Os grandes marcos da saúde pública no Império e a vida cotidiana em São Paulo: 1820-1870

Rafael Mantovani Sobre o autor

Resumo

Este artigo pretende focar três preocupações da saúde pública do século XIX em São Paulo para demonstrar que os grandes marcos legislativos ou as importantes epidemias do período - tratados como decisivos pela historiografia - tiveram pouca ou nenhuma importância sobre os processos sociais que impulsionaram mudanças longe da capital. As três preocupações paulistanas que serão tratadas são a prisão, o cemitério e o comércio de víveres. Por se tratar de um raciocínio bastante divergente do que hoje se entende como saúde pública, o artigo iniciará com uma discussão acerca do pensamento sobre salubridade no século XIX, e também sobre o anacronismo que muitas vezes permeia os estudos a esse respeito. Em seguida, se focará sobre a prisão, que era uma questão de primeira ordem quanto à saúde pública no século XIX, e mais ainda em São Paulo (e possivelmente em todo o Brasil), onde havia um grande trânsito entre o interior das prisões e o espaço urbano. Logo após, será tratada a questão dos cemitérios, que se apresentava também como um tema muito importante de saúde pública, mas que esbarrava no poder eclesiástico e por isso gerava tensão. Por fim, a questão dos víveres, que era em São Paulo o item menos consoante com as demandas modernas de saúde.

Palavras-chave:
Marcos historiográficos; Lei das Câmaras; Junta Central de Higiene; Política local de saúde; São Paulo

Introdução

Com base na documentação local de São Paulo, pretende-se demonstrar como as elites locais lidavam com algumas questões primordiais de salubridade, que envolviam o matadouro, o cemitério, os açougues, a regulação da cachaça, o controle das boticas (atuais farmácias), dos curandeiros, os alagamentos da Várzea do Carmo, o leito do rio Tamanduateí e o controle da cadeia. Contudo, serão focadas três questões - a prisão, o cemitério e o comércio de víveres - para averiguar se haveria alguma relação com dois grandes marcos do período: a legislação de 1828 sobre as câmaras e a criação da Junta Central de Higiene em 1850.

A história contada por grandes feitos tem os seus encantos. Qual seria o fascínio de contar uma história de continuidades, de mudanças paulatinas? Os grandes acontecimentos sempre tiveram um fascínio maior, afinal, trata-se da possibilidade de pensar sobre rupturas no passado e conjeturar possibilidades para o futuro.

Com relação à história da saúde pública, coisa parecida acontece. Por exemplo: em 1828, foi estabelecida a Lei das Câmaras. Devido ao fim da Fisicatura, nela previa-se que as câmaras municipais passariam a ser as responsáveis pela política local de saúde, ainda que fosse determinado que seriam órgãos meramente administrativos. Logo, assim analisa a historiografia, tudo teria mudado. Ou seja, a Fisicatura-mor deixou de praticar o enorme poder que exercia anteriormente e as câmaras municipais teriam começado a realizar o seu papel de “médicas das cidades”. Outro exemplo: em 1850, com os surtos epidêmicos, especialmente de febre amarela, é criada a Junta Central de Higiene. O poder médico que as câmaras locais teriam obtido em 1828 cessaria, pois seria alocado à Junta, no centro político do Império, o Rio de Janeiro. Passava a ser sua atribuição propor as medidas profiláticas necessárias para combater as epidemias que deveriam se transformar em Posturas Municipais por todo o Império.

Nesse caso, não se trata exatamente de uma história contada por meio de grandes feitos políticos e/ou militares, mas de reorganizações legislativas (a “Lei das Câmaras”, de 1828) e catástrofes sanitárias (pela volta da febre amarela ao território brasileiro em 1849). Contudo, esta interpretação incorre em três erros: o primeiro deles é que supõe que necessariamente o que aparece na lei aparece no mundo cotidiano. O segundo é que generaliza para um território enorme um problema local. Por fim, mistura a nossa concepção atual de saúde pública com o que era entendido como saúde pública à época.

Com relação ao primeiro ponto, é sempre importante lembrar que uma lei é um esforço de imposição de mudança no mundo social ou, muitas vezes, uma cristalização legal de algo que já existia. Exemplificando:

[Na Nova França, atual Quebec] se teve por muito tempo a impressão de que os primeiros habitantes da colônia eram bastante devotos, praticantes e respeitosos da Igreja e da ordem estabelecida. Falava-se também dos inúmeros decretos de intendentes e mandamentos de bispos tocando diversos aspectos da vida cotidiana, como prova de que o Estado e o clero exerciam uma forte influência sobre os habitantes, em matéria de prática religiosa e de moralidade. No entanto, uma leitura mais crítica desses últimos documentos possibilita construir uma imagem bem diferente dos habitantes de Nova França. Assim, por exemplo, parece mais prudente concluir que se um bispo pede a seu clero para proibir os “fiéis” de beberem ou de brigarem durante a missa, é porque, efetivamente, alguns se comportam dessa maneira na igreja. Se o bispo é obrigado, ano após ano, a repetir os mesmos mandamentos, é porque os habitantes não mudaram de comportamento, apesar das advertências, o que fornece outra imagem do grau de autoridade exercida pela Igreja sobre seus “fieis” [...]11 Cellard A. A análise documental. In: Poupart J, Deslauriers, JP, Groulx L, Laperrière A, Mayer R, Pires A, organizadores. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes; 2008. (p. 301).

