A “realidade do saber e da habilidade que se inculca”: clima, médicos e saúde pública no Brasil, 1808-1835

Ricardo Cabral de Freitas Flavio Coelho Edler Sobre os autores

Resumo

Esse artigo analisa os esforços de construção de espaços próprios à intelectualidade médica no Brasil a partir da transferência da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro em 1808, passando pelo processo de independência do país, até a criação da Academia Imperial de Medicina, em 1835. A partir dessas iniciativas, procurou-se afirmar a proeminência do saber médico-científico diante das práticas de cura tradicionais, bem como uma agenda higiênica para a nação independente, fortemente atrelada à legitimação de uma expertise local sobre a climatologia brasileira. Ao longo desse processo, algumas lideranças médicas envolvidas buscavam afirmar a convergência entre o discurso higiênico e os interesses do Estado imperial nascente, ao mesmo tempo em que anunciavam renovar os mecanismos de legitimação da carreira que, supostamente, passavam a se dar pelo mérito científico em detrimento dos favorecimentos clientelares típicos do Antigo Regime.

Palavras-chave:
Clima; História da saúde pública; Brasil; Academia Imperial de Medicina

Introdução

Normalmente, quando se pensa no processo de independência do Brasil, o principal marco legal é a Constituição de 1824. Este foi o instrumento que organizou o Estado e criou as bases do poder político que revogou paulatinamente a legislação do Antigo Regime em um contexto de afirmação de um ideário liberal. No entanto, literatura variada tem salientado que a saúde dos povos já havia se afirmado como tema fundamental desde o século do Iluminismo, em especial para as monarquias absolutistas, quando novas teorias mercantilistas passaram a defender que a riqueza das nações dependia crucialmente da vida dos indivíduos produtivos, reunidos como um povo.

No contexto do Império português, informações médicas e botânicas dos territórios coloniais, registradas por viajantes, funcionários, colonos, médicos e cirurgiões, tiveram a preocupação de erigir um conhecimento sistemático, dando ensejo aos estudos sobre a higiene das cidades. Na tradição das topografias médicas, a desordem urbana foi eleita como responsável pela circulação dos mais diversos elementos infecciosos presentes nos costumes, objetos, espaços, ares e solo. Os debates sobre o adensamento urbano e os usos nocivos desse espaço giravam em torno das noções de insalubridade e salubridade, suscitando, como veremos, considerável produção literária voltada a esquadrinhar e controlar as causas dessa nova fonte de insegurança.

Este artigo enfoca o contexto no qual algumas lideranças médicas buscavam afirmar a convergência entre o discurso higiênico e os interesses do Estado imperial nascente no campo sanitário. O fio condutor serão os esforços de construção de espaços próprios à intelectualidade médica no Brasil, a partir dos quais se procurou afirmar a proeminência do saber médico-científico diante das práticas de cura tradicionais, bem como uma agenda higiênica para a nação independente, fortemente atrelada à legitimação de uma expertise local sobre a climatologia brasileira. Nosso maior esforço analítico se concentrará no período que se estende dos primeiros estudos sobre o clima e as doenças no Rio de Janeiro, promovidos pela elite ilustrada luso-brasileira a partir da transferência da Corte de Lisboa para o Brasil em 1808, passando pelo processo de independência do país, até a criação da Academia Imperial de Medicina, em 1835.

“Em sinal de gratidão, amor, respeito”: o estabelecimento de uma elite médica na corte joanina

A chegada da Corte ao Rio de Janeiro deu novo impulso às investigações acerca do clima e das enfermidades na América Portuguesa. Contudo, com a colônia alçada a capital do Império, não se tratava mais de trazer funcionários reais da metrópole para pesquisar as especificidades da colônia, mas sim de fazê-lo por meio de uma intelectualidade instalada na nova sede do Império. As medidas sanitárias rarefeitas que marcaram a administração colonial até então deram lugar a uma progressiva institucionalização tanto dos meios de fiscalização das práticas de cura e do comércio e produção de remédios quanto da produção de conhecimento que embasavam a políticas de saúde.

A criação de uma Escola Médico-Cirúrgica na Bahia (1807), e outra no Rio de Janeiro (1808), bem como a reativação da Fisicatura-mor foram alguns dos pontos de destaque da nova fase no âmbito da saúde. O novo regimento da Fisicatura dava maior ênfase à saúde da população e à polícia médica do que à concessão de benefícios aos seus oficiais. Também previa um maior controle da venda de medicamentos pelas boticas e lojas de drogas. Outra inovação foi a criação da Provedoria-mor de saúde, responsável pela fiscalização sanitária de portos, embarcações, passageiros e mercadorias que chegavam à cidade11 Pimenta TS. Artes de curar: um estudo a partir dos documentos da Fisicatura-mor no Brasil do começo do século XIX [dissertação]. Campinas: Unicamp; 1997..

