Como a normatização sobre o serviço de aborto em gravidez decorrente de estupro afeta sua oferta nos municípios?

Marina Gasino Jacobs Alexandra Crispim Boing Sobre os autores

Resumo

A oferta do aborto em gestações decorrentes de estupro é limitada no Brasil, restrita a poucos estabelecimentos e concentrada em grandes centros urbanos. Objetivou-se estimar o potencial de expansão da oferta do serviço considerando a capacidade instalada nos municípios país. A partir dos dados de junho de 2021 no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde foram elaborados três diferentes cenários de oferta de aborto previsto em lei em gestações decorrentes de estupro, e calculado o percentual da população do sexo feminino em idade fértil residente nos municípios de cada cenário por região. No primeiro cenário foram incluídos os municípios com oferta instalada, no segundo aqueles com potencial de oferta considerando as normativas vigentes, e no terceiro aqueles com potencial de oferta considerando apenas as recomendações da Organização Mundial de Saúde e o Código Penal brasileiro. Os cenários foram compostos, respectivamente, por 55, 662 e 3.741 municípios, sendo residência de 26,7%, 62,1% e 94,3% das pessoas do sexo feminino entre 10 e 49 anos do país. Em todas as regiões havia capacidade instalada para ampliação da oferta tanto à luz das normativas vigentes quanto das recomendações internacionais.

Palavras-chave:
Acesso aos serviços de saúde; Aborto legal; Equidade no Acesso aos Serviços de Saúde; Serviços de Saúde Reprodutiva

Introdução

O estupro é um tipo de violência frequente no Brasil. Em 2020, as Secretarias Estaduais de Segurança Pública e Defesa Social registraram 60.460 estupros, sendo que 86,9% tiveram como vítimas pessoas do sexo feminino e 66,1% pessoas em idade fértil (entre 10 e 49 anos)11 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2021.. Apesar dos valores elevados, há importante subnotificação de casos. No início da década de 2010 apenas 7,5% dos crimes de ofensa sexual eram notificados à polícia22 Brasil. Datafolha, Crisp. Ministério da Justiça. Pesquisa Nacional de Vitimização. Brasília: Ministério da Justiça; 2013., quadro histórico de subnotificação que possivelmente foi agravado pela pandemia no ano de 202011 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2021..

Além de outras possíveis consequências físicas e psicológicas de um estupro, a violência sexual pode resultar em uma gestação. Dos estupros registrados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação em 2011, 7,1% terminaram em gravidez33 Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Nota Técnica no 11 Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde. Brasília: Ipea; 2014.. As gestações decorrentes de estupro são potencialmente atravessadas por sentimento de rejeição, remetem à violência sofrida, podem gerar sensação de violação do direito de escolha sobre a maternidade, assim como temor de dano social e psicológico, e consequente desejo de interromper a gravidez44 Drezett J, Pedroso D, Vertamatti MA, Macedo Junior H, Blake MT, Gebrim LH, Valenti VE, Abreu LC. Pregnancy resulting from sexual abuse: Reasons alleged by Brazilian women for carrying out the abortion - Pregnancy and violence. HealthMED 2012; 6(3):819-825.. Nessas situações, o aborto realizado por médico e com consentimento da gestante não é penalizado no Brasil desde o Código Penal de 194055 Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União; 1940..

Apesar de constar no Código Penal desde 1940, a oferta da interrupção legal da gestação pelos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) passou a ser normatizada no Brasil apenas em 1999, com a primeira norma técnica do Ministério da Saúde sobre o tema. Essa norma teve novas edições e posteriormente foi acompanhada pela publicação de portarias relativas à oferta do aborto em gestações decorrentes de estupro.

As normativas apontam os métodos de abortamento a cada idade gestacional, a equipe mínima recomendada para a realização do aborto previsto em lei e o tipo de estrutura necessária. Como métodos, ao longo do tempo vão sendo incorporados de forma mais extensiva o uso de aspiração manual intrauterina e do misoprostol66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Gestão de Políticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 1ª ed. Brasília: MS; 1999.,77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3ª ed. Brasília: MS; 2012.. Os recursos humanos e materiais necessários para a realização do aborto em gestações decorrentes de estupro também variam entre as normas técnicas e Portarias publicadas ao longo do tempo. Na primeira norma técnica, a única categoria profissional essencial era a médica66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Gestão de Políticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 1ª ed. Brasília: MS; 1999., o que foi ampliado com a normatização do procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez nos casos previstos em lei no âmbito do SUS, incluindo na equipe mínima determinadas especialidades médicas e outros profissionais de saúde88 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria MS/GM nº 1.508, de 1 de setembro de 2005. Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União; 2005.

