Elementos constitutivos da masculinidade ensinados/apreendidos na infância e adolescência de homens que estão sendo processados criminalmente por violência contra a mulher/parceira

Constituent elements of masculinity taught/learned in childhood and adolescence of men who are being criminally prosecuted for violence against women/partners

Andrey Ferreira da Silva Fernanda Matheus Estrela Júlia Renata Fernandes de Magalhães Nadirlene Pereira Gomes Álvaro Pereira Jordana Brock Carneiro Moniky Araújo da Cruz Dália Maria de Sousa Gonçalves da Costa Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste trabalho é compreender os elementos constitutivos da masculinidade ensinados/apreendidos na infância/adolescência e reproduzidos por homens em processo criminal por violência conjugal. Utilizou-se como referencial metodológico a história oral de vida. Foram realizadas entrevistas com 13 homens em processo criminal por violência conjugal. Os dados foram organizados segundo análise de conteúdo temática categorial e interpretados à luz do referencial teórico sobre masculinidade. Com base na oralidade masculina, os elementos constitutivos da masculinidade que foram ensinados/apreendidos na infância e adolescência e reproduzidos por homens em processo criminal por violência conjugal perpassaram pela infidelidade, supervalorização do trabalho, provisão familiar, imposição de normas familiares e detenção de poder em relação a mulher. Considerando que esses elementos se encontram arraigados no modelo hegemônico, urgem ações preventivas com enfoque no comprometimento social, financeiro e para a saúde.

Key words:
Masculinity; Men’s health; Gender-based violence; Parent-child relations; Social behavior

Abstract

The scope of this article was to understand the constituent elements of masculinity taught/learnt in childhood/adolescence and reproduced by men in criminal proceedings for conjugal violence. Oral Life History was used as a methodological reference. Interviews were conducted with 13 men in criminal proceedings for domestic violence. The data were organized according to thematic content analysis and interpreted in the light of the theoretical framework on masculinity. Based on male orality, the constitutive elements of masculinity that were taught/learnt in childhood and adolescence and reproduced by men in criminal proceedings for conjugal violence went through infidelity, overvaluation of work, family provisioning, imposition of family norms and dominance of power in relation to women. Considering that these elements are rooted in the hegemonic model, preventive actions with a focus on social, financial and health commitment are a pressing requirement.

Key words:
Masculinity; Men’s health; Gender-based violence; Parent-child relations; Social behavior

Introdução

O processo de construção da masculinidade se inicia ainda na infância, sendo influenciado pelo que se observa nos padrões de referência. Esses modelos são ensinados desde tenra idade e reproduzidos principalmente nas relações familiares. Todavia, quando alguns comportamentos nocivos fazem parte de tal constructo, podem desencadear diversos danos, a exemplo da violência doméstica e conjugal11 Hadas M. The tricky 'true object': Bourdieu's masculine domination and historicity. Masculinities Soc Chang 2016; 5(3):210..

A partir das experiências cotidianas vivenciadas quando crianças e da identificação com as pessoas adultas, os meninos delineiam sua autoimagem, percepção de mundo, caráter e personalidade, construindo os valores orientadores de sua forma de agir e interagir em sociedade22 Forlin KA, Castro AVB, Alberton N, Fernandes FS. Marcas da maternidade: do ventre para a vida toda. Rev Bras Psicodrama 2019; 27(2):186-198.. Assim, desde cedo os homens são ensinados por meio das instituições sociais, como família, escola, religião e comunidade, a reproduzirem comportamentos considerados adequados para o seu gênero33 Vasconcelos ACS, Monteiro RJS, Facundes VLD, Trajano MFC, Gontijo DT. Became a man!: the construction of masculinities for adolescent participants of a project for the promotion of sexual and reproductive health. Saude Soc 2016; 25(1):186-197..

O gênero, por sua vez, pode ser compreendido como elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, sendo uma forma de significar as relações de poder44 Scott JW. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade 1990; 20(2):71-99.. Segundo essa categoria antropológica, as diferenças entre o feminino e o masculino vão além das diferenças anatômicas, sendo fruto de uma construção social que determina performances de gênero diferentes na sociedade55 Souza MDF, Altomar G, Manfrin SH. A construção social da masculinidade. ETIC - Encontro de Iniciação Científica [Internet] 2017 [acessado 2018 Nov 23]; 13(13). Disponível em: http://intertemas.toledoprudente.edu.br/index.php/ETIC/article/view/6227/5930
http://intertemas.toledoprudente.edu.br/...
.

Sob essa perspectiva, as masculinidades podem ser definidas como conjuntos de modelos culturais, históricos e sociais que estruturam pensamentos, atributos e condutas voltados para a identidade do ser homem55 Souza MDF, Altomar G, Manfrin SH. A construção social da masculinidade. ETIC - Encontro de Iniciação Científica [Internet] 2017 [acessado 2018 Nov 23]; 13(13). Disponível em: http://intertemas.toledoprudente.edu.br/index.php/ETIC/article/view/6227/5930
http://intertemas.toledoprudente.edu.br/...
. Mesmo que hoje se perceba uma pluralidade de modelos66 Coleman R. Sociology and the virtual: interactive mirrors, representational thinking and intensive power. The Sociological Review 2013; 61(1):1-20. Doi: 10.1111/1467-954X.12002
https://doi.org/10.1111/1467-954X.12002...
,77 Ferrer VA, Bosch E. Las masculinidades y los programas de intervención para maltratadores en casos de violencia de género en España. Masculinities and Social Change 2016; 5(1):28-51., considerando que cada homem é um ser único, não se pode desconsiderar a existência de um padrão hegemônico que tem se perpetuado ao longo das gerações, estruturado basicamente a partir da heterossexualidade, da honra e da supremacia masculina88 Paixão GPN, Pereira A, Gomes NP, Sousa AR, Estrela FM, Silva Filho URP, Araújo IB. Naturalização, reciprocidade e marcas da violência conjugal: percepções de homens processados criminalmente. Rev Bras Enferm 2017; 71(1):190-196.,99 Connell RW, Messerschmidt JW. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Rev Estud Fem 2013; 21(1):241-282..

