O trabalhar nas intervenções em saúde e segurança no trabalho: reflexões sobre a construção de uma política integrada

Selma Lancman Maria Teresa Bruni Ruri Giannini Viviane Barreto Sales Juliana de Oliveira Barros Sobre os autores

Resumo

As intervenções em ambientes, processos e situações de trabalho contemplam a prevenção de doenças, acidentes e a manutenção da saúde dos trabalhadores. Iniciaram-se no Ministério do Trabalho; foram ampliadas para a Saúde e por fim assumidas pelo Ministério Público do Trabalho. Buscou-se conhecer e dar visibilidade ao trabalhar dos atores dos diferentes setores e instituições do município de São Paulo envolvidos nessas intervenções e compreender entraves e consequências dos limites da intersetorialidade. Entre 2017 e 2019 realizou-se grupos de reflexão sobre o trabalho com profissionais do MT, Saúde e MPT. Para a produção de dados e análise do material, utilizou-se o referencial da Psicodinâmica do Trabalho. Os três setores estão intimamente ligados nos seus objetivos, mas em São Paulo, seguem com dificuldades em consolidar a intersetorialidade prevista nas políticas de saúde e segurança no trabalho. Apesar de existirem parcerias pontuais, somar suas especificidades de ação, reconhecer e respeitar reciprocamente a expertise de cada um, evitar sobreposições, e construir práticas conjuntas, cooperativas e colaborativas é um desafio.

Palavras-chave:
Saúde do Trabalhador; Políticas Públicas de Saúde; Colaboração Intersetorial; Trabalho

Introdução

As intervenções nos ambientes de trabalho são realizadas no Brasil desde o início do século XX. Sua caracterização, alcance, escopo, origens e filiações institucionais, foram se modificando historicamente, por reconfigurações político-ministeriais.

Para a realização dessas intervenções é necessário que os profissionais tenham formação específica sobre normas técnicas e éticas em acordo com as diretrizes e legislações específicas dos órgãos onde atuam11 Hale A. From national to European frameworks for understanding the role of occupational health and safety (OHS) specialists. Saf Sci 2019; 115:435-445.,22 Los FS, Hulshof CTJ, Sluiter JK. The view and policy of management of occupational health services on the performance of workers' health surveillance: a qualitative exploration. BMC Health Serv Res 2019; 19:473..

Neste contexto, diversos países signatários da Organização Internacional do Trabalho (OIT) iniciaram, desde a década de 1950, a uniformização de diretrizes e abordagens para a atuação de especialistas em saúde e segurança no trabalho11 Hale A. From national to European frameworks for understanding the role of occupational health and safety (OHS) specialists. Saf Sci 2019; 115:435-445.. Tinham como preocupação comum assegurar o acesso ao trabalho decente e produtivo, em condições de liberdade, segurança e dignidade33 Organização Internacional do Trabalho (OIT). Trabalho Decente [Internet]. [acessado 2020 jul 6]. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-decente/lang--pt/index.htm.
https://www.ilo.org/brasilia/temas/traba...
. Isso é considerada condição fundamental para redução da pobreza e das desigualdades sociais, garantia da democracia e desenvolvimento sustentável.

No Brasil, temos referências de “Inspeções do Trabalho”, ligadas ao então Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, desde 1930 e visavam garantir os preceitos legais44 Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho. Auditoria Fiscal do Trabalho - Conheça a Auditoria [Internet]. [acessado 2020 jun 10]. Disponível em: https://sinaitsp.org.br/conheca-a-auditoria.
https://sinaitsp.org.br/conheca-a-audito...
. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1943 regulamentou as relações individuais e coletivas de trabalho e tornou obrigatória a inspeção com foco na segurança no trabalho, voltada apenas aos trabalhadores com vínculo empregatício formal.

Em 2002, o então Ministério do Trabalho (MT) formalizou sua atuação e atribuições a partir da criação do Sistema Federal da Inspeção do Trabalho55 Brasil. Decreto nº 4.552, de 27 de dezembro de 2002. Aprova o Regulamento da Inspeção do Trabalho. Diário Oficial da União 2002; 30 dez. e da criação da carreira de Auditores Fiscais do Trabalho (AFs)66 Brasil. Lei nº 10.593, de 6 de dezembro de 2002. Dispõe sobre a reestruturação da Carreira Auditoria do Tesouro Nacional. Diário Oficial da União 2002; 9 dez.. Suas atribuições passaram a ter também um caráter de orientação técnica aos envolvidos nessa fiscalização.

No âmbito da saúde, a mobilização política aliada às conferências nacionais de saúde77 Lancman S, Daldon MTB, Jardim TA, Rocha TO, Barros JO. Intersetorialidade na saúde do trabalhador: velhas questões, novas perspectivas? Cien Saude Colet 2019; 25(10):4033-4044. culminaram na criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1990, e incluíram a Saúde do Trabalhador (ST) como direito universal havendo a ampliação da compreensão do processo saúde-doença, tomando o trabalho como um de seus principais determinantes. Foram fundamentais o referencial teórico-metodológico da Medicina Social Latino Americana, do Modelo Operário, da epidemiologia88 Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo: Ed. Cebes-Hucitec; 1989.,99 Machado JMH. Processo de vigilância em saúde do trabalhador. Cad Saude Publica 1997; 13(Supl. 2):33-45. e da Ergonomia da atividade de origem franco-belga1010 Güérin F, Kerguelen A, Laville A, Daniellou F, Duraffourg J. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blucher; 2001..

Foi reforçada a compreensão de que a intervenção nos locais trabalho é fundamental para a promoção da saúde e prevenção de adoecimentos e acidentes. Compete ao SUS executar as ações de vigilância em saúde, que compreende a vigilância sanitária, epidemiológica e em saúde do trabalhador. Isso transformou as práticas de intervenção no trabalho para além das exercidas até então pelo MT77 Lancman S, Daldon MTB, Jardim TA, Rocha TO, Barros JO. Intersetorialidade na saúde do trabalhador: velhas questões, novas perspectivas? Cien Saude Colet 2019; 25(10):4033-4044.,1111 Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. Diário Oficial da União 1990; 20 set..