Aos olhos europeus, o Rio de Janeiro da época da chegada da Corte estava longe do que poderia ser considerado uma capital de um Império pluricontinental. Ruas tortuosas e insalubres, além de uma marcante presença da pobreza e dos milhares de escravizados que transitavam em seus espaços públicos22 Karasch M. Slave life in Rio de Janeiro, 1808-1850. Princeton: Princeton University Press; 1987

3 Malerba J. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência, 1808-1821. São Paulo: Companhia das Letras; 2000.
-44 Schultz K. Versalhes tropical: império, monarquia e a corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2008.. Para isso, o poder régio tornou-se incentivador de propostas de reforma entre a intelectualidade que se enraizava na cidade no bojo das transformações. A obra Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro, escrita por Manuel Vieira da Silva, foi um dos símbolos da nova fase, na qual a questão da salubridade pareceu ocupar lugar de destaque. Foi uma das primeiras obras publicadas pela Imprensa Régia, em 1808, criada ainda durante o primeiro ano de estadia do poder real na cidade. Outra publicação de destaque daqueles tempos foi a Memória sobre o enxugo geral desta cidade do Rio de Janeiro, de 1815, escrita pelo arquiteto José Joaquim de Santa Anna. Ambas tomavam como base princípios da climatologia para compreender as especificidades climáticas da capital que davam origem às doenças observadas, consideradas um entrave ao projeto modernizador.

Apesar da vocação similar, do ponto de vista teórico, ambas estavam distantes das antigas obras galênicas publicadas no século XVII por Morão e Rosa55 Freitas RC. Curas químicas para males galênicos: plantas e minerais no tratamento de febres em João Curvo Semedo. Bol Mus Para Emilio Goeldi Cienc Hum 2022; 17(1):e20200132.. Agora já incorporavam referências a variações de temperatura e umidade relativa na cidade ao longo do ano. As referências galênicas e mágico-astrológicas também já haviam sido substituídas por outro vocabulário médico. Procuravam-se os efeitos do clima sobre as fibras que constituíam os órgãos humanos e suas alterações no estado moral dos indivíduos. Buscava-se também soluções arquitetônicas que pudessem garantir a renovação eficaz dos ares da cidade e evitar as supostas emanações pútridas originadas nos pântanos que cercavam a nova capital.

Febres, varíola e disenteria estavam entre as doenças que afetavam a população de forma renitente naqueles tempos, e mesmo membros da Corte não estavam a salvo dos flagelos66 Freitas RC. Ardentes trópicos: febres e saúde pública no Brasil joanino. Hist Cienc Saude-Manguinhos 2020; 27(3):723-740.. Em 1813, o jornal O Patriota, um periódico de vida curta, porém veículo de importantes trabalhos científicos na época, publicou os resultados de uma consulta da Câmara da cidade do Rio de Janeiro a respeito das doenças endêmicas e epidêmicas da capital. Originalmente, a solicitação havia sido feita em 1798, mas suas respostas foram publicadas nos fascículos do jornal só 15 anos mais tarde. A edição apresentava os trabalhos dos médicos Manoel Joaquim Marreiros, Antonio Joaquim Medeiros e Bernardino Antônio Gomes77 Kury LB. Iluminismo e império no Brasil: O Patriota, 1813-1814. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.. Os autores indicaram o calor e a umidade como as causas principais da insalubridade, secundadas pela imundice, o alagamento das ruas e terrenos, as chuvas copiosas, impurezas do ar, além das causas morais e dietéticas. Os três estudos se enquadram no gênero de literatura científica conhecido como topografia médica. Esses estudos climatológicos postulavam ser o meio ambiente climático e telúrico um modificador complexo dos processos fisiológicos, e portanto origem de diversas patologias. O corpo era percebido como um sistema de interações dinâmicas com o meio ambiente. Tanto a saúde como a doença seriam o resultado da interação entre uma constituição individual particular e um meio ambiente circunstancial.

Outro personagem de destaque nesse período foi José Maria Bomtempo. Chegou ao Rio de Janeiro no mesmo ano que a Família Real, depois de servir à Coroa durante sete anos na África Ocidental. Não muito depois de seu desembarque, foi nomeado diretor da recém-criada Escola de Anatomia e Cirurgia, sendo também autor dos regulamentos da instituição. Escreveu a Memória sobre algumas enfermidades do Rio de Janeiro, em 1814, na qual dissecou o clima e a geografia da capital buscando seus efeitos nefastos sobre os corpos dos habitantes88 Bomtempo JM. Trabalhos médicos offerecidos à majestade do Senhor D. Pedro I. Rio de Janeiro: Typographia Nacional; 1825.. Condenou os morros de Santo Antônio e do Castelo, dois dos principais da cidade, como entraves à boa circulação do ar. Também apontou as matas do entorno da área urbana como causa do aumento da umidade local, o que também favoreceria a proliferação de doenças.