Ou seja, se hoje lemos “não pise na grana”, os historiadores do futuro deverão interpretar que efetivamente se pisava na grama. Quando os órgãos fiscalizadores tentaram coibir os curandeiros, o que fica evidenciado não é que os médicos detinham poder e prestígio diante da população em geral, mas, ao contrário disso, que a população de fato se consultava com curandeiros. Por outro lado, quando uma legislação nova surge determinando incumbências, isso não significa que só a partir de então é que a incumbência foi assumida, ela pode ter sido simplesmente regularizada.

Quanto ao segundo ponto, a generalização, trata-se de uma tendência a transformar o território do Império em um grande Rio de Janeiro. Assim, a relação entre os órgãos de fiscalização e o poder local seria como era na capital, as epidemias teriam acontecido como na capital, da mesma forma que as respostas aos surtos epidêmicos e as políticas de saúde pública teriam sido como lá. Contudo, se a febre amarela causou pânico e desastres entre os cariocas, o único registro que temos na câmara da capital paulista é o do dia 9 de abril de 1850:

A V.S. Revma. roga à Câmara Municipal desta Imperial Cidade que preces sejam feitas a fim de se impetrar a clemência do Todo Poderoso a cessação do flagelo epidêmico que devasta a Capital do Império e outras Províncias dele e para que o mesmo flagelo se não toquem [sic.] a esta e outras Províncias ainda não contaminadas22 São Paulo (Cidade). Archivo Municipal de S. Paulo. Registro geral da câmara municipal de São Paulo: 1846-1851. v. XXXIV. São Paulo: Typographia Piratininga, 1945. (p. 222) (o português de toda a documentação histórica citada foi atualizado).

A cidade de Santos também seria afetada neste surto epidêmico, mas a capital paulista passaria incólume. Em São Paulo, as políticas de saúde mudaram nesse momento? Certamente modificações legais e novas determinações foram feitas, mas isso significa que teria havido mudanças nas redes de assistência pelo Império? Mais do que isso: devido aos surtos epidêmicos e à existência da Junta Central, as práticas sanitárias locais das outras províncias e cidades teriam se alterado?

O terceiro e último equívoco: confundir o que entendemos hoje como política de saúde com o que era entendido como salubridade naquela época. Se médicos e demais profissionais relacionados à saúde não estavam em busca de vírus e bactérias, contra o que lutavam? Bem, apesar não se tratar de apenas um inimigo contra o qual se podia lutar, no Brasil os miasmas - partículas pútridas que causariam doenças infecciosas - se tornaram os inimigos número um. Portanto, discutir onde deveriam ficar os açougues era cuidar da saúde pública. Verificar as condições do matadouro da cidade, acabar com os pântanos, também. Estabelecer um cemitério afastado do centro, de maneira que os mortos não fossem mais enterrados dentro das Igrejas, foi uma das grandes cruzadas científicas que os médicos estabeleceram com os párocos. E uma das grandes preocupações médicas do século XIX foi o cuidado com a cadeia, um dos grandes focos urbanos de doenças contagiosas. A prisão havia sido um tema importante na produção científica de um dos primeiros sanitaristas franceses de prestígio, René Villermé (1782-1863), e foi também na dos estudantes de direito brasileiros33 Revista da Sociedade Philomatica. São Paulo: Typographia do Novo Farol Paulistano; 1833. Edição fac-similar. São Paulo: Metal Leve S.A.; 1977..

Muitas dessas mudanças realizadas em São Paulo dizem mais respeito a idiossincrasias locais, como as peculiaridades dos costumes, da autoimagem, da topografia, do leito dos rios (que sempre foi uma questão importante para as autoridades locais), do dinheiro disponível e dos acordos políticos do que à obediência à legislação nacional. Havia demandas, expectativas, teorias disponíveis para justificá-las e alguma premiação para quem as suprisse. Os processos sociais são mais lentos e enfadonhos do que a imagem histórica feita a partir de marcações de feitos heroicos.

Nesse sentido, este artigo se pretende decepcionante e frustrante: por meio de alguns dos temas da saúde pública da época, mostrar o maçante trilho das mudanças paulatinas, que se guiam muito pouco (ou nada) por esses grandes marcadores temporais. Com base na documentação local de São Paulo, pretende-se notar como as elites locais lidavam com algumas questões primordiais de salubridade, que envolviam o matadouro, o cemitério, os açougues, a regulação da cachaça, o controle das boticas (atuais farmácias), dos curandeiros, os alagamentos da Várzea do Carmo, o leito do rio Tamanduateí e o controle da cadeia. Contudo, focaremos três: a prisão, o cemitério e o comércio de víveres.

O que era saúde pública?

Em tom de ironia, Chalhoub44 Chalhoub S. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras; 1996. afirma que enquanto infeccionistas e contagionistas permaneciam gritando uns com os outros - a própria Junta Central de Higiene estava dividida no início dos anos 1850 -, os mosquitos continuavam a escolher, segundo seus critérios próprios, as vítimas de suas refeições sangrentas, e assim confundiam inteiramente as evidências científicas dos contendores (p. 68).

