Dispensação de medicamentos no sistema prisional: garantia de assistência farmacêutica?

Karla Karolline Barreto Cardins Claudia Helena Soares de Morais Freitas Gabriela Maria Cavalcanti Costa Sobre os autores

Resumo

Este artigo objetiva analisar o processo de dispensação de medicamentos em unidades prisionais. Foi realizado um estudo qualitativo, em sete penitenciárias do estado da Paraíba, sendo entrevistados 13 profissionais de saúde e 43 pessoas privadas de liberdade em uso de medicamentos essenciais/estratégicos, no período compreendido entre os meses de fevereiro a agosto de 2016. Os resultados foram categorizados na perspectiva da análise de conteúdo de Bardin e três categorias emergiram: armazenamento de medicamentos no sistema penitenciário, processo de dispensação de medicamentos no sistema penitenciário e responsabilidades sanitárias para garantir a assistência farmacêutica. Conclui-se que a inexistência de farmácias, o não cumprimento legal no que se refere a presença do profissional com habilidade e competência técnica para realizar a dispensação primando pelos padrões de qualidade/segurança e pela relevância das orientações relacionadas ao uso e armazenamento, associado a falta de clareza na definição das responsabilidades sanitárias dos gestores a partir da instância de governo, são fatores que comprometem a política uma vez que incrementam o investimento, mas não garantem a assistência farmacêutica no sistema prisional.

Palavras-chave:
Assistência Farmacêutica; Prisões; Boas Práticas de Dispensação

Introdução

Com objetivo de garantir assistência terapêutica, incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do SUS11 Brasil. Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011. Altera a lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União; 2011. e acesso da população aos medicamentos, com a necessária segurança, eficácia e qualidade, além de promover o uso racional, o Ministério da Saúde (MS) aprovou a Política Nacional de Medicamentos (PNM) (Portaria nº 3.916/1998)22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Medicamentos. Brasília: MS; 2001. e a Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF) (Resolução nº 338/2004)33 Brasil. Resolução nº 338, de 6 de maio de 2004. Dispõe sobre a aprovação da Política Nacional de Assistência Farmacêutica. Diário Oficial da União; 2004.. Os documentos consideram que a AF envolve um conjunto de ações e serviços que visam assegurar a assistência terapêutica integral e a promoção, proteção e recuperação da saúde nos estabelecimentos públicos e privados que desempenham atividades farmacêuticas, tendo o medicamento como insumo essencial44 Brasil. Lei nº 13.021, de 8 de agosto de 2014. Dispõe sobre o exercício e a fiscalização das atividades farmacêuticas. Diário Oficial da União; 2014..

Todavia, a AF não se restringe aos métodos de abastecimento de medicamentos. Possui um caráter sistêmico e multiprofissional, que implica em promover a necessária articulação dos diversos procedimentos, com objetivo de assegurar a oferta de medicamentos, segundo critérios de necessidade, qualidade, quantidade, risco e custo-benefício, respeitando as etapas de conservação, controle de qualidade, segurança e eficácia terapêutica dos medicamentos, acompanhamento e avaliação da utilização, obtenção e difusão de informação sobre medicamentos e educação permanente dos profissionais de saúde, do paciente e da comunidade, visando à utilização racional dos medicamentos na atenção à saúde22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Medicamentos. Brasília: MS; 2001.,55 Silva Júnior EB, Nunes LMN. Avaliação da Assistência Farmacêutica na atenção primária no município de Petrolina (PE). ABCS Health Sci 2012; 37(2):65-69.. Portanto, para a efetiva AF, fazem parte as atividades de seleção, programação, aquisição, armazenamento/distribuição, controle da qualidade/utilização, prescrição e dispensação33 Brasil. Resolução nº 338, de 6 de maio de 2004. Dispõe sobre a aprovação da Política Nacional de Assistência Farmacêutica. Diário Oficial da União; 2004..

Desde 1973, o termo dispensação foi legalmente conceituado no Brasil, como sendo o fornecimento de medicamentos ao consumidor em atendimento a uma prescrição médica ou não. Muitas vezes, tem sido entendida simplesmente como uma entrega de medicamentos, atendimento a normas legais ou mera burocracia, contudo, a PNM, a PNAF e a recente publicação da Lei nº 13.02166 Brasil. Lei nº 13.021, de 8 de agosto de 2014. Dispõe sobre o exercício e a fiscalização das atividades farmacêuticas. Diário Oficial da União 2014; 11 ago., aproximam o objetivo da dispensação às necessidades da sociedade, buscando transcender o simples fornecimento de medicamentos para a promoção do uso racional dos medicamentos77 Leite SN, Bernardo NLMC, Álvares J, Guerra Junior AA, Costa EA, Acurcio FA, Guibu IA, Costa KS, Karnikowski MGO, Soeiro OM, Soares L. Serviço de dispensação de medicamentos na atenção básica no SUS. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):11s..

Destarte, a dispensação de medicamentos é uma das etapas para um consumo racional, sendo de extrema importância que seja acompanhada de informações relevantes para uso adequado88 World Health Organization (WHO). The rational use of drugs, report of the conference of experts (Nairobi nov. 1985). Genebra: WHO; 1987.. Para otimizar esta etapa, é recomendada, como estratégia, a adoção da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME)99 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos em Saúde. Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Relação Nacional de Medicamentos Essenciais: RENAME 2020. Brasília: MS; 2020.. Convém registrar que o aparato legal nacional garante, desde a década de 80, para todos os brasileiros, inclusive as pessoas privadas de liberdade, assistência à saúde, assegurando textualmente a estes, atendimento médico, farmacêutico e odontológico1010 Brasil. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União; 1984..

Por esta razão, o governo brasileiro implantou o Plano Nacional de Saúde do Sistema Penitenciário (PNSSP)1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. Brasília: MS; 2005.. Com experiência exitosa de implantação de equipes, em 2014 foi instituída a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), que objetivou promover o acesso à rede de atenção à saúde, com o cuidado integral realizado de forma humana e qualificada1212 Brasil. Portaria Interministerial nº 1, de 2 de janeiