Diagnóstico e tratamento da sífilis em gestantes nos serviços de Atenção Básica

Mariane Andreza de Paula Luana Andrade Simões Jullye Campos Mendes Ed Wilson Vieira Fernanda Penido Matozinhos Tércia Moreira Ribeiro da Silva Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste artigo é avaliar as condições dos serviços de Atenção Básica (AB) brasileiros quanto a disponibilidade de testes rápidos (TR) para o diagnóstico precoce e de Benzilpenicilina (BZP) para o tratamento das gestantes com sífilis. Estudo transversal com dados dos serviços de AB que participaram do Programa de Melhoria da Qualidade da Atenção Básica. Os serviços que não dispunham de TR sempre disponível ou não dispunham de BZP em quantidade suficiente foram categorizados como “inadequados” e aqueles que dispunham de TR sempre disponível e de BZP em quantidade suficiente, como “adequados”. Foi realizada análise bivariada e estimados os Odds ratios com seus respectivos Intervalos de Confiança de 95%. A amostra incluiu 20.286 serviços de AB de todas as regiões do país. A prevalência de serviços com condições inadequadas para diagnóstico e tratamento da sífilis foi de 47,7%. A região Centro-Oeste e as cidades que não eram capitais apresentaram maiores prevalências de serviços de AB com condições inadequadas para diagnóstico e tratamento da sífilis em gestantes (p<0,05). Diferenças regionais e de localização dos serviços de AB impactam na disponibilidade de TR e de BZP.

Palavras-chave:
Sífilis congênita; Saúde Materno-Infantil; Atenção Primária à Saúde; Qualidade da Assistência à Saúde

Introdução

A sífilis congênita, doença infecciosa causada pelo Treponema Pallidum e transmitida verticalmente da gestante para o concepto, pode ocasionar o aborto, a prematuridade além de sequelas tardias que comprometem o pleno desenvolvimento infantil11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Protocolo Clínico e Diretrizes Terapeuticas para Atenção às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). Brasília: MS; 2020.. Estima-se que anualmente sejam notificados 930.000 casos de sífilis congênita no mundo, resultando em aproximadamente 350.000 desfechos adversos ao nascimento sendo a maioria deles, em países de baixa e média renda22 Organizacion Mundial de la Salud (OMS). 2018 Report on global sexually transmitted infection surveillance. Geneva: WHO; 2018.,33 Korenromp EL, Rowley J, Alonso M, Mello MB, Wijesooriya NS, Mahiané SG, Ishikawa N, Le LV, Newman-Owiredu M, Nagelkerke N, Newman L, Kamb M, Broutet N, Taylor MM. Global burden of maternal and congenital syphilis and associated adverse birth outcomes - Estimates for 2016 and progress since 2012. PLoS One 2019; 14:e0211720.. Em virtude da alta taxa de morbimortalidade e das repercussões clínicas da sífilis para a mãe e para o feto11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Protocolo Clínico e Diretrizes Terapeuticas para Atenção às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). Brasília: MS; 2020.,44 Ozelame JÉEP, Frota OP, Ferreira Júnior MA, Teston EF. Vulnerabilidade à sífilis gestacional e congênita: uma análise de 11 anos. Rev Enferm UERJ 2020; 28:50487., a Organização Mundial de Saúde estabeleceu estratégias para assegurar o diagnóstico e o tratamento das gestantes com sífilis, a fim de reduzir as taxas de sífilis congênita para menos de 50 casos por mil nascidos vivos em pelo menos 80% dos países do mundo, até o ano de 203022 Organizacion Mundial de la Salud (OMS). 2018 Report on global sexually transmitted infection surveillance. Geneva: WHO; 2018..