Diversos autores pesquisaram os contextos que desenvolveram a vigilância em ambientes de trabalho em seus aspectos históricos e conceituais apontando avanços e dificuldades para a consolidação dessas ações77 Lancman S, Daldon MTB, Jardim TA, Rocha TO, Barros JO. Intersetorialidade na saúde do trabalhador: velhas questões, novas perspectivas? Cien Saude Colet 2019; 25(10):4033-4044.,1212 Minayo-Gomes C, Thedim-Costa SM. A construção do campo da Saúde do Trabalhador: percurso e dilemas. Cad Saude Publica 1997; 13(Supl. 2):21-32.

13 Daldon MTB, Lancman S. Vigilância em Saúde do Trabalhador: rumos e incertezas. Rev Bras. Saude Ocup 2013; 38:92-106.

14 Vasconcellos LCF, Gomez CM, Machado JMH. Entre o definido e o por fazer na Vigilância em Saúde do Trabalhador. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4617-4626.
-1515 Barros JO, Daldon MTB, Rocha TO, Lancman S, Sznelwar L. Intersetorialidade em saúde e trabalho no contexto atual brasileiro: utopia da realidade? Interface (Botucatu) 2020; 24:e190303..

Nas ações e diretrizes da Vigilância em Saúde do Trabalhador (VISAT) estão incluídos a intervenção nos processos, condições e ambientes de trabalho; considerações acerca da complexidade e de novas formas de adoecer, ultrapassando o aspecto normativo tratado pela fiscalização tradicional. Esse conjunto desencadeia diferentes frentes de trabalho e a incorporação de conhecimentos de diversas instâncias, além de uma perspectiva interdisciplinar1313 Daldon MTB, Lancman S. Vigilância em Saúde do Trabalhador: rumos e incertezas. Rev Bras. Saude Ocup 2013; 38:92-106.,1616 Brasil. Portaria nº 1.378, de 9 de julho de 2013. Regulamenta as responsabilidades e define diretrizes para execução e financiamento das ações de Vigilância em Saúde pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, relativos ao Sistema Nacional de Vigilância em Saúde e Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Diário Oficial da União; 2013..

Entre os anos 1980 e 1990, foram criados os primeiros Programas de Saúde do Trabalhador e os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST). Com âmbito municipal ou estadual, estes centros têm como foco principal promover a saúde dos trabalhadores por meio da VISAT, do diagnóstico e acompanhamento das patologias decorrentes do trabalho. Essas ações são consideradas indissociáveis e se retroalimentam.

A VISAT caracteriza-se como um eixo estruturante e transversal de proteção à ST, voltada para a prevenção dos agravos à saúde relacionados ao trabalho e transformação das situações geradoras de doenças profissionais e de acidentes de trabalho77 Lancman S, Daldon MTB, Jardim TA, Rocha TO, Barros JO. Intersetorialidade na saúde do trabalhador: velhas questões, novas perspectivas? Cien Saude Colet 2019; 25(10):4033-4044.,1717 Brasil. Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. Diário Oficial da União 2012; 24 ago.,1818 Araújo TM, Palma TDF, Araújo NDC. Work-related mental health surveillance in Brazil: Characteristics, difficulties, and challenges. Cien Saude Colet 2017; 22(10):3235-3246..

Por fim, o Ministério Público do Trabalho (MPT), se fortaleceu após a promulgação da nova Constituição e teve sua atuação consolidada na área de Saúde e Trabalho no início do século XXI. Ele conta com procuradores e peritos que defendem direitos coletivos e difusos dos trabalhadores, fiscalizam o cumprimento das leis trabalhistas e mediam as relações entre empregadores e empregados. Para tanto, os procuradores quando julgam necessário, recebem a assessoria e subsídio de analistas peritos (APs), profissionais da área de engenharia, medicina e contabilidade, nas ações de fiscalização.

Observa-se que os diferentes setores utilizam denominações próprias para suas ações de intervenção associadas aos referencias teóricos, concepções e prescrições do trabalho adotados em suas práticas.

Os auditores fiscais (AFs) do MT sempre tiveram como atributo inspecionar o cumprimento de leis e normas e aplicar sanções em caso de descumprimento. Já, os profissionais do CERESTs, que atuam nas VISATs, a partir de 2003 foram investidos do poder de autoridades sanitárias (ASs) podendo atribuir sansões (interdições e multas) nos casos de descumprimento de normas relativas à saúde e trabalho. Os APs têm como atribuição realizar diligências em locais de trabalho a fim de produzir relatórios técnicos que instruirão os processos movidos pelo MPT.

Os caminhos e as proposições acerca da integração entre os setores e serviços envolvidos na saúde e segurança no trabalho foram amplamente debatidos, como aponta Barros et al.1515 Barros JO, Daldon MTB, Rocha TO, Lancman S, Sznelwar L. Intersetorialidade em saúde e trabalho no contexto atual brasileiro: utopia da realidade? Interface (Botucatu) 2020; 24:e190303., na 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), em 1986 e na 1ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador (CNST), em 1989, e normatizados pela Constituição de 1988 e pela construção do SUS77 Lancman S, Daldon MTB, Jardim TA, Rocha TO, Barros JO. Intersetorialidade na saúde do trabalhador: velhas questões, novas perspectivas? Cien Saude Colet 2019; 25(10):4033-4044..

Outro marco importante deste processo foi a construção de ações complementares e correlatas realizadas conjuntamente pelos então denominados Ministérios da Saúde (MS), da Previdência Social (MPS) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que deu origem à Política Nacional de Saúde e Segurança no Trabalho (PNSST)1919 Brasil. Decreto nº 7.602, de 7 de novembro de 2011. Dispõe sobre a Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho. Diário Oficial da União 2011; 8 nov..

Entretanto, os processos e reconfigurações institucionais, a Constituição Federal e a criação do SUS parecem, por vezes, ter acirrado disputas por espaços de atuação, com sobreposição de competências e pouca aproximação e colaboração entre os setores envolvidos1313 Daldon MTB, Lancman S. Vigilância em Saúde do Trabalhador: rumos e incertezas. Rev Bras. Saude Ocup 2013; 38:92-106..

Diante deste contexto, buscou-se conhecer e dar visibilidade ao trabalho dos atores envolvidos em inspeções, vigilâncias e diligências no trabalho, a partir dos diferentes setores e instituições que compõem o campo “Saúde e Trabalho” no município de São Paulo. Buscou-se ainda compreender entraves e consequências dos limites da intersetorialidade no bojo destas práticas.

