Entrevista com Sonia Guajajara: o movimento indígena frente à pandemia da COVID-19

Sonia Bone Guajajara Daniela Fernandes Alarcon Ana Lucia de Moura Pontes Sobre os autores

Resumo

Nesta entrevista, Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), aborda as análises e estratégias desenvolvidas pelo movimento indígena para o enfrentamento da pandemia da COVID-19. Entre os pontos destacados, estão as estratégias de comunicação, vigilância e monitoramento da COVID-19, o apoio aos territórios indígenas, as iniciativas no Legislativo e no Judiciário, a incidência internacional e a articulação com a academia. Torna-se evidente o importante protagonismo do movimento indígena nas ações de contenção da emergência sanitária e na defesa dos direitos dos povos indígenas, em uma conjuntura de embate com o governo federal e de retrocessos nas políticas públicas.

Palavras-chave:
COVID-19; Movimentos sociais; Povos indígenas; Emergência em saúde pública

Sonia Bone Guajajara, nascida em 1974, pertence ao povo Guajajara/Tenetehára, que habita a Terra Indígena Araribóia, no estado do Maranhão, Brasil. É formada em letras e enfermagem, e fez pós-graduação em educação especial. Sua militância no campo dos direitos indígenas e ambientais começou ainda na juventude, nos movimentos de base, e logo ganhou projeção nacional e internacional pela luta travada em favor dos povos originários. Ela tem voz no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) e há dez anos leva denúncias a diversos órgãos e instâncias internacionais, já havendo recebido vários prêmios e honrarias por seu trabalho. Atualmente, faz parte da Coordenação Executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA).

Entrevistadoras: No contexto imediatamente anterior à pandemia, quais eram as principais pautas e estratégias de atuação da APIB?

Guajajara: Antes da pandemia, estávamos planejando a pauta do Acampamento Terra Livre (ATL) de 2020. A saúde era um dos primeiros pontos, porque cada vez mais as ações na área estavam sendo reduzidas, as condições nos territórios, totalmente decadentes. Por exemplo, até hoje, o combustível para os transportes da saúde acaba na metade do mês. Outro ponto é que a retirada dos médicos cubanos [Programa Mais Médicos] gerou um buraco que não se conseguiu resolver até hoje. Muitos médicos se recusam a ir para as aldeias, por falta de condições. Não é só o salário: a SESAI [Secretaria Especial de Saúde Indígena] não oferece nenhuma estrutura para a equipe médica permanecer nas aldeias. E, é claro, nossa prioridade era o enfrentamento geral ao governo [de Jair] Bolsonaro. Não é só você lutar pela saúde, educação ou demarcação de terra: é todo um desmonte de políticas, enfraquecimento dos órgãos, ataques aos direitos e à vida. O aumento das queimadas, do desmatamento e dos conflitos impacta muito os povos indígenas. Com a pandemia, isso não acabou; pelo contrário, aumentou. Nós tivemos que direcionar o foco para articular um plano de enfrentamento à pandemia. Não foi fácil para nós, uma doença nova, matando muita gente. Tivemos também que nos reorganizar para fazer aquilo que o governo não estava fazendo. A COVID-19 começou a chegar às aldeias e o governo nada fazia para adequar seu plano de saúde para essa situação. Nós começamos a articular um plano da APIB, junto ao Congresso [Nacional], com a deputada Joênia Wapichana (Rede/RR) e a bancada da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas [FPMDDPI] para a elaboração de um projeto de lei (PL nº 1.142). Articulamos junto ao Supremo [Tribunal Federal - STF] para que pudéssemos, minimamente, garantir atendimento ao conjunto dos povos indígenas. Nós não mudamos o foco, ampliamos. Tivemos que permanecer enfrentando todos os históricos problemas e desafios, acrescentando-se a pandemia11 Santos RV, Pontes AL, Coimbra CEA. Um “fato social total”: COVID-19 e povos indígenas no Brasil. Cad Saude Publica 2020; 36(10):e00268220.,22 Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Nossa luta é pela vida: covid-19 e povos indígenas, o enfrentamento das violências durante a pandemia. Brasília: Apib; 2020..