No Brasil, o Ministério da Saúde adotou estratégias para o aprimoramento da vigilância da sífilis em gestantes por meio da ampliação do acesso e da oferta dos testes rápidos para diagnóstico e rastreio das Infecções Sexualmente Transmissíveis no âmbito da Atenção Básica (AB)11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Protocolo Clínico e Diretrizes Terapeuticas para Atenção às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). Brasília: MS; 2020.. Os testes rápidos para triagem de sífilis são de fácil execução, baixo custo operacional, não requerem infraestrutura laboratorial e podem ser realizados durante as consultas pré-natal11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Protocolo Clínico e Diretrizes Terapeuticas para Atenção às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). Brasília: MS; 2020.. Além do apoio ao diagnóstico, o Ministério da Saúde viabilizou a oferta da benzilpenicilina benzatina nos serviços de AB para o tratamento das gestantes e das suas parcerias sexuais, sendo esta, a única medicação eficaz para a prevenção da transmissão vertical da sífilis55 Padovani C, Oliveira RR, Pelloso SM. Sífilis na gestação: associação das características maternas e perinatais em região do sul do Brasil. Rev Lat Am Enferm 2018; 26:e3019.. A combinação das estratégias de apoio diagnóstico e tratamento da sífilis durante a realização do pré-natal no âmbito da Atenção Primária em Saúde, aumenta as chances de sucesso no tratamento da sífilis congênita e reduz a exposição do feto ao Treponema pallidum11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Protocolo Clínico e Diretrizes Terapeuticas para Atenção às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). Brasília: MS; 2020.,66 Saraceni V, Pereira GFM, Silveira MF, Araujo MAL, Miranda AE. Vigilância epidemiológica da transmissão vertical da sífilis: dados de seis unidades federativas no Brasil. Rev Panam Salud Publica 2017; 41:1-8..

Contudo, a despeito das estratégias adotadas pelo Ministério da Saúde para o aprimoramento da vigilância da sífilis em gestantes, no período de 2009 a 2019, a taxa de sífilis congênita no Brasil passou de 2,1 para 9,0 casos por mil nascidos vivos, mas com diferenças regionais77 Brasil. Boletim Epidemiológico de Sífilis. 1ª ed. Brasília: MS; 2020.. Nas regiões Sul e Sudeste, no ano de 2019, foram registradas taxas de sífilis congênita superiores à média nacional, que foi de 8,2 casos por mil nascidos vivos77 Brasil. Boletim Epidemiológico de Sífilis. 1ª ed. Brasília: MS; 2020.. O aumento do número de centros de saúde nos últimos 30 anos no Brasil, acompanhado do aumento da cobertura populacional pela Estratégia Saúde da Família e equipes de AB, ampliou o acesso da população aos serviços, mas ainda perduram as desigualdades regionais da estrutura dos serviços de saúde88 Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, Laguardia J, Bellido JG. SUS: supply, access to and use of health services over the last 30 years. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1751-1762.

9 Soares Neto JJ, Machado MH, Alves CB. O programa Mais Médicos, a infraestrutura das unidades básicas de saúde e o Índice de desenvolvimento humano municipal. Cien Saude Colet 2016; 21(9):2709-2718.
-1010 Neves TCCL, Montenegro LAA, Bittencourt SDA. Produção e registro de informações em saúde no Brasil: panorama descritivo através do PMAQ-AB. Saude Debate 2014; 38:756-770.. Considerando que a precarização progressiva dos serviços AB podem influenciar o acesso das gestantes residentes no território de abrangência destes serviços1111 Vieira EW, Pimenta AM, Montenegro LC, Silva TMR. Structure and location of vaccination services influence the availability of the triple viral in Brazil. Reme Rev Min Enferm 2020; 24:1-6. e que as desigualdades regionais na alocação de recursos e investimentos no setor saúde1212 Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad Saude Publica 2004; 20:S190-S198. podem ter comprometido tanto a oferta quanto o acesso da população à triagem da sífilis, este estudo objetivou avaliar as condições dos serviços de AB brasileiros quanto a disponibilidade de testes rápidos para o diagnóstico e de benzilpenicilina benzatina para o tratamento da sífilis em gestantes.