Os ensinamentos assimilados no espaço familiar durante a infância são internalizados e tendem a ser reproduzidos durante a vida. É com base nesse processo que os homens internalizam, por exemplo, a agressividade enquanto característica inerente ao masculino, naturalizando a violência como forma permissível e aceitável de resolução de conflitos. Esse atributo que retroalimenta o poder masculino muitas vezes é utilizado para justificar condutas sexistas, a exemplo da violência doméstica1010 Boris GDJB, Bloc LG, Teófilo MCC. Os rituais da construção da subjetividade masculina. O público e o privado 2012; 10(19):17-31..

Tal contexto permite compreender a relação entre a violência presenciada na família de origem e sua reprodução na vida adulta. Estudo realizado com homens casados de Bangladesh evidenciou que aqueles que conviveram em lares permeados pela violência conjugal entre os pais foram mais propensos a cometer agressão contra suas parceiras íntimas1111 Islam MJ, Mazerolle P, Broidy L, Baird K. Exploring the prevalence and correlates associated with intimate partner violence during pregnancy in Bangladesh. J Interpers Violence 2017; 36(1-2):663-690.. Essa realidade reflete a ampla magnitude dos casos de violência contra a mulher, conforme demonstra estudo realizado pelo Centro Nacional de Violência Doméstica em Nova York, que evidenciou que, 15 dias após o início da pandemia de COVID-19, aumentaram 50% as ligações relacionadas à violência perpetrada por parceiro íntimo1212 Fielding S. In quarantine with an abuser: surge in domestic violence reports linked to coronavírus [Internet]. The Guardian; 2020. [cited 2021 Jun 22]. Available from: https://www.theguardian.com/us-news/2020/apr/03/coronavirus-quarantine-abuse-domestic-violence
https://www.theguardian.com/us-news/2020...
. Diante disso, é importante pensar o contexto atual de isolamento social e seu consequente aumento do número de casos de violência contra as mulheres relacionados a diversos fatores, como desemprego, uso abusivo de substâncias pelos companheiros e até mesmo temores sobre o próprio coronavírus1313 Silva AF, Estrela FM, Soares CFS, Magalhães JRF, Lima NS, Morais AC. Elementos precipitadores/intensificadores da violência conjugal em tempo da Covid-19. Cien Saude Colet 2020; 25(9):3475-3480..

É importante pontuar que o modelo dominante, ensinado aos homens desde a infância, direciona não apenas à reprodução da violência doméstica, mas a diversos outros comprometimentos na dimensão jurídica, social, financeira e da saúde88 Paixão GPN, Pereira A, Gomes NP, Sousa AR, Estrela FM, Silva Filho URP, Araújo IB. Naturalização, reciprocidade e marcas da violência conjugal: percepções de homens processados criminalmente. Rev Bras Enferm 2017; 71(1):190-196.. Assim, partindo do pressuposto de que a prática masculina é influenciada pelas experiências cotidianas vivenciadas e apreendidas na infância e adolescência, questiona-se: que elementos constitutivos da masculinidade foram ensinados/apreendidos na infância/adolescência e reproduzidos por homens em processo criminal por violência conjugal? Para responder a essa indagação, adota-se como objetivo do estudo compreender os elementos constitutivos da masculinidade ensinados/apreendidos na infância/adolescência e reproduzidos por homens em processo criminal por violência conjugal.

Metodologia

Estudo com abordagem qualitativa, fundamentado no referencial teórico das masculinidades. Este referencial concebe que as masculinidades são um conjunto de comportamentos, geralmente associados a meninos e homens, compostos de fatores socialmente construídos, como ser viril, forte e corajoso. Tais características são plurais, múltiplas, multidimensionais e internalizadas no processo de socialização presentes de forma historicizada99 Connell RW, Messerschmidt JW. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Rev Estud Fem 2013; 21(1):241-282. nas relações, instituições e no mundo do trabalho. Apesar de considerarmos que o processo de socialização perpassa as diversas instâncias sociais, este estudo levou em conta apenas as relações familiares, em especial entre pai e filho, visto que esta figura se apresenta como central na formação da masculinidade.

Os participantes foram 13 homens com processos na 2ª Vara de Justiça pela Paz em Casa, situada no município de Salvador, Bahia, Brasil. A seleção dos participantes se deu de forma intencional, sendo adotados os seguintes critérios de inclusão: estarem respondendo a processo criminal por violência conjugal nessa instituição e estar visualmente com seu estado emocional preservado para realização de entrevista. O critério de exclusão estabelecido foi a ausência, após dois encontros marcados, à entrevista.

Para aproximação com os possíveis colaboradores, houve a inserção do pesquisador principal no Grupos Reflexivos com Homens (GRH) desenvolvidos por pesquisadoras(es) vinculados ao Grupo de Estudos “Violência, Saúde e Qualidade de Vida” da Escola de Enfermagem, com vistas à educação de homens em processo criminal por violência conjugal, conforme preconiza a Lei Maria da Penha. Por se tratar da produção conjunta de dois atores sociais em interação, esse contato prévio entre pesquisadoras(es) e pesquisados foi imprescindível para o desenvolvimento da pesquisa e envolveu confiança e empatia mútuas.

Após o término do ciclo de encontros do GRH, os integrantes que demonstraram apresentar boas condições emocionais para relatar suas histórias de vida foram contatados via telefone e convidados a participar do estudo. A coleta de dados ocorreu nos meses de abril a julho de 2018, utilizando-se a técnica de entrevista, ancorada no referencial metodológico da história oral de vida (HOV), guiada por um formulário semiestruturado contendo aspectos sociodemográficos (idade, religião, raça/cor, escolaridade, renda familiar) e a seguinte questão norteadora: o que você reproduziu do que lhe foi ensinado em relação a ser homem na infância e adolescência? A formulação da referida questão se deu com vistas a facilitar o entendimento de forma simples, direta e com linguagem comum, para facilitar a espontaneidade do diálogo.