Entrevistadoras: A APIB, já no dia 12 de março de 2020, suspendeu o ATL presencial, rapidamente reorganizando-o em modalidade virtual, e no começo de maio organizou a Assembleia da Resistência para discutir um plano para enfrentamento à COVID-19. Como explicar essa percepção tão clara da urgência daquele momento?

Guajajara: Nós realmente fomos muito rápidos. Lembro que, em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a pandemia, e no dia 12, lançamos um comunicado geral [disponível em: https://apiboficial.org/2020/03/12/comunicado-geral-acampamento-terra-livre- adiado/], cancelando o ATL, marcado para 27 a 30 de abril22 Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Nossa luta é pela vida: covid-19 e povos indígenas, o enfrentamento das violências durante a pandemia. Brasília: Apib; 2020.,33 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.. Nesse comunicado, já indicamos medidas preventivas e orientações dos protocolos da OMS, e a necessidade de fortalecimento do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena [SASI]. Muita gente achou precipitado cancelarmos o ATL, mas pensamos assim: “É um vírus que está se espalhando muito rápido, que tem uma proliferação incomum e por meio do contato.” Nós, indígenas, tendo hábitos altamente coletivos, entendemos que não seria fácil conter a transmissão e, se realizássemos o acampamento presencial, o vírus poderia se disseminar ainda mais. Acho que também, lá atrás, a experiência com tantas mortes causadas por outros vírus fez com que nós temêssemos muito que tudo voltasse a se repetir. Então, quisemos passar segurança e clareza para nosso povo e evitar uma tragédia.

Entrevistadoras: O governo Bolsonaro assumiu, desde o início, uma postura negacionista da ciência no enfrentamento da COVID-19. Por outro lado, a APIB se articulou com o Projeto Xingu, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e com os pesquisadores do Grupo Temático (GT) de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Você poderia comentar essa parceria do movimento indígena com a academia?

Guajajara: Foi muito importante essa parceria logo no início, porque nós, que estávamos à frente, fazendo as articulações para garantir a saúde e a proteção [dos povos indígenas], precisávamos ter esse apoio, a ciência ao nosso lado. Todo o trabalho que a Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] e a Abrasco já vinham desenvolvendo, para nós, foi um porto seguro. Vocês chegaram com toda a segurança, nos orientando a continuar com a medicina tradicional, não como cura, mas como fortalecimento da imunidade. Então, nós conseguimos ampliar as parcerias para além do Projeto Xingu e da Abrasco e, com outros médicos, juntos elaboramos o Plano Emergência Indígena [é possível acessar o plano na íntegra em: https:// emergenciaindigena.apiboficial.org/dados_ covid19 ], que orientou todo o período de 2020.

Entrevistadoras: A APIB e suas organizações de base vêm monitorando casos de infecção e óbitos por COVID-19 e produzindo materiais educativos. Como tem sido para o movimento indígena se apropriar dos debates e ferramentas técnicas, como a vigilância da COVID-19, em seu espaço de luta?

Guajajara: Logo no início da parceria [com outros setores], tivemos o entendimento de criar o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena [ver: https://emergenciaindigena.apiboficial.org/dados_covid19/], porque começamos a divulgar os dados a partir do que estávamos recebendo das nossas bases, e o governo começou a contestar, dizendo que a APIB estava com dados mentirosos. Então, nós criamos o comitê, que articula as entidades de base da APIB e tem o apoio de organizações, coletivos e ativistas, inclusive da academia, como a Abrasco. Nós tivemos ali todos esses profissionais para respaldar os dados que estávamos levantando. Isso foi bem importante para contestarmos o negacionismo do governo. E conseguimos ter respaldo técnico para continuar o levantamento e a sistematização dos dados. Vale destacar também os materiais de prevenção que elaboramos juntos, como o documento para as orientações de higiene nas doações de alimentos [ver: https://apiboficial.org/2020/04/13/apib-constroi-recomendacoes-de-higiene-para-apoio-nas-comunidades/], porque quando viam ali a APIB, com a parceria da Abrasco, Fiocruz, Projeto Xingu, todo mundo já sentia que havia segurança técnica para seguir os protocolos.

Entrevistadoras: Vimos também a rápida emergência de iniciativas em nível local e regional por parte das comunidades e organizações indígenas. Quanto dessas iniciativas se relaciona à autonomia dos povos indígenas e quanto foi resposta à omissão e à insuficiência da resposta governamental?

Guajajara: A todo momento nos preocupamos muito com isso, porque queríamos garantir a segurança e o cuidado, mas não assumir o papel do Estado. Acho que conseguimos discernir bem. O primeiro pedido de apoio que chegou para nós foi para alimentação nas aldeias. O povo sentiu necessidade de produzir seu próprio alimento e ter segurança alimentar de forma autônoma. Então, em relação àquilo que era nosso, que entrava de forma complementar [à responsabilidade estatal], nós buscamos apoio. Quanto ao que era [obrigação] do governo, buscamos apoio jurídico, mobilização para pressionar para ele assumir33 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.. Nós separamos bem os papéis, fazendo o nosso, mas também cobrando o governo.

Entrevistadoras: Você pode comentar a campanha Vacina Parente e o trabalho de combate às fake news relativas à vacinação?

Guajajara: A campanha Vacina Parente [para informações acesse: https://emergenciaindigena.apib oficial.org/vacinaparente/ ] veio logo em seguida ao anúncio do início da campanha de vacinação contra a COVID-1933 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.. Nós nos antecipamos também na vacina quando incluímos essa demanda na ADPF [Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental] nº 709. Quando começou aquele aumento de mortes desenfreado, nós dissemos: “Estamos entre os grupos mais vulneráveis.” Portanto, tínhamos que estar também no grupo prioritário para a vacina. Vocês [Sônia se refere ao grupo de especialistas da Fiocruz e do GT Saúde Indígena da Abrasco que elaborou diversas notas técnicas para subsidiar a ação da União no enfrentamento da COVID-19 no contexto dos povos indígenas. As notas estão disponíveis em: https://www.abrasco.org.br/site/gtsaudeindigena/documentos/ ] ajudaram bastante na orientação do que deveria constar nas demandas da APIB na ADPF. Quando saiu a vacina, e nós estávamos no grupo prioritário, começamos a incentivar a vacinação. Não bastava estar como prioridade, tinha que ter clareza, informação do que seria essa vacina, se teria efeitos [adversos], como seria a aplicação. Então, fizemos todo um trabalho de incentivo à vacinação, com a campanha Vacina Parente, e para combater fake news. Porque eles [o governo] liberaram a vacina para nós, mas espalharam muita mentira, para que o povo não se vacinasse. Colocaram os indígenas no grupo prioritário e, logo em seguida, já disseram que iam destinar a vacina que era para nós para outros grupos, porque os indígenas não queriam, sendo que eles mesmos trabalharam fortemente para haver rejeição à vacina. Valeu muito a campanha toda. A mulherada se viu ali no mês de fevereiro [de 2021] com lives semanais para esclarecer e incentivar os indígenas a tomarem a vacina33 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.. Onde ainda há negacionismo, seguimos orientando até hoje e comprovando que a vacina é a forma mais eficaz de acabarmos de vez com a pandemia.

Entrevistadoras: Como foi a construção da estratégia de que o caminho seria chegar ao STF para enfrentar a pandemia?

Guajajara: Nós tínhamos perdido muitas ações em outras instâncias. Quando elaboramos o Plano Emergência Indígena, determinamos que teríamos alguns eixos principais: o eixo da comunicação, para dar visibilidade a tudo que estávamos fazendo; o eixo jurídico, para acessar todas as instâncias, para cobrarmos e pressionarmos o governo; e o eixo da articulação internacional, para o fortalecimento de uma rede internacional para continuar com a pressão22 Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Nossa luta é pela vida: covid-19 e povos indígenas, o enfrentamento das violências durante a pandemia. Brasília: Apib; 2020.,33 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.. Cada um dos eixos foi se organizando com aliados das várias áreas e elaborou uma estratégia. Assim, fomos construindo coletivamente o plano como um todo. Nessa discussão ampla e coletiva, chegamos à definição de que era importante ir ao STF. E, é claro, é preciso registrar aqui a atuação do doutor Luiz Eloy Terena e de toda a equipe da assessoria jurídica da APIB, com uma sabedoria e um profissionalismo muito grandes33 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.,44 Alarcon DF, Pontes ALM, Cruz FSM, Santos RV, organizadores. A gente precisa lutar de todas as formas: povos indígenas e o enfrentamento da covid-19 no Brasil. São Paulo: HUCITEC; 2022.. Nós tínhamos que atuar em alto nível para demonstrar a competência de articulação dos povos indígenas. E comprovar a fragilidade, a desarticulação do governo. Para nós, foi apostar alto, e deu muito certo. E o doutor Eloy Terena foi o grande mestre dessa ação.

Entrevistadoras: Em relação à ADPF nº 709, qual a sua avaliação?

Guajajara: A ADPF foi um fenômeno na luta do movimento indígena44 Alarcon DF, Pontes ALM, Cruz FSM, Santos RV, organizadores. A gente precisa lutar de todas as formas: povos indígenas e o enfrentamento da covid-19 no Brasil. São Paulo: HUCITEC; 2022.. Só de ser acatada já foi um ganho, porque foi a primeira vez na história que o STF acatou uma representação feita pelo próprio movimento indígena[ver: https://apiboficial.org/2020/08/01/adpf-709-no-supremo-povos -indigenas-e-o-direito-de-existir/]. O segundo ganho foi todo o conjunto de medidas que conseguimos articular ali e que foi acatado em seus principais pontos pelo Supremo. Um deles foi a determinação de que o governo federal criasse uma sala de situação para tratar especificamente dos povos isolados e de recente contato e de suas barreiras sanitárias. O outro, a criação de um grupo de trabalho para elaborar o plano de enfrentamento [à pandemia] da União, com representantes indígenas e parceiros, como o grupo de especialistas da Fiocruz e do GT Saúde Indígena da Abrasco. Outros pedidos foram a retirada dos invasores dos territórios yanomami e munduruku, e a vacinação para os indígenas em contexto urbano. Mesmo que o ministro [Luís Roberto] Barroso tenha indicado essa extensão somente para onde houvesse barreiras de acesso ao SUS [Sistema Único de Saúde], foi uma recomendação clara para que os indígenas na cidade fossem vacinados, e isso ajudou bastante. Outro ponto importante foi a vacina para os povos que estavam fora das áreas demarcadas, porque inicialmente o governo restringiu a prioridade para quem estava em área demarcada, mas a ADPF determinou o acréscimo de recurso para disponibilizar ações para os indígenas nas demais áreas. Então a ADPF nº 709 foi importantíssima44 Alarcon DF, Pontes ALM, Cruz FSM, Santos RV, organizadores. A gente precisa lutar de todas as formas: povos indígenas e o enfrentamento da covid-19 no Brasil. São Paulo: HUCITEC; 2022..

Entrevistadoras: Gostaríamos que você comentasse um pouco a incidência no campo político partidário e no Congresso. A deputada federal Joênia Wapichana é a primeira mulher indígena eleita e, em 2018, você foi candidata a vice-presidente pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Como avalia essas estratégias e conquistas?