Métodos

Trata-se de um estudo transversal, multicêntrico e de abrangência nacional, com dados secundários, de serviços de AB que participaram do terceiro ciclo das avaliações externas do Programa de Melhoria da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), do Ministério da Saúde1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade - Manual Instrutivo para as Equipes de Atenção Básica e Nasf. Brasília: MS; 2017.. O PMAQ-AB foi criado em 2011, para aprimoramento do Sistema Único de Saúde, visando ampliar o acesso e a qualidade da AB1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade - Manual Instrutivo para as Equipes de Atenção Básica e Nasf. Brasília: MS; 2017..

A coleta dos dados do terceiro ciclo das avaliações externas do PMAQ-AB aconteceu entre os meses de janeiro a dezembro de 2017 e de maio a agosto de 2018 e incluiu 30.347 serviços de AB, correspondendo a 95,36% do total de serviços de AB, localizadas em 5.324 municípios (95,6%) brasileiros1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade - Manual Instrutivo para as Equipes de Atenção Básica e Nasf. Brasília: MS; 2017.. Quanto à distribuição regional, 2.255 dos serviços que participaram do terceiro ciclo das avaliações externas do Programa de Melhoria da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) estavam localizados na região Norte, correspondendo a 94,6% do total de serviços desta região, 12.048 (95,6%) na região Nordeste, 2.145 (96,2%) na região Centro-Oeste, 8.331 (94,7%) na região Sudeste e 4.160 (95,8%) na região Sul1414 Meloni DR. Estratégias organizacionais para o acesso e integralidade da assistência na atenção primária à saúde [tese]. Ribeirão Preto: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto; 2020..

O banco de dados foi estruturado pelo próprio Ministério da Saúde e organizado em módulos: Módulo I, II e III sendo utilizado, para este estudo, o Módulo I, com dados relacionados às condições de infraestrutura, materiais, insumos e medicamentos da Unidade Básica de Saúde1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade - Manual Instrutivo para as Equipes de Atenção Básica e Nasf. Brasília: MS; 2017.. Os dados deste módulo foram coletados com questionário estruturado aplicado presencialmente ao profissional responsável pelo serviço avaliado. Também foi realizada vistoria guiada e checagem de registros no serviço, a fim de certificar as informações fornecidas no questionário. Os dados resultantes destes dois processos foram organizados e tabulados no programa Microsoft Excel 2016 e são de acesso aberto, disponíveis em: https://aps.saude.gov.br/ape/pmaq. A avaliação da consistência dos dados, após as coletas, foi realizada pelas instituições de ensino e pesquisa parceiras, sob a coordenação do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade - Manual Instrutivo para as Equipes de Atenção Básica e Nasf. Brasília: MS; 2017..

As seguintes perguntas foram selecionadas no Módulo I do PMAQ-AB: (1) Benzilpenicilina benzatina em quantidade suficiente? (2) Teste rápido para sífilis sempre disponível? com as respostas possíveis: sim/não. Para responder às perguntas deste estudo, foi criada a variável “condições inadequadas para diagnóstico e tratamento da sífilis”, a partir das perguntas 1 e 2, da seguinte forma: os serviços que apresentavam benzilpenicilina benzatina em quantidade suficiente e teste rápido para sífilis sempre disponível foram categorizados como “não”, por apresentarem condições adequadas de diagnóstico e tratamento da sífilis. Os serviços que não dispunham de teste rápido para sífilis e/ou não dispunham de benzilpenicilina benzatina em quantidade suficiente foram categorizados como “sim” por apresentarem condições inadequadas de diagnóstico e tratamento (Quadro 1).

Quadro 1
Composição da variável dependente “Condições inadequadas para diagnóstico e tratamento da sífilis” de acordo com as respostas dos serviços que foram incluídos neste estudo. Programa de Melhoria da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB). Brasil, 2019.

As variáveis independentes deste estudo foram escolhidas com base em estudos anteriores e de acordo com critérios teóricos1515 Figueiredo DCMM, Figueiredo AM, Souza TKB, Tavares G, Toledo Vianna RP. Relationship between the supply of syphilis diagnosis and treatment in primary care and incidence of gestational and congenital syphilis. Cad Saude Publica 2020; 36(3):e00074519.. Foram analisadas as características geográficas e de localização dos serviços de AB incluídos no estudo: Capitais (Sim/Não), Estados da Federação e Distrito Federal e regiões (Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste).