As entrevistas foram realizadas pelo pesquisador principal, tiveram duração média de duas horas e trinta minutos e fritas individualmente em local previamente acordado com os participantes. Todo o conteúdo foi gravado e transcrito na íntegra. Em seguida, foram realizadas a textualização - fase em que o discurso é organizado na primeira pessoa do singular, sendo excluídos os elementos desnecessários e identificadas as ideias centrais de cada narrativa - e a transcriação, processo de organização lógica do texto1414 Meihy JCSB, Ribeiro SLS. Guia prático de história oral: para empresas, universidades, comunidades, famílias. São Paulo: Editora Contexto; 2011..

Ao final do processo de organização, o corpus textual foi validado pelos participantes, que assinaram a carta de sessão de direitos, autorizando o uso do mesmo para análise. Cabe salientar que o limite de integrantes do estudo foi delimitado por repetição dos conteúdos contidos nas entrevistas. Todo o material foi sistematizado com base na análise de conteúdo temática categorial que orientou a organização dos conteúdos das mensagens apreendidas no texto, permitindo o surgimento de categorias. Assim, após leitura exaustiva, exploração do material e categorização, emergiram cinco categorias: infidelidade; supervalorização do trabalho; provimento da família; imposição de normas familiares; detenção do poder sob a mulher, que foram interpretadas à luz do referencial de gênero a partir da perspectiva das masculinidades44 Scott JW. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade 1990; 20(2):71-99.,99 Connell RW, Messerschmidt JW. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Rev Estud Fem 2013; 21(1):241-282.,1515 Scott JW. Gender: Still a useful category of analysis? Diogenes 2015; 57(1):7-14..

Vale ressaltar que a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob parecer 877.905 (CAAE31286414200005531), sendo cumpridos os preceitos éticos da pesquisa com seres humanos preconizados pelas Resoluções 466/12 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde. Entre os aspectos éticos, destacam-se o esclarecimento sobre relevância e objetivos do estudo, o direito de participar ou não da pesquisa, bem como de desistir a qualquer momento, o anonimato e a confidencialidade das informações. Aqueles que aceitaram participar assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados e discussão

Os 13 colaboradores da pesquisa tinham entre 27 e 54 anos de idade. Se autodeclararam, em sua maioria, negros (11), religiosos (12), com renda familiar média de dois salários-mínimos (8) e ensino médio completo (11).

O perfil dos participantes mostra-se similar ao identificado em outro estudo realizado na região Nordeste do Brasil, que teve como fonte de dados as fichas de atendimento de homens autores de violência doméstica que participaram de grupos reflexivos em que houve predominância da faixa etária entre 31 e 40 anos, etnia negra, baixa escolaridade e renda familiar média de um salário-mínimo e meio1616 Scott JB, Oliveira IF. Perfil de homens autores de violência contra a mulher: uma análise documental. Rev Psicol da IMED 2018; 10(2):71-88..

A baixa remuneração salarial pode estar associada à baixa qualificação profissional, considerando os poucos anos de estudo dos participantes da pesquisa, sendo apontada como um elemento catalizador de situações de vulnerabilidade social associado à violência conjugal1717 Novaes RCP, Freitas GAP, Beiras A. A produção científica brasileira sobre homens autores de violência - reflexões a partir de uma revisão crítica de literatura. Barbarói 2019; 1(51):154-176.. Contudo, é importante salientar a existência de situações de violência no contexto familiar de pessoas de níveis mais altos de escolaridade, mas na maioria dos casos não chega a ser denunciada1616 Scott JB, Oliveira IF. Perfil de homens autores de violência contra a mulher: uma análise documental. Rev Psicol da IMED 2018; 10(2):71-88..

A raça é uma variável relevante em estudos de gênero, por sua associação às desigualdades, e violências, a exemplo da violência conjugal, devendo ser considerada por sua influência sócio-histórica na população negra e parda, maioria neste estudo. Tal condição vulnerabilizadora se associa à experiência de situações de violação na infância e de reprodução delas na vida adulta. Questões de classe e raça colaboram para a manutenção das relações de poder quando revelam que homens negros e pardos de baixa escolaridade apresentam maior probabilidade de serem processados por violência conjugal, uma vez que vivenciam uma história de vida marcada por desigualdades sociais e relações familiares permeadas por episódios de violência1818 Gomes NL, Laborne AAP. Pedagogia da crueldade: racismo e extermínio da juventude negra. Educ Rev; 34:e197406..

Os elementos constitutivos da masculinidade ensinados/apreendidos na infância/adolescência e reproduzidos por homens em processo criminal por violência conjugal foram apresentados nas categorias a seguir.

Infidelidade

O estudo mostrou que um dos elementos apreendidos na infância e adolescência de homens em processo criminal por violência conjugal e reproduzido por eles remete à infidelidade. Isso porque eles, ao presenciarem a conduta masculina de traição marital na relação dos pais, naturalizaram esse comportamento, de modo que tendem a agir da mesma forma na vida adulta.

Meu pai sempre foi muito mulherengo. Quando eu era criança, sempre via ele de namoro com várias mulheres nos bares do bairro onde morávamos. Enquanto isso, minha mãe ficava em casa sem saber o que acontecia [...]. Eu acabei seguindo o exemplo dele. Mesmo estando casado, não posso ver uma mulher que já penso em pegar (H02).

Quando eu era mais jovem, descobri que meu pai tinha várias amantes, e isso acabou influenciando muito no meu comportamento, pois eu achei que traição fosse normal, tanto é que, quando eu estava casado, acabei me envolvendo em um relacionamento extraconjugal (H12).