9 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Ministro. Portaria no 2.282, de 27 de agosto de 2020. Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Diário Oficial da União; 2020.
-1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Ministro. Portaria no 2.561, de 23 de setembro de 2020. Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Diário Oficial da União; 2020.. Já a definição do funcionamento dos Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez nos Casos Previstos em Lei é menos específica quanto às especialidades médicas necessárias, mas também exige outros profissionais de saúde1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 485, de 1o de abril de 2014. Redefine o funcionamento do Serviço de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2014.. Quanto à estrutura física, as normas técnicas recomendam que o procedimento seja realizado em centro cirúrgico66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Gestão de Políticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 1ª ed. Brasília: MS; 1999., todavia, posteriormente fica estabelecido que Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez nos Casos Previstos em Lei podem ser organizados, além de em hospitais e maternidades, em prontos-socorros, Unidades de Pronto-Atendimento e serviços de urgência não hospitalares1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 485, de 1o de abril de 2014. Redefine o funcionamento do Serviço de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2014.. Apesar da previsão de organização de Serviços de Referência em estabelecimentos não hospitalares, o uso do misoprostol se mantém exclusivo hospitalar no país desde 19981212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 344, de 12 de maio de 1998. Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Diário Oficial da União; 1998..

Diferentemente das normativas brasileiras, as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que o abortamento medicamentoso ou por aspiração a vácuo poderia se dar de forma segura na atenção primária ao menos nas 12 primeiras semanas de gestação, e que o procedimento poderia ser realizado por profissional não-médico, desde que treinado, atentando, contudo, para a necessidade de retaguarda de emergência para o caso de intercorrências1313 World Health Organization (WHO). Abortion care guideline. Geneva: WHO; 2022..

Mesmo o aborto previsto em lei sendo ofertado pelo SUS e normatizado há mais de 20 anos, ainda é um procedimento pouco realizado. Entre 2008 e 2015, o Sistema financiou cerca de 1.600 interrupções legais de gestação por ano1414 Cardoso BB, Vieira FMSB, Saraceni V. Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais? Cad Saude Publica 2020; 36(Supl. 1):e00188718.. A pouca realização se insere em uma conjuntura de criminalização e estigmatização do aborto. O entendimento social acerca do abortamento afeta tanto a busca pelo procedimento quanto sua oferta, manifestando-se por um lado em vergonha, medo e culpa entre as pessoas que acessam ou elegíveis ao serviço; ao passo que alcança quem elabora e implementa políticas públicas, dificultando a ampliação das alternativas legais, de serviços, financiamento, formação de profissionais, bem como da difusão de informação sobre o tema1515 Culwell KR, Hurwitz M. Addressing barriers to safe abortion. International Journal of Gynecology & Obstetrics. 2013;121(S1):S16-9.,1616 Giugliani C, Ruschel AE, Patuzzi GC, Silva MCB. Violência Sexual e Direito ao Aborto Legal no Brasil: fatos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021..

Dentre as barreiras de acesso ao aborto previsto em lei, está a baixa disponibilidade do serviço. Em 2019, 200 municípios brasileiros tinham oferta de aborto previsto em lei, 3,6% do total de municípios do país. Entre as residentes dos municípios com a oferta do procedimento, a taxa de realização era quase 5 vezes a taxa dos municípios sem oferta1717 Jacobs MG, Boing AC. O que os dados nacionais indicam sobre a oferta e a realização de aborto previsto em lei no Brasil em 2019? Cad Saude Publica 2021; 37(12):e00085321.. A ausência de acesso local e a necessidade de viajar para realizar um aborto previsto em lei diminui o acesso ao procedimento seguro1818 Brown BP, Hebert LE, Gilliam M, Kaestner R. Distance to an Abortion Provider and Its Association with the Abortion Rate: A Multistate Longitudinal Analysis. Perspect Sex Repro H 2020; 52(4):227-234.

19 Friedman J, Saavedra-Avendaño B, Schiavon R, Alexander L, Sanhueza P, Rios-Polanco R, Garcia-Martinez L, Darney BG. Quantifying disparities in access to public-sector abortion based on legislative differences within the Mexico City Metropolitan Area. Contraception 2019; 99(3):160-164.
-2020 Lindo JM, Myers CK, Schlosser A, Cunningham S. How Far Is Too Far? New Evidence on Abortion Clinic Closures, Access, and Abortions. J Human Resources 2020; 55(4):1137-1160., tornando-o inacessível especialmente a grupos já vulnerabilizados1919 Friedman J, Saavedra-Avendaño B, Schiavon R, Alexander L, Sanhueza P, Rios-Polanco R, Garcia-Martinez L, Darney BG. Quantifying disparities in access to public-sector abortion based on legislative differences within the Mexico City Metropolitan Area. Contraception 2019; 99(3):160-164.. As pessoas que têm impedido o acesso ao serviço podem terminar realizando o aborto de forma insegura, com potenciais riscos à saúde e mesmo à vida2121 Gerdts C, Dobkin L, Foster DG, Schwarz EB. Side Effects, Physical Health Consequences, and Mortality Associated with Abortion and Birth after an Unwanted Pregnancy. Womens Health Issues 2016; 26(1):55-59.. Além do risco à saúde física, o não acesso ao aborto legal implica em piores desfechos de saúde mental a curto prazo2222 Biggs MA, Upadhyay UD, McCulloch CE, Foster DG. Women's Mental Health and Well-being 5 Years After Receiving or Being Denied an Abortion: A Prospective, Longitudinal Cohort Study. JAMA Psychiatry 2017; 74(2):169-178..