Metodologia

Este artigo apresenta os resultados parciais da pesquisa “Construção da intersetorialidade no campo saúde e trabalho: perspectiva dos profissionais inseridos na rede de serviços do município de São Paulo”, desenvolvida desde 2016 no município de São Paulo77 Lancman S, Daldon MTB, Jardim TA, Rocha TO, Barros JO. Intersetorialidade na saúde do trabalhador: velhas questões, novas perspectivas? Cien Saude Colet 2019; 25(10):4033-4044.,1515 Barros JO, Daldon MTB, Rocha TO, Lancman S, Sznelwar L. Intersetorialidade em saúde e trabalho no contexto atual brasileiro: utopia da realidade? Interface (Botucatu) 2020; 24:e190303. e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da USP - CAAE:58418816.1.0000.0065 - Parecer CEP: 1.829.674.

Entre os anos de 2017 e 2019, foram realizados grupos de reflexão sobre o trabalho com AFs - MT, ASs - CEREST e APs - MPT, com o intuito de compreender o trabalho realizado por eles, ou seja: apreender o trabalhar, o conteúdo da atividade, as dificuldades vivenciadas e o saber-fazer construído ao longo dos anos. Procurou-se ainda detectar diferenças no escopo do trabalho e concepções, além de sobreposições e similaridades nas atuações realizadas.

Para a produção de dados empíricos e análise do material, utilizou-se o referencial teórico da Psicodinâmica do Trabalho (PDT). A PDT, como clínica do trabalho, se interessa pela mobilização subjetiva que acontece a partir do encontro entre sujeito e organização do trabalho e das relações que decorrem a partir daí. Ela integra um conjunto de métodos “ascendentes”, nos quais as compreensões e construções teóricas de situações concretas de trabalho se dão por meio da escuta dos envolvidos. Trata-se de um método qualitativo, interativo, que pressupõe que pesquisa e intervenção são indissociáveis2020 Lancman S, Sznelwar LI, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo15, Rio de Janeiro: Fiocruz; 2004.. A PDT diferencia-se de outras disciplinas que estudam o trabalho por privilegiar as reflexões dos trabalhadores, que ocorrem em “grupos de reflexão sobre o trabalho”.

Um dos principais eixos analíticos propostos pela PDT, oriundo da ergonomia da atividade, é a discrepância entre o trabalho prescrito e o trabalho efetivamente realizado. O prescrito é o conjunto de tarefas previamente planejadas e organizadas que o trabalhador deveria realizar. Nesse estudo, ele é expresso pelas políticas de saúde, pelas portarias normativas do trabalho, pelos ritos administrativos e prescrições de chefias. O trabalho real é aquilo que o trabalhador faz diante das condições concretas encontradas em cada situação específica1010 Güérin F, Kerguelen A, Laville A, Daniellou F, Duraffourg J. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blucher; 2001.,2121 Daniellou F, Laville A, Teiger C. Ficção e realidade do trabalho operário. Rev Bras Saude Ocup 1989; 17:7-13. e acontece diante das imposições que são, ao mesmo tempo, apreendidas e modificadas pelo trabalhador2222 Brito J. Trabalho Prescrito. In: Pereira I, Lima J. Dicionário da Educação Profissional em Saúde. 2ª ed. Rio de Janeiro: EPSJV; 2008. p. 478.. Compreende-se que as prescrições são incompletas e insuficientes, ou seja, não contemplam todas as situações encontradas e são modificadas no ato cotidiano de trabalhar.

Outro eixo principal da PDT é a compreensão de que o trabalhar ocorre para que as lacunas entre o prescrito e real sejam preenchidas. Trata-se daquilo que o sujeito faz para além das prescrições, visando atingir metas e objetivos apesar dos incidentes e dificuldades. Ao vivenciar o real, o sujeito mobiliza sua inteligência, sua astúcia, seu corpo, sua capacidade de refletir, interpretar situações e inventar caminhos: trabalhar é o exercício e o encontro com as soluções não prescritas pela organização do trabalho.

Organização e desenvolvimento dos grupos de reflexão

O método consiste em fomentar grupos de reflexão, focados no trabalhar2020 Lancman S, Sznelwar LI, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo15, Rio de Janeiro: Fiocruz; 2004.,2323 Dejours C. Observations cliniques en psychopathologie du travail. Paris: Presses Universitaires de France; 2010. (relação indissociável entre trabalhadores, conteúdo e organização do trabalho).

A construção de grupos de reflexão envolve três pressupostos: o voluntariado dos participantes, a homogeneidade hierárquica e a concordância das instituições. Espera-se que os grupos aconteçam em horário de trabalho e que os envolvidos tenham sua participação facilitada. Dessa forma, foram feitos contatos com cada órgão (MT, MPT e Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo) para apresentar e difundir a pesquisa e o funcionamento dos grupos além de identificar voluntários interessados em participar.

Após essa etapa, o projeto, seus objetivos, os princípios da PDT e a dinâmica dos grupos foram explicados e esclarecidas eventuais questões. Todos os participantes dos grupos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Algumas estratégias são utilizadas para iniciar as discussões, como por exemplo, sugere-se aos participantes contar o início de sua carreira, a motivação para esse trabalho, o que faz e como faz. Essas sugestões, em geral, são suficientes para o início e continuidade das dinâmicas. A partir daí os pesquisadores assumem uma postura de mediação (garantir a fala de todos, esclarecimento de algum ponto não suficientemente claro, assegurar que não haja dispersão em outras temáticas etc.).

Cada processo grupal teve cerca de 16 horas de discussão, organizadas conforme disponibilidade dos serviços e dos participantes. Todo o material foi registrado em áudio para apoio na confecção de relatórios. Ao final de cada grupo foi realizada uma pausa de um mês, para que os pesquisadores redigissem um relatório, posteriormente validado com os participantes. Esse relatório, mais do que uma síntese das reuniões, apresenta uma busca compreensiva e interpretativa de aspectos subjetivos do trabalhar que emergem dos grupos, captados pelos pesquisadores através da escuta clínica2020 Lancman S, Sznelwar LI, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo15, Rio de Janeiro: Fiocruz; 2004.,2323 Dejours C. Observations cliniques en psychopathologie du travail. Paris: Presses Universitaires de France; 2010..