Em concordância com esse resultado, pesquisa realizada na Europa evidencia que indivíduos que relataram ter experienciado infidelidade na família de origem apresentaram o dobro de chances de se tornarem infiéis1919 Weiser DA, Weigel DJ, Lalasz CB, Evans WP. Family background and propensity to engage in infidelity. Journal of Family Issues. 2015; 38(15):2083-2101.. A infidelidade, enquanto comportamento apreendido por meninos na infância e adolescência por meio da observação das condutas paternas e reproduzido na vida adulta, ancora-se nos constructos da masculinidade hegemônica, que supervaloriza a virilidade e o poder de conquista, em detrimento da monogamia2020 Scheeren P, Apellaniz IAM, Wagner A. Infidelidade conjugal: a experiência de homens e mulheres. Temas Psicol 2018; 26(1):355-369.. Além disso, o imaginário social alimenta a visão de que, para os homens, as relações afetivas e sexuais são dissociadas, sendo a propulsão para o ato sexual atribuída, na maioria das vezes, a um dado instinto carnal, e que este justificaria a infidelidade masculina2020 Scheeren P, Apellaniz IAM, Wagner A. Infidelidade conjugal: a experiência de homens e mulheres. Temas Psicol 2018; 26(1):355-369..

Não podemos desconsiderar que, desde a infância e a adolescência, os homens são cobrados socialmente a demonstrarem sua virilidade, sendo exigido, por exemplo, que provem sua heterossexualidade, muitas vezes mantendo relações íntimas sem vontade e independentemente da existência de vínculo afetivo. Essa condição de não “poder” se negar a manter relações sexuais, quando reproduzida, tende a comprometer a saúde emocional, visto que essa pressão social sofrida para provarem sua masculinidade pode ser nociva, sobretudo quando os homens não se encaixam nos padrões impostos, sendo reprimidos, julgados e condenados pela sociedade, principalmente por seus pais, figuras centrais no ensinamento do ser homem2121 Hearn J. Introduction: international studies on men, masculinities, and gender equality. Men and Masculinities 2014; 17(5):455-466..

Esse comportamento apreendido na infância e/ou adolescência reproduzido pelos homens torna a relação conjugal fragilizada, muitas vezes ocasionando o fim dos relacionamentos conjugais. Estudo norte-americano, realizado com uma amostra composta majoritariamente por homens e mulheres caucasianos, aponta que a infidelidade representa uma das principais causas para o fim de relacionamentos conjugais2222 Scott SB, Rhoades GK, Stanley SM, Allen ES, Markman HJ. Reasons for divorce and recollections of premarital intervention: implications for improving relationship education. Couple Family Psychol 2013; 2(2):131-145.. No entanto, é importante assinalar que a infidelidade não se configura como uma violência conjugal, mas pode ser compreendida como um elemento precipitador do fenômeno, conforme corrobora estudo internacional que revela que as discussões entre os casais oriundas de descobertas relacionadas a traição geram diversas expressões da violência11 Hadas M. The tricky 'true object': Bourdieu's masculine domination and historicity. Masculinities Soc Chang 2016; 5(3):210..

Supervalorização do trabalho

As narrativas masculinas revelam que um dos elementos constitutivos da masculinidade apreendido e reproduzido pelos entrevistados diz respeito à supervalorização do trabalho, componente que possibilita o reconhecimento profissional e pessoal. Conforme os discursos, esse rito de passagem se deu ao presenciar tal comportamento por parte da figura masculina de referência e/ou incorporar o labor enquanto característica inerente ao ser homem, o que remete à busca incessante por uma ocupação ainda em tenra idade.

Passei minha infância e adolescência toda vendo o meu pai sempre trabalhar, às vezes até achava que ele exagerava, pois ele nunca tinha tempo para brincar comigo. [...] falava sempre em ser bem-sucedido. Vivia no escritório e chegava em casa bem tarde. Nessa época ele sempre me incentivou a trabalhar e hoje eu sou reflexo dele: tenho minha empresa e sou uma pessoa conhecida no ramo (H04).

Quando eu era menino, meu pai me incentivava dizendo que para ser um homem de verdade tem que trabalhar, ganhar dinheiro e não depender de ninguém. Eu comecei a trabalhar com menos de dez anos de idade e sigo até hoje esse preceito (H08).

Este enaltecimento do labor, apreendido na infância e/ou adolescência a partir do comportamento da figura paterna e reproduzido pelos participantes, está arraigado na cultura de manutenção do domínio do homem, já que historicamente o fato de ocupar o espaço público, independentemente do ofício a ser desempenhado, remete ao prestígio pessoal e social2323 O'donnel SM, Maclntosh JÁ. Gênero e assédio moral no local de trabalho: experiências masculinas de sobrevivência ao bullying no trabalho. Sage Journals 2015; 26(3):351-366.

24 Reznik G, Massarani, LM, Ramalho M, Malcher MA, Amorim L, Castelfranchi Y. How teenagers apprehend science and the scientist profession? Rev Estud Fem 2017; 25(2):829-855.
-2525 Rosa M, Quirino R. Relações de gênero e ergonomia: abordagem do trabalho da mulher operária. HOLOS 2017; 33(5):345-359..

Conforme revelam as narrativas, desde tenra idade esse constructo é incentivado, condição que privilegia a figura masculina, proporcionando-lhe um espaço valorizado socialmente. Além disso, o constructo masculino, naturalizado e reproduzido, do enaltecimento do trabalho, internaliza que o labor é condição esperada do homem para se viver em sociedade, o que guarda relação com o distanciamento da criminalidade, a exemplo da prática de furtos e roubos2626 Leite JF, Dimenstein M, Dantas CB, Silva EL, Macedo JPS, Sousa AP. Lifestyle, mental health and gender conditions in rural contexts: a study within agraria reform settlements of northeastern Brazil. Av Psicol Latinoam 2017; 35(2):301-316,2727 Barros CT, Gontijo DT, Lyra J, Lima LS, Monteiro EMLM. "Mas se o homem cuidar da saúde fica meio que paradoxal ao trabalho": relação entre masculinidades e cuidado à saúde para homens jovens em formação profissional. Saude Soc 2018; 27(2):423-434., condição que também pode estar ligada a alguns estilos de masculinidade.