Dada a limitada disponibilidade de estabelecimentos com oferta do aborto previsto em lei no Brasil e o prejuízo de acesso decorrente da concentração do serviço, pergunta-se se haveria estrutura para expansão da oferta no país. Dessa forma, à luz das normativas que regem a provisão do aborto em gestações decorrentes de estupro e de recomendações internacionais, objetiva-se estimar o potencial de oferta de aborto em gestações decorrentes de estupro considerando a capacidade instalada nos municípios do país.

Métodos

Trata-se de um estudo transversal descritivo que tem como fonte os registros de estabelecimentos e profissionais em junho de 2021 no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). O CNES é o sistema oficial de cadastramento de informações sobre estabelecimentos de saúde no país e reúne informações de todos os estabelecimentos, independentemente de sua natureza jurídica ou vinculação ao SUS. O cadastramento e a atualização dos dados são obrigatórios para que qualquer estabelecimento de saúde esteja autorizado a funcionar. Além dos estabelecimentos em si, são detalhados os serviços, trabalhadores e recursos físicos ligados aos mesmos2323 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Ministro. Portaria no 1.646, de 2 de outubro de 2015. Institui o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Diário Oficial da União; 2015.. Os dados são de acesso público e disponibilizados pelo Departamento de Informática do SUS.

No presente estudo são apresentados três diferentes cenários de oferta de aborto previsto em lei em gestações decorrentes de estupro: o registro de oferta atual; a oferta potencial considerando as atuais normativas do SUS77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3ª ed. Brasília: MS; 2012.,1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Ministro. Portaria no 2.561, de 23 de setembro de 2020. Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Diário Oficial da União; 2020.,1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 485, de 1o de abril de 2014. Redefine o funcionamento do Serviço de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2014.; e a oferta potencial considerando as recomendações internacionais1313 World Health Organization (WHO). Abortion care guideline. Geneva: WHO; 2022. e o Código Penal brasileiro55 Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União; 1940..

Inicialmente, no primeiro cenário, são elencados os municípios que possuem Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei registrados no CNES dentre os Serviços de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual e tem os recursos elencados nas normativas vigentes para o processo de justificação, autorização e realização do aborto em gestações decorrentes de estupro no SUS (Quadro 1). Além dos procedimentos referentes ao cuidado, a Portaria 485/20141111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 485, de 1o de abril de 2014. Redefine o funcionamento do Serviço de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2014. menciona a coleta e guarda de material genético como uma das ações a serem desenvolvidas pelos Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei. Essa capacidade, contudo, não é passível de avaliação por meio dos dados disponíveis no CNES.

Quadro 1
Critérios considerados para a elaboração dos cenários de oferta de aborto em gestações decorrentes de violência sexual no Brasil em junho de 2021.

Em seguida, no cenário 2, são apresentados os municípios com ao menos um estabelecimento que atenderia às exigências de estrutura física e de pessoal das normativas vigentes no que diz respeito ao aborto em gestações decorrentes de estupro no SUS (Quadro 1). Também nesse cenário, a capacidade dos estabelecimentos em realizar a coleta e guarda de material genético não foi passível de avaliação.

Por fim, foi elaborado um terceiro cenário com a oferta potencial que elenca os recursos necessários para a oferta de aborto a partir de recomendações técnicas e de políticas de saúde sobre o aborto da Organização Mundial da Saúde (OMS)1313 World Health Organization (WHO). Abortion care guideline. Geneva: WHO; 2022. e de acordo com o Código Penal brasileiro55 Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União; 1940. (Quadro 1). Nesse cenário, foram incluídas apenas equipes com médico, pois, ainda que a oferta do aborto por não-médicos possa se dar de forma segura2424 Barnard S, Kim C, Park M, Ngo T. Doctors or mid-level providers for abortion. Cochrane Database Syst Rev 2015; 2015(7):CD011242., o Código Penal Brasileiro estabelece que o aborto em gestações decorrentes de estupro apenas não é punível quando realizado por médico.