Parte da obra é dedicada às febres. Bomtempo sustentava que as chamadas malignas, supostamente frequentes na cidade, não passariam de essenciais, menos nocivas. Justifica que as doenças mortíferas no Brasil apresentariam “febre geral”, sem afetar diretamente as funções “que imediatamente dizem relação à vida”, ou seja, cérebro, respiração ou circulação88 Bomtempo JM. Trabalhos médicos offerecidos à majestade do Senhor D. Pedro I. Rio de Janeiro: Typographia Nacional; 1825. (p. 16-18).

Em 1820, a Imprensa Regia publicou um trabalho intitulado Prolegômenos, que, como indica o próprio termo, pretendia servir de introdução a um conjunto de observações que se seguiriam, a cada trimestre, sobre as moléstias endêmicas da cidade do Rio de Janeiro. Seu autor, Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto, cirurgião da Câmara Real, buscava registar “as diferentes causas que podem influir, direta ou indiretamente, na saúde dos indivíduos que a habitam e dos seus efeitos sobre a economia animal”99 Peixoto DRG. Prolegomenos, dictados pela obediência, que servirão às observações, que for dando das moléstias cirúrgicas do Paiz, em cada trimestre. In: A saúde pública no Rio de Dom João. Rio de Janeiro: Senac; 2008. (p. 90). Tal como o trabalho de Manoel Vieira da Silva, a investigação sobre os diferentes agentes patogênicos prestava-se a subsidiar as ações de polícia médica. Partindo do pressuposto de que a “constituição orgânica” dos indivíduos “tem o caráter essencial de ser adquirida”, variando conforme os diferentes climas e os “inumeráveis agentes da natureza”99 Peixoto DRG. Prolegomenos, dictados pela obediência, que servirão às observações, que for dando das moléstias cirúrgicas do Paiz, em cada trimestre. In: A saúde pública no Rio de Dom João. Rio de Janeiro: Senac; 2008. (p. 90), Peixoto enfatiza que o sentido principal da higiene é o de prevenir os males e conservar a saúde. Por fim, apontou o que considerava algumas das principais causas da insalubridade da capital. Condenava tanto as emanações de miasmas provenientes da vegetação, águas e cadáveres sepultados nas igrejas, quanto os gases produzidos pelas ferrarias e as doenças supostamente trazidas pelos escravizados que aportavam na cidade, entre outros aspectos99 Peixoto DRG. Prolegomenos, dictados pela obediência, que servirão às observações, que for dando das moléstias cirúrgicas do Paiz, em cada trimestre. In: A saúde pública no Rio de Dom João. Rio de Janeiro: Senac; 2008. (p.108-18).

Temas dessa natureza costumavam atrair sábios recém-chegados à nova capital. Francisco de Mello Franco aportou na cidade em 1817, depois de viver em Lisboa por mais de 40 anos. Nascido em Minas Gerais, partiu ainda jovem para Coimbra, onde formou-se em medicina. Após se estabelecer em Lisboa, não tardou para ingressar nos círculos da elite médica e intelectual, da qual foi membro ativo por aproximadamente 25 anos. Ao chegar ao Rio de Janeiro, contudo, não pôde mais contar com parte de suas vigorosas conexões políticas, o que o obrigou a movimentos estratégicos para se estabelecer no concorrido ambiente social da Corte1010 Freitas RC. Pelas calmarias e ventos contrários: a trajetória de Francisco de Mello Franco no Rio de Janeiro, 1817-1823. Rev Hist USP 2020; 179:a00719.. Escreveu então o Ensaio sobre as febres do Rio de Janeiro1111 Mello Franco F. Ensaio sobre as febres com observações analyticas à cerca da topografia, clima, e demais particularidades, que influem no caracter das febres do Rio de Janeiro. Lisboa: Academia de Ciências de Lisboa; 1829., obra produzida sob medida para atender aos interesses sanitários governamentais. Embora tenha sido escrita em 1821, só foi publicada em 1829, alguns anos após a morte do médico.

Mello Franco afirmava que a obra havia sido motivada por sua inquietação com a ausência de febres contagiosas na cidade apesar do clima quente e úmido. Não se tratava de mero pretexto. Para nós, é importante observar que a indagação de Mello Franco marca uma mudança de posição importante em relação às obras escritas no período colonial. Não se tratava mais de explicar aos habitantes locais a natureza das febres que os acometiam, mas de compreender as razões pelas quais as febres no clima tropical da cidade eram diferentes daquelas observadas na Europa. Aqui, a experiência do médico adquirida em climas temperados não era suficiente. Afirmava que a característica peculiar da cidade se devia à interação da eletricidade corporal dos habitantes associada à atmosfera local carregada de fluidos elétricos1111 Mello Franco F. Ensaio sobre as febres com observações analyticas à cerca da topografia, clima, e demais particularidades, que influem no caracter das febres do Rio de Janeiro. Lisboa: Academia de Ciências de Lisboa; 1829..

