Evolução da estrutura e resultados da Atenção Primária à Saúde no Brasil entre 2008 e 2019

Rafael Damasceno de Barros Rosana Aquino Luis Eugênio Portela Fernandes Souza Sobre os autores

Resumo

Descreve a evolução da estrutura e resultados da Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil, entre 2008 e 2019. Foram calculadas a mediana de variáveis como: despesa per capita em APS por habitante coberto, cobertura da APS e as taxas de mortalidade e internações por condições sensíveis à atenção primária (CSAP) de 5.565 municípios brasileiros estratificados segundo porte populacional e quintil do Índice Brasileiro de Privação (IBP) e analisada a tendência mediana no período. Houve aumento de 12% na mediana da despesa em APS. A cobertura da APS expandiu, sendo que 3.168 municípios apresentaram 100% de cobertura em 2019, contra 2.632 em 2008. A mediana das taxas de mortalidade e internações por CSAP aumentou 0,2% e diminuiu 44,9% respectivamente. A despesa em APS foi menor nos municípios com maior privação socioeconômica. Quanto maior o porte populacional e melhores as condições socioeconômicas dos municípios, menor a cobertura da APS. Quanto maior a privação socioeconômica dos municípios, maiores foram as medianas das taxas de mortalidade por CSAP. Este estudo demonstrou que a evolução da APS foi heterogênea e está associada tanto ao porte populacional como às condições socioeconômicas dos municípios.

Palavras-chave:
Atenção Primária à Saúde; Estrutura dos serviços; Morbimortalidade; Financiamento da saúde; Cobertura de serviços de saúde

Introdução

A Atenção Primária à Saúde (APS) é reconhecida como uma das estratégias mais efetivas na redução de mortes e internações por vários agravos e doenças, principalmente doenças crônicas não-transmissíveis na população adulta11 Rasella D, Harhay MO, Pamponet ML, Aquino R, Barreto ML. Impact of primary health care on mortality from heart and cerebrovascular diseases in Brazil: a nationwide analysis of longitudinal data. BMJ 2014; 349(5):g4014.

2 Aquino R, Oliveira NF, Barreto ML. Impact of the family health program on infant mortality in Brazilian municipalities. Am J Public Health 2009; 99(1):87-93.

3 Rasella D, Aquino R, Barreto ML. Impact of the Family Health Program on the quality of vital information and reduction of child unattended deaths in Brazil: an ecological longitudinal study. BMC Public Health 2010; 10:380.

4 Rasella D, Aquino R, Barreto ML. Reducing childhood mortality from diarrhea and lower respiratory tract infections in Brazil. Pediatrics 2010; 126(3):e534-e540.

5 Dourado I, Oliveira VB, Aquino R, Bonolo P, Lima-Costa MF, Medina MG, Mota E, Turci MA, Macinko J. Trends in primary health care-sensitive conditions in Brazil: the role of the Family Health Program (Project ICSAP-Brazil). Med Care 2011; 49(6):577-584.
-66 Castro DM, Oliveira VB, Andrade ACS, Cherchiglia ML, Santos AFD. The impact of primary healthcare and the reduction of primary health care-sensitive hospital admissions. Cad Saude Publica 2020; 36(11):e00209819.. Desde a década de 1960, a APS tem sido adotada por diversos países com diferentes conformações, a depender dos propósitos políticos e da correlação de forças entre os atores com poder de decisão, servindo tanto para ofertar serviços simplificados e de baixa efetividade, denominados de “APS seletiva”, como para coordenar redes de atenção, garantindo a oferta de serviços adequados às necessidades de saúde. As redes coordenadas pela APS compreendem um conjunto amplo de ações e serviços de saúde individuais, familiares e coletivos que envolvem promoção, prevenção, proteção, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos, cuidados paliativos e vigilância em saúde77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a política nacional de atenção básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da atenção básica, no âmbito do sistema único de saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2017., com potencial para proporcionar um maior acesso ao sistema de saúde e também para modificar o enfoque curativo, individual e hospitalar, tradicionalmente instituído nos sistemas de saúde nacionais, em um modelo de atenção integral, coletivo, territorializado e democrático88 Fausto MCR, Matta GC. Atenção Primária à Saúde: histórico e perspectivas. In: Morosini MVGC, Corbo AD, organizadores. Modelos de Atenção e a Saúde da Família. Rio de Janeiro: EPSJV Fiocruz; 2007. p. 43-67..