Os três cenários de oferta foram apresentados em mapas e foi exposto, por região, o percentual da população do sexo feminino em idade fértil (entre 10 e 49 anos) residente nos municípios que compuseram cada cenário. Para esse cálculo, foram utilizadas estimativas populacionais municipais por idade e sexo do Ministério da Saúde para 20212525 Brasil. Ministério da Saúde (MS). DATASUS. População residente - estudo de estimativas populacionais por município, idade e sexo. 2000-2021 - Brasil [Internet]. 2022 [acessado 2020 set 19]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?popsvs/cnv/popbr.def.
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftoht...
. Para a elaboração dos mapas, foi utilizada a malha digital do Brasil com divisão político-administrativa vigente em 2020 disponibilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Todos os registros em áreas dentro do Distrito Federal (DF) foram atribuídos a Brasília (código IBGE 5300108), único município do DF reconhecido pelo IBGE. Os mapas foram elaborados no software Qgis 3.10.7, mantendo o Sistema de Referência Geocêntrico para as Américas (SIRGAS) 2000.

Resultados

O primeiro cenário foi composto por 55 dos 5.570 municípios brasileiros, quatro Unidades da Federação não tinham qualquer município com oferta (Figura 1). Esse cenário era residência de 26,7% das pessoas do sexo feminino entre 10 e 49 anos do país (Tabela 1). Nos 55 municípios estavam 88 Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei com capacidade compatível com as normativas para a justificação, autorização e realização de aborto em gestações decorrentes de estupro. Esses estabelecimentos representam apenas uma parte dos 102 Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei registrados no CNES em junho de 2021.

Tabela 1
População do sexo feminino e em idade fértil residente em municípios com serviço de aborto em gestações decorrentes de estupro nos três diferentes cenários de oferta. Brasil por regiões, 2021.

Figura 1
Cenário 1 de municípios com Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei capazes de proceder a justificação, autorização e realização de aborto em gestações decorrentes de estupro no Brasil em junho de 2021.

O cenário 2 foi composto por 662 municípios (Figura 2) onde residia mais da metade das pessoas do sexo feminino e em idade fértil do país (Tabela 1). Esse cenário contou com 1.115 estabelecimentos que eram potenciais Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei e capazes de realizar os procedimentos de autorização e justificação de aborto em gestações decorrentes de estupro, bem como de proceder a interrupção da gestação de acordo com as normativas vigentes pelo SUS.

Figura 2
Cenário 2 de municípios com potencial de oferta de aborto em gestações decorrentes de estupro no Brasil em junho de 2021 à luz das normativas vigentes.

Na comparação entre os cenários 1 e 2, evidencia-se que todas as regiões tinham potencial instalado de oferta de aborto em gestações decorrentes de estupro para além dos seus Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei capazes de proceder a justificação, autorização e realização de aborto. É nítida, no entanto, a diferença entre regiões, com 46,1% de municípios com oferta potencial na região Nordeste e 72,9% no Sudeste (Tabela 1).

O terceiro cenário foi composto por 3.741 municípios (Figura 3) e era residência da imensa maioria das pessoas do sexo feminino entre 10 e 49 anos do país (Tabela 1). Em junho de 2021, o país contava com 54.338 estabelecimentos de atenção primária à saúde, sendo que apenas 1 dos 5.570 municípios do país não tinha registro desse tipo de estabelecimento. Desses estabelecimentos, 33.724 tinham médico vinculado, o que não estava presente em 61 municípios. O país dispunha também de 10.507 serviços de urgência 24 horas conveniados ao SUS distribuídos em 3.764 municípios. Como apontado, 3.741 municípios tinham a presença concomitante de estabelecimento de atenção primária com médico vinculado e de serviços de urgência 24 horas conveniados ao SUS.

Figura 3
Cenário 3 de municípios com potencial de oferta de aborto em gestações decorrentes de estupro no Brasil em junho de 2021 à luz de recomendações internacionais e do Código Penal brasileiro.

Quando comparado o cenário 3 ao 2, fica evidenciada a ampliação do potencial de oferta todas as regiões. A maior diferença de cobertura entre os dois cenários se dá na região Nordeste, com 47,2% (Tabela 1).

Discussão

Mesmo mais de 20 anos após a primeira normatização da oferta pelo Sistema Único de Saúde de aborto em gestações decorrentes de estupro, são apenas 55 municípios com Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei cadastrados e com capacidade instalada de realizar o aborto nessas situações. Nesses 55 municípios viviam mais de ¼ da população do sexo feminino em idade fértil do país, indicando a concentração do serviço em municípios de maior porte populacional.