Se por um lado a supervalorização do trabalho enquanto constructo masculino simboliza, a priori, emancipação financeira, ascensão social e afastamento de alguns tipos de criminalidade, por outro, o tempo destinado quase que exclusivamente para a função laboral, limita a possibilidade de convívio familiar e, possivelmente, do vínculo afetivo. Nesse contexto, é preciso atentar para a saliência do suporte afetivo, indispensável para o desenvolvimento da criança ou adolescente e essencial para a formação dos cidadãos2828 Comitê Científico do Núcleo Pela Infância, organizador. Importância dos vínculos familiares na primeira infância: estudo II. 1. ed. São Paulo: Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal; 2016..

Provimento da família

Outro elemento espelhado pelos participantes como constructo do masculino foi o provimento familiar, que se dá a partir do suprimento de recursos atribuídos por eles como necessários para a manutenção da família, em alguns casos mesmo quando os filhos não são mais seus dependentes legais. Nessa categoria, evidencia-se a satisfação na realização de tal componente, apreendido como atributo de grande valor para o ser homem.

Meu pai trabalhava muito para prover as coisas de casa. [...] durante nossa infância, ele nunca deixou faltar nada para mim, meus irmãos e minha mãe, visto que ela não trabalhava. [...] Esse foi um aprendizado que tive dele, que o homem nunca deve deixar faltar nada dentro de casa. [...] Hoje, eu proporciono toda estrutura financeira para minha esposa e nossa filha (H01).

Ele (pai) nunca nos deixou faltar nada: comida, roupas, pagar as contas. Sempre nos ajudou, mesmo depois de crescidos. Dizia sempre que o homem precisa ser o provedor da família. Hoje eu me sinto um herói por não deixar faltar nada dentro de casa (H10).

A reprodução do labor enquanto característica inerente ao ser homem fornece condições e se entrelaça ao papel de provedor da família. Diante da supervalorização da construção social do homem provedor, não corresponder a este constructo, independentemente do motivo, a exemplo da perda de emprego, colabora para fazer emergir sentimentos de impotência e do não cumprimento do seu dever social, o que pode muitas vezes catalisar práticas de violência conjugal. Esses se agravam quando na relação conjugal a principal provedora do sustento familiar é a mulher2929 Verza F, Sattler Mk, Strey MN. Mãe, mulher e chefe de família: perspectivas de gênero na terapia familiar. Pensando Fam 2015; 19(1):46-60.. E como assinala pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o percentual de mulheres chefes de família cresceu de 27,4% para 40,5% de 2001 a 2015, em contraponto à redução de 72,6% para 59,5% da chefia masculina familiar no mesmo período3030 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estatística do Registro Civil 2016. Estat Reg Civ 2016; 43:1-8..

Em conjuntura oposta à das mulheres que assumem a provisão da casa, estudos realizados em São Paulo e Honk Kong apontam que muitas permanecem em relacionamentos fracassados e violentos por dependerem financeiramente do cônjuge3131 Madalozzo R, Blofield M. How low-income families in Sao Paulo reconcile work and family? Rev Estud Fem 2017; 25(1):215-226.,3232 Choi SY, Cheung AK, Cheung YW, David R. Bring the subjective back in: resource and husband-to-wife physical assault among Chinese couples in Hong Kong. Violence Against Women 2014; 20(12):1428-1446.. Essa dependência reflete o modelo de criação em que as mesmas não são incentivadas a buscar seus próprios meios de subsistência, tornando-se dependente de seu cônjuge, muitas vezes submetidas a situações de violência conjugal. Tal conjuntura traz prejuízos não apenas para as mulheres, que precisam se sujeitar ao poder masculino frente à impossibilidade de obterem o autossustento, mas para os homens, que diante dos casos de separação são responsabilizados judicialmente a arcar financeiramente, por meio da pensão alimentícia, com as despesas dos filhos e às vezes da ex-parceira, caso comprovado a dependência econômica3333 Abade F, Romanelli G. Paternity and fathering in patrifocals families. Rev Estud Fem 2018; 26(2):e50106..

Diante de tais circunstâncias, são necessárias estratégias que provoquem nos homens reflexão em relação a esse constructo, apontando as consequências da reprodução do papel de provedor nas relações conjugais, sobretudo no contexto de violência conjugal. Isso porque em muitos casos podemos evidenciar o sentimento de posse masculina em relação à companheira, expresso pela não permissão que ela desenvolva atividades laborais rentáveis, principalmente fora do contexto doméstico, o que favorece a dependência financeira. Estudo baiano aponta inclusive reflexão feminina acerca da relação entre a atual dificuldade de ingresso no mercado de trabalho após divórcio e a proibição de trabalhar imposta pelo cônjuge3434 Carneiro JB, Gomes NP, Estrela FM, Santana JD, Mota RS, Erdmann AL. Violência conjugal: repercussões para mulheres e filhas(os). Esc Anna Nery 2017; 21(4):e20160346.. Assim, como já sinalizado, em situações de divórcio, não tendo como manter a própria subsistência, dependerão dos recursos do ex-cônjuge.

Imposição de normas familiares

O autoritarismo masculino, que se pauta na imposição de condutas e regras do chefe da família e determina a obediência dos demais membros, também foi elemento experienciado na infância e adolescência, conforme oralidade dos participantes da pesquisa. Tal comportamento, alicerçado na crença de que sabem o que é melhor para a família, tende a ser naturalizado e reproduzido no âmbito doméstico.

Meu pai era extremamente autoritário, parecia um chefe. Tínhamos sempre que obedecer a suas ordens, pois ele dizia que sabia o que era melhor para nós. Hoje a minha relação com o meu filho é bem parecida: eles devem seguir minhas ordens (H03).