O que o autor pretende demonstrar aqui seria a patente incompetência dos “homens sisudos” - como ele se refere em seguida aos médicos - ao se portarem como homens de seu tempo, em vez de terem aderido a um paradigma científico que ainda não estava disponível.

Na mesma toada, em um dos pouquíssimos estudos sobre higienismo em São Paulo antes da era bacteriológica, Celestino55 Giordano C. Ações sanitárias na imperial cidade de São Paulo: mercados e matadouros [dissertação]. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas; 2006. diz que, no período em questão, os limitados conhecimentos científicos, sobretudo no que se refere à propriedade do ar, permitem um conjunto de convicções, dentre elas a de que as emanações, os miasmas, infectam o ar e incubam as epidemias, suscitando uma epidemiologia que levaria a uma política higienista para as cidades sem precedentes (p. 8).

Teria havido uma regulamentação jurídica por meio das Posturas Municipais para evitar “supostos miasmas” e regular comportamentos55 Giordano C. Ações sanitárias na imperial cidade de São Paulo: mercados e matadouros [dissertação]. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas; 2006. (p. 10).

Além do anacronismo, muitas vezes, ao se falar sobre a ciência do passado, os estudos parecem se apoiar na “verdade” do vírus diante da “mentira” do miasma, e se esquecem que a ciência é um conhecimento humano que, como qualquer outro, possui suas regras de legitimação e depende de acordos sociais, pautados também na crença, para a sua sustentação. Estudos que pretendem entender os processos históricos não colocam em xeque a existência de Deus quando o assunto são as Cruzadas, não questionam a efetiva divindade dos reis taumaturgos66 Bloch M. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras; 1993. ou a relação factual entre o feiticeiro e os espíritos do bem e do mal. Mas, por se tratar de ciência, pesquisadores acabam se esquecendo de importantes cautelas com relação ao pensamento evolucionista, que é a base desse tipo de raciocínio: o que sabemos hoje seria a verdade com relação ao mundo natural e tudo o que existiu antes teria sido crendice, superstição, erro. Não nos esqueçamos que, na base na ciência, estão as fortes convicções que criam as resistências que promovem a adesão do investigador pelo treino dentro do paradigma77 Kuhn T. A função do dogma na investigação científica. Curitiba: UFPR-SCHLA; 2012..

Em fins do século XIX, prevaleceu o paradigma bacteriológico, e é o que se mantém até os dias de hoje. Antes disso, porém, durante mais de dois milênios, prevaleceu o paradigma ambientalista: primeiramente sistematizado por Hipócrates (460 a.C.-370 a.C.), reformulado por Galeno de Pérgamo (129-200?), que adequou a teoria pneumática com a humoral. Foi esse “hipocratismo galênico”, atualizado nos termos da economia animal do vitalismo, que adentraria o século XIX88 Edler FC, Freitas, RC. O "imperscrutável vínculo": corpo e alma na medicina lusitana setecentista. Varia Hist 2013; 29(50):435-452.. A medicina era holística e a sua relação causal era multifatorial, o que significa dizer que não havia uma ontologia da doença: uma série de fatores ambientais, humorais e sociais poderia adoecer, assim como uma enfermidade poderia se transformar em outra.

Para a saúde pública especificamente, os miasmas apareciam como os grandes inimigos a serem combatidos. A preponderância da preocupação com os miasmas na análise da salubridade de uma localidade começou a ser colocada em xeque pelas estatísticas da primeira geração de sanitaristas franceses, entre eles Louis René Villermé (1782-1863) e Alexandre Parent du-Châtelet (1790-1836). Entretanto, ainda que eles tenham demonstrado em seus estudos que, se os miasmas existissem, eles seriam cientificamente irrelevantes99 La Berge A. Mission and method: the early nineteenth-century French public health movement. Cambridge: Cambridge University Press; 1992. (p. 223-225), o controle dessas partículas pútridas continuou a ser a principal tarefa de engenheiros sanitários das cidades do século XIX. Ainda que questionados pelos estudos desses primeiros higienistas que apontavam outras causas para o adoecimento e morte (causas sociais, principalmente a pobreza), primava-se pelas reformas que retiravam do centro da cidade os matadouros, os açougues, dessecavam pântanos, proibiam o secular costume de enterrar os mortos dentro das igrejas.

Por outro lado, Villermé se interessou pelas condições das prisões francesas. Ele entendia a cadeia como um microcosmo da cidade, podendo tomá-la como uma espécie de laboratório do espaço urbano1010 Coleman W. Death is a social disease: public health and political economy in early industrial France. Madison: The University of Wisconsin; 1982. e de suas potenciais insalubridades.