Guajajara: O ano de 2018 foi um marco para as lutas dos povos indígenas, porque tivemos a primeira presença indígena em uma chapa presidencial. Eu estive ali compondo e até hoje colhemos resultados significativos da participação no pleito. Os resultados eleitorais não foram os melhores, mas o resultado político foi muito importante para a ampliação das parcerias e da visibilidade da nossa luta. E ter a Joênia Wapichana eleita, a primeira mulher indígena deputada federal, também demarcou a presença indígena no Congresso. Nós temos parceiros e aliados lá dentro, mas ter a Joênia ali já fez uma grande diferença. A todo momento querem atacá-la e desqualificá-la, e ela tem resistido como uma gigante. Precisamos de mais vozes indígenas no Congresso, para ampliar a voz da Joênia. Nas eleições municipais passadas, foi um crescimento enorme na disputa eleitoral, tivemos o maior número de indígenas eleitos vereadores, e agora estamos articulando para que em 2022 tenhamos o maior número de candidaturas articuladas pelo movimento indígena. Isso se dá porque entendemos que, sendo o Congresso o lugar onde se decide sobre nossas vidas e nossos direitos, precisamos ter gente nossa ali. E, de fato, é uma contribuição importante para a democracia brasileira. A política institucional tem que ter a representação da diversidade brasileira e nós, indígenas, somos um desses segmentos que precisa ocupar a política institucional para ajudar na reconstrução deste país.

Entrevistadoras: Como você avalia a atuação de Joênia e da FPMDDPI no contexto da pandemia, particularmente na formulação da Lei nº 14.021/2020?

Guajajara: A construção do PL nº 1.142, que virou a Lei nº 14.021, teve nossa participação, enquanto APIB, e também das lideranças indígenas33 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.. A atuação da deputada Joênia foi muito importante na construção [do PL]. Havia ali cinco ou seis projetos de lei [sobre a questão], e nós conseguimos apresentar apenas um e ter a deputada como relatora. Isso demonstrou nossa maturidade, a partir do diálogo com os parlamentares, para apresentar apenas uma proposta e ter possibilidade de aprová-la. Aprovamos na Câmara [dos Deputados], aprovamos no Senado [Federal] e, quando chegou ao Executivo, o presidente Bolsonaro vetou cerca de 22 pontos, entre os quais o acesso à água potável, a materiais de orientação sobre a COVID, a leitos de UTI. Enfim, isso foi só uma demonstração de que este governo realmente não tinha interesse em conter a pandemia, de que ele era conivente com todas as mortes e infecções entre os povos indígenas. Além disso, durante a passagem [do PL] pela Câmara, acrescentou-se a [autorização à] permanência de missionários nas áreas de povos isolados. Isso foi um nó que ficou nessa lei, bem prejudicial aos povos isolados, que estamos revertendo pelo Judiciário. Foi importante o processo todo, mas é uma lei que não saiu do papel, não conseguimos ver, de fato, uma implementação satisfatória.

Entrevistadoras: Como você vê a conexão entre aquilo que se faz nos corredores do Congresso, no STF, e a luta no chão, no território?

Guajajara: Tudo o que fazemos na luta do movimento é exatamente para o resultado chegar ao território. Se lutamos por direito é para que o nosso povo continue lá com direito a viver na aldeia, ter o seu território, sua liberdade. Se nós viemos para Brasília, é para que o nosso povo que quer ficar lá [nas aldeias] não saia. Nós queremos sair, mas queremos ter o direito de voltar. Para nós, o território é esse lugar sagrado, que continua sendo a bandeira de luta maior dos povos indígenas do Brasil. É uma relação de existência, uma relação mesmo de identidade. Nossa luta maior é esta: garantir o território para garantir a nossa existência, com a nossa identidade.

Entrevistadoras: Durante a pandemia, a APIB recorreu diversas vezes a organismos como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a ONU e, agora em agosto, o Tribunal Penal Internacional (TPI). Quais as expectativas da APIB para a incidência internacional na luta pelos direitos indígenas?