Para este estudo foram excluídos: 1) serviços que não responderam o Módulo I do PMAQ-AB; 2) serviços que não faziam a dispensação de Benzilpenicilina, sendo incluídos no estudo 20.286 serviços de AB (Figura 1).

Figura 1
Caracterização da população do estudo com base nos critérios de elegibilidade. Programa de Melhoria da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB). Brasil, 2019.

Os dados do Módulo I do PMAQ-AB foram transferidos para o software Statistical Package for the Social Science versão 20.0, e submetidos às análises estatísticas. Para a análise foi utilizado o software Statistical Package for the Social Sciences versão 26. Primeiramente, foram analisadas as condições para diagnóstico e tratamento da sífilis nos serviços que participaram do Programa de Melhoria da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), segundo características geográficas, considerando frequências absolutas e relativas. Posteriormente, foi realizada análise bivariada para mostrar diferenças entre a prevalência de serviços com condições inadequadas para diagnóstico e/ou tratamento da sífilis e as variáveis independentes por meio do teste Qui-quadrado de Pearson e intervalo de confiança (IC95%). Em todas as análises foi adotada a significância estatística de 5% (p≤0,05).

Resultados

A amostra incluiu 20.286 serviços de AB das cinco regiões do país sendo, a maioria deles, localizados na região Nordeste (50,4%) e em municípios que não eram capitais de Estado ou do Distrito Federal (91,3%). Quanto ao diagnóstico e ao tratamento da sífilis, 47,7% dos serviços não dispunham de quantidade suficiente e/ou não dispunham teste rápido para sífilis sempre disponível, sendo a região Centro-Oeste e as cidades que não eram capitais, responsáveis pelas maiores prevalências de serviços de AB com condições inadequadas para o diagnóstico e/ou o tratamento da sífilis (p<0,05) (Tabela 1).

Tabela 1
Condições inadequadas para diagnóstico e/ou tratamento da sífilis nos serviços que participaram do Programa de Melhoria da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), segundo Regiões e Unidades Federadas. Brasil, 2019.

Na análise bivariada, as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste apresentaram chance de oferecer serviços com condições inadequadas para diagnóstico e tratamento da sífilis superior àquela da região Sul, com destaque para a região Centro-Oeste, que apresentou 1,87 vezes (IC95% 1,62-1,91) a chance de oferecer serviços com condições inadequadas quando comparada à região Sul (p<0,05) (Tabela 2). O ranking das Unidades Federativas com maiores percentuais de serviços com condições inadequadas de diagnóstico e/ou tratamento de sífilis no Brasil está apresentado na Figura 2.

Tabela 2
Análise bivariada da prevalência de serviços de Atenção Básica com condições inadequadas para diagnóstico e tratamento da sífilis nos serviços que participaram do Programa de Melhoria da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), segundo Regiões e Unidades Federadas. Brasil, 2019.

Figura 2
Ranking de Unidades Federadas segundo o percentual de serviços que participaram do Programa de Melhoria da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) e apresentaram condições inadequadas de diagnóstico e/ou tratamento de sífilis. Brasil, 2019.

Os estados das regiões Norte apresentaram chance de serviços com condições inadequadas de diagnóstico e tratamento da sífilis que variou de 3,17 (IC95% 1,46-6,85) no estado de Roraima a 9,80 (IC95% 4,58-20,95) no estado do Acre (p<0,05).

Na região Nordeste, todos os estados apresentaram chances de serviços com condições inadequadas de diagnóstico e tratamento da sífilis superiores ao estado de Sergipe, sendo o estado do Piauí com 5,07 (IC95% 3,79-6,78) a chance de serviços com condições inadequadas de diagnóstico e tratamento da sífilis quando comparado ao estado de Sergipe (p<0,001).

