecimentos e da liderança. O presente estudo identificou que os gestores não conseguiram desenvolver processos metodológicos, técnicos e políticos suficientes para implantação de uma política interestadual de saúde.

Além disso, governar constitui-se na capacidade de produzir resultados, relacionados a um determinado projeto, e de vencer a inércia, as adversidades e as contradições que podem fugir do controle dos atores sociais que idealizaram esse projeto2424 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativa populacional 2018 do IBGE. Rio de Janeiro: IBGE; 2018.. Nos territórios interestaduais, a capacidade de produzir resultados efetivos ainda permanece no plano das intencionalidades quando se trata de operacionalizar projetos de regionalização do SUS.

De acordo com Matus2222 Matus C. Teoria do Jogo Social. São Paulo: FUNDAP; 2005., construir capacidade de governo requer a ampliação de capacidade pessoal e institucional para superar os obstáculos na implantação de um determinado projeto. Nesse sentido, em projetos de regionalização interestadual do SUS, a construção dessa capacidade ainda se mantém na retórica, quando analisadas as estratégias de gestão das Comissões Intergestoras da Região, assemelhando-se a situações presentes em regiões intraestaduais do Nordeste brasileiro2525 Mello GA, Pereira APCM, Uchimura LYT, Lozzi FL, Demarzo MMP, Viana ALD. O processo de regionalização do SUS: revisão sistemática. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1291-1310.,2626 Biscarde DGS, Vilasbôas ALQ, Trad LAB. Consenso e pactuação regional entre gestores do SUS no nordeste do Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(2):4519-4527., onde não se instituíram mecanismos para ampliar poder político e influenciar as decisões entre os diversos atores do sistema de saúde.

A baixa institucionalidade das Comissões Intergestores na região estudada ratifica a dificuldade na construção de capacidade para gerir o SUS interestadual, assemelhando-se com situações identificadas em outras regiões de saúde do Norte e do Nordeste brasileiro, ainda que intraestaduais1919 Casanova AO, Cruz MM, Giovanella L, Alves GR, Cardoso GCP. A implementação de redes de atenção e os desafios da governança regional em saúde na Amazônia Legal: uma análise do Projeto QualiSUS-Rede. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1209-1224.,2626 Biscarde DGS, Vilasbôas ALQ, Trad LAB. Consenso e pactuação regional entre gestores do SUS no nordeste do Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(2):4519-4527., onde as práticas de gestão regional também eram predominantemente formalistas e burocráticas2727 Santos AM. Redes regionalizadas de atenção à saúde: desafios à integração e coordenação do cuidado. Salvador: EDUFBA; 2018., sob recorrente influência das representações estaduais sobre as pautas e assimetrias de poder entre os gestores1111 Viana ALD, Ferreira MP, Cutrim MA, Fusaro ER, Souza MR, Mourão L, Pereira APCM, Mota PHS, Iozzi FL, Uchimura LYT. O Processo de Regionalização no Brasil: influência das dimensões Política, Estrutura e Organização. Rev Bras Saude Mater Infant 2017; 17(1):545-561.,2828 Ouverney AM, Ribeiro JM, Moreira MR. O COAP e a Regionalização do SUS: os diversos padrões de implementação nos estados brasileiros. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1193-1207., além das comissões se tornarem palco de disputas de atores do setor privado2626 Biscarde DGS, Vilasbôas ALQ, Trad LAB. Consenso e pactuação regional entre gestores do SUS no nordeste do Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(2):4519-4527.,2727 Santos AM. Redes regionalizadas de atenção à saúde: desafios à integração e coordenação do cuidado. Salvador: EDUFBA; 2018..

Governar corresponde a um jogo duplamente determinado: de um lado, pela capacidade de influência de quem governa e, do outro, pelas condições de viabilidade frente a outros atores que compõem este jogo2424 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativa populacional 2018 do IBGE. Rio de Janeiro: IBGE; 2018.. Nas fronteiras interestaduais, projetos de regionalização do SUS apresentam baixa capacidade de governo quando os espaços de gestão regional e interestadual não possuem poder político e decisório suficientes sobre a região e quando os entes estaduais não constroem estratégias para articular atores estratégicos como os gestores municipais, regionais e federais na implantação de uma política interestadual de saúde.