Guajajara: O espaço internacional tem sido fundamental para ampliarmos a visibilidade dos povos indígenas, e também a pressão. Internacionalmente, nós temos conseguido articular com a sociedade civil, com parlamentares, com organismos como a ONU e a OEA [Organização dos Estados Americanos], e também na relação com empresas, no sentido de conscientizar que tudo que eles fazem aqui ou em qualquer outro lugar tem um custo, um impacto direto. É preciso monitorar a cadeia de produção, financiamento e comercialização para verificar os impactos ao meio ambiente e aos direitos humanos. Isso tem ajudado também para que outras pessoas percebam que as empresas têm papel fundamental na mudança. E que a sociedade civil tem o papel de ajudar a pressionar tanto essas empresas, na sua cadeia, quanto os parlamentares nos seus países, para criarem leis para monitorar e garantir a rastreabilidade desses produtos e dessas empresas. É uma articulação grande, que tem resultado direto aqui. É uma articulação, porque não é somente você acessar essas instâncias para discursar, mas para denunciar, dar visibilidade e ganhar adesão da comunidade internacional para ajudar na pressão. E no TPI agora, entendemos que a APIB tinha que entrar também de forma direta, para acusar o governo Bolsonaro por crime de genocídio e ecocídio. Todas as práticas deste governo comprovam o genocídio e o ecocídio33 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022. planejados institucionalmente. Tudo que nós temos feito tem tido impacto direto no governo. Eles podem não mudar a sua ação, mas tudo isso junto acaba enfraquecendo e constrangendo cada vez mais.

Entrevistadoras: Como você vê os impactos imediatos e futuros da COVID-19 para os povos indígenas?

Guajajara: Muitos anciãos, que eram detentores da cultura, morreram, então houve certo enfraquecimento. A pandemia deixou um rastro irreversível - tantas perdas, tantas mortes, tantas dores, e ainda não acabou. Eu acho que agora o impacto tem que ser positivo, porque nós temos que repensar a continuidade, inclusive das relações, da empatia, do cuidado, mas também ampliar a discussão sobre o rompimento deste modelo econômico. Não podemos mais seguir com a destruição da biodiversidade. Se seguirmos assim, outras pandemias virão, porque o desequilíbrio está aumentando cada vez mais, desestruturando toda a biodiversidade, os ecossistemas. Sem contar as mudanças climáticas, que estão cada vez mais crescentes. Nós precisamos trazer isso também como um problema grave, que precisa ser contido agora, para podermos garantir o futuro. É pensar o impacto de todas as perdas, das dores, mas tirar como aprendizado, como lição sobre a mudança de comportamento e de relações para evitarmos outras pragas e pandemias como esta.

Entrevistadoras: Neste contexto de problemas globais, como outras emergências sanitárias e a crise climática, como você percebe as articulações entre as ciências produzidas a partir das universidades e dos territórios indígenas?

Guajajara: A própria Declaração de Nova Iorque sobre as Florestas, de 2014, e o Acordo de Paris reconhecem o conhecimento dos povos indígenas e de comunidades tradicionais como conhecimento científico. O que falta fazer é implementar essas práticas, valorizar esses saberes e associá-los ao conhecimento científico, entender que um não anda sem o outro. É exatamente essa articulação dos dois saberes que vai garantir todas as mudanças necessárias para o mundo.

Referências

  • 1
    Santos RV, Pontes AL, Coimbra CEA. Um “fato social total”: COVID-19 e povos indígenas no Brasil. Cad Saude Publica 2020; 36(10):e00268220.
  • 2
    Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Nossa luta é pela vida: covid-19 e povos indígenas, o enfrentamento das violências durante a pandemia. Brasília: Apib; 2020.
  • 3
    Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.
  • 4
    Alarcon DF, Pontes ALM, Cruz FSM, Santos RV, organizadores. A gente precisa lutar de todas as formas: povos indígenas e o enfrentamento da covid-19 no Brasil. São Paulo: HUCITEC; 2022.

  • Financiamento

    Wellcome Trust - 203486/Z/16/Z.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2021
  • Aceito
    01 Dez 2021
  • Publicado
    03 Dez 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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