No Brasil, segundo a Política Nacional da Atenção Básica (PNAB)77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a política nacional de atenção básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da atenção básica, no âmbito do sistema único de saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2017., a APS deve ser desenvolvida por meio de práticas de cuidado integrado e gestão qualificada, realizada com equipe multiprofissional e dirigida à população em território definido, para com a qual as equipes assumem responsabilidade sanitária. Vem sendo desenvolvida, em larga escala, no país, desde a década de 1990, com destaque para o Programa de Saúde da Família, implantado em 1994, e depois modificado, em 2006, para Estratégia Saúde da Família (ESF) como estratégia de mudança do modelo assistencial99 Pinto LF, Giovanella L. Do Programa à Estratégia Saúde da Família: expansão do acesso e redução das internações por condições sensíveis à atenção básica (ICSAB). Cien Saude Colet 2018; 23(6):1903-1914..

Desde então, a APS se expandiu no Brasil e, em 2019, já estava presente em 99,7% dos municípios brasileiros1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). DATASUS - Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde [Internet]. 2020 [acessado 2021 jan 2]. Disponível em: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=02.
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. Teixeira et al.1111 Teixeira CF, Souza L, Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS): a difícil construção de um sistema universal na sociedade brasileira. In: Paim JS, Almeida-Filho N, organizadores. Saúde coletiva: teoria e prática. 1ª ed. Rio de Janeiro: Medbook; 2014. p. 121-138. caracterizam o SUS como uma arena permanente de conflitos, enfrentamentos, negociações, pactos, em que se tentam organizar as políticas de saúde. Tal caracterização nos ajuda a compreender dois pontos fundamentais: (a) a expansão da APS não ocorreu de forma homogênea em todo território nacional, apesar da massiva presença nos municípios, o que pode ter gerado diferentes modelos da APS nos diversos municípios brasileiros, diversificando por sua vez a estrutura utilizada e os resultados alcançados em cada localidade; (b) a consolidação da APS tem sido resultado da implementação de um amplo leque de políticas, que, por quase duas décadas, vinham conformando um cenário nacional de avanços, mas, que a partir de 2017, com a nova PNAB, medidas de austeridade fiscal do governo federal e outras medidas na organização da APS (mudanças na modalidade de financiamento, conformação das equipes de saúde e propostas de privatização dos serviços) tem configurado um conjunto de retrocessos que ameaçam os avanços conquistados, pois atingem os aspectos constitutivos da APS, especialmente, a organização de base comunitária e territorial e a constituição das equipes de saúde multiprofissionais1212 Giovanella L, Bousquat A, Almeida PF, Melo EA, Medina MG, Aquino R, Mendonça MHM. Médicos pelo Brasil: caminho para a privatização da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde? Cad Saude Publica 2019; 35:e00178619.,1313 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD de. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saude Debate 2018; 42:11-24..

Nesse sentido, examinar a evolução da APS enquanto uma política pública, observando sua estrutura (em termos de financiamento e cobertura populacional) e seus resultados (em termos de impacto sobre o estado de saúde da população) nos municípios brasileiros pode permitir a melhor compreensão de sua realidade diversa, identificando ainda seus pontos fortes e fracos. Os objetivos deste estudo, portanto, são descrever a evolução destas dimensões da APS ao longo de 2008 a 2019 no país e identificar as diferenças, nesta evolução, entre grupos de municípios, segundo porte populacional e condições de privação socioeconômica.

Metodologia

Para atingir esses objetivos, realizou-se um estudo descritivo com uma série de dados relativos à estrutura e aos resultados da APS no Brasil no período de 2008 a 2019. Foi utilizado como referência um modelo lógico de avaliação do desempenho da APS, proposto por conjunto de pesquisadores da Austrália, Canadá e Suíça1414 Senn N, Breton M, Ebert ST, Lamoureux-Lamarche C, Lévesque J-F. Assessing primary care organization and performance: Literature synthesis and proposition of a consolidated framework. Health Policy 2021; 125(2):160-167., publicado em 2021, que sintetizou os principais modelos lógicos explicativos da avaliação do desempenho da APS.

O referido modelo mapeou quatro domínios-chave distintos e complementares estavam presentes em todos os outros modelos: necessidades da população, organização e estrutura das práticas na APS, provisão de serviços da APS e resultados de saúde dos usuários e da população.

Para avaliar a evolução do domínio-chave de organização e estrutura da APS, foram escolhidas como variáveis: a despesa em APS por habitante coberto e a cobertura da APS, representando respectivamente o financiamento investido e os recursos humanos alocados. A opção pela despesa por habitante coberto parte da constatação de sua relação direta com o percentual de cobertura da APS. Usar a população coberta e não a população total do município é uma forma de especificar a despesa com APS, atenuando um possível viés de seleção diante de municípios com diferentes perfis de cobertura.