Os casos de Vieira da Silva, Guimarães Peixoto, Bomtempo e Mello Franco ilustram alguns dos mecanismos de legitimação social utilizados pela intelectualidade médica da Corte durante o reinado de Dom João VI. A singularidade de suas observações sobre o clima e as doenças locais era ressaltada como o fator que conferia originalidade e relevância aos seus escritos diante do poder central. Bem ao estilo da medicina iluminista, Mello Franco iniciou os Ensaios afirmando que as ideias ali contidas derivavam de seu próprio “sistema médico”, construído ao longo de anos de observações em Lisboa1111 Mello Franco F. Ensaio sobre as febres com observações analyticas à cerca da topografia, clima, e demais particularidades, que influem no caracter das febres do Rio de Janeiro. Lisboa: Academia de Ciências de Lisboa; 1829. (p. 1-3). Bomtempo, por sua vez, afirmava que as experiências na nova capital haviam tornado ainda mais preciso seu próprio sistema desenvolvido durante sua estadia na África88 Bomtempo JM. Trabalhos médicos offerecidos à majestade do Senhor D. Pedro I. Rio de Janeiro: Typographia Nacional; 1825..

Uma vez bem-sucedidas no ambiente de Corte, suas obras poderiam ajudar a converter seu prestígio intelectual em títulos nobiliárquicos e influência política, o que alimentaria não apenas sua autoridade entre os pares, mas as filas de pacientes de sua atividade clínica. Numa sociedade marcada pelos privilégios, a prestação de um serviço era ditada pela perspectiva de se alcançar alguma mercê ou recompensa do soberano. Desse modo, a Memória apresentada por Vieira da Silva em 1808 foi inspirada pela ordem que o Príncipe Regente dera ao Físico-mor para que escrevesse sobre “as causas próximas e remotas das doenças deste país [...] para assim excitar as pessoas instruída a fazer públicos os seus sentimentos, e apurar-se pela discussão, um artigo...”1212 Silva MV. Reflexões sobre alguns meios propostos por mais conducentes para melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro. In: Silva AM. A saúde pública no Rio de Dom João. Rio de Janeiro: Senac; 2008. p. 69-70. (p. 67).

Ditada pelo monarca, essa política de mercês visava à coesão em torno do poder central, por meio da concessão de títulos de nobreza, ordens honoríficas e cargos, angariando os serviços daqueles vassalos que buscavam algum tipo de distinção social. Vieira da Silva foi um dos que se beneficiou amplamente dessa cultura política. Chegou ao Rio de Janeiro acompanhando a Família Real em 1808. Ainda em Portugal, já havia acumulado o hábito da Ordem de Cristo, título de médico da Real Câmara, fidalgo cavalheiro, além de comendas da Ordem de Cristo e da Torre e Espada33 Malerba J. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência, 1808-1821. São Paulo: Companhia das Letras; 2000.. No Brasil, foi nomeado barão de Alvaiázade em 1818, e retornou com a realeza para Lisboa em 1821. Segundo Innocêncio, não muito após seu retorno, envolveu-se numa contenda com António de Araújo da Cunha, barão de Pombalinho, pela validade de uma mercê oferecida por D. João VI ao físico-mor na região do Ribatejo1313 Silva IF. Diccionario bibliographico portuguez, v. 6. Lisboa: Imprensa Nacional; 1862. (p. 123).

A proximidade com o poder real também marcou a trajetória de Domingos Guimarães Peixoto. Seus Prolegômenos (1820) foram dedicados aos príncipes reais Dom Pedro e sua esposa Dona Leopoldina, “em sinal de gratidão, amor, respeito” e “ditados pela obediência”99 Peixoto DRG. Prolegomenos, dictados pela obediência, que servirão às observações, que for dando das moléstias cirúrgicas do Paiz, em cada trimestre. In: A saúde pública no Rio de Dom João. Rio de Janeiro: Senac; 2008.. Natural de Pernambuco, formou-se pela antiga Escola Médico-Cirúrgica, onde posteriormente atuou como lente e catedrático. Como médico da Câmara Imperial, assistiu ao nascimento do príncipe Dom Pedro de Alcântara, futuro D. Pedro II, e de suas irmãs1414 Sacramento Blake AVA. Diccionario bibliográfico brasileiro, v. 2. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional; 1893. (p. 228), além de acumular alguns dos títulos honoríficos comuns aos membros da elite médica da Corte, como as ordens da Rosa, de Cristo e Cavaleiro Fidalgo. Também atuou como emissário da Coroa a faculdades de medicina europeias, o que o habilitou a escrever os estatutos da Faculdade de Medicina, inaugurada em 18321515 Lapa LRF. Voto de saudade ao sábio professor o Sr. Doutor Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto. Archivo Médico Brasileiro 1845; 2:191..