A tangencialidade da regionalização interestadual do SUS nas decisões regionais e estaduais analisadas ratifica não apenas a capacidade limitada dos entes subnacionais em produzir respostas suficientes para implementação de uma política interestadual de saúde, mas, também, a necessidade da implantação de Comissões Intergestores interestaduais sob representação e apoio tripartite, sobretudo do ente federal, tendo em vista a complexidade de articular dois ou mais estados, pois até mesmo em desenhos regionais menos complexos, a exemplo dos intraestaduais, têm sido evidenciada baixa capacidade de gestão do SUS1111 Viana ALD, Ferreira MP, Cutrim MA, Fusaro ER, Souza MR, Mourão L, Pereira APCM, Mota PHS, Iozzi FL, Uchimura LYT. O Processo de Regionalização no Brasil: influência das dimensões Política, Estrutura e Organização. Rev Bras Saude Mater Infant 2017; 17(1):545-561.,2828 Ouverney AM, Ribeiro JM, Moreira MR. O COAP e a Regionalização do SUS: os diversos padrões de implementação nos estados brasileiros. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1193-1207..

A capacidade de governo também pode ser conceituada como a “capacidade de ação sobre um projeto”, ou seja, a capacidade de vencer as dificuldades entre as propostas e o seu alcance2424 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativa populacional 2018 do IBGE. Rio de Janeiro: IBGE; 2018.. Evidenciou-se, neste estudo, grandes desafios para governar o SUS no âmbito interestadual, destacando-se aqueles relativos à organização de estratégias para integração de projetos de governo e agendas decisórias entre os estados fronteiriços, o que no cenário pesquisado torna-se uma situação muito crítica por requerer a participação ativa dos estados na mediação construtiva da política regional saúde1111 Viana ALD, Ferreira MP, Cutrim MA, Fusaro ER, Souza MR, Mourão L, Pereira APCM, Mota PHS, Iozzi FL, Uchimura LYT. O Processo de Regionalização no Brasil: influência das dimensões Política, Estrutura e Organização. Rev Bras Saude Mater Infant 2017; 17(1):545-561.,2525 Mello GA, Pereira APCM, Uchimura LYT, Lozzi FL, Demarzo MMP, Viana ALD. O processo de regionalização do SUS: revisão sistemática. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1291-1310..

Ao contrário de instituir estratégias para ampliar a capacidade de gestão regional, a extinção das DIRES na Bahia ilustrou bem a fragilização da atuação institucional da SESAB na coordenação dos municípios da Região. Ainda que o propósito das DIRES fosse canalizar a comunicação político-institucional entre os municípios e a gestão estadual2727 Santos AM. Redes regionalizadas de atenção à saúde: desafios à integração e coordenação do cuidado. Salvador: EDUFBA; 2018., sua interrupção confirmou tanto um esvaziamento da capacidade de gestão regional quanto uma tendência da ausente participação estadual na política de regionalização do SUS11 Reis AAC, Sóter APM, Furtado LAC, Pereira SS S. Reflexões para a construção de uma regionalização viva. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1045-1054.,2525 Mello GA, Pereira APCM, Uchimura LYT, Lozzi FL, Demarzo MMP, Viana ALD. O processo de regionalização do SUS: revisão sistemática. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1291-1310.,2626 Biscarde DGS, Vilasbôas ALQ, Trad LAB. Consenso e pactuação regional entre gestores do SUS no nordeste do Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(2):4519-4527. e a dificuldade de dar sustentabilidade a estruturas administrativas regionais1111 Viana ALD, Ferreira MP, Cutrim MA, Fusaro ER, Souza MR, Mourão L, Pereira APCM, Mota PHS, Iozzi FL, Uchimura LYT. O Processo de Regionalização no Brasil: influência das dimensões Política, Estrutura e Organização. Rev Bras Saude Mater Infant 2017; 17(1):545-561.,2626 Biscarde DGS, Vilasbôas ALQ, Trad LAB. Consenso e pactuação regional entre gestores do SUS no nordeste do Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(2):4519-4527., aspectos já apontados em outros estudos.