Como variáveis do domínio-chave de resultados de saúde dos usuários e da população, foram selecionadas as taxas de mortalidade e internações da lista de Condições Sensíveis à Atenção Primaria (CSAP), definidas pela portaria nº 221, de 17 de abril de 2008, do Ministério da Saúde1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 221, de 17 de abril de 2008, que define a Lista Brasileira de Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária. Diário Oficial da União; 2008..

Ainda segundo o modelo lógico adotado1414 Senn N, Breton M, Ebert ST, Lamoureux-Lamarche C, Lévesque J-F. Assessing primary care organization and performance: Literature synthesis and proposition of a consolidated framework. Health Policy 2021; 125(2):160-167., existem outras variáveis do domínio de organização e estrutura como: modelos de governança, visão, valores, sistemas de informação, insumos, equipamentos, qualificação da força de trabalho e outros, e do domínio de resultados de saúde dos usuários e da população como: qualidade de vida, bem-estar (percebido), status funcional, resiliência, empoderamento e outros. Contudo, diante da inexistência de dados que pudessem servir ao menos como proxies de tais variáveis para os municípios brasileiros no período entre 2008 e 2019, neste estudo, foi necessário um direcionamento da análise para alguns aspectos da estrutura (financiamento e recursos humanos) e dos resultados (mortalidade e internações por CSAP), o que representa uma limitação do escopo dos domínios analisados.

Diante da grande heterogeneidade da composição etária das populações dos municípios brasileiros e pelo reconhecido efeito desta composição sobre a morbimortalidade1616 Yashin AI, Arbeev KG, Arbeeva LS, Wu D, Akushevich I, Kovtun M, Yashkin A, Kulminski A, Culminskaya I, Stallard E, Li M, Ukraintseva SV. How the Effects of Aging and Stresses of Life Are Integrated in Mortality Rates: Insights for Genetic Studies of Human Health and Longevity. Biogerontology 2016; 17(1):89-107., as taxas foram padronizadas, considerando como referência o padrão etário do país.

Os dados de cobertura da APS foram coletados no portal e-Gestor Atenção Básica do Ministério da Saúde, através do relatório de acesso público do histórico da cobertura para os municípios brasileiros. O MS definiu nova fórmula de cálculo da estimativa de cobertura populacional da APS, considerando dados das equipes da ESF, equipes da Atenção Básica (AB) e equipes da ESF parametrizadas. Tais dados só estão disponíveis a partir de julho de 2007, portanto o ano de 2008 foi considerado como data inicial de análise deste estudo. Os dados relativos à despesa em APS por habitante coberto foram coletados através do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos de Saúde (SIOPS), considerando os valores liquidados na subfunção atenção básica, os quais foram deflacionados para valores correntes de 2019. Em seguida, estes valores foram divididos pela população coberta estimada pela APS em cada município em cada ano.

Os dados de morbimortalidade foram coletados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e no Sistema de Informações sobre Hospitalizações (SIH), ambos disponíveis ao acesso público através do portal do Departamento de Informática do SUS (DATASUS)1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). DATASUS - Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde [Internet]. 2020 [acessado 2021 jan 2]. Disponível em: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=02.
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Alguns estudos1616 Yashin AI, Arbeev KG, Arbeeva LS, Wu D, Akushevich I, Kovtun M, Yashkin A, Kulminski A, Culminskaya I, Stallard E, Li M, Ukraintseva SV. How the Effects of Aging and Stresses of Life Are Integrated in Mortality Rates: Insights for Genetic Studies of Human Health and Longevity. Biogerontology 2016; 17(1):89-107.

17 Macinko J, Dourado I, Guanais FC. Chronic diseases, primary care and health systems performance diagnostics, tools and interventions. Washington, D.C.: Inter-American Development Bank; 2011.
-1818 Portrait F, Lindeboom M, Deeg D. Life expectancies in specific health states: results from a joint model of health status and mortality of older persons. Demography 2001; 38(4):525-536. demonstram que a mortalidade infantil pode ter determinantes diferentes da mortalidade de adultos. Portanto, na tentativa evitar viés de seleção, decidiu-se limitar o escopo dos dados de mortalidade e internações deste estudo aos adultos.