Conforme já tratamos, Bomtempo foi mais uma dessas figuras próximas ao poder central. No entanto, apesar de seu trânsito na corte joanina, a Memória sobre as enfermidades... fez parte de uma coletânea oferecida pelo médico ao Imperador Dom Pedro I em 1825. Como era de costume, o gesto esteve longe de ser fruto do acaso. O retorno da Família Real para a Europa em 1821 e, sobretudo, o processo de independência, exigiram adaptações para a intelectualidade estabelecida na capital. Demonstrações de simpatia à ordem liberal tornaram-se ferramenta valiosa de sobrevivência política no novo regime. Quando publicou a coletânea, Bomtempo já estava licenciado de seu cargo na Escola Médico-Cirúrgica. O trabalho teria sido preparado em retribuição ao júbilo e a outras benesses destinadas ao médico e também a seu filho pelo monarca88 Bomtempo JM. Trabalhos médicos offerecidos à majestade do Senhor D. Pedro I. Rio de Janeiro: Typographia Nacional; 1825. (p. 3-4). O caso é similar ao de Francisco de Mello Franco, que embora não tenha vivido muito para ver a ruptura consolidada, aparentava ter a simpatia do imperador, algo de que seus filhos se beneficiaram após sua morte66 Freitas RC. Ardentes trópicos: febres e saúde pública no Brasil joanino. Hist Cienc Saude-Manguinhos 2020; 27(3):723-740..

Contudo, embora gestos desse tipo corroborem os mecanismos de favorecimento pessoal próprios do período, eles se deram em um momento no qual o prestígio profissional dos médicos começava a depender cada vez mais da legitimidade e perícia avaliadas por seus pares. Como veremos na próxima seção, o regime imperial deu novo impulso ao processo de institucionalização da medicina no Brasil. A obsessão modernizadora dos tempos joaninos continuou presente, porém assimilada pela busca de uma identidade nacional. A criação da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, por iniciativa de alguns médicos formados em Paris em 1829 - reconhecida por Decreto Imperial no início do ano seguinte - foi um dos primeiros marcos da nova fase da medicina brasileira.

Dos “talentos e merecimentos científicos”: Academia de Medicina e agenda sanitária após a Independência

O período que se estende da Independência até o início do Segundo Reinado foi marcado por uma série de rebeliões regionais e flutuação política. Ao longo desse período, a terapêutica popular manteve seu prestígio, dominando amplamente a prática curativa (Sobre essa questão, ver o artigo de Ricardo Freitas e André Nogueira neste dossiê). Circunscrita aos centros urbanos de apenas algumas províncias e relativamente cara, a assistência médica regular feita pelos clínicos e cirurgiões permanecia inacessível para a maior parte da população dispersa nas vastas áreas rurais, em geral muito mais afeita às práticas curativas originárias da tradição oral. Nas principais vilas e nas capitais das províncias, além das confrarias religiosas que ofereciam assistência a seus associados, restava o amparo das irmandades devocionais, em especial os hospitais da Santa Casa da Misericórdia.

As mudanças mais notáveis no período de consolidação monárquica ocorreram no campo da saúde pública. Em 30 de agosto de 1828, foi extinta a Fisicatura como órgão do governo responsável pela fiscalização sanitária e a regulamentação das artes terapêuticas1616 Brasil. Lei de 30 de agosto de 1828. In: Coleção de Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional; 1878.,1717 Pimenta TS. Médicos e cirurgiões nas primeiras décadas do século XIX no Brasil. Almanack 2019; 22:88-119.. Numa penada, desapareceu toda a estrutura composta pelo provedor-mor de Saúde da Corte e do Estado do Brasil, com delegados em todas as províncias, bem como as funções de físico-mor e cirurgião-mor, além dos juízes-comissários, seus auxiliares visitadores-examinadores, meirinho e escrivão. Esse tribunal especial, cuja ênfase era a ação fiscalizadora, julgadora e punitiva, com autoridade para tributar e arrecadar taxas relativas aos seus serviços, foi dissolvido. Finda a instituição, as câmaras municipais iniciaram a fiscalização dos elementos urbanos que se acreditava estarem implicados na produção das doenças por corromperem a salubridade da atmosfera. Desse modo, ficavam sob a responsabilidade da municipalidade o asseio das ruas e valas; a arquitetura das casas, sempre consideradas muito baixas, úmidas, pouco ventiladas e pouco asseadas; o costume de enterrar os mortos nas igrejas; o esgotamento de pântanos, e qualquer estagnação de águas infectas, entre outros focos de doenças. Os exames realizados para verificação da qualidade dos gêneros alimentícios, a inspeção às boticas e lojas de drogas e a fiscalização do exercício profissional passaram a ser incumbência das juntas municipais e foram incluídas nos códigos de posturas. Todavia, foi retirado das mesmas juntas o direito de cobrar tributos sanitários e de julgamento dos casos, transferidos à justiça comum. Sangradores e curandeiros foram definitivamente postos na ilegalidade, ainda que na prática continuassem exercendo amplamente seus ofícios, protegidos pelos poderosos locais.