À exceção do pensamento que conectava saúde pública e condições sociais, São Paulo importou todas essas preocupações: tanto a miasmática, que previa um cuidado especial com o ordenamento urbano, quanto a que dizia respeito à situação dos presos, afinal, em São Paulo - como em todo o império português -, a cadeia ficava embaixo da câmara municipal, no mesmo prédio, e servia também como corretivo pontual de infrações de escravos. Além de que os presos eram usados pela municipalidade como mão de obra. Portanto, o trânsito entre interior e exterior da prisão era constante e algumas doenças contagiosas, como varíola, sarampo e lepra, tinham aí seu foco privilegiado1111 Mantovani R. Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840). Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017.,1212 Mantovani R. A prisão em São Paulo no início do século XIX. Rev Hist 2018; 177: a00817..

São Paulo era conhecida, no século XIX, como uma cidade extremamente limpa. Todos os viajantes relataram a salubridade do local. Isso provavelmente se dá devido ao etos militar que a cidade possuía: era trânsito e residência de homens em armas na defesa da fronteira sul da colônia portuguesa, e depois do império brasileiro. Desde o século XVIII, fiscais da cidade saíam em “correição geral”, ou seja, fiscalizavam o asseio e puniam a imundície. Contudo, até os anos 1820, esse cuidado atendia mais à decência, ao ornamento ou mesmo à aclamação nas festividades: tratava-se de uma limpeza como demonstração de aristocracia. É com a chegada de João Carlos de Oyenhausen-Gravenburg (1776-1838) para governar a capitania que a limpeza se vincula à saúde pública: as imundícies não seriam sinal de decadência moral, mas um problema ao bem-estar físico1111 Mantovani R. Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840). Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017.,1313 Mantovani R. A administração paulistana de saúde pública na primeira metade do século XIX. In: Schraiber L, Mota A, Marinho MG., organizadores. Educação, medicina e saúde: tendências interdisciplinares, vol. 10. Santo André: UFABC; 2018..

Além do combate às imundícies, os debates sobre a localização ideal do cemitério público, do matadouro, dos curtumes, sobre os enterramentos dentro das igrejas, dos toques dobrados dos sinos da igreja, do bom estado de comidas e bebidas, da cachaça, das boticas, são todos referentes à saúde pública da época e se desenvolviam de acordo com ocorrências e demandas locais. Esses temas eram tratados entre província e cidade, uma tentando fazer a outra se responsabilizar financeiramente pelo assunto. Apenas em um assunto a cidade precisou se submeter ao poder central: a fiscalização por parte do Protomedicato e da Fisicatura-mor, que dizia respeito mais à extorsão do que efetivamente zelo público1414 Pimenta TS. Médicos e cirurgiões nas primeiras décadas do século XIX no Brasil. Almanack 2019; 22:88-119..

O cuidado em distinguir e legitimar os diferentes ofícios médicos, fiscalizando seu exercício, parece resumir a tarefa da administração médica do Reino para com os povos da Colônia. A Fisicatura procura se fazer próxima e presente, através de um pesado dispositivo burocrático, na qualidade de instância última de decisão. [...] Trata-se de fiscalizar os fiscalizadores, de punir não apenas os infratores mas os seus juízes. Uma situação de desmando da própria administração, que contraria os interesses da Corte, está na origem das determinações do regimento [de 1744, que regula a Fisicatura-mor no Brasil]1515 Machado R, Loureiro A, Luz R, Muricy K. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1978. (p. 33).

O que parece ser confirmado pela documentação paulistana: depois de alguns pedidos reiterados para que a corte enviasse mais médicos e cirurgiões, em 29 de janeiro 1811, a Câmara enviava um pedido para que fossem abrandadas as leis sobre regulação de drogas. Não havia droguistas na cidade, por isso eram os mercadores que as vendiam. Tampouco se poderia exigir receita de doentes que vinham de tão longe, como costumava acontecer. Os vereadores pediam que as leis se adequassem às necessidades de saúde locais1616 São Paulo (Cidade). Archivo Municipal de S. Paulo. Registro geral da câmara municipal de São Paulo: 1808-1813. v. XIV. São Paulo: Typographia Piratininga; 1922. (p. 345-351). De todas as tarefas que diziam respeito à saúde pública, essa fiscalização das artes de curar era a única em que a cidade estava submetida ao poder central. Contudo, como já mencionado, essa relação dizia mais respeito às formas de distribuição de prestígio e subornos dentro das categorias médicas.

Agora que já sabemos o que era entendido como preocupações de saúde pública no século XIX, vamos observar a história do cuidado sanitário na cidade de São Paulo focando três questões: a prisão, o cemitério e o comércio de víveres (que envolvia o mercado, o matadouro e os açougues). Ao contar resumidamente a enfadonha história dessas três preocupações administrativas da cidade, notaremos que os grandes marcos historiográficos dizem pouco - ou nada - com relação às ações da edilidade.

A prisão

A prisão é um caso interessante, pois tinha um impacto muito maior sobre a saúde da cidade em São Paulo do que em Paris, mas as condições eram tão ou mais degradantes. E é claro que precisaria ser degradante para cumprir seu papel: como se pretendia uma instituição de castigo, precisaria impor uma situação de maior privação do que a vida fora dela, e a vida fora dela era uma sociedade escravocrata. Assim, o castigo precisaria ser brutal1111 Mantovani R. Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840). Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017.,1212 Mantovani R. A prisão em São Paulo no início do século XIX. Rev Hist 2018; 177: a00817.. Portanto, a prisão estava em uma encruzilhada entre o que ela deveria ser de acordo com a lei e o que ela precisaria representar estruturalmente em uma sociedade escravista. Isso aparece nas comissões de fiscalização - que era uma exigência da lei de 1828 -, o que nos revela mais uma evidência da nulidade da Lei das Câmaras com relação à cidade.