Durante a minha infância e adolescência, vi meu pai determinar o que precisava ser cumprido. Era o “patriarca”, o chefe da família, e ai de quem desobedecesse suas ordens. Tudo isso fez com que eu percebesse que, enquanto homem da casa, tenho que determinar as regras e elas devem ser cumpridas. Hoje faço a mesma coisa (H04).

O autoritarismo masculino a partir da imposição de condutas e regras estabelecidas pelo “patriarca” se apresenta no contexto familiar como um reforço do reconhecimento do homem enquanto o chefe da família. Segundo estudo realizado em Porto Alegre, Brasil, esse comportamento guarda relação com a responsabilização pelo provimento familiar, que ajuda a construir a ideação de que o homem detém o direito de estabelecer as normas da casa3535 Freitas DTL. "Família, melhor ter muita do que nenhuma": família, hierarquia e relações de poder em Porto Alegre (séc. XVIII e XIX). RBHCS 2016; 8(16):6-28.. Embora o poder aquisitivo favoreça a manutenção do posto de chefia, observa-se que esta, por si só, é uma característica considerada inerente ao ser masculino, não sendo raras as situações em que homens desempregados, sustentados por suas companheiras, decidem e ditam as normas familiares99 Connell RW, Messerschmidt JW. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Rev Estud Fem 2013; 21(1):241-282..

Assim, como também emergiu do estudo, esse constructo apreendido a partir da observação do comportamento paterno reproduz que ao masculino é atribuído o papel da tomada de decisão em relação às regras familiares, cabendo à mulher e aos filhos a condição de observância do que é imposto. Isso é corroborado em estudo realizado em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, com 108 homens autores de violência conjugal, que afirmam serem eles os responsáveis por ditar as regras da casa, cabendo à mulher e aos filhos a obediência, caso contrário, são punidos com violência3636 Marasca AR, Razera J, Pereira HJR, Falcke, D. Violência física conjugal sofrida e cometida por homens: repetindo padrões familiares? Psico-USF 2017; 22(1):99-108..

Detenção do poder sobre a mulher

A imposição de normas familiares nos permite compreender a detenção do poder sobre a mulher, mais um construto da masculinidade que emanou do estudo. Assim, ao presenciarem na infância e adolescência o comportamento marital ancorado no domínio feminino, expresso muitas vezes em um cotidiano de brigas e discussões, naturaliza-se e reproduz também o domínio sobre suas companheiras.

Minha adolescência foi marcada por brigas entre minha mãe e meu pai. Todas as vezes que ela pedia a separação, ele ficava desequilibrado, quebrava as coisas dentro de casa, dizia que iria se matar. [...] Eu acabei reproduzindo o que vivi nessa época. [...] todas as vezes que brigava com a minha ex-esposa, eu fazia chantagens, batia a porta, dava murro no guarda-roupa, dizia que iria matar a mim e meu filho (H12).

Era muito comum as brigas dentro de casa. Desde pequeno, eu sempre estive exposto a esse tipo de situação entre meu pai e minha mãe. Mesmo assim, ela não falava em separação, até porque poderia morrer porque meu pai não aceitaria isso. [...] Hoje eu percebo que faço a mesma coisa que meu pai fazia. Todas as vezes que eu e minha ex-companheira nos separávamos, ela sumia e eu ia atrás e a trazia à força. [...] uma vez a trouxe para casa amarrada e disse que nós não iríamos nos separar (H13).

Ratificando a subalternidade feminina em detrimento ao poder do homem, estudo nos EUA revela, ainda, que mulheres que não se submetem à ordem masculina são maltratadas por seus cônjuges99 Connell RW, Messerschmidt JW. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Rev Estud Fem 2013; 21(1):241-282.,3737 Heber A. 'You thought you were superman': violence, victimization and masculinities. Brit J Criminol 2017; 57:61-78.. No que diz respeito à violência contra a mulher, nosso estudo desvela a transgeracionalidade de tal conduta, que encontra consonância em estudo realizado no Rio Grande do Sul ao revelar que filhos que presenciam situações de brigas entre os pais em seus lares tornam-se adultos violentos com suas companheiras3838 Razera J, Cenci CMB, Falcke, D. Violência doméstica e transgeracionalidade: um estudo de caso. Revista de Psicologia da IMED 2014; 6(1):47-51..

Entre as situações que precipitam a violência, os achados sinalizam para a não aceitação, por parte dos homens, do fim da relação conjugal, o que traduz, na conjuntura de violência marital, o não direito da mulher em tomar tal decisão. Esse comportamento, aprendido ao observar a conduta do pai com a mãe, também foi reproduzido. Sabe-se que, em um cenário de poder masculino, não existe espaço para as mulheres tomarem decisões, e isso muitas vezes alimenta sua condição de subalternidade quanto às deliberações e sua aceitação de condutas corretivas, entre as quais a violência conjugal3939 Burckhart TR. Gênero, dominação masculina e feminismo: por uma teoria feminista do direito. RDD 2017; 26(47):205-224.. Sobre isso, nossos achados evidenciaram que, diante da decisão da mulher de romper a relação, os homens reagem de forma violenta, inclusive por meio de força física e ameaças de morte. Esse constructo do masculino, que favorece o entendimento de que a mulher é tida como um objeto de dominação masculina, descaracteriza-a enquanto sujeito de vontades e direitos3939 Burckhart TR. Gênero, dominação masculina e feminismo: por uma teoria feminista do direito. RDD 2017; 26(47):205-224.,4040 Bourdieu P. Esboço de autoanálise. São Paulo: Companhia das Letras; 2005..