Os três grupos foram conduzidos por dois pesquisadores que ao longo do processo realizaram reuniões semanais com outro membro da equipe (supervisor), que não participou diretamente das sessões. O objetivo da supervisão é o de discutir e analisar o material que emergia das sessões, com o apoio de um agente externo, facilitando o processo compreensivo e analítico dos pesquisadores, além de diminuir eventuais vieses interpretativos no processo de escuta clínica2020 Lancman S, Sznelwar LI, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo15, Rio de Janeiro: Fiocruz; 2004.,2323 Dejours C. Observations cliniques en psychopathologie du travail. Paris: Presses Universitaires de France; 2010..

A validação do relatório, que durou cerca de 8 horas para cada grupo, é um processo devolutivo e participativo que assegura melhor compreensão dos pesquisadores, elucidação de temas, retirada de trechos que identifiquem ou constranjam os participantes e a concordância ou refutação das análises realizadas. O perfil dos grupos realizados pode ser visualizado no Quadro 1.

Quadro 1
Caracterização dos grupos de reflexão sobre o trabalho.

Os relatórios validados com os integrantes de cada grupo foram a base utilizada na confecção desse artigo. Foram contemporizados, com vistas a interlocução dos conteúdos que se mostraram comuns. Às categorias oriundas da PDT como o trabalho realizado, saber-fazer, dificuldades e soluções encontradas, sofrimento e prazer no trabalho, visibilidade e inteligência no trabalho, mecanismos de reconhecimento e cooperação, somou-se aspectos relacionados à intersetorialidade, ou seja, destacou-se pontos comuns e divergentes entre os três grupos de trabalhadores.

Resultados

O Trabalhar dos Auditores Fiscais - MT

Historicamente, os AFs fiscalizam o cumprimento das leis trabalhistas e de normas regulamentadoras de proteção, segurança e medicina do trabalho2424 Brasil. Portaria nº 3.214, de 8 de junho de 1978. Aprova as Normas Regulamentadoras - NR relativas à Segurança e Medicina do Trabalho. Ministério do Trabalho. Diário Oficial da União; 1978. e as condições de salubridade dos ambientes de trabalho.

Para tanto, propõem transformações nos locais de trabalho; elaboram laudos e autos de infração; termos de interdição etc. Quando verificado riscos graves e iminentes eles podem embargar obras e interditar setores e estabelecimentos.

No passado, os AFs eram predominantemente médicos e engenheiros, mas os novos concursos priorizaram conhecimento fiscal (contabilidade e administração de empresas) alterando o perfil dos auditores e a própria prescrição do trabalho. Enquanto espera-se dos mais jovens, foco nas análises documentais e autuações, os mais antigos realizam ações em campo e análise in loco do trabalho. As distintas compreensões e abordagens acerca do trabalho geram dificuldades de comunicação.

Outra mudança importante foi a maior pressão pela produtividade que os levou a dedicar mais tempo à análise de documentos, em detrimento do trabalho de campo:

Causa desconforto que, desde 2010, houve maior pressão do MT por autuações, entendidas, inclusive como indicadores de produtividade.

No entanto, consideram que para a verificação das autuações, a principal expertise necessária é justamente a análise e fiscalização das situações de trabalho. Ou seja, o trabalho dos AFs esvazia-se de sentido quando não há priorização da análise presencial.

O trabalho, em geral, se inicia após demandas encaminhadas pelo MPT, Poder Judiciário, Delegacia de Polícia e, principalmente, pelos sindicatos.

Os participantes consideram importante aquilo que realizam. Por vezes conseguem visualizar rapidamente os impactos positivos da intervenção e alcançar bons resultados. Entretanto, nem sempre isso ocorre de forma imediata, pois transformar locais de trabalho é um desafio que exige tempo. Envolve a conscientização da importância da segurança no trabalho, pois, é por meio dela que se espera transformações efetivas:

Você consegue vender a ideia da segurança e da pessoa se conscientizar. Ele vai levando a situação ruim, até onde der, mas a partir do momento que você aponta, autua, e para a obra, você consegue mudar a cultura.

Eles consideram que seria importante que houvesse um espaço para trocas e transmissão do conhecimento aos demais. Contudo, isso é difícil: existem treinamentos ou reuniões eventuais e pouco efetivas:

A gente está morrendo, e eu preferi usar a frase de que a gente está se aposentando e não estamos deixando herdeiros.

Os mais novos não participam, não se envolvem. Reunião, treinamento, não aparecem. A gente pensava sempre em se aprimorar, capacitar, trazia especialistas para falar.

Destacam que o trabalho desenvolvido seria mais efetivo se possuísse caráter preventivo, o que é realizado com a fiscalização de obras com o intuito de eliminar riscos de acidentes de trabalho. Contudo, ainda recebem demandas de caráter corretivo, voltadas para a autuação de infrações:

Quando o trabalho é focado em uma atitude reativa em cima do doente, do acidentado, de ações civis públicas, se o fato já ocorreu, o nosso trabalho se perde.

O Trabalhar das Autoridades Sanitárias - MS

As ações realizadas nos CERESTs incluem assistência a trabalhadores com problemas de saúde relacionados ao trabalho, capacitação em ST para servidores de outros níveis de atenção à saúde além da VISAT. As ASs realizam ações de inspeção e intervenção em ambientes de trabalho conforme o Código Sanitário Municipal2525 São Paulo. Lei Municipal nº 13.725, de 9 de janeiro de 2004. Institui o Código Sanitário do Município de São Paulo. Diário Oficial da Cidade de São Paulo; 2004. e demais legislações e documentos especializados2626 Krein JD. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva: consequências da reforma trabalhista. Tempo Soc 2018; 30(1):77-104.,2727 Brasil. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1 de maio de 1943, e as Leis nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24/07/1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Diário Oficial da União 2017; 14 jul.. Devem ainda, elaborar relatórios técnicos, analisar processos de trabalho e indicar irregularidades que estejam colocando em risco a ST, exigindo correções e priorizando medidas coletivas.

Eles têm autonomia e responsabilidade sobre suas ações e sobre as sanções aplicadas, no entanto, vivenciam dificuldades na realização do seu trabalho nos prazos estipulados devido às características do trabalho, a elevada demanda de processos, a diminuição do número de agentes, o grau de exigência e os requisitos técnicos. O descompasso entre o volume de trabalho e a falta de recursos para realizá-lo gera frustação e desânimo:

Sobra para a gente, tem bomba de um lado, questionamento de outro, da equipe, os superiores cobrando, os pacientes/usuários. Fica complicado.

Você é o porta voz em situações de conflito com usuário e na ausência de tudo que reflete a precarização da política. Antes havia a verba RENAST, equipe de manutenção, agora não tem mais.

A gente não vai conseguir atingir todas as metas, porque a maioria dos profissionais foi embora.

As ações de VISAT contemplam as condições, situações de trabalho e processos produtivos. Com a ampliação dos atributos legais do trabalho de AS, a cobrança de metas e demais atribuições atreladas se tornaram mais complexas. Entretanto, o tempo para realizá-las, não acompanhou a demanda e os recursos disponíveis.

As ASs viram o seu trabalho se distanciar de parte dos preceitos da VISAT. Quatro fatores influíram nesse distanciamento: a atribuição a eles de poder de polícia e correspondentes ritos administrativos; assumiram a investigação de 100% dos acidentes de trabalho graves, fatais e com menores; o convênio de cooperação técnica com o MPT aumentou a demanda, aliado à redução do quadro de profissionais:

A gente ia em uma empresa, se era acidente na máquina, fazia a intervenção. Vinham questionamentos de que a prensa não estava tão ruim, mas a do lado estava pior. Aí se começou a ver tudo, não só uma máquina, mas todas. Isso causa uma intensificação do trabalho, você vai ver a instalação elétrica, banheiro, refeitório.

A gente virou autoridade sanitária, não ganhamos nada a mais por isso, a gente assume por militância, porque é importante. A gente não tem respaldo. Queria ver se todo mundo se descredenciasse e falasse “não vamos mais fazer inspeção, que se virem”.

Ficam frustrados entre a importância que atribuem ao seu trabalho e a falta de reconhecimento da ST. É como se as ações realizadas não tivessem importância, podendo ser até suspensas. Sentem que perdem espaço, por exemplo, ao observar a falta de profissionais para o serviço e o alcance de suas ações:

O trabalho fica desgastante. “Estou fazendo o meu melhor”, “estou tentando aos trancos e barrancos, apesar das dificuldades que temos”... quando você precisa de respaldo, que é uma obrigação da coordenação você não tem: “Pô, então eu sou palhaço?”.

Ficam preocupados com o futuro dos CERESTs pois acham que eles vão ser extintos. Muitos se aposentaram e não houve substituições. Falam sobre a precarização do próprio trabalho:

No país do desemprego, a matéria prima mais barata é a mão de obra, além de tristeza, você tem um pouquinho de frustração.

É saber acumulado que está indo embora e as pessoas que vão assumir não tem essa formação, essa experiência toda.

Ademais, a consolidação do trabalho depende de ações intrasetoriais, tais como: maior entrosamento com as demais instancias da vigilância em saúde; a incorporação do binômio saúde/trabalho nos demais níveis de atuação; ampliação da percepção dos trabalhadores da saúde e usuários acerca da importância da área para além da assistência, desenvolvimento de metodologias e abordagens condizentes etc.

O Trabalhar dos Analistas Peritos - MPT

Os APs do MPT têm seu trabalho vinculado ao dos procuradores que, quando julgam necessário, solicitam pareceres técnicos em investigações nas áreas de meio ambiente e trabalho. Esses pareceres abarcam desde pequenos incidentes até casos de grandes dimensões em empresas de diferentes portes. Sua atuação consiste em solicitar e analisar documentos2424 Brasil. Portaria nº 3.214, de 8 de junho de 1978. Aprova as Normas Regulamentadoras - NR relativas à Segurança e Medicina do Trabalho. Ministério do Trabalho. Diário Oficial da União; 1978., realizar diligências nos locais de trabalho para análise técnica e elaboração de relatórios e, quando requisitados, participar de audiências com os procuradores e representantes das empresas.

Embora a sua importância nas investigações seja fundamental, eles não têm controle nem sobre os critérios de encaminhamento dos processos que recebem nem sobre o destino dos relatórios e/ou encaminhamentos sugeridos. Tampouco têm autonomia para expandir ou limitar o foco das análises e, as diretrizes que recebem dos diferentes procuradores, são heterogêneas: “alguns requerem ações específicas, restritas ao tema original da denúncia, outros solicitam a expansão do foco para outras irregularidades nas empresas”. Por vezes se deparam com situações que demandam conhecimentos específicos, que extrapolam sua formação e que exigem pesquisas adicionais.

Reconhecem que são poucos em relação ao volume de trabalho e prazos estipulados, e de que a falta de padronização, do escopo, e prioridades das demandas, por vezes, toma tempo que poderia ser empregado em análises mais complexas:

Você puxa uma pena e sai uma galinha, mas a gente precisa de tempo... dedico meu tempo para esse caso? E os outros? Isso é um sofrimento importante.

A falta de autonomia sobre o trabalho e destino das ações são vivenciados como desqualificação e falta de reconhecimento. Acreditam que apesar da sua importância, “eles não têm força por si próprios, dependem exclusivamente do procurador para que tenham efetividade”. São assessores, mas, por vezes, sentem-se acessórios, apêndices:

Trabalhamos muito para chegar a um relatório e vem uma decisão que não o considera. Isso desmotiva, gera frustração.

Ao encontrarem situações imprevistas, por vezes, as exploram de maneira periférica. Nesses casos correm o risco de as análises não serem consideradas pelos procuradores. Como exemplo, a fiscalização de uma determinada máquina, pode revelar diversas outras situações inseguras que, por não serem alvo da investigação, podem ser desconsideradas.

Esse tipo de situação gera sofrimento ético e moral, tanto devido às consequências que podem decorrer das situações inseguras, quanto por ficarem com a sensação de que não desenvolvem aquilo que compreendem como um trabalho de qualidade:

Às vezes o procurador joga toda a responsabilidade sobre nós. Dar um prazo mesmo sabendo que a máquina é perigosa, ou demite 500 funcionários? Segurança versus empregabilidade... eu fico sem dormir se alguém se acidentar.

A gente quer fazer um trabalho consistente, efetivo, não queremos brincar de trabalhar. Não vou conseguir fazer um trabalho à altura, mas vou fazer o possível... isso é um sofrimento.

O Trabalhar na interface saúde e trabalho e o dilema da intersetorialidade

O trabalho de cada órgão, por vezes, se confunde e se sobrepõe, já que a mesma denúncia pode ser apresentada em mais de um local simultaneamente, como por exemplo, quando os procuradores podem lançar mão dos acordos de cooperação e acionar parcerias externas (CERESTs e/ou MT) e/ou a assessoria técnica de seus próprios APs. Isso pode gerar descompasso nas orientações, exigências, prazos e sanções.

Ressalta-se que, com relação a autonomia, os AFs e as ASs têm independência na condução das ações que realizam e em aplicações de sanções. Já os APs não têm controle sobre o destino do trabalho realizado dificultando sua participação em ações intersetoriais.

O Quadro 2 apresenta uma síntese das atribuições, origem das demandas de trabalho e parcerias de cada um dos agentes de vigilância.

Quadro 2
Atribuições, demandas e parcerias dos agentes de vigilância.

Neste contexto, ainda que o MPT dialogue com ambas as instituições, isso não é suficiente para potencializar o trabalho conjunto. Por vezes o MPT é visto mais como solicitador de colaborações do que como um parceiro. Já o MT e a Saúde acreditam haver diferenças conceituais em suas práticas:

Se você falar CEREST aqui dentro da casa você vai tomar porrada, por causa de competência (MT).

O MT possui ações de maior abrangência quando comparadas à fiscalização que a Saúde realiza em ambientes de trabalho (MT).

[...] temos papéis quase antagônicos, não temos nada a ver um com o outro. Nosso referencial teórico-metodológico é diferente. É isso que rivaliza as coisas. Nos localizamos no campo da saúde coletiva, dos determinantes sociais do processo saúde-doença. O MT trabalha dentro da lógica da medicina ocupacional, da higiene (CEREST).

Os trabalhadores do MT e da Saúde acreditam que a cooperação entre eles e o MPT nem sempre é via de mão dupla, já que atuam como assistentes técnicos, inclusive cumprindo os prazos estabelecidos pelos procuradores, mas, quando demandam algo ao MPT, nem sempre são atendidos. Por vezes, as colaborações parecem estar mais vinculadas a relacionamentos interpessoais do que a diretrizes institucionais.

Verifica-se que, embora todos se sintam sobrecarregados e que nenhum dos órgãos consiga dar conta da totalidade das demandas, há pouca disposição para unir esforços e, contribuir uns com os outros.

Discussão

Para evitar situações geradoras de sofrimento e danos para a saúde deveria existir avaliações e planejamento da demanda de forma sistemática e criteriosa1313 Daldon MTB, Lancman S. Vigilância em Saúde do Trabalhador: rumos e incertezas. Rev Bras. Saude Ocup 2013; 38:92-106.. No entanto, os relatos apontaram que os vários órgãos não atuam com a complexidade e efetividade que o campo demanda.

As ações de fiscalização a partir de denúncias e demandas pontuais têm eficácia momentânea e estão associadas a modelos ultrapassados, como o da Medicina do Trabalho e o da Saúde Ocupacional99 Machado JMH. Processo de vigilância em saúde do trabalhador. Cad Saude Publica 1997; 13(Supl. 2):33-45..

O pouco tempo para as ações têm levado à quase impossibilidade de contar com a participação, conhecimento prático e validação consensual dos trabalhadores das empresas quanto as transformações em seu trabalho99 Machado JMH. Processo de vigilância em saúde do trabalhador. Cad Saude Publica 1997; 13(Supl. 2):33-45..

As parcerias potencializariam ações e recursos, evitando intervenções superpostas que evidenciam retrabalho, desperdício dos escassos recursos, e falta de comunicação entre todos e até mesmo falta de reconhecimento da contribuição de cada órgão1515 Barros JO, Daldon MTB, Rocha TO, Lancman S, Sznelwar L. Intersetorialidade em saúde e trabalho no contexto atual brasileiro: utopia da realidade? Interface (Botucatu) 2020; 24:e190303..

É comum aos três setores a falta de reconhecimento institucional em relação às suas competências, experiência e expertise adquirida, bem como à desconsideração de sua inteligência no trabalho. Para eles, esse contexto indica a obsolescência e desmonte do seu trabalho1414 Vasconcellos LCF, Gomez CM, Machado JMH. Entre o definido e o por fazer na Vigilância em Saúde do Trabalhador. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4617-4626.. Assim, eles sentem que todo o saber-fazer, seus conhecimentos acumulados se perderão com as suas aposentadorias e com a impossibilidade de transmissão dessa experiência para aqueles que os substituirão.

Há consenso entre os participantes de que a experiência adquirida é um diferencial na identificação das demandas e na avaliação das situações apresentadas. Todos eles construíram um saber-fazer, estratégias e instrumentos de avaliação que não são apreendidos na literatura ou na capacitação técnico/acadêmica.

O peso das responsabilidades, a incerteza e até falta de suporte institucional1313 Daldon MTB, Lancman S. Vigilância em Saúde do Trabalhador: rumos e incertezas. Rev Bras. Saude Ocup 2013; 38:92-106. também trazem preocupações. Assinar um relatório sob pressão de prazos, diante da quantidade e diversidade de processos, exacerba a ansiedade, o medo, o sofrimento ético e moral o sentimento de solidão de todos.

É comum os AFs, ASs e AP terem a percepção de falta de reconhecimento e invisibilidade do trabalho realizado, dentro e fora do próprio setor. Isso aparece quando apontam o crescente desmonte, a deficiência de condições adequadas de trabalho, a ausência de novas contratações e de estruturas capazes de garantir a transmissão do saber fazer.

Os três grupos, apesar das pressões contrárias, demonstram uma preocupação social ao adotar metodologias de trabalho mais focadas na correção de inadequações das situações de trabalho e menos na emissão de autuações. Prezam, além das boas condições de trabalho, pela manutenção dos empregos, pela sobrevivência das empresas, sobretudo evitando paralisar estabelecimentos de forte interesse social (hospitais, por exemplo) ou geradores de muitos empregos. Necessitam criar artimanhas para compatibilizar as leis, muitas vezes rígidas e inflexíveis e a capacidade das empresas de se adequarem a elas dentro de prazos e custos viáveis.

Por fim, a crise administrativa e as mudanças nas legislações impactaram e diminuíram, para todos eles, a força política para enfrentar as empresas. Fiscalizar e transformar os locais de trabalho é um desafio que exige tempo, conhecimento e apoio institucional.