O evento mais relevante para o tema que estamos abordando neste artigo foi a criação da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, em 7 de julho de 1829, reunindo médicos para debater assuntos de interesse para a saúde pública e o exercício da medicina. A movimentação para a sua criação se deu no início daquele ano, motivada pelo vácuo institucional que se seguira à extinção da estrutura administrativa sanitária que vinha do período joanino. Baseada no modelo da Academia Real de Medicina da França, criada em 1820, a associação teve entre seus fundadores os franceses José Francisco Xavier Sigaud e João Maurício Faivre, o genovês Luís Vicente de Simoni e os brasileiros José Martins da Cruz Jobim, Joaquim Cândido Soares de Meirelles, Francisco Freire Allemão de Cysneiros, Francisco de Paula Cândido, além de outros profissionais que atuavam no ambiente da Corte e já se destacavam como lideranças emergentes no ambiente médico1818 Edler FC. A medicina no Brasil imperial: clima, parasitas e patologia tropical. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011.,1919 Ferreira LO. O nascimento de uma instituição científica: o periódico médico brasileiro da primeira metade do século XIX [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 1996..

É preciso destacar que a iniciativa dos “facultativos da Arte de curar” foi marcada por uma retórica reformista que articulava os melhoramentos da saúde pública aos ideais filantrópicos e civilizatórios da monarquia constitucional. A reforma deveria alcançar todos os aspectos da medicina e precisaria começar com a própria formação médica. Para socorrer “a humanidade sofredora, e sobretudo a classe dirigente”, era preciso garantir que o monopólio da medicina não fosse mais “entregue a alguns privilegiados em detrimento da Ciência e dos que a cultivam”2020 Ofício do Presidente da Sociedade de Medicina dirigido a S. Ex. Sr. Ministro do Império. Semanário de Saúde Pública 1831; 4:1. (p. 21). No Semanário de Saúde Pública, órgão da associação, o projeto da Sociedade de Medicina buscava se distinguir do modus operandi do Antigo Regime, no qual “o número de honras e mais os atavios exteriores” seriam a base da reputação das autoridades sanitárias, conferidas por um governo “que [as] favorece, e mantêm com suas dádivas mui frequentes, e nimiamente fáceis”.

A reprovação às formas de recrutamento da burocracia estatal, baseadas na economia das mercês, em que a reputação era conferida “sem provas previamente dadas da realidade do saber e da habilidade que se inculca”2020 Ofício do Presidente da Sociedade de Medicina dirigido a S. Ex. Sr. Ministro do Império. Semanário de Saúde Pública 1831; 4:1. (p. 6), passou a ser contrastada a um novo ideal de serviço no qual o público e o governo não acreditem de ora em diante por médicos sábios, senão os que derem à luz suas observações e que por obras publicadas tiverem postos a todos na possibilidade de julgar dos seus talentos, e merecimentos científicos2020 Ofício do Presidente da Sociedade de Medicina dirigido a S. Ex. Sr. Ministro do Império. Semanário de Saúde Pública 1831; 4:1. (p. 8).

Apesar de seu nome fazer referência apenas à capital do Império, o documento que a institui afirma que seu escopo territorial abrange a salubridade das grandes cidades e do interior das províncias do Império. A “guarda vigilante da saúde pública” e a proposição de leis sanitárias manteriam conformidade “com o estado atual dos conhecimentos médicos, as relações comerciais dos povos e as instituições constitucionais do Brasil”2020 Ofício do Presidente da Sociedade de Medicina dirigido a S. Ex. Sr. Ministro do Império. Semanário de Saúde Pública 1831; 4:1. (p. 25).

Guiada pelo ideal filantrópico, rejeitava para si qualquer espírito corporativo, negando qualquer pretensão de exercer o monopólio legal do exercício da medicina, tal como ocorrera até então, por atribuir-se “a indivíduos isolados, ou juntas, espécies de tribunais arbitrários, cujas sentenças têm sido no Brasil tão prejudiciais aos progressos da Medicina e aos interesses da humanidade...”2020 Ofício do Presidente da Sociedade de Medicina dirigido a S. Ex. Sr. Ministro do Império. Semanário de Saúde Pública 1831; 4:1. (p. 25).