O artigo 56 determinava o seguinte: Em cada reunião, nomearão uma comissão de cidadãos probos, de cinco pelo menos, a quem encarregarão a visita das prisões civis, militares, e eclesiásticas, dos cárceres dos conventos dos regulares, e de todos os estabelecimentos públicos de caridade para informarem do seu estado, e dos melhoramentos, que precisam1717 Presidência da República. Lei de 1o de outubro de 1828. [acessado 2021 nov 1]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-1-10-1828.htm
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Ano após ano, as comissões foram formadas e foram escritos relatos horrorizados com relação à situação calamitosa das diversas instituições disciplinares que a Câmara precisava examinar. Inspecionava, apontava os problemas e ponto. O artigo 56 estava sendo cumprido: tratava-se de fiscalizar e apontar os melhoramentos. Até que a comissão de setembro de 1836 resolveu escrever o seguinte:

Muito poderíamos dizer sobre o estado natural de cada uma das prisões, mencionando seus inconvenientes, observando o desproporcionado número de presos que em cada uma delas se encontra, e pedindo alguma reforma e melhoramento. Julgamos, porém, isso inútil e não queremos cansar a atenção da Câmara, com aquilo que tantas outras Comissões têm dito, e sobre o que nenhuma providência se há dado1818 Sant'Anna N. Documentário histórico, vol. 2. São Paulo: Prefeitura de São Paulo; 1951. (p. 113).

A lei exigiu relatórios, logo relatórios foram feitos e arquivados, o que não significou nenhuma melhoria nas instituições. As mudanças, ao contrário, ocorreram de acordo com anseios locais e possibilidades financeiras.

A prisão era, segundo todas as fontes, um local imundo, foco de doenças contagiosas e uma espécie de depósitos de indivíduos pobres e escravos com problemas com a lei, onde se misturavam pessoas saudáveis com indivíduos em estágio tão avançado de lepra que os dedos já haviam caído. Até os anos 1830, eram alimentados uma vez ao dia e nem todos conseguiam comer. Os presos de galés eram usados para obras pela cidade, como já mencionado. Em alguns momentos do século XIX eles receberam por isso, em outros momentos, não. Nos momentos em que receberam, eles pagavam pela sua comida e, portanto, quando não trabalhavam, não comiam1111 Mantovani R. Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840). Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017.,1212 Mantovani R. A prisão em São Paulo no início do século XIX. Rev Hist 2018; 177: a00817..

A situação muda com a entrada de Rafael Tobias de Aguiar (1794-1857) em 1831 e com as inúmeras convulsões que estavam ocorrendo na prisão. Havia constantes tentativas de arrombamento, que, somadas ao clima de medo dos anos 1830 (devido à abdicação de D. Pedro I e a enorme ameaça da cólera que já se encontrava em estado de pandemia), exigia constantemente a atenção da câmara. Rafael Tobias de Aguiar então determinou a alimentação duas vezes ao dia, e durante o seu governo não é registrada a utilização dos galés para os serviços municipais. O que retornaria com força no final da década.

O sustento dos presos pobres passa a ser um assunto bastante debatido entre Câmara e província nos anos 1840. Passa a haver todo um cuidado sobre os valores pagos pelos alimentos. Os presos de galés continuam a ser usados em obras pela cidade, mas as autoridades locais decidiram tomar importantes atitudes com relação à saúde dos presos: a primeira delas é tornar a prisão das mulheres uma enfermaria (havia a reclamação constante em relação ao local onde os presos doentes eram atendidos) em outubro de 184822 São Paulo (Cidade). Archivo Municipal de S. Paulo. Registro geral da câmara municipal de São Paulo: 1846-1851. v. XXXIV. São Paulo: Typographia Piratininga, 1945. (p. 138).

Em novembro de 1849, o presidente da Câmara a consulta sobre objetos necessários aos cultos, como altares, para que os presos não sejam privados da assistência divina22 São Paulo (Cidade). Archivo Municipal de S. Paulo. Registro geral da câmara municipal de São Paulo: 1846-1851. v. XXXIV. São Paulo: Typographia Piratininga, 1945., e em outubro do mesmo ano, o cirugurião-mor João Thomas de Mello é designado como responsável pela saúde dos presos22 São Paulo (Cidade). Archivo Municipal de S. Paulo. Registro geral da câmara municipal de São Paulo: 1846-1851. v. XXXIV. São Paulo: Typographia Piratininga, 1945. (p. 190).