Os atributos da masculinidade experienciados por homens em processo criminal por violência conjugal desvelados neste estudo encontram consonância em pesquisa que revela sua construção ancorada no antagonismo feminino, sobretudo por meio da normatização das práticas pautadas em virilidade, heteronormatividade, provisão do sustento material e moral da família, sexualidade exacerbada e força33 Vasconcelos ACS, Monteiro RJS, Facundes VLD, Trajano MFC, Gontijo DT. Became a man!: the construction of masculinities for adolescent participants of a project for the promotion of sexual and reproductive health. Saude Soc 2016; 25(1):186-197.,99 Connell RW, Messerschmidt JW. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Rev Estud Fem 2013; 21(1):241-282.. Nota-se, portanto, que os mesmos estão ancorados no modelo hegemônico, que introjeta nos meninos a configuração de homem opressor e dominador, desvelando a reprodução desses constructos vivenciados na infância e adolescência, desde seus aspectos mais sutis até casos mais graves.

Diante da reprodução de comportamentos apreendidos na infância e adolescência, fica notória a influência da família na constituição do ser homem dos participantes. Cabe ressaltar que a família é reconhecida enquanto uma instituição que compreende “um sistema de normas que regulam as relações entre os indivíduos e que definem como estas relações devem ser”33 Vasconcelos ACS, Monteiro RJS, Facundes VLD, Trajano MFC, Gontijo DT. Became a man!: the construction of masculinities for adolescent participants of a project for the promotion of sexual and reproductive health. Saude Soc 2016; 25(1):186-197.. Assim, por ser a primeira instituição com que o indivíduo tem contato, a família passa a ser a principal fonte de socialização e disseminação dos padrões e normas culturais a serem reproduzidas nas relações sociais4141 Costa R. Rituais familiares: práticas e representações sociais na construção da família contemporânea. Sociologia 2014; 28:81-102.. Assim sendo, os participantes da pesquisa, ao se relacionarem com figuras masculinas cujos constructos hegemonicamente se pautam no modelo dominante, aprendem e internalizam tal perfil como natural e buscam corresponder a esse ideal.

Considerações finais

Com base na oralidade masculina, os elementos constitutivos da masculinidade que foram ensinados na infância e na adolescência e reproduzidos por homens em processo criminal por violência conjugal perpassaram a infidelidade, a supervalorização do trabalho, a provisão familiar, a imposição de normas familiares e a detenção de poder em relação à mulher. Apesar de compreender que as diversas instâncias sociais influenciam na apreensão de comportamentos e atitudes de gênero, o presente estudo se limitou a analisar o contexto familiar, em especial a relação dos pais como casal, e como esta influenciou na formação da masculinidade dos participantes da pesquisa. Além disso, não foram entrevistados homens sem histórico de violência conjugal, pelo menos sem registros no espaço jurídico-policial. Os elementos elencados, enraizados no modelo hegemônico, podem estar justificando a transgeracionalidade da violência conjugal.

Tais constructos do masculino foram apreendidos pelos homens no ambiente familiar, a partir da observação e do incentivo da figura masculina de referência, principalmente o pai. Ressaltando que tal padrão interacional é passível de mudança, já que se trata de uma construção histórica, urgem ações preventivas direcionadas às crianças e aos adolescentes, pautadas na reflexão sobre a desmistificação de crenças ancoradas na desigualdade de gênero e com vistas à sensibilização a respeito da importância da adoção de novas condutas em suas relações sociais. Para além disso, este estudo contribui para a fundamentação de políticas públicas que se voltem para a desconstrução de paradigmas que sustentam a sociedade patriarcal. Além disso, evidencia a importância de trazer à tona o contexto das masculinidades para o campo da saúde coletiva.