Quatro Unidades da Federação não apresentaram qualquer estabelecimento no cenário 1; das 5 regiões do país, as únicas em que todas as Unidades da Federação tinham ao menos um município com oferta foram a Sul e Sudeste. A distribuição dos estabelecimentos que compuseram o cenário 1 acompanha a forma desigual como as unidades de atenção ambulatorial e hospitalar estão alocadas no território brasileiro, com concentração de recursos e tecnologia em centros urbanos e nas regiões Sul e Sudeste2626 Solla J, Chioro A. Atenção Ambulatorial Especializada. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. p. 627-664.. A coincidência de distribuição territorial é esperada, dado que, por norma, a oferta do aborto previsto em lei no Brasil está restrita a estabelecimentos de média e alta complexidade1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 485, de 1o de abril de 2014. Redefine o funcionamento do Serviço de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2014.. Essa concentração, contudo, gera a necessidade de deslocamentos intermunicipais e aumenta as distâncias a serem percorridas2020 Lindo JM, Myers CK, Schlosser A, Cunningham S. How Far Is Too Far? New Evidence on Abortion Clinic Closures, Access, and Abortions. J Human Resources 2020; 55(4):1137-1160., com maiores implicações logísticas, de tempo e dinheiro2727 Barr-Walker J, Jayaweera RT, Ramirez AM, Gerdts C. Experiences of women who travel for abortion: A mixed methods systematic review. Withers MH, organizador. PLoS One 2019; 14(4):e0209991., limitando o acesso ao serviço, especialmente para grupos já vulnerabilizados1919 Friedman J, Saavedra-Avendaño B, Schiavon R, Alexander L, Sanhueza P, Rios-Polanco R, Garcia-Martinez L, Darney BG. Quantifying disparities in access to public-sector abortion based on legislative differences within the Mexico City Metropolitan Area. Contraception 2019; 99(3):160-164..

Quanto aos Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei como um todo, destaca-se que dos 102 cadastrados, apenas 88 tinham em junho de 2021 registro de estrutura e equipe suficientes para a realização pelo SUS do processo de justificação, autorização e aborto em gestações decorrentes de estupro de acordo com as normativas vigentes. A normativa vigente específica relativa a essa causal, a Portaria 2.561/2020, exige obstetra e anestesista na equipe mínima para a justificação e autorização do procedimento nesses casos1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Ministro. Portaria no 2.561, de 23 de setembro de 2020. Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Diário Oficial da União; 2020., ainda que não haja nas gestações decorrentes de estupro especificidades frente às outras causais que tornem necessária a presença diferencial de tais profissionais. A respeito desse tipo de exigência, a OMS indica que os critérios de credenciamento dos serviços não devem conter requisitos que não sejam essenciais para a realização do aborto de forma segura. A exigência de recursos para além do necessário é uma barreira para a oferta do serviço e consequentemente para o acesso de pessoas elegíveis ao procedimento1313 World Health Organization (WHO). Abortion care guideline. Geneva: WHO; 2022..

Além da equipe mínima com anestesista e obstetra, as normativas indicam a realização do procedimento em centro cirúrgico, bem como a oferta em determinados tipos de estabelecimentos de alta e média complexidade. Essa estrutura pode ser necessária a situações específicas de aborto previsto em lei, mas geralmente é dispensável nas primeiras semanas de gestação2424 Barnard S, Kim C, Park M, Ngo T. Doctors or mid-level providers for abortion. Cochrane Database Syst Rev 2015; 2015(7):CD011242.,2828 Zhou J, Blaylock R, Harris M. Systematic review of early abortion services in low- and middle-income country primary care: potential for reverse innovation and application in the UK context. Global Health 2020; 16(1):91.,2929 Gambir K, Garnsey C, Necastro KA, Ngo TD. Effectiveness, safety and acceptability of medical abortion at home versus in the clinic: a systematic review and meta-analysis in response to COVID-19. BMJ Glob Health 2020; 5(12):e003934.. Esse tipo de exigência reflete a lógica de oferta do aborto previsto em lei no Brasil, com centralização de qualquer procedimento de um único tipo de serviço de referência, independentemente das condições da gestante, idade gestacional ou método a ser utilizado para a interrupção da gestação. A centralização superestima a necessidade de recursos físicos e de pessoal quando se trata de abortamentos em situações de baixo risco, com isso limita a capacidade de oferta e consequentemente o acesso ao serviço. Reflete também a lógica de centralização da oferta do procedimento a Portaria 344/1998 da Anvisa que restringe o uso do misoprostol ao ambiente hospitalar1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 344, de 12 de maio de 1998. Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Diário Oficial da União; 1998., ainda que hoje se saiba da segurança do uso do medicamento em outros contextos1313 World Health Organization (WHO). Abortion care guideline. Geneva: WHO; 2022.,2828 Zhou J, Blaylock R, Harris M. Systematic review of early abortion services in low- and middle-income country primary care: potential for reverse innovation and application in the UK context. Global Health 2020; 16(1):91.,2929 Gambir K, Garnsey C, Necastro KA, Ngo TD. Effectiveness, safety and acceptability of medical abortion at home versus in the clinic: a systematic review and meta-analysis in response to COVID-19. BMJ Glob Health 2020; 5(12):e003934..