A correspondência entre Câmara e província sobre comida, remédios e cuidados médicos se avoluma no final dos anos 1840. Enfim, em maio de 1851, decidiam-se os detalhes para a iluminação do interior da prisão22 São Paulo (Cidade). Archivo Municipal de S. Paulo. Registro geral da câmara municipal de São Paulo: 1846-1851. v. XXXIV. São Paulo: Typographia Piratininga, 1945. (p. 291), e em junho resolveram asfaltar seu interior22 São Paulo (Cidade). Archivo Municipal de S. Paulo. Registro geral da câmara municipal de São Paulo: 1846-1851. v. XXXIV. São Paulo: Typographia Piratininga, 1945. (p. 305). No ano seguinte, 1852, apareceria em São Paulo a Casa de Correção, que, assim como a prisão, serviria como depósito não apenas de condenados, “mas também vadios, menores, órfãos, escravos, africanos ‘livres’”1919 Salla F. As prisões em São Paulo: 1822-1940. São Paulo: Annablume, Fapesp; 2006. (p. 66).

Cemitério

As conversas sobre o terreno ideal para o cemitério começaram logo depois da promulgação da lei de 1828 e foram abandonadas até julho de 1849, alguns meses antes da chegada da febre amarela. Portanto, ainda que os primeiros procedimentos tenham aparecido com a nova legislação, pouco se pode deduzir a respeito da retomada desse debate na cidade. Não foi devido às ameaças da febre amarela, que ainda nem havia chegado. E prosseguiu-se debatendo após 1850, depois da nova mudança de legislação, até que finalmente se encontrou a localização considerada ideal e se construiu o cemitério, onde permanece até os dias de hoje.

Uma hipótese que podemos levantar é que, diante da turbulência nacional dos anos 1830 e das mudanças políticas locais do início dos anos 1840, somadas aos grandes problemas da prisão que pareciam longe de serem resolvidos, a questão do cemitério se configurava mais do que secundárias para as autoridades locais. É a partir de uma relativa pacificação desses temas que se volta a falar de cemitérios, matadouros e açougues - estabelecimentos que, de acordo com a saúde pública da época, representavam perigo à atmosfera e precisariam ser retirados dos centros urbanos. Em 1852, é construído um novo matadouro, mais afastado do centro da cidade do que o anterior, e em 1858, o cemitério público, para impedir o sepultamento dentro das igrejas.

Voltando ao começo: em setembro de 1829, a Câmara nomeia três médicos para indicar o melhor local para enterrar os mortos: Justiniano de Mello Franco (1774-1839), Candido Gonçalves Gomide (1788?-1853) e Líbero Badaró (1798-1830)2020 São Paulo (Cidade). Archivo Municipal de S. Paulo. Registro geral da câmara municipal de São Paulo: 1829-1830. v. XX. São Paulo: Typographia Piratininga; 1923. (p. 139). Outras comissões foram nomeadas para tratar com o bispo diocesano, a quem provavelmente não parecia muito interessante compartilhar seu poder sobre as almas com o novo conhecimento médico que acusava os problemas dos corpos mortos tão próximos dos vivos. Além dessa questão, havia outra com que os médicos estavam muito preocupados: o abuso no uso dos sinos. O uso inadequado da ferramenta que anunciava a morte, segundo os médicos, causava muitos males:

[...] cefaleia, abatimento, opressão da região precordial, ansiedade, anorexia, asfixia, pressão baixa, resultando em ataques epilépticos, histéricos e outros. O dobre dos sinos causaria profunda depressão nervosa, sobretudo no Brasil, “onde, pela influência climática, poucos indivíduos são fleugmáticos, possuindo a maior parte de seus habitantes um temperamento nervoso, que os torna muito impressionáveis”. Os sinos ainda alteravam as faculdades intelectuais e morais, tornando os prudentes coléricos, os alegres melancólicos, os atentos distraídos e os polidos grosseiros2121 Reis JJ. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras; 1991. (p. 265).

Primeiro os médicos tentavam dessacralizar da morte, e posteriormente interferir de maneira direta na comunicação dos párocos com a cidade.

Em maio de 1835, a prática foi disciplinada de fora da sacristia: os sinais deveriam ser breves e distintos. Caso fosse homem, três; mulher, dois; menor, apenas um. Quando enterrados, não se poderiam exceder nove caso fosse homem; seis, se mulher, e três no caso de menor de idade. Aquele que não respeitasse as determinações seria “punido com oito dias de prisão, e vinte mil reis de multa por cada um sinal ou dobre de sinos que exceder aos marcados na mesma Constituição, e o duplo nas reincidências”2222 São Paulo (Cidade). Archivo Municipal de S. Paulo. Registro geral da câmara municipal de São Paulo: 1835. v. XXV. São Paulo: Typographia Piratininga; 1938. (p. 121).

Demorou muitos anos para se voltar a falar sobre o cemitério com as autoridades eclesiásticas. Não temos como saber se o assunto foi atravancado também pela resistência dos padres, mas podemos suspeitar que sim. O que efetivamente podemos afirmar é que, nos registros locais, outros problemas traziam mais preocupação aos vereadores. Mas quando as questões mencionadas da prisão arrefeceram, a câmara foi questionar, em julho de 1849, o fabriqueiro da Matriz da Penha se ali havia cemitério próprio, distante da povoação, e, em caso negativo, que fornecesse um plano de edificação em lugar apropriado22 São Paulo (Cidade). Archivo Municipal de S. Paulo. Registro geral da câmara municipal de São Paulo: 1846-1851. v. XXXIV. São Paulo: Typographia Piratininga, 1945. (p. 175). Em 28 de maio de 1850, a Câmara nomeava dois vereadores para indicarem o melhor lugar para o cemitério22 São Paulo (Cidade). Archivo Municipal de S. Paulo. Registro geral da câmara municipal de São Paulo: 1846-1851. v. XXXIV. São Paulo: Typographia Piratininga, 1945. (p. 236-237).