Ainda que a qualidade dos registros de óbitos e internações tenha melhorado nos últimos 20 anos, altas proporções de óbitos por causas mal definidas no Brasil são frequentes e preocupantes, pois indicam problemas de acesso e qualidade da atenção à saúde recebida pela população1919 França E, Teixeira R, Ishitani L, Duncan BB, Cortez-Escalante JJ, Morais Neto OL, Szwarcwald CL. Causas mal definidas de óbito no Brasil: método de redistribuição baseado na investigação do óbito. Rev Saude Publica 2014; 48:671-681., além de comprometerem a fidedignidade das estatísticas de mortalidade por causas2020 Khosravi A. Impact of misclassification on measures of cardiovascular disease mortality in the Islamic Republic of Iran: a cross-sectional study. Bull World Health Organ 2008; 86(9):688-696.,2121 Teixeira CLS, Klein CH, Bloch KV, Coeli CM. Reclassificação dos grupos de causas prováveis dos óbitos de causa mal definida, com base nas Autorizações de Internação Hospitalar no Sistema Único de Saúde, Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2006; 22(6):1315-1324..

Alguns estudos2222 Rodrigues NCP, Daumas RP, Almeida AS, O'Dwyer G, Andrade MKN, Flynn MB, Lino VTS. Risk factors for the ill-defined causes of death in the Brazilian states: a multilevel analysis. Cien Saude Colet 2018; 23(11):3979-3988.

23 Kanso S, Romero DE, Leite IC, Moraes EN. Geographic, demographic, and socioeconomic differences in quality of data on cause of death in Brazilian elders. Cad Saude Publica 2011; 27(7):1323-1339.
-2424 França E, Ishitani LH, Teixeira R, Duncan BB, Marinho F, Naghavi M. Changes in the quality of cause-of-death statistics in Brazil: garbage codes among registered deaths in 1996-2016. Pop Health Metr 2020; 18(Supl. 1):20. demonstram que, em locais de baixa renda, é menor o acesso a Serviços de Apoio Diagnóstico Terapêutico (SADT), o que pode gerar maior número de registro de óbitos por causas mal definidas, subdimensionando a mortalidade por CSAP. Neste sentido, foi utilizado o método desenvolvido por Cavalini e Ponce de Leon2525 Cavalini LT, Ponce de Leon ACM. Correção de sub-registros de óbitos e proporção de internações por causas mal definidas. Rev Saude Publica 2007; 41:85-93. para correção tanto do sub-registro, como das causas mal definidas. Em síntese, foi feita uma redistribuição dos óbitos com causas mal definidas, considerando critérios ponderados de qualidade da informação, adaptados de Szwarcwald et al.2626 Szwarcwald CL, Leal MC, Andrade CLT, Souza Jr PRB. Estimação da mortalidade infantil no Brasil: o que dizem as informações sobre óbitos e nascimentos do Ministério da Saúde? Cad Saude Publica 2002; 18:1725-1736..

Para identificar as diferenças na evolução dos municípios, diante de suas diversas características sociais, econômicas e demográficas, estes foram estratificados segundo o porte populacional, definido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de acordo com o número de habitantes: até 5.000; de 5.001 até 10.000; de 10.001 até 20.000; de 20.001 até 50.000; de 50.001 até 100.000; de 100.001 até 500.000; acima de 500.000. Já em relação às características sociais e econômicas, foi utilizado o Índice Brasileiro de Privação (IBP), desenvolvido por pesquisadores do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia) e da Universidade de Glasgow-Escócia, dentro do projeto Social Policy & Health Inequalities (SPHI)2727 Alik M, Ramos D, Agranokik M, Pinto Júnior EP, Ichihara MY, Barreto ML, Leyland AH, Dundas R. Developing a Small-Area Deprivation Measure for Brazil. Technical Report. Glasgow: Cidacs/University of Glasgow; 2020., que considera, com base no Censo Demográfico de 2010, os seguintes indicadores: o percentual de domicílios com renda per capita inferior a ½ salário mínimo; o percentual de pessoas analfabetas com idade igual ou superior a sete anos; e o percentual de domicílios com acesso inadequado ao saneamento básico e sem água encanada, coleta de lixo, vaso sanitário e banheiro no domicílio. A partir desses indicadores, o IBP estratifica os municípios em cinco quintis, ponderados pela população: muito baixo (Q1), baixo (Q2), médio (Q3), alto (Q4), e muito alto (Q5). Em síntese, cada quintil do IBP concentra 20% da população brasileira e quanto maior o IBP, pior a condição socioeconômica do município.

Foram calculadas a mediana dos indicadores de estrutura e resultado para cada quintil do IBP em cada estrato do porte populacional para cada ano entre 2008 e 2019. A opção pela mediana e não pela média visa reduzir o efeito de possíveis valores extremos (outliers) derivados de problemas de registros dos dados. Municípios com valores ausentes ou não declarados foram retirados da análise para aquele ano e variável em específico. Municípios sem classificação do IBP (por terem sido criados após 2010) foram retirados da análise. Foram construídos gráficos com a descrição da evolução destes indicadores por IBP em cada porte populacional e uma curva da tendência por estrato populacional, calculada através do método “loess” que considera um ajuste de regressão polinomial local por mínimos quadrados ordinários. Tal escolha permite a visualização da curva de tendência da mediana de cada indicador no período analisado.

Resultados

No Brasil, entre 2008 e 2019, houve aumento na mediana dos dois indicadores de estrutura, com destaque para a despesa municipal com APS por habitante coberto que aumentou 12,1% na mediana entre 2008 e 2019. A mediana da cobertura da APS também cresceu, partindo de 98,8% em 2008, para 100% em 2019, portanto, mais da metade dos municípios brasileiros tem 100% de cobertura da APS (eram 2.632 municípios em 2008 e 3.168 em 2019) (Tabela 1).

Tabela 1
Descrição da estrutura e resultados da Atenção Primária à Saúde dos municípios brasileiros em 2008 e 2019.

No que concerne aos indicadores de resultado da saúde dos usuários e da população, houve um pequeno aumento de 0,2% na mediana da taxa de mortalidade padronizada por idade com correção de sub-registro por CSAP entre 2008 e 2019. Já em relação às internações, houve uma redução de mais de 44,9% na mediana no mesmo período (Tabela 1).

Analisando a distribuição dos municípios brasileiros segundo porte populacional e classificação do IBP, percebe-se que 74,3% dos municípios são classificados com privação socioeconômica muito alta (Q5) ou alta (Q4). Entre os municípios com IBP muito alto (Q5), 70,5% são municípios com população de até 20.000 habitantes. Vale ressaltar que nenhum município com população maior de 500.000 habitantes está classificado com IBP muito alto (Q5). Para municípios com menos de 100.000 habitantes, quanto maior o porte populacional, menor a proporção de municípios com IBP elevado.

Em relação à despesa mediana municipal em APS por habitante coberto, no período de 2008 a 2019, segundo o porte populacional e classificação do IBP, observou-se que, quanto menor o porte populacional dos municípios, maior a despesa mediana em APS no período, com destaque para os municípios com menos de 5.000 habitantes que apresentaram o valor mediano de R$ 698,36 por habitante coberto/ano em 2008 e de R$ 944,89 em 2019. Contudo, a depender do IBP destes municípios, o investimento em APS foi diferente no mesmo período. Existe uma diferença na despesa mediana em APS por população coberta para municípios com menos de 5.000 habitantes de R$ 387,13 em 2008 e de R$ 489,72 em 2019, quando comparamos municípios com IBP muito baixo (Q1) e muito alto (Q5), notando-se que, a despesa em APS por habitante coberto é menor nos locais com maior privação socioeconômica (Figura 1).

Figura 1
Despesa mediana municipal em APS1 por porte populacional e privação socioeconômica do município. Brasil, 2008-2019.

Para os municípios com 20.000 ou menos habitantes, houve ampliação da despesa mediana em APS por população coberta independentemente da classificação do IBP entre 2008 e 2019. Já municípios com 20.000 ou mais habitantes apresentaram comportamento diferente, com redução da mediana da despesa em APS. Percebe-se que, esta redução foi maior entre os municípios com IBP muito baixo (Q1) e baixo (Q2), sendo que municípios com IBP alto (Q4) e muito alto (Q5) apresentaram certa estabilidade na despesa por habitante coberto (Figura 1).

Ainda sobre a despesa em APS, a curva de tendência mediana também foi diferente a depender do porte populacional, indicando uma mudança de tendência a partir de 2015. Para municípios com menos de 5.000 habitantes, houve uma redução da inclinação da curva, indicando diminuição da intensidade do aumento da despesa anual em APS. Já em municípios acima de 20.000 habitantes, pôde-se perceber mudança de direção da curva de tendência, indicando redução da despesa anual em APS por habitante coberto (Figura 1).

Em relação à cobertura da APS por porte populacional e classificação do IBP, houve ampliação da mediana da cobertura entre 2008 e 2019 para os municípios com mais de 10.000 habitantes, já que os municípios com menos de 10.000 apresentavam em sua maioria 100% de cobertura em 2008. Contudo, analisando a evolução segundo o IBP, a mediana da cobertura dos municípios com IBP muito alto (Q5) e alto (Q4) foi maior no período em comparação com aqueles de IBP baixo (Q2) e muito baixo (Q1). Esta diferença da mediana da cobertura da APS segundo o IBP é mais evidente nos municípios com mais de 20.000 habitantes. Por fim, destaca-se que, apesar da ampliação, quanto maior o porte populacional e melhores as condições socioeconômicas dos municípios, menor a cobertura da APS (Figura 2).