O segundo cenário traz ao menos um município com capacidade de oferta de aborto em gestações decorrentes de estupro em cada Unidade da Federação. O percentual da população acessada é menor nas regiões Norte e Nordeste, e, quando comparado ao cenário 1, o potencial de ampliação da oferta nessas regiões é menor. Como já apontado, a concentração de serviços de alta e média complexidade está nas regiões Sul e Sudeste2626 Solla J, Chioro A. Atenção Ambulatorial Especializada. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. p. 627-664., desse modo, a exigência injustificada de que a oferta de qualquer aborto previsto em lei se dê nesse tipo de estabelecimento limita de forma mais acentuada a oferta nas outras regiões do país1313 World Health Organization (WHO). Abortion care guideline. Geneva: WHO; 2022.,2828 Zhou J, Blaylock R, Harris M. Systematic review of early abortion services in low- and middle-income country primary care: potential for reverse innovation and application in the UK context. Global Health 2020; 16(1):91..

Ainda comparando os dois primeiros cenários, percebe-se que, mesmo que as normativas brasileiras sejam restritivas quanto à oferta do aborto em gestações decorrentes de estupro, dos 1.115 estabelecimentos com capacidade de ofertar procedimento, apenas 88 o fazem. Ao todo, seguindo as normativas vigentes, são mais de 600 municípios com capacidade realizar a oferta e que não o fazem, ou seja, dez vezes mais municípios teriam capacidade de realizar o aborto em gestações decorrentes de estupro, abrangendo 35,4% a mais da população.

A respeito dessa lacuna, é relevante apontar que embora o Brasil seja um Estado laico, as decisões políticas que tocam o aborto são atravessadas pela moral religiosa1616 Giugliani C, Ruschel AE, Patuzzi GC, Silva MCB. Violência Sexual e Direito ao Aborto Legal no Brasil: fatos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021.,3030 Miguel LF, Biroli F, Mariano R. O direito ao aborto no debate legislativo brasileiro: a ofensiva conservadora na Câmara dos Deputados. Opiniao Publica 2017; 23(1):230-260.. O contexto de condenação social e estigmatização do aborto, alimentadas pela sua criminalização, limita a oferta e o acesso ao procedimento mesmo nas situações em que ele é legal. O estigma afeta a elaboração da política e as condições de instalação e manutenção do serviço1515 Culwell KR, Hurwitz M. Addressing barriers to safe abortion. International Journal of Gynecology & Obstetrics. 2013;121(S1):S16-9.,1616 Giugliani C, Ruschel AE, Patuzzi GC, Silva MCB. Violência Sexual e Direito ao Aborto Legal no Brasil: fatos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. como a formação e disponibilidade de profissionais não objetores3131 Diniz D, Madeiro A, Rosas C. Conscientious objection, barriers, and abortion in the case of rape: a study among physicians in Brazil. Reproduct Health Matters 2014; 22(43):141-148., a dedicação de gestores ao tema3232 Branco JGO, Brilhante AVM, Vieira LJES, Manso AG. Objeção de consciência ou instrumentalização ideológica? Uma análise dos discursos de gestores e demais profissionais acerca do abortamento legal. Cad Saude Publica 2020; 36(Supl. 1):e00038219. e a acessibilidade de informação à população3333 Artigo 19. Breve Panorama Sobre Aborto Legal e Transparência no Brasil. São Paulo: Artigo 19; 2018..

Por fim, no que tange ao cenário 3, é perceptível a ampliação de municípios com potencial de oferta de aborto em gestações decorrentes de estupro quando são tomadas como base as recomendações da OMS à luz do Código Penal brasileiro. Esse é o cenário que obedece a lei brasileira e as melhores evidências em saúde, desconsiderando as normas infralegais vigentes no país. Ou seja, a diferença entre os cenários 2 e 3 é dada pela restrição de potencial de oferta decorrente apenas de atos administrativos do Poder Executivo. Essa diferença implica na impossibilidade de oferta do aborto em gestações decorrentes de estupro em 3.079 municípios, a 32,2% da população. A restrição afeta especialmente a população das regiões Norte e Nordeste do país.

Mesmo nesse cenário não são todos os municípios que teriam capacidade de ofertar o aborto previsto em lei, ainda que a atenção primária seja extremamente capilarizada no país. Dada a necessidade de retaguarda de serviços de urgência, aproximadamente dois a cada três municípios teriam condições de realizar a oferta, cobrindo 94,3% da população. A cobertura estimada, contudo, é conservadora por considerar apenas os serviços presentes no município e não as pactuações regionais de oferta de serviços de urgência3434 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Manual instrutivo da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2013..

Nesse cenário, a atenção primária seria o local preferencial de oferta de aborto em gestações decorrentes de estupro durante as primeiras semanas de gestação, sempre com retaguarda de um serviço de urgência. A utilização de serviços de maior densidade tecnológica estaria restrita a complicações, a situações que demandassem cuidado especializado e a gestações mais avançadas.