Em janeiro de 1830, ganhou o status de órgão governamental de caráter consultivo sobre as mais diversas questões relativas à saúde pública e ao exercício da medicina. Em 1835, no período regencial, passou a denominar-se Academia Imperial de Medicina (AIM). Desde o início, buscou abarcar tudo o que podia interessar à saúde pública, principalmente no que se referia às epidemias, às moléstias particulares de certas localidades, às epizootias e aos diferentes casos de medicina legal. Ela se envolveu com a propagação da vacina e reivindicou o controle sobre os remédios novos ou secretos, que não podiam ser expostos ao público sem seu exame e aprovação. Trouxe para a sua jurisdição a análise das águas minerais e pretendeu alcançar todos os objetos de estudo e investigação que podiam concorrer para o progresso dos diferentes ramos da arte de curar. A Academia esforçou-se para monopolizar toda produção, circulação e controle dos saberes fundados nos preceitos do higienismo e da medicina anátomo-clínica, e apresentar-se como órgão formulador de ações em polícia médica. Partiu de sua iniciativa o projeto, inspirado no modelo de ensino francês, que transformou, em 1832, as escolas médico-cirúrgicas da Bahia e do Rio de Janeiro em faculdades de medicina, diplomando médicos clínicos e cirurgiões, farmacêuticos e parteiras1919 Ferreira LO. O nascimento de uma instituição científica: o periódico médico brasileiro da primeira metade do século XIX [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 1996..

Cabe, por fim, destacar dois aspectos presentes na estratégia da AIM: por um lado, na esteira da medicina ilustrada2121 Edler FC; Freitas RC. O "imperscrutável vínculo" corpo e alma na medicina lusitana setecentista. Varia História 2013; 29 (50):435-452., o discurso higienista forneceu o instrumental teórico que se traduziu numa medicina social a serviço da lógica da organização senhorial do espaço urbano. Por outro, consolidou-se como núcleo responsável pela produção, controle e difusão de conhecimentos relativos às patologias endêmicas e epidêmicas que ameaçavam a saúde pública.

Quanto ao primeiro aspecto, muitos estudos enfatizaram o papel dos médicos, em especial os higienistas e psiquiatras na normalização da vida social brasileira. Essa estratégia de medicalização da sociedade exigia um mapeamento minucioso das cidades e vilas, capaz de regular a população e disciplinar os indivíduos, em especial a família patriarcal2222 Machado R, Loureiro A, Luz R, Muricy K. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal; 1978.

23 Costa JF. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal; 1979.
-2424 Pugliese G. Higiene e a reinvenção da dietética: a economia política da vida na medicina luso-brasileira da passagem do século XVIII para o XIX. Anuário Antropológico 2020; 45(1):232-248.. Foi assim que a higiene, disputando com outras instâncias de controle social, atuou preventivamente, planejando e executando medidas ao mesmo tempo médicas e políticas sobre hospitais, cemitérios, escolas, quarteis, prisões, bordeis, fábricas e, de modo ambíguo, sobre a própria escravidão. Nesses espaços, a aplicação de diferentes tecnologias disciplinares foi interpretada como possibilidade de transformação do indivíduo em cidadão perfeito, livre e trabalhador2525 Gondra J. Artes de civilizar: medicina, higiene e educação escolar na Corte Imperial. Rio de Janeiro: UERJ; 2004.,2626 Mantovani R. Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840). Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017..

O segundo aspecto se traduziu no esforço de produzir um diagnóstico sobre a situação sanitária do Brasil e estabelecer as medidas higiênicas capazes de melhorar a salubridade, sobretudo nos espaços urbanos. Essa utopia higienista exigia uma apreciação do clima das localidades, dos hábitos higiênicos e do regime alimentar, considerados os principais fatores patogênicos do país. Por isso, enfatizamos as peculiaridades das atividades científicas desempenhadas pelas elites médicas imperiais. Os membros da AIM, seus sócios titulares, adjuntos e correspondentes, eram convocados a enviar memórias que seriam discutidas nas sessões regulares, criando uma rede de correspondências contendo observações médicas colhidas em todo o território nacional. Essa seria a base da inovação científica nos campos do diagnóstico e da terapêutica, na identificação dos agentes deletérios ambientais que então se acreditava estarem implicados na produção das doenças próprias ao nosso clima, e na adequação das medidas profiláticas propugnadas pela higiene às condições nacionais. E fizeram-no não apenas institucionalizando a pesquisa anátomo-clínica e higienista, mas assimilando seletivamente alguns ramos das ciências naturais - botânica, química, meteorologia, climatologia, geologia, topografia -, de cujo conhecimento eles dependiam para levar a cabo a agenda de pesquisas sobre a patologia brasileira2727 Lima SCS. Cruz Jobim e as doenças da classe pobre o corpo escravo e a produção do conhecimento médico na primeira metade do século XIX. Almanack 2019; 22:250-278.. Vejamos brevemente como se construiu, num mesmo movimento, a formulação de uma agenda sanitária e a autoridade científica da AIM.