Referências

  • 1
    Hadas M. The tricky 'true object': Bourdieu's masculine domination and historicity. Masculinities Soc Chang 2016; 5(3):210.
  • 2
    Forlin KA, Castro AVB, Alberton N, Fernandes FS. Marcas da maternidade: do ventre para a vida toda. Rev Bras Psicodrama 2019; 27(2):186-198.
  • 3
    Vasconcelos ACS, Monteiro RJS, Facundes VLD, Trajano MFC, Gontijo DT. Became a man!: the construction of masculinities for adolescent participants of a project for the promotion of sexual and reproductive health. Saude Soc 2016; 25(1):186-197.
  • 4
    Scott JW. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade 1990; 20(2):71-99.
  • 5
    Souza MDF, Altomar G, Manfrin SH. A construção social da masculinidade. ETIC - Encontro de Iniciação Científica [Internet] 2017 [acessado 2018 Nov 23]; 13(13). Disponível em: http://intertemas.toledoprudente.edu.br/index.php/ETIC/article/view/6227/5930
    » http://intertemas.toledoprudente.edu.br/index.php/ETIC/article/view/6227/5930
  • 6
    Coleman R. Sociology and the virtual: interactive mirrors, representational thinking and intensive power. The Sociological Review 2013; 61(1):1-20. Doi: 10.1111/1467-954X.12002
    » https://doi.org/10.1111/1467-954X.12002
  • 7
    Ferrer VA, Bosch E. Las masculinidades y los programas de intervención para maltratadores en casos de violencia de género en España. Masculinities and Social Change 2016; 5(1):28-51.
  • 8
    Paixão GPN, Pereira A, Gomes NP, Sousa AR, Estrela FM, Silva Filho URP, Araújo IB. Naturalização, reciprocidade e marcas da violência conjugal: percepções de homens processados criminalmente. Rev Bras Enferm 2017; 71(1):190-196.
  • 9
    Connell RW, Messerschmidt JW. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Rev Estud Fem 2013; 21(1):241-282.
  • 10
    Boris GDJB, Bloc LG, Teófilo MCC. Os rituais da construção da subjetividade masculina. O público e o privado 2012; 10(19):17-31.
  • 11
    Islam MJ, Mazerolle P, Broidy L, Baird K. Exploring the prevalence and correlates associated with intimate partner violence during pregnancy in Bangladesh. J Interpers Violence 2017; 36(1-2):663-690.
  • 12
    Fielding S. In quarantine with an abuser: surge in domestic violence reports linked to coronavírus [Internet]. The Guardian; 2020. [cited 2021 Jun 22]. Available from: https://www.theguardian.com/us-news/2020/apr/03/coronavirus-quarantine-abuse-domestic-violence
    » https://www.theguardian.com/us-news/2020/apr/03/coronavirus-quarantine-abuse-domestic-violence
  • 13
    Silva AF, Estrela FM, Soares CFS, Magalhães JRF, Lima NS, Morais AC. Elementos precipitadores/intensificadores da violência conjugal em tempo da Covid-19. Cien Saude Colet 2020; 25(9):3475-3480.
  • 14
    Meihy JCSB, Ribeiro SLS. Guia prático de história oral: para empresas, universidades, comunidades, famílias. São Paulo: Editora Contexto; 2011.
  • 15
    Scott JW. Gender: Still a useful category of analysis? Diogenes 2015; 57(1):7-14.
  • 16
    Scott JB, Oliveira IF. Perfil de homens autores de violência contra a mulher: uma análise documental. Rev Psicol da IMED 2018; 10(2):71-88.
  • 17
    Novaes RCP, Freitas GAP, Beiras A. A produção científica brasileira sobre homens autores de violência - reflexões a partir de uma revisão crítica de literatura. Barbarói 2019; 1(51):154-176.
  • 18
    Gomes NL, Laborne AAP. Pedagogia da crueldade: racismo e extermínio da juventude negra. Educ Rev; 34:e197406.
  • 19
    Weiser DA, Weigel DJ, Lalasz CB, Evans WP. Family background and propensity to engage in infidelity. Journal of Family Issues. 2015; 38(15):2083-2101.
  • 20
    Scheeren P, Apellaniz IAM, Wagner A. Infidelidade conjugal: a experiência de homens e mulheres. Temas Psicol 2018; 26(1):355-369.
  • 21
    Hearn J. Introduction: international studies on men, masculinities, and gender equality. Men and Masculinities 2014; 17(5):455-466.
  • 22
    Scott SB, Rhoades GK, Stanley SM, Allen ES, Markman HJ. Reasons for divorce and recollections of premarital intervention: implications for improving relationship education. Couple Family Psychol 2013; 2(2):131-145.
  • 23
    O'donnel SM, Maclntosh JÁ. Gênero e assédio moral no local de trabalho: experiências masculinas de sobrevivência ao bullying no trabalho. Sage Journals 2015; 26(3):351-366.
  • 24
    Reznik G, Massarani, LM, Ramalho M, Malcher MA, Amorim L, Castelfranchi Y. How teenagers apprehend science and the scientist profession? Rev Estud Fem 2017; 25(2):829-855.
  • 25
    Rosa M, Quirino R. Relações de gênero e ergonomia: abordagem do trabalho da mulher operária. HOLOS 2017; 33(5):345-359.
  • 26
    Leite JF, Dimenstein M, Dantas CB, Silva EL, Macedo JPS, Sousa AP. Lifestyle, mental health and gender conditions in rural contexts: a study within agraria reform settlements of northeastern Brazil. Av Psicol Latinoam 2017; 35(2):301-316
  • 27
    Barros CT, Gontijo DT, Lyra J, Lima LS, Monteiro EMLM. "Mas se o homem cuidar da saúde fica meio que paradoxal ao trabalho": relação entre masculinidades e cuidado à saúde para homens jovens em formação profissional. Saude Soc 2018; 27(2):423-434.
  • 28
    Comitê Científico do Núcleo Pela Infância, organizador. Importância dos vínculos familiares na primeira infância: estudo II. 1. ed. São Paulo: Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal; 2016.
  • 29
    Verza F, Sattler Mk, Strey MN. Mãe, mulher e chefe de família: perspectivas de gênero na terapia familiar. Pensando Fam 2015; 19(1):46-60.
  • 30
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estatística do Registro Civil 2016. Estat Reg Civ 2016; 43:1-8.
  • 31
    Madalozzo R, Blofield M. How low-income families in Sao Paulo reconcile work and family? Rev Estud Fem 2017; 25(1):215-226.
  • 32
    Choi SY, Cheung AK, Cheung YW, David R. Bring the subjective back in: resource and husband-to-wife physical assault among Chinese couples in Hong Kong. Violence Against Women 2014; 20(12):1428-1446.
  • 33
    Abade F, Romanelli G. Paternity and fathering in patrifocals families. Rev Estud Fem 2018; 26(2):e50106.
  • 34
    Carneiro JB, Gomes NP, Estrela FM, Santana JD, Mota RS, Erdmann AL. Violência conjugal: repercussões para mulheres e filhas(os). Esc Anna Nery 2017; 21(4):e20160346.
  • 35
    Freitas DTL. "Família, melhor ter muita do que nenhuma": família, hierarquia e relações de poder em Porto Alegre (séc. XVIII e XIX). RBHCS 2016; 8(16):6-28.
  • 36
    Marasca AR, Razera J, Pereira HJR, Falcke, D. Violência física conjugal sofrida e cometida por homens: repetindo padrões familiares? Psico-USF 2017; 22(1):99-108.
  • 37
    Heber A. 'You thought you were superman': violence, victimization and masculinities. Brit J Criminol 2017; 57:61-78.
  • 38
    Razera J, Cenci CMB, Falcke, D. Violência doméstica e transgeracionalidade: um estudo de caso. Revista de Psicologia da IMED 2014; 6(1):47-51.
  • 39
    Burckhart TR. Gênero, dominação masculina e feminismo: por uma teoria feminista do direito. RDD 2017; 26(47):205-224.
  • 40
    Bourdieu P. Esboço de autoanálise. São Paulo: Companhia das Letras; 2005.
  • 41
    Costa R. Rituais familiares: práticas e representações sociais na construção da família contemporânea. Sociologia 2014; 28:81-102.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2021
  • Aceito
    19 Nov 2021
  • Publicado
    21 Nov 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br