No dia 14 de agosto do mesmo ano, a Câmara escrevia que, “cumprindo com uma de suas atribuições que lhe confere o § 2º do artigo 66, título 3 da Lei de 1º de outubro de 1828”22 São Paulo (Cidade). Archivo Municipal de S. Paulo. Registro geral da câmara municipal de São Paulo: 1846-1851. v. XXXIV. São Paulo: Typographia Piratininga, 1945. (p. 249), tinha a honra de comunicar o terreno designado. A discussão sobre o assunto retomava na cidade no crepúsculo da legislação sobre a responsabilidade da Câmara a respeito da saúde pública, mas ela era usada como elemento legitimador. E a discussão seguiria no decorrer da década de 1850 e o cemitério começaria a funcionar em 1858.

Fiscalização de víveres, casinhas e matadouro

Como já mencionado, São Paulo era vista como uma cidade bastante limpa pelos viajantes. Menos no que dizia respeito ao comércio de comida. Saint-Hilaire mencionou que, nas “casinhas” onde se vendiam diversos gêneros alimentícios, não se deveria procurar limpeza e ordem2323 Saint-Hilaire A. Viagem à província de São Paulo. Belo Horizonte, São Paulo: Itatiaia, Edusp; 1976. (p. 181), e as próprias autoridades locais notavam que havia um descompasso entre as práticas de transporte e armazenamento, especialmente da carne, e as condutas que se esperavam em uma cidade civilizada. Diante do pedido de que as regras (as chamadas Posturas) sobre transporte de carne fossem abrandadas, o presidente da província não julgava admissível a pretensão de vários marchantes desta cidade que requereram à Câmara Municipal que houvesse de suspender a execução das Posturas que prescrevem asseio na condução da Carne, na venda da mesma e não vendo que haja nas ditas Posturas causa alguma inexequível, quanto mais impossível, e considerando que o fim dessas é acabar com a maneira nojenta e asquerosa com que é transportada a carne para os açougues, e com a imundície com que neles está exposta, e que assaz demonstra a nenhuma Polícia e cuidado da saúde pública, reenvia a mencionada representação à Câmara Municipal para que a indefira, e faça executar com todo o rigor as determinações das novas Posturas22 São Paulo (Cidade). Archivo Municipal de S. Paulo. Registro geral da câmara municipal de São Paulo: 1846-1851. v. XXXIV. São Paulo: Typographia Piratininga, 1945. (p. 145-146).

A indignação é sintomática, pois advém de uma personagem de um local conhecido pela limpeza e cujas autoridades se legitimavam no poder também pela manutenção do clima salubre1111 Mantovani R. Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840). Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017.. E, curiosamente, mostra a intenção de trazer esses elementos considerados inadequados para a urbanidade civilizada: a “polícia” não é a força repressiva que conhecemos hoje, o presidente se refere à polidez, à civilidade e à urbanidade que estavam ausentes no trato com a carne e que prejudicava a “coisa pública”.

A história sobre fiscalizações, controles e mudanças dos gêneros alimentícios se demarca aqui pelas Posturas de 1820, passa pela finalização da construção do Mercado Municipal em 1867 e termina em 1887, quando foi inaugurado o terceiro matadouro da cidade no século XIX (local hoje ocupado pela Cinemateca).

Até 1867, quando foi terminado o mercado municipal, as casinhas eram o local mais importante de comércio da cidade. Pelas ruas em que elas se encontravam estavam as quitandeiras, que, segundo relatos da época (Saint-Hilaire é um exemplo), estorvariam o trânsito e causariam tumulto e imundície.

Havia uma forte fiscalização que, embora não conseguisse coibir a presença das quitandeiras e disciplinar plenamente o espaço, mostrava-se presente2424 Dias MO. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense; 1984.. O primeiro conjunto de Posturas do século XIX, transcrito na documentação da câmara em 1820, apresentava três itens a esse respeito: o 7º dizia que os vendedores ambulantes de mantimentos e gêneros eram obrigados a apregoar o que vendiam; o 11º especificava que os vendedores ambulantes deveriam ter medidas específicas, com multa de 6 mil réis no caso de descumprimento; e o 14º dava o controle de ambulantes e gêneros vendidos nas casinhas ao juiz almotacel. Em 1830, um novo conjunto de Posturas torna mais pesada a punição para quem falsificasse os pesos e as medidas e vendesse gêneros corrompidos ou falsificados: de quatro a oito dias de prisão1111 Mantovani R. Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840). Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017.,1313 Mantovani R. A administração paulistana de saúde pública na primeira metade do século XIX. In: Schraiber L, Mota A, Marinho MG., organizadores. Educação, medicina e saúde: tendências interdisciplinares, vol. 10. Santo André: UFABC; 2018..