A rede de saúde no Brasil é organizada por níveis de complexidade crescente, tendo a atenção primária nos territórios como porta de entrada prioritária ao sistema de saúde, e serviços de maior densidade tecnológica como referências3535 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Ministro. Portaria no 95, de 26 de janeiro de 2001. Norma Operacional da Assistência à Saúde/SUS, NOAS-SUS 01/2001. Diário Oficial da União; 2001.. Dessa forma, a fim de expandir a oferta no país, seria útil que os métodos menos invasivos de abortamento e sua realização ao menos nas primeiras semanas de gestação pudessem se dar em serviços de menor complexidade e mais capilarizados no território brasileiro, caso da atenção primária1313 World Health Organization (WHO). Abortion care guideline. Geneva: WHO; 2022.,3636 Maia MN. Oferta de aborto legal na atenção primária à saúde: uma chamada para ação. Rev Bras Med Fam Comunidade 2021; 16(43):2727.. A atenção primária está em praticamente todos os municípios do país e, desde a instituição do Sistema Único de Saúde, contribuiu para a redução das desigualdades de acesso à saúde, tanto no que diz respeito às diferenças regionais quanto entre grupos de diferentes níveis socioeconômicos3737 Souza LEPF, Paim JS, Teixeira CF, Bahia L, Guimarães R, Almeida-Filho N, Machado CV, Campos GW, Azevedo-E-Silva G. Os desafios atuais da luta pelo direito universal à saúde no Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(8):2783-2792..

A restrição de idade gestacional para realização do procedimento em segurança na atenção primária, contudo, limita a realização do procedimento no território quando a descoberta da gestação é tardia ou há demora em buscar atendimento. Essa restrição pode afetar especialmente pessoas de menor idade e menos escolaridade pela demora em identificar a gestação3838 Saavedra-Avendano B, Schiavon R, Sanhueza P, Rios-Polanco R, Garcia-Martinez L, Darney BG. Who presents past the gestational age limit for first trimester abortion in the public sector in Mexico City? PLoS One 2018; 13(2):e0192547.,3939 Blake MT, Drezett J, Machi GS, Pereira VX, Raimundo RDR, Oliveira FR, Tavares LFB, Figueiredo FWS, Paiva LS, Sarubbi Junior V, Adami F, Abreu LC. Factors associated with the delay in seeking legal abortion for pregnancy resulting from rape. Int Arch Med 2015; 8(29):1-14., assim como outras em maior vulnerabilidade como pessoas com deficiência mental, que estavam sob efeito de substância com ação no sistema nervoso central no momento do estupro ou que tem parentesco com o agressor3939 Blake MT, Drezett J, Machi GS, Pereira VX, Raimundo RDR, Oliveira FR, Tavares LFB, Figueiredo FWS, Paiva LS, Sarubbi Junior V, Adami F, Abreu LC. Factors associated with the delay in seeking legal abortion for pregnancy resulting from rape. Int Arch Med 2015; 8(29):1-14..

Além da idade gestacional, outras condições clínicas ou mesmo do contexto da usuária podem fazer com que seja necessário o atendimento em serviços especializados. Essas limitações de oferta na atenção primária fazem com que uma parte das pessoas elegíveis para o aborto previsto em lei precise se deslocar para outros estabelecimentos que não de atenção primária. Ainda assim, é certo que a descentralização tornaria o aborto mais acessível, evitando que essas gestações se prolonguem e tragam mais consequências à saúde mental e física de quem sofreu a violência sexual.

Ainda que o panorama desenhado aponte para a segurança da realização do aborto fora do ambiente hospitalar e, com isso, para um grande potencial de expansão do acesso, as normativas do país não têm avançado nesse sentido1616 Giugliani C, Ruschel AE, Patuzzi GC, Silva MCB. Violência Sexual e Direito ao Aborto Legal no Brasil: fatos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021.,3636 Maia MN. Oferta de aborto legal na atenção primária à saúde: uma chamada para ação. Rev Bras Med Fam Comunidade 2021; 16(43):2727.. Especificamente quanto ao aborto medicamentoso, em 2021 o Ministério da Saúde emitiu uma nota informativa em que aponta que, apesar das orientações da OMS, o Brasil não incorpora o uso do misoprostol fora de ambiente hospitalar por particularidades próprias à cultura e ao desenvolvimento do país4040 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Nota Informativa no 1/2021-SAPS/NUJUR/SAPS/MS. Brasília: MS; 2021.. Ainda que as particularidades não tenham sido elencadas, pode-se supor que dentre elas esteja a naturalização da privação de direitos sexuais e reprodutivos, especialmente a determinados grupos da população, característica cultural que mantem barreiras de acesso ao aborto em gestações decorrentes de estupro1616 Giugliani C, Ruschel AE, Patuzzi GC, Silva MCB. Violência Sexual e Direito ao Aborto Legal no Brasil: fatos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021.. Nesse cenário, o acesso ao cuidado em saúde é negligenciado e as mulheres são submetidas a tratamento degradante, perpetuando uma violência estrutural.