Na região Sul, somente o estado do Paraná apresentou chance estatisticamente significativa de serviços com condições inadequadas de diagnóstico e tratamento da sífilis quando comparado ao estado de Santa Catarina, correspondendo a 2,46 (IC95% 2,07-2,93) (p<0,001).

Quando avaliada a localização dos serviços de AB, aqueles que não estavam localizados em capitais tiveram 1,70 (IC95% 1,53-1,88) a chance de condições inadequadas para diagnóstico e tratamento da sífilis quando comparados aos localizados nas capitais (p<0,001).

Discussão

Neste estudo foram avaliados 20.286 serviços de AB de todas as regiões do país, dos quais 47,7% apresentavam condições inadequadas para diagnóstico e tratamento da sífilis em gestantes sendo, 52,3% deles localizados na região Centro-Oeste e 48,8% em cidades que não eram capitais.

No Brasil, o acompanhamento pré-natal das gestantes é realizado nos serviços de AB e a precarização progressiva destes serviços pode influenciar no diagnóstico e tratamento da sífilis das gestantes1515 Figueiredo DCMM, Figueiredo AM, Souza TKB, Tavares G, Toledo Vianna RP. Relationship between the supply of syphilis diagnosis and treatment in primary care and incidence of gestational and congenital syphilis. Cad Saude Publica 2020; 36(3):e00074519.. O aumento do número de postos e centros de saúde nos últimos 30 anos, acompanhado do aumento da cobertura populacional pela Estratégia Saúde da Família e equipes de AB, ampliou o acesso da população aos serviços, mas ainda perduram as desigualdades regionais da estrutura dos serviços de saúde88 Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, Laguardia J, Bellido JG. SUS: supply, access to and use of health services over the last 30 years. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1751-1762.

9 Soares Neto JJ, Machado MH, Alves CB. O programa Mais Médicos, a infraestrutura das unidades básicas de saúde e o Índice de desenvolvimento humano municipal. Cien Saude Colet 2016; 21(9):2709-2718.
-1010 Neves TCCL, Montenegro LAA, Bittencourt SDA. Produção e registro de informações em saúde no Brasil: panorama descritivo através do PMAQ-AB. Saude Debate 2014; 38:756-770..

Neste estudo, as regiões Norte e Centro-Oeste apresentaram proporção de serviços com condições inadequadas para diagnóstico e tratamento da sífilis superior àqueles com condições adequadas. As diferenças regionais na disponibilidade do diagnóstico e tratamento da sífilis em gestante em serviços de AB foram apontadas por estudo transversal com dados do ciclo II do PMAQ-AB, que analisou a relação entre as ofertas de diagnóstico e tratamento da sífilis na AB1515 Figueiredo DCMM, Figueiredo AM, Souza TKB, Tavares G, Toledo Vianna RP. Relationship between the supply of syphilis diagnosis and treatment in primary care and incidence of gestational and congenital syphilis. Cad Saude Publica 2020; 36(3):e00074519.. Em 41,9% dos municípios avaliados, mais de 50% das equipes dos serviços de AB referiram administrar a benzilpenicilina benzatina, variando de 73,12% na região Norte a 22,71% no Sudeste. Quanto ao teste rápido, a maioria das equipes afirmou que realizava teste rápido para sífilis, sendo a menor frequência identificada na região Sudeste (56,61%) e a maior na região Norte (83,87%)1515 Figueiredo DCMM, Figueiredo AM, Souza TKB, Tavares G, Toledo Vianna RP. Relationship between the supply of syphilis diagnosis and treatment in primary care and incidence of gestational and congenital syphilis. Cad Saude Publica 2020; 36(3):e00074519.. Estes resultados diferem dos resultados encontrados por este estudo e que apontam a região Sul com a maior proporção de testes rápidos e tratamento da sífilis em gestantes dentre as regiões do Brasil. Esta diferença entre os resultados dos estudos está, possivelmente, associada às diferenças de delineamento metodológicas adotadas pelos estudos.