Figura 2
Cobertura mediana municipal da APS por porte populacional e privação socioeconômica do município. Brasil, 2008-2019.

A Figura 3 apresenta a mediana da taxa de mortalidade por CSAP municipal, segundo porte populacional e classificação do IBP. Quanto maior a privação socioeconômica dos municípios, maiores foram as medianas das taxas de mortalidade por CSAP, independentemente do porte populacional. Enquanto a mediana da taxa foi de 122,38 óbitos por CSAP por 100.000 habitantes em 2019 para os municípios com IBP muito alto (Q5), foi de 90,39 nos municípios com IBP muito baixo (Q1), sem considerar o porte populacional.

Figura 3
Mediana da taxa de mortalidade por CSAP segundo porte populacional e privação socioeconômica do município, Brasil, 2008-2019.

Considerando as condições de privação, é perceptível uma mudança da curva de tendência mediana para os municípios com IBP muito alto (Q5) e alto (Q4) também a partir de 2015, de forma semelhante ao identificado na despesa com APS. Nos municípios com IBP muito alto (Q5) e com menos de 5.000 habitantes, reduziu-se a taxa de mortalidade entre 2008 e 2014 (95,8 em 2008 e 88,9 em 2014), seguida de aumento entre 2014 e 2019, alcançando 108,5 em 2019. Situação semelhante foi verificada nos municípios com IBP alto (Q4) e muito alto (Q5) e com menos de 50.000 habitantes (Figura 3).

A Figura 4 apresenta a mediana da taxa de internações municipais por CSAP, segundo porte populacional e classificação do IBP. De modo geral, reduziu-se a mediana das taxas de internações por CSAP entre 2008 e 2019 para todos os estratos de municípios com população abaixo de 500.000 habitantes. Municípios com menos 5.000 habitantes tiveram uma taxa mediana de internações por CSAP em 2019 de 793,90 por 100.000 habitantes, enquanto municípios com 5.000 a 10.000 e de 10.000 a 20.000 apresentaram taxas de 753,98 e 907,57 respectivamente. O estrato que apresentou, em 2019, a maior taxa mediana (994,24) foi o dos municípios com população de 20.000 a 50.000 habitantes.

Figura 4
Mediana da taxa de internações por CSAP municipal segundo porte populacional e privação socioeconômica do município. Brasil, 2008-2019.

Analisando a taxa mediana de internações por CSAP, segundo a classificação do IBP, notou-se que os quintis de municípios com maior privação apresentaram maior taxa mediana, com exceção daqueles com IBP muito alto (Q5). Em geral, este fato também foi verificado dentro de todos os estratos por porte populacional, em que a taxa mediana de internações foi maior nos municípios com maior privação socioeconômica. Nos estratos de 50.000 a 100.000 e de 100.00 a 500.000 habitantes, os municípios com IBP muito alto (Q5) apresentam a maior mediana da taxa de internações por CSAP (Figura 4).

Em relação à curva de tendência da taxa mediana de internações, não houve em nenhum dos estratos com população menor de 500.000 habitantes inversão da tendência, que, de modo geral, continuou decrescente. Para os municípios dos estratos com população de 50.000 a 100.000 e de 100.00 a 500.000 habitantes, notou-se uma leve mudança da inclinação da curva também a partir de 2015 e inversão da tendência (estava aumentando até 2014 e diminuindo entre 2014 e 2019) para os municípios acima de 500.000 habitantes (Figura 4).

Discussão

Os resultados deste estudo demonstraram que a evolução da APS, seja na estrutura ou nos resultados, foi diferente a depender do porte populacional e do nível de privação socioeconômica dos municípios brasileiros.

Tais diferenças reforçaram a hipótese de que a privação socioeconômica tem efeito sobre o nível de investimento em APS nos municípios brasileiros. Alguns estudos2828 Souza RR. Redução das desigualdades regionais na alocação dos recursos federais para a saúde. Cien Saude Colet 2003; 8(2):449-460.,2929 Solla JJSP, Reis AAC, Soter APM, Fernandes AS, Palma JJL. Mudanças recentes no financiamento federal do Sistema Único de Saúde: atenção básica à saúde. Rev Bras Saude Mater Infant 2007; 7(4):495-502. apontaram que certos mecanismos estabelecidos no final dos anos 1990 e início de 2000, como o Piso da Atenção Básica fixo e variável, o limite financeiro da média e alta complexidade e o Fundo de Ações Estratégicas e de Compensações (FAEC) foram responsáveis por atenuar as diferenças da distribuição dos recursos per capita entre as macrorregiões do país. Contudo, como mostra este estudo, que analisou outras variáveis relativas aos municípios, o porte populacional e o nível de privação foram características municipais associadas à desigualdade de investimento em APS no Brasil.