Limitações

Cabe ressaltar que o presente estudo é atravessado por limitações. A fonte de dados, o CNES, é preenchido pela gestão dos estabelecimentos de saúde e pode trazer informações incompletas. É descrito, por exemplo, que nem todos os serviços que ofertam aborto previsto em lei, em qualquer uma das causais, estão cadastrados como Serviço de Referência para Interrupção de Gravidez nos Casos Previstos em Lei no CNES, fazendo com que possivelmente mais municípios componham o cenário 11717 Jacobs MG, Boing AC. O que os dados nacionais indicam sobre a oferta e a realização de aborto previsto em lei no Brasil em 2019? Cad Saude Publica 2021; 37(12):e00085321.. Nesse sentido, todos os cenários podem ter tido o número de municípios subestimados por potenciais falhas de preenchimento no CNES. De todo modo, o CNES é um documento público e o sistema de informação oficial de cadastro dos estabelecimentos, ademais seu preenchimento é obrigatório para o funcionamento de qualquer estabelecimento de saúde no país. O cadastro tem como finalidade disponibilizar informações sobre os serviços, profissionais e capacidade instalada dos estabelecimentos, sendo a fonte de dados para outros sistemas de informação, bem como para a gestão da política de saúde e para a informação aos cidadãos2323 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Ministro. Portaria no 1.646, de 2 de outubro de 2015. Institui o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Diário Oficial da União; 2015..

Especificamente quanto aos cenários 1 e 2, não foi possível avaliar a capacidade de realização de coleta e guarda de material genético, conforme estabelece a Portaria 485/20141111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 485, de 1o de abril de 2014. Redefine o funcionamento do Serviço de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2014.. Esse requisito possivelmente restringe ainda mais a disponibilidade de serviços com capacidade de realizar a oferta de aborto em gestações decorrentes de estupro. A coleta e guarda desse material tem como foco a identificação criminal do autor do estupro1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Ministro. Portaria no 2.561, de 23 de setembro de 2020. Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Diário Oficial da União; 2020., e ainda que esse seja um direto das pessoas que sofreram a violência sexual, essa exigência não deve limitar o acesso ao aborto previsto em lei. A intenção de punição do agressor não pode turvar a urgência de cuidado à saúde de quem sobreviveu ao crime sexual, ou seja, nos serviços de saúde a lógica da segurança pública não deve se sobrepor à do cuidado1616 Giugliani C, Ruschel AE, Patuzzi GC, Silva MCB. Violência Sexual e Direito ao Aborto Legal no Brasil: fatos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021.. Esse mesma confusão de papeis aparece na Portaria 2.561/20201010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Ministro. Portaria no 2.561, de 23 de setembro de 2020. Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Diário Oficial da União; 2020., quando menciona a comunicação da violência sexual à autoridade policial nos casos de aborto em gestação decorrente de estupro. Essa norma pode afastar e limitar o acesso das mulheres que por algum motivo, inclusive de segurança, não queiram fazer a denúncia à polícia1616 Giugliani C, Ruschel AE, Patuzzi GC, Silva MCB. Violência Sexual e Direito ao Aborto Legal no Brasil: fatos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021..

Quanto ao cenário 3, além das limitações de registro já pontuadas, a cobertura pode ter sido ainda subestimada por terem sido incluídos apenas os municípios com serviços de urgência no próprio território, sem levar em conta as pactuações regionais que podem ampliar a retaguarda de serviço de urgência, logo a capacidade de oferta do aborto de forma segura.

Considerações finais

Os três cenários apresentados ilustram a oferta atual e potencial do aborto em gestações decorrentes de estupro no Brasil. Os cenários indicam que a escassez de oferta de aborto previsto em lei no Brasil não deriva hoje de limitação de recursos. Na comparação entre os cenários 1 e 2, fica evidenciado que a capacidade instalada de oferta é muito maior do que os atuais Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez nos Casos Previstos em Lei, expressando dificuldades de implantação do serviço que estão além das exigências de estrutura ou de equipe mínima. Já na comparação entre os cenários 2 e 3, fica apontado que as normativas infralegais sobre o aborto em gestações decorrentes de estupro impõem limites à oferta ao exigir estrutura desnecessária para a realização do procedimento. O Brasil não usufrui do potencial da capilarização da oferta do aborto nas primeiras semanas de gestação e continua centralizando esse cuidado em estabelecimentos de maior densidade tecnológica, concentrados em capitais, o que limita o acesso ao serviço.

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  • Financiamento

    O trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). O apoio se deu na forma de bolsa à autora MG Jacobs, com Código de Financiamento 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2022
  • Aceito
    18 Maio 2022
  • Publicado
    20 Maio 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br