Os achados deste estudo sobre a influência político-partidária na gestão regional do SUS na Bahia expõem a predominância de indicações políticas para representações e coordenações de estruturas administrativas regionais, o que compromete a construção de viabilidade de projetos de regionalização interestadual do sistema de saúde, em razão da permanência de assimetrias de poder entre seus idealizadores e opositores. De acordo com alguns artigos, trata-se de uma tradição na Bahia e, ao mesmo tempo, uma estratégia política de influência decisória do nível central estadual sobre o governo de regiões de saúde2626 Biscarde DGS, Vilasbôas ALQ, Trad LAB. Consenso e pactuação regional entre gestores do SUS no nordeste do Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(2):4519-4527.,2727 Santos AM. Redes regionalizadas de atenção à saúde: desafios à integração e coordenação do cuidado. Salvador: EDUFBA; 2018..

As desigualdades na capacidade de gestão das SES tornam crítica a capacidade de governo do SUS em fronteiras interestaduais, porque produzem decisões fragmentadas e limitam a implantação de estratégias para vencer as adversidades do planejamento e coordenação de uma política interestadual de saúde. Nem mesmo nas regiões de saúde intraestaduais os estudos têm apontado capacidade institucional suficiente nas SES para gerenciar a política de regionalização1919 Casanova AO, Cruz MM, Giovanella L, Alves GR, Cardoso GCP. A implementação de redes de atenção e os desafios da governança regional em saúde na Amazônia Legal: uma análise do Projeto QualiSUS-Rede. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1209-1224.,2525 Mello GA, Pereira APCM, Uchimura LYT, Lozzi FL, Demarzo MMP, Viana ALD. O processo de regionalização do SUS: revisão sistemática. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1291-1310.,2626 Biscarde DGS, Vilasbôas ALQ, Trad LAB. Consenso e pactuação regional entre gestores do SUS no nordeste do Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(2):4519-4527.,2929 Viana ALD, Bousquat A, Melo GA, Negri-Filho A, Medina MG. Regionalização e Redes de Saúde. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1791-1798.. De acordo com alguns artigos, isso se explica por aspectos históricos e político-institucionais da regionalização de cada estado, variando do alinhamento político entre federativos a resistências ao processo regionalizador2020 Pereira APCM. Redes interestaduais de saúde: o caso da rede de atenção à saúde Pernambuco/Bahia [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017.,2626 Biscarde DGS, Vilasbôas ALQ, Trad LAB. Consenso e pactuação regional entre gestores do SUS no nordeste do Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(2):4519-4527..

Ademais, a dinâmica política regional tende a atrofiar o poder decisório dos gestores nas disputas político-econômicas com atores externos aos espaços de gestão do SUS. Isso ratifica as proposições teóricas de Matus2222 Matus C. Teoria do Jogo Social. São Paulo: FUNDAP; 2005., ao refletir que o processo de governar envolve uma diversidade de projetos em disputa e reflete o interesse (nem sempre convergente) de diversos atores sociais, o que em cenários complexos, como a gestão interestadual do SUS, envolve a aposta em um projeto de relações mutáveis, imprecisas e incertas.

O presente estudo permitiu, por meio de uma das variáveis do Triângulo de Governo de Matus2424 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativa populacional 2018 do IBGE. Rio de Janeiro: IBGE; 2018., compreender os limites e as condições de capacidade de gestão do SUS para operacionalizar a regionalização interestadual do sistema. A baixa capacidade de governo, evidenciada neste estudo, reduz a política de regionalização em territórios interestaduais ao plano ideológico e de acordos informais.

As disputas pessoais, políticas e financeiras suprimiram métodos, técnicas e habilidades de governo, o que tende a limitar a autonomia municipal e a contribuir para dependência em relação ao ente estadual e federal, produzindo um esvaziamento dos espaços deliberativos e submetendo os gestores à cooptação pelo poder econômico e político. A direcionalidade das decisões estaduais divergiu das necessidades regionais e pouco se articulou em prol de acordos interestaduais, o que fragilizou a capacidade de planejamento regional integrado.

Em suma, as RIS são espaços desafiadores para a gestão do SUS, e ainda com várias possibilidades de investigação, incluindo determinantes políticos dos fluxos de usuários nas fronteiras, além da análise de experiências de formulação e implementação de Redes Interestaduais de Saúde. Também são urgentes outras análises políticas nesses territórios que busquem compreender o poder de atores da universidade, do judiciário e das organizações da administração indireta sobre as ações e serviços produzidos no âmbito interestadual.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Maio 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2021
  • Aceito
    24 Jun 2021
  • Publicado
    26 Jun 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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