Em 1838, aparecem as Posturas referentes às feiras: elas deveriam ser feitas em dias comerciais, a partir das 7h, na Praça do Carmo. As Posturas garantiam que haveria um fiscal para averiguar o estado dos gêneros expostos e também a exatidão das pesagens, além de que a própria Câmara forneceria pesos e medidas gratuitamente2525 São Paulo (Cidade). Atas da Câmara da Cidade de S. Paulo: 1838. v. XXXI. São Paulo: Prefeitura de São Paulo; 1937. (p.148-149).

Com o crescimento da cidade, o matadouro das proximidades do rio Jacareí se tornava insuficiente, e nos anos 1840, juntamente com a análise sobre o melhor local para o cemitério, passou-se a avaliar qual seria o melhor lugar para o matadouro. Concluiu-se a favor da rua Humaitá, ao lado do Anhangabaú (hoje rua 23 de Maio), a ser construído pelo engenheiro Bresser por 12:8000$00022 São Paulo (Cidade). Archivo Municipal de S. Paulo. Registro geral da câmara municipal de São Paulo: 1846-1851. v. XXXIV. São Paulo: Typographia Piratininga, 1945. (p. 164), obra concluída em 1852.

Ao final da década, iniciava-se a construção do Mercado Municipal, que é paralisada, retomada em 1865 e terminada em 186755 Giordano C. Ações sanitárias na imperial cidade de São Paulo: mercados e matadouros [dissertação]. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas; 2006. (p. 106). Procurava-se pôr um fim ao eterno problema com os ambulantes e trazer São Paulo para a modernidade também no que dizia respeito ao mercado de alimentos. Contudo, tanto o matadouro quanto o mercado se mostrariam insuficientes em um espaço relativamente curto de tempo: um novo matadouro na Vila Mariana seria construído em 1887 e um novo Mercado Municipal terminaria de ser construído em 1933. As autoridades não poderiam prever a velocidade de crescimento da cidade no final do século XIX, e menos ainda a do século seguinte.

Considerações finais

São Paulo teria outras questões importantes de saúde pública além das mostradas aqui: a cidade sofria bastante com as inundações da Várzea do Carmo e com o rio Tamanduateí. Há muitas indicações de tentativas de dessecação, retificação, aterramento e canalização durante o século XIX. A Câmara também passou a fiscalizar as boticas depois de 1828. Começava a dar atenção especial também à cachaça nos anos 1840. Porém, destacar aqueles três aspectos, com foco entre 1820 e 1870, mostra-nos que os processos sociais que disseram respeito à saúde pública no século XIX não se vincularam aos grandes marcos estabelecidos. Para compreender esses processos, é necessário levar em conta a documentação da vida cotidiana.

As atenções à prisão variaram de acordo com os medos sociais ou valores humanitários do presidente da província que assumia. Em alguns momentos, os presos estavam submetidos à mais brutal privação, incluindo alimentar. Em outros momentos, devido aos motins e às posições de Rafael Tobias de Aguiar, procurou-se aliviar a carestia alimentar dos presos em alguma medida, sendo tampouco usados como galés nas reformas urbanas. Em outro momento, eles voltariam a ser usados como galés, embora novas reformas viessem a ser realizadas na prisão. Mas tudo isso se deveu a questões internas de São Paulo, não a determinações legais ou do poder central.

O mesmo se pode dizer quanto ao cemitério, que teve mais relação com o trato que a administração pública tinha com o pároco local do que com alguma indicação da Corte. É bem verdade que a discussão aparece na documentação da cidade no momento logo em seguida à legislação de 1828, mas só retoma poucos anos antes de 1850. Foi antes da Junta Central que as discussões avançaram, e o cemitério foi finalizado em 1858. Ou seja: anos antes da Junta, os administradores públicos começaram a se resolver com as autoridades eclesiásticas, o que dispensaria as Posturas a esse respeito que pudessem vir da Junta.

No que se refere aos víveres, as casinhas eram objeto de preocupação e fiscalização desde, ao menos, 1820, quando as Posturas já traziam regulações que lhes diziam respeito. As outras decisões importantes da cidade são as Posturas sobre as feiras de 1838, a construção do novo matadouro na rua Humaitá em 1852, a finalização do novo mercado em 1867, a construção do novo matadouro que substituiria o da rua Humaitá em 1887. Todas essas mudanças foram devidas aos processos sociais e ao crescimento da própria cidade: necessidade de regular os itens vendidos a um mercado consumidor cada vez maior, organizar a venda em espaços maiores, assim como afastar o matadouro - entendido como pernicioso à saúde pública pela exalação de miasmas - para fora da cidade. Contudo, o que era longe e fora da cidade, em outro momento passa a não ser mais, devido ao seu crescimento, o que faz com que outra localidade ainda mais afastada tenha que ser escolhida. Mais uma vez: não haveria como a Junta Central de Higiene ter qualquer relevância nesse processo. E isso, assim como os outros temas tratados neste artigo, eram preocupações de primeira ordem da saúde pública do século XIX, apesar de parecer estranho hoje em dia.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2022
  • Aceito
    21 Mar 2022
  • Publicado
    23 Mar 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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