Uma das hipóteses sobre o investimento diz respeito ao nível de arrecadação de impostos e tributos e às transferências constitucionais recebidas pelos municípios. Ao realizar uma regressão de mínimos quadrados ordinários da receita de impostos e transferências constitucionais per capita (obtida a partir da série histórica de indicadores municipais do SIOPS) como variável independente e a despesa por população coberta em APS como variável dependente, a variação da primeira explicou 52% (R²) da variação da segunda. Em outras palavras, em média, o aumento de um real per capita em impostos e transferências constitucionais, nos municípios, entre 2008 e 2019, pode ter implicado em aumento de 17 centavos de reais na despesa com população coberta em APS. Já a variação do IBP explicou aproximadamente 14% da variação da receita de impostos e transferências constitucionais, assim, o aumento de uma unidade do IBP pode ter implicado em média a redução de R$ 550,66 per capita na receita de impostos e transferências constitucionais.

Lima3030 Lima LD. Federalismo fiscal e financiamento descentralizado do SUS: balanço de uma década expandida. Trab Educ Saude 2008; 6:573-598., estudando o federalismo fiscal brasileiro, evidenciou a força da União e dos interesses políticos, econômicos e locorregionais por ela representados e a fragilidade das esferas subnacionais e suas máquinas administrativas. Conclui que não há garantias para a oferta de um conjunto de serviços e benefícios comuns aos cidadãos nas diferentes regiões do país e a autonomia decisória dos entes subnacionais, sendo restrita, impossibilita a adequação regional do destino dos recursos tributários.

Este estudo sugere que uma das formas potenciais de corrigir parte desta desigualdade na despesa por população coberta em APS está na mudança do processo tributário brasileiro, diminuindo a desigualdade regional considerando principalmente critérios de privação socioeconômica e, assim, atenuando o impacto da capacidade produtiva e comercial dos municípios na receita de impostos e no recebimento de transferências constitucionais, o que por sua vez, poderá produzir efeito sobre o investimento em políticas públicas, como nas ações e serviços de saúde ofertados pela APS.

Analisando a tendência da mediana, foi possível identificar uma mudança da curva a partir de 2015, seja da despesa por habitante coberto em APS, seja da taxa de mortalidade por CSAP. A metodologia deste estudo não permite identificar a significância estatística de uma mudança de tendência ou de patamar nos períodos antes e depois de 2015 entre os municípios. Apesar desta limitação, vale destacar que, em 2015, o país entrou em recessão econômica com o registro de Produto Interno Bruto negativo que também se seguiu em 2016. Ainda em 2016, houve o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, substituída pelo vice-presidente Michel Temer, o que implicou em significativas mudanças na política econômica e social brasileira, que assumiu a austeridade fiscal como diretriz de gestão governamental. O maior exemplo desta política de austeridade foi a aprovação da Emenda Constitucional 95 em 2016, que estabeleceu um teto de gastos para a despesa corrente do governo federal brasileiro por 20 anos, corrigido apenas pela inflação.

Vários estudos3131 Ribeiro ALP, Duncan BB, Brant LCC, Lotufo PA, Mill JG, Barreto SM. Cardiovascular Health in Brazil: Trends and Perspectives. Circulation 2016; 133(4):422-433.

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-3535 Bonaccio M, Di Castelnuovo A, Costanzo S, Persichillo M, Donati MB, Gaetano G, Iacoviello L. Interaction between education and income on the risk of all-cause mortality: prospective results from the MOLI-SANI study. Int J Public Health 2016; 61(7):765-776. indicam que piores condições de renda e escolaridade estão relacionadas a maiores taxas de mortalidade geral e por CSAP. No Brasil, houve uma inversão da tendência de queda do número de pessoas em extrema pobreza e pobreza a partir de 2015. De fato, houve um aumento de 37% entre 2015 e 2019, após uma redução de quase 60% entre 2002 e 20143636 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de indicadores sociais. Rio de Janeiro: Coordenação de População e Indicadores Sociais; 2020.. Outros estudos3737 Karanikolos M, Mladovsky P, Cylus J, Thomson S, Basu S, Stuckler D, Mackenbach JP, McKee M. Financial crisis, austerity, and health in Europe. Lancet 2013; 381(9874):1323-1331.