Quando a Sociedade de Medicina foi criada, a higiene e a anátomo-clínica passaram a dispor de uma trincheira estrategicamente orientada para enfraquecer a influência dos antigos cirurgiões portugueses e daqueles formados nas escolas médico-cirúrgicas da Corte e da Bahia. Nesse contexto, a anátomo-clínica era praticamente toda a medicina, já que a fisiologia experimental de Claude Bernard (1813-1878) e a patologia celular de Rudolph Virchow (1821-1902), que viriam a produzir uma medicina de laboratório -medicina sem doentes -, estavam apenas se esboçando no horizonte da clínica. Nesse período, marcado pela crença da dependência da patologia e da terapêutica médicas aos fatores climático-telúricos circunscritos ao meio ambiente, a rejeição da herança colonial da Fisicatura-mor e do legado de informações médicas, mais ou menos impressionistas, descritas pelos viajantes naturalistas impôs-se como pré-condição à afirmação do novo ethos profissional1818 Edler FC. A medicina no Brasil imperial: clima, parasitas e patologia tropical. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011..

Para tal, ela oferecia prêmios em competições anuais, coletava e examinava informações epidemiológicas, administrava a vacinação antivariólica, auxiliando o governo em matéria de educação médica, polícia higienista e saúde pública. A produção, coordenação e arbitragem de um conhecimento médico orientado para a saúde pública visava constituir uma rede de informações e coletas, cujo conjunto deveria ser processado, analisado e eventualmente aplicado pelos acadêmicos. Consolidou-se, desse modo, as desigualdades regionais em benefício das elites médicas da capital, beneficiárias diretas de sua proximidade com as fontes de poder estatal.

Nos trabalhos dos acadêmicos, publicados no Semanário de Saúde Pública (1831-1833) e no Diário de Saúde (1835-1836), destacava-se a febre palustre como morbidade dominante da patologia nacional. Outras endemias constatadas por aquele corpo de profissionais seriam o reumatismo, a erisipela, o piã, a hidrocele, a lepra, as hemorróidas, a hipoemia intertropical, a elefantíase dos árabes, a hemato-chyluria. Ao lado dessas endemias, algumas epidemias tinham orientado os debates nas suas sessões semanais: a gripe, a sífilis, as bexigas, as doenças do fígado, do coração e da pele, o sarampo, a escarlatina, as febres tifóides, o tétano e o escorbuto2828 Sigaud JFX. Du Climat et des Maladies du Brésil ou Statistique Médicale de cet Empire. Paris: Chez Fortin, Masson; 1844..

Em sua busca para impor o monopólio da interlocução sobre os problemas médicos nacionais diante do governo imperial e dos centros médico-científicos europeus, a Academia de Medicina esforçou-se por cumprir a tarefa de traduzir e atualizar a pauta higienista e anátomo-clínica europeia contemporânea1919 Ferreira LO. O nascimento de uma instituição científica: o periódico médico brasileiro da primeira metade do século XIX [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 1996., o que a tornaria intérprete legítima da patologia brasileira1818 Edler FC. A medicina no Brasil imperial: clima, parasitas e patologia tropical. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011.,2929 Caponi S, Opinel A. De la Géographie Médicale à la Médecine Tropicale. Florianopolis: NEL/UFSC; 2017..

Considerações finais

Como procuramos argumentar, a criação do espaço institucional da Academia de Medicina no interior da ordem monárquica marca ao mesmo tempo ruptura e complementaridade com toda tradição médica europeia - bem como sujeição das observações e registros médicos feitos por viajantes naturalistas, cirurgiões-barbeiros e boticários do período colonial - e o protocolo anátomo-clínico e os princípios da climatologia médica. A participação na Academia Imperial de Medicina supunha critérios meritocráticos. Os debates científicos no interior do campo médico eram baseados não no status social ou na honra, medida pela inscrição dos médicos na ordem senhorial, e sim no pertencimento a uma corporação científica. Portanto, não era a titularidade nobiliárquica ou o pertencimento a redes clientelistas, como salientamos nos casos de Francisco de Mello Franco e José Maria Bomtempo, o que credenciava a opinião ou o testemunho, mas a habilidade de atuar de acordo com as regras científicas estabelecidas pela climatologia médica e consagradas nesse microcosmo.

Podemos formular nosso argumento nos seguintes termos: ao compartilharem com os colegas europeus uma noção de doença inextricavelmente ligada ao meio ambiente, clínicos e higienistas brasileiros do Império admitiam uma concepção particularista, em termos territoriais e climático-telúricos, do conhecimento médico. Tal saber baseava-se numa etiologia ambientalista. Os higienistas da AIM, com base nos princípios da climatologia, reivindicavam uma jurisdição formal, em bases territoriais, do exercício da medicina. Foi em torno desse consenso tácito que se desenvolveu grande parte das controvérsias científicas, até que, a partir de 1870, alguns ramos da medicina experimental, como a parasitologia e a teoria dos germes de Pasteur, vieram subverter seus fundamentos ao postular outros cânones científicos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2022
  • Aceito
    25 Abr 2022
  • Publicado
    27 Abr 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br