A sensação de solidão diante de um trabalho de resistência, e de manutenção de ideais no sentido de assegurar um trabalho decente é comum a todos. A inviabilização progressiva, seja, pelo excesso de trabalho, falta de recursos ou pela perda de prioridade política traz a sensação de que seus esforços são insuficientes diante da realidade que gostariam de modificar.

O conflito entre trabalhar bem e trabalhar rápido, fazendo intervenções focais e parciais, versus o tempo necessário para aumentar a abrangência das ações e promover mudanças e não somente punições, é algo que aflige a todos e gera sofrimento e desesperança.

Para além da questão do saber-fazer, do esvaziamento dos quadros profissionais, do sentido do trabalho e até mesmo da extinção de órgãos e ministérios, há fortes indícios do esvaziamento das políticas de saúde e segurança do trabalho, e da garantia das condições e situações de trabalho adequadas1515 Barros JO, Daldon MTB, Rocha TO, Lancman S, Sznelwar L. Intersetorialidade em saúde e trabalho no contexto atual brasileiro: utopia da realidade? Interface (Botucatu) 2020; 24:e190303..

No contexto que extinguiu o MT transformando-o em uma Secretaria do Ministério da Economia, para depois recriá-lo, os participantes integrantes do MT preocupam-se com o futuro da auditoria fiscal, pois acreditam que haverá uma redução da eficiência do seu trabalho. Além disso, referem que o trabalho de auditoria também sofrerá impacto a partir do uso de sistemas de fiscalização remota, via checklist.

Já as ASs sentem perder espaço, tanto pela falta de profissionais quanto pelo alcance de suas ações. Com isso, temem que o serviço não esteja preparado para atender à demanda da população, que está mudando, e se preocupam com o futuro do próprio serviço, pois acham que os CERESTs vão ser extintos.

Os APs questionam-se acerca da falência simbólica do seu trabalho, diante do cenário atual de fragilização das legislações de proteção ao trabalhador, da falta de investimento em profissionais e no conhecimento construído. Acreditam na importância do MPT, sobretudo frente às limitações e deficiências dos órgãos públicos de fiscalização e vigilância de ST.

Fica evidente nos relatórios oriundos dos grupos, o quanto cada um dos órgãos, embora tenham objetivos comuns, desconhecem o trabalho desempenhado pelos demais e o grau de desmonte ao qual eles estão simultaneamente expostos. Esse desconhecimento e falta de interação fragiliza a todos pois uma aliança poderia levá-los a um fortalecimento, resistência, enfrentamento e proteção mútuos44 Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho. Auditoria Fiscal do Trabalho - Conheça a Auditoria [Internet]. [acessado 2020 jun 10]. Disponível em: https://sinaitsp.org.br/conheca-a-auditoria.
https://sinaitsp.org.br/conheca-a-audito...
,1515 Barros JO, Daldon MTB, Rocha TO, Lancman S, Sznelwar L. Intersetorialidade em saúde e trabalho no contexto atual brasileiro: utopia da realidade? Interface (Botucatu) 2020; 24:e190303..

Um dos pontos dificultadores da intersetorialidade é a falta de clareza acerca das fontes de financiamento para a concretização das ações na PNSST1919 Brasil. Decreto nº 7.602, de 7 de novembro de 2011. Dispõe sobre a Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho. Diário Oficial da União 2011; 8 nov.. Na saúde, o financiamento das ações de VISAT advém do SUS. Já nos demais órgãos, não fica claro a origem da verba específica para as ações que realizam. Se por um lado essa indefinição sugere uma centralização da gestão dos recursos em torno do SUS, por outro termina por isolar e inibir as demais proposições desestimulando a intersetorialidade e a corresponsabilidade.

Era de se supor que a sinergia entre setores com objetivos tão próximos pudesse potencializar ações conjuntas. O MT e os CERESTs, por exemplo, em São Paulo, trabalham de forma desintegrada e distante, desconhecem o trabalho um do outro, criticam mutuamente competências e supostas diferenças conceituais, teóricas e técnicas demonstrando disputas por campo de atuação, provavelmente relacionada às origens dos dois órgãos. Acredita-se que essas ações poderiam ser complementares e sintonizadas, no entanto, os profissionais parecem reticentes em relação a essas parcerias e a cooperação entre eles se dá mais por iniciativas individuais ou específicas.

Conclusões

Pode-se observar que historicamente as ações de fiscalização e segurança do trabalho se iniciaram no MT, foram ampliadas, sob diferentes referenciais teórico-metodológicos, para a Saúde e depois assumidas também pelo MPT. Os três órgãos estão intimamente ligados nos mesmos objetivos, mas em São Paulo, seguem com dificuldades em consolidar a intersetorialidade prevista nas políticas de saúde e segurança no trabalho. Essa integração de objetivos e práticas poderia diminuir a sobrecarga de todos, unificar expertises e, sobretudo, unir forças para resistir ao desmonte da área de saúde, segurança e trabalho que avança no país.

Apesar de existirem parcerias pontuais, algumas inclusive institucionalizadas, ainda existem dificuldades para somar as especificidades de ação de cada órgão, reconhecer e respeitar reciprocamente a expertise de cada um deles, evitar sobreposições, e construir práticas conjuntas, cooperativas e colaborativas.

Num momento sociopolítico no qual está evidente que a ST e seus direitos não são uma prioridade de governo, mesmo estando todos navegando no mesmo “mar”, com risco iminente de naufrágio, resistem a perceber que poderiam estar todos fortalecidos se unissem seus recursos em um só “barco”.

A sobrecarga de trabalho, seja por falta de recursos humanos e estruturais, seja pela alta demanda de trabalho, dificulta a interlocução entre os órgãos, somado à falta de autonomia dos agentes de ponta, submetidos a hierarquias com diferentes níveis de rigidez e que permitisse avanços rumo à construção de uma intersetorialidade de fato.

Dessa forma, o futuro das inspeções/ ações de vigilância e/ou análise do trabalho no país segue sendo nebuloso e a intersetorialidade, pelo menos em São Paulo ainda é, aparentemente, utópica.