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-4343 Reeves A, McKee M, Basu S, Stuckler D. The political economy of austerity and healthcare: Cross-national analysis of expenditure changes in 27 European nations 1995-2011. Health Policy 2014; 115(1):1-8., com foco em países europeus, já identificaram a relação entre crise financeira, austeridade fiscal e impacto na situação de saúde da população.

Não é possível com a metodologia deste estudo estabelecer associações entre a austeridade fiscal promovida a partir de 2016 pelo governo “Temer”, e pelo atual governo federal, e que isso possa ter contribuído ou até prolongado a crise econômica. Contudo, diante dos indícios identificados neste estudo, sugere-se que outros estudos com metodologias específicas possam investigar a associação entre a crise econômica, ampliação da pobreza e a mortalidade por CSAP. Diante do caráter abrangente do conceito de CSAP, é possível inclusive que os resultados sejam diferentes entre os 19 grupos de causas que compõem a lista de CSAP (ex.: doenças preveníveis por imunização, doenças pulmonares, hipertensão, doenças relacionadas ao pré-natal e parto e outros), o que implica em nova recomendação de investigação por grupo.

Sobre a cobertura, constatou-se uma ampliação nos estratos municipais com população acima de 20 mil habitantes, havendo, contudo, redução da mediana da despesa em APS por população coberta. Dialeticamente, dois fenômenos podem dar pistas sobre a explicação desta redução da despesa. Por um lado, é possível conjecturar aumento da eficiência técnica no uso dos recursos financeiros da APS, com, por exemplo, redução do desperdício de recursos a partir de avanços tecnológicos que permitem monitoramento de estoque, processos de compras mais competitivos dentre outras ações, permitindo a manutenção ou até ampliação da oferta de ações e serviços na APS, utilizando menos recurso financeiro por população coberta. Por outro lado, o que pareceria mais factível, a crise financeira a partir de 2015 impactou a arrecadação de impostos e transferências constitucionais dos municípios, implicando em contração do orçamento disponível para o funcionamento da APS sem significar redução da cobertura. Assim, identifica-se a expansão do número de equipes entre 2008 e 2019, com possível ampliação do acesso à APS, combinada com a menor alocação de recursos financeiros para garantir a estrutura necessária ao funcionamento adequado das unidades de APS.

Tal contração financeira pode ter influenciado o funcionamento das unidades de saúde, já que menos recursos financeiros podem implicar em menos recursos materiais, humanos, equipamentos, manutenção deficiente da estrutura física das unidades e outros elementos que são determinados pela disponibilidade orçamentária da APS nos municípios. Esta limitação orçamentária pode gerar precarização do trabalho nestas unidades, com possível efeito sobre o processo de trabalho exercido pelos profissionais na APS. Apesar desta possibilidade, vale ressaltar que a queda da mediana da despesa por população coberta foi pequena na maioria dos estratos por porte populacional, com efeito mais forte nos quintis de municípios com IBP baixo (Q2) ou muito baixo (Q1).

Uma limitação deste estudo diz respeito aos dados de despesa per capita com APS serem autorreferidos pelos próprios municípios, podendo haver certo viés no registro oriundo de erros de preenchimento (intencionais ou não).

Apesar dos resultados encontrados sobre a estrutura e os resultados da APS, entre 2008 e 2019, o desenho do estudo foi descritivo, utilizando a mediana dos valores, segundo porte populacional e classificação do IBP. Portanto, diversos municípios apresentaram uma evolução da estrutura e dos resultados da APS diferente da mediana, o que implica dizer que o resultado mediano encontrado poderá não ter ocorrido para um conjunto de municípios diante de outros fatores próprios não analisados neste estudo.

Considerações finais

Ainda assim, apesar desta limitação, medidas de tendência central são úteis para compor o panorama da APS para o conjunto dos municípios brasileiros. Este estudo evidenciou que houve expansão da estrutura e de parte dos resultados (principalmente redução das internações por CSAP). Contudo, esta evolução não corrigiu a forte desigualdade entre os municípios segundo o porte populacional e as condições de privação socioeconômica. Assim, o planejamento da APS no Brasil precisa considerar estes diferentes aspectos destes municípios como elemento ponderador, no caminho para reduzir a desigualdade da estrutura e dos resultados da APS entre os municípios brasileiros.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2022
  • Aceito
    01 Jul 2022
  • Publicado
    02 Jul 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br