Embora as desigualdades regionais e municipais de estrutura e acesso dos serviços de AB sejam históricas e marcantes88 Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, Laguardia J, Bellido JG. SUS: supply, access to and use of health services over the last 30 years. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1751-1762.,99 Soares Neto JJ, Machado MH, Alves CB. O programa Mais Médicos, a infraestrutura das unidades básicas de saúde e o Índice de desenvolvimento humano municipal. Cien Saude Colet 2016; 21(9):2709-2718., estudos epidemiológicos sobre a sífilis congênita limitaram-se a investigar fatores individuais e do contexto familiar associados às taxas de sífilis em gestante ou congênita1616 Domingues RMSM, Leal MC. Incidência de sífilis congênita e fatores associados à transmissão vertical da sífilis: dados do estudo Nascer no Brasil. Cad Saude Publica 2016; 32(6):S0102-311X2016000605002.,1717 Dallé J, Baumgarten VZ, Ramos MC, et al. Maternal syphilis and accomplishing sexual partner treatment: still a huge gap. Int J STD AIDS 2016; 28(9):876-880.. Estudo transversal com dados do PMAQ-AB e do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos, que avaliou adequação do atendimento pré-natal oferecido nas capitais brasileiras e o diagnóstico da sífilis gestacional, apontou que o diagnóstico de sífilis foi mais prevalente dentre as gestantes em situação de vulnerabilidade, mulheres com baixa escolaridade, não brancas e adolescentes1818 Benzaken AS, Pereira GFM, Cunha ARC, Souza FMA, Saraceni V. Adequacy of prenatal care, diagnosis and treatment of syphilis in pregnancy: a study with open data from Brazilian state capitals. Cad Saude Publica 2019; 36:e00057219.. Quanto à sífilis congênita, a proporção foi sete vezes maior no grupo que não realizou nenhum pré-natal quando comparado à população geral1818 Benzaken AS, Pereira GFM, Cunha ARC, Souza FMA, Saraceni V. Adequacy of prenatal care, diagnosis and treatment of syphilis in pregnancy: a study with open data from Brazilian state capitals. Cad Saude Publica 2019; 36:e00057219..

Neste estudo, a maioria dos estados brasileiros apresentou alta prevalência de serviços de AB com condições inadequadas para diagnóstico e tratamento da sífilis, impedindo a identificação precoce e o tratamento oportuno das gestantes com sífilis. Pesquisa que analisou a relação entre as ofertas de diagnóstico e tratamento da sífilis em serviços de AB e as incidências de sífilis gestacional e congênita revelou que a incidência de sífilis gestacional foi superior em municípios com maior oferta de teste rápido, apontando o aumento na capacidade de detecção da sífilis quando o município tem oferta de diagnóstico88 Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, Laguardia J, Bellido JG. SUS: supply, access to and use of health services over the last 30 years. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1751-1762.. Quanto à sífilis congênita, observou-se redução da transmissão vertical dentre as equipes com oferta dos testes rápidos e de penicilina, demonstrando relação destas ações com a redução das taxas de sífilis congênita nos municípios avaliados1515 Figueiredo DCMM, Figueiredo AM, Souza TKB, Tavares G, Toledo Vianna RP. Relationship between the supply of syphilis diagnosis and treatment in primary care and incidence of gestational and congenital syphilis. Cad Saude Publica 2020; 36(3):e00074519..