Como limites deste artigo, entendemos o fato de os três grupos terem sido realizados em anos diferentes (2017 a 2019) e de já haver prenúncios do esvaziamento das ações de intervenção no trabalho, troca de liderança no governo federal brasileiro no início de 2019, mudanças ministeriais e a reforma trabalhista. Isso somado à fragilização ainda maior da legislação trabalhista, com flexibilização das relações de trabalho e aumento do trabalho informal1515 Barros JO, Daldon MTB, Rocha TO, Lancman S, Sznelwar L. Intersetorialidade em saúde e trabalho no contexto atual brasileiro: utopia da realidade? Interface (Botucatu) 2020; 24:e190303.,2626 Krein JD. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva: consequências da reforma trabalhista. Tempo Soc 2018; 30(1):77-104.,2727 Brasil. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1 de maio de 1943, e as Leis nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24/07/1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Diário Oficial da União 2017; 14 jul.. Apesar da importância desse processo, ele não foi captado nos dados pois a coleta ocorreu antes disso.

Espera-se que os resultados apresentados possam favorecer o diálogo e a superação da fragmentação e sobreposição de ações, reforçando aspectos comuns de atuação dos diferentes setores e incentivando o aumento da sinergia entre eles. Espera-se ainda contribuir para o avanço da atividade de intervenção, fundamental na área da saúde e trabalho. A originalidade desse artigo está no fato dos dados advirem de uma escuta coletiva do trabalhar dos profissionais vinculados a diferentes setores, cujas ações, apesar de suas singularidades, serem convergentes.

Agradecimentos

À Fapesp, processo número 2014/25985-2. Ao Laboratório de Ciências da Reabilitação (LIM 34) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo-SP pelo auxílio financeiro para a tradução do manuscrito.

Referências

  • 1
    Hale A. From national to European frameworks for understanding the role of occupational health and safety (OHS) specialists. Saf Sci 2019; 115:435-445.
  • 2
    Los FS, Hulshof CTJ, Sluiter JK. The view and policy of management of occupational health services on the performance of workers' health surveillance: a qualitative exploration. BMC Health Serv Res 2019; 19:473.
  • 3
    Organização Internacional do Trabalho (OIT). Trabalho Decente [Internet]. [acessado 2020 jul 6]. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-decente/lang--pt/index.htm
    » https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-decente/lang--pt/index.htm
  • 4
    Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho. Auditoria Fiscal do Trabalho - Conheça a Auditoria [Internet]. [acessado 2020 jun 10]. Disponível em: https://sinaitsp.org.br/conheca-a-auditoria
    » https://sinaitsp.org.br/conheca-a-auditoria
  • 5
    Brasil. Decreto nº 4.552, de 27 de dezembro de 2002. Aprova o Regulamento da Inspeção do Trabalho. Diário Oficial da União 2002; 30 dez.
  • 6
    Brasil. Lei nº 10.593, de 6 de dezembro de 2002. Dispõe sobre a reestruturação da Carreira Auditoria do Tesouro Nacional. Diário Oficial da União 2002; 9 dez.
  • 7
    Lancman S, Daldon MTB, Jardim TA, Rocha TO, Barros JO. Intersetorialidade na saúde do trabalhador: velhas questões, novas perspectivas? Cien Saude Colet 2019; 25(10):4033-4044.
  • 8
    Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo: Ed. Cebes-Hucitec; 1989.
  • 9
    Machado JMH. Processo de vigilância em saúde do trabalhador. Cad Saude Publica 1997; 13(Supl. 2):33-45.
  • 10
    Güérin F, Kerguelen A, Laville A, Daniellou F, Duraffourg J. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blucher; 2001.
  • 11
    Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. Diário Oficial da União 1990; 20 set.
  • 12
    Minayo-Gomes C, Thedim-Costa SM. A construção do campo da Saúde do Trabalhador: percurso e dilemas. Cad Saude Publica 1997; 13(Supl. 2):21-32.
  • 13
    Daldon MTB, Lancman S. Vigilância em Saúde do Trabalhador: rumos e incertezas. Rev Bras. Saude Ocup 2013; 38:92-106.
  • 14
    Vasconcellos LCF, Gomez CM, Machado JMH. Entre o definido e o por fazer na Vigilância em Saúde do Trabalhador. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4617-4626.
  • 15
    Barros JO, Daldon MTB, Rocha TO, Lancman S, Sznelwar L. Intersetorialidade em saúde e trabalho no contexto atual brasileiro: utopia da realidade? Interface (Botucatu) 2020; 24:e190303.
  • 16
    Brasil. Portaria nº 1.378, de 9 de julho de 2013. Regulamenta as responsabilidades e define diretrizes para execução e financiamento das ações de Vigilância em Saúde pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, relativos ao Sistema Nacional de Vigilância em Saúde e Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Diário Oficial da União; 2013.
  • 17
    Brasil. Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. Diário Oficial da União 2012; 24 ago.
  • 18
    Araújo TM, Palma TDF, Araújo NDC. Work-related mental health surveillance in Brazil: Characteristics, difficulties, and challenges. Cien Saude Colet 2017; 22(10):3235-3246.
  • 19
    Brasil. Decreto nº 7.602, de 7 de novembro de 2011. Dispõe sobre a Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho. Diário Oficial da União 2011; 8 nov.
  • 20
    Lancman S, Sznelwar LI, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo15, Rio de Janeiro: Fiocruz; 2004.
  • 21
    Daniellou F, Laville A, Teiger C. Ficção e realidade do trabalho operário. Rev Bras Saude Ocup 1989; 17:7-13.
  • 22
    Brito J. Trabalho Prescrito. In: Pereira I, Lima J. Dicionário da Educação Profissional em Saúde. 2ª ed. Rio de Janeiro: EPSJV; 2008. p. 478.
  • 23
    Dejours C. Observations cliniques en psychopathologie du travail. Paris: Presses Universitaires de France; 2010.
  • 24
    Brasil. Portaria nº 3.214, de 8 de junho de 1978. Aprova as Normas Regulamentadoras - NR relativas à Segurança e Medicina do Trabalho. Ministério do Trabalho. Diário Oficial da União; 1978.
  • 25
    São Paulo. Lei Municipal nº 13.725, de 9 de janeiro de 2004. Institui o Código Sanitário do Município de São Paulo. Diário Oficial da Cidade de São Paulo; 2004.
  • 26
    Krein JD. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva: consequências da reforma trabalhista. Tempo Soc 2018; 30(1):77-104.
  • 27
    Brasil. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1 de maio de 1943, e as Leis nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24/07/1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Diário Oficial da União 2017; 14 jul.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2021
  • Aceito
    30 Jun 2022
  • Publicado
    02 Jul 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br