Além da disponibilidade da benzilpenicilina benzatina nos serviços de AB, ressalta-se a recusa dos profissionais em administrar o medicamento, sob alegação da escassez de recursos técnicos e humanos nos serviços de AB para atendimento de reações anafiláticas associadas à benzilpenicilina benzatina. No ano de 2017, o Conselho Federal de Enfermagem liberou a aplicação da benzilpenicilina benzatina nos serviços de AB1919 Conselho Federal de Enfermagem (COFEN). Parecer Normativo Nº 003/2017/COFEN [Internet]. 2017 [acessado 2021 out 6]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/parecer-normativo-no-0032017_51061.html.
http://www.cofen.gov.br/parecer-normativ...
. Outro motivo para a não administração da benzilpenicilina benzatina em serviços de AB pode estar relacionada ao desabastecimento deste medicamento ocorrido em 2014. Por meio de uma Nota Técnica, o Ministério da Saúde comunicou a aquisição emergencial e distribuição da penicilina a partir do primeiro semestre de 20162020 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Nota Informativa no 006/2016 - GAB/DDAHV/SVS/MS [Internet]. 2016 [acessado 2021 out 6]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/legislacao/nota-informativa-no-0062016-gabddahvsvsms.
http://www.aids.gov.br/pt-br/legislacao/...
,2121 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Agenda de Ações Estratégicas para Redução da Sífilis no Brasil/Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. 1ª ed. Brasília: MS; 20217., o que pode ter impactado na disponibilidade da benzilpenicilina benzatina nos serviços de AB à época da coleta de dados do ciclo III do PMAQ-AB.

Nas áreas rurais, os serviços de saúde estão frequentemente localizados a longas distâncias das residências da população, o que onera o deslocamento, dificulta o acesso e resulta em menor procura pelos serviços de saúde2222 Esposti CDD, Santos-Neto ET, Oliveira AE, Travassos C, Pinheiro RS. Desigualdades sociais e geográficas no desempenho da assistência pré-natal de uma Região Metropolitana do Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(5):1735-1750.,2323 Arruda NM, Maia AG, Alves LC. Inequality in access to health services between urban and rural areas in Brazil: A disaggregation of factors from 1998 to 2008. Cad Saude Publica 2018; 34(6):e00213816. Ademais, a escassez na oferta dos serviços de saúde nas áreas rurais reflete as desigualdades históricas na alocação de recursos destinados à saúde no Brasil23 e estão em consonância com os resultados encontrados por este estudo, uma vez que os serviços de AB que não estão localizados em capitais tiveram maiores chances de apresentarem condições inadequadas de diagnóstico e tratamento da sífilis em gestantes quando comparados aos serviços localizados em capitais.

Por fim, ressalta-se a limitação inerente à natureza da análise de dados secundários, pois os dados disponíveis não foram coletados especificamente para responder às questões desta pesquisa e, portanto, algumas variáveis que não foram coletadas ou estão omitidas do banco de dados poderiam ter favorecido a compreensão do objeto desta pesquisa. Todavia, ressalta-se o rigor da coleta dos dados da PMAQ-AB do Ministério da Saúde, a utilização de uma base de dados de abrangência nacional e o elevado tamanho amostral deste estudo.

Salienta-se que as diferenças regionais e de localização dos serviços de AB impactam na disponibilidade de teste rápido e de benzilpenicilina benzatina, comprometendo o diagnóstico e o tratamento da sífilis em gestantes. Os resultados deste estudo reforçam, portanto, a necessidade de estratégias para diagnóstico e tratamento da sífilis em gestantes nos serviços de AB, a fim de reduzir a transmissão vertical da sífilis.

Referências

  • 1
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Protocolo Clínico e Diretrizes Terapeuticas para Atenção às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). Brasília: MS; 2020.
  • 2
    Organizacion Mundial de la Salud (OMS). 2018 Report on global sexually transmitted infection surveillance. Geneva: WHO; 2018.
  • 3
    Korenromp EL, Rowley J, Alonso M, Mello MB, Wijesooriya NS, Mahiané SG, Ishikawa N, Le LV, Newman-Owiredu M, Nagelkerke N, Newman L, Kamb M, Broutet N, Taylor MM. Global burden of maternal and congenital syphilis and associated adverse birth outcomes - Estimates for 2016 and progress since 2012. PLoS One 2019; 14:e0211720.
  • 4
    Ozelame JÉEP, Frota OP, Ferreira Júnior MA, Teston EF. Vulnerabilidade à sífilis gestacional e congênita: uma análise de 11 anos. Rev Enferm UERJ 2020; 28:50487.
  • 5
    Padovani C, Oliveira RR, Pelloso SM. Sífilis na gestação: associação das características maternas e perinatais em região do sul do Brasil. Rev Lat Am Enferm 2018; 26:e3019.
  • 6
    Saraceni V, Pereira GFM, Silveira MF, Araujo MAL, Miranda AE. Vigilância epidemiológica da transmissão vertical da sífilis: dados de seis unidades federativas no Brasil. Rev Panam Salud Publica 2017; 41:1-8.
  • 7
    Brasil. Boletim Epidemiológico de Sífilis. 1ª ed. Brasília: MS; 2020.
  • 8
    Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, Laguardia J, Bellido JG. SUS: supply, access to and use of health services over the last 30 years. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1751-1762.
  • 9
    Soares Neto JJ, Machado MH, Alves CB. O programa Mais Médicos, a infraestrutura das unidades básicas de saúde e o Índice de desenvolvimento humano municipal. Cien Saude Colet 2016; 21(9):2709-2718.
  • 10
    Neves TCCL, Montenegro LAA, Bittencourt SDA. Produção e registro de informações em saúde no Brasil: panorama descritivo através do PMAQ-AB. Saude Debate 2014; 38:756-770.
  • 11
    Vieira EW, Pimenta AM, Montenegro LC, Silva TMR. Structure and location of vaccination services influence the availability of the triple viral in Brazil. Reme Rev Min Enferm 2020; 24:1-6.
  • 12
    Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad Saude Publica 2004; 20:S190-S198.
  • 13
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade - Manual Instrutivo para as Equipes de Atenção Básica e Nasf. Brasília: MS; 2017.
  • 14
    Meloni DR. Estratégias organizacionais para o acesso e integralidade da assistência na atenção primária à saúde [tese]. Ribeirão Preto: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto; 2020.
  • 15
    Figueiredo DCMM, Figueiredo AM, Souza TKB, Tavares G, Toledo Vianna RP. Relationship between the supply of syphilis diagnosis and treatment in primary care and incidence of gestational and congenital syphilis. Cad Saude Publica 2020; 36(3):e00074519.
  • 16
    Domingues RMSM, Leal MC. Incidência de sífilis congênita e fatores associados à transmissão vertical da sífilis: dados do estudo Nascer no Brasil. Cad Saude Publica 2016; 32(6):S0102-311X2016000605002.
  • 17
    Dallé J, Baumgarten VZ, Ramos MC, et al. Maternal syphilis and accomplishing sexual partner treatment: still a huge gap. Int J STD AIDS 2016; 28(9):876-880.
  • 18
    Benzaken AS, Pereira GFM, Cunha ARC, Souza FMA, Saraceni V. Adequacy of prenatal care, diagnosis and treatment of syphilis in pregnancy: a study with open data from Brazilian state capitals. Cad Saude Publica 2019; 36:e00057219.
  • 19
    Conselho Federal de Enfermagem (COFEN). Parecer Normativo Nº 003/2017/COFEN [Internet]. 2017 [acessado 2021 out 6]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/parecer-normativo-no-0032017_51061.html
    » http://www.cofen.gov.br/parecer-normativo-no-0032017_51061.html
  • 20
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Nota Informativa no 006/2016 - GAB/DDAHV/SVS/MS [Internet]. 2016 [acessado 2021 out 6]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/legislacao/nota-informativa-no-0062016-gabddahvsvsms
    » http://www.aids.gov.br/pt-br/legislacao/nota-informativa-no-0062016-gabddahvsvsms
  • 21
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Agenda de Ações Estratégicas para Redução da Sífilis no Brasil/Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. 1ª ed. Brasília: MS; 20217.
  • 22
    Esposti CDD, Santos-Neto ET, Oliveira AE, Travassos C, Pinheiro RS. Desigualdades sociais e geográficas no desempenho da assistência pré-natal de uma Região Metropolitana do Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(5):1735-1750.
  • 23
    Arruda NM, Maia AG, Alves LC. Inequality in access to health services between urban and rural areas in Brazil: A disaggregation of factors from 1998 to 2008. Cad Saude Publica 2018; 34(6):e00213816

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2021
  • Aceito
    05 Abr 2022
  • Publicado
    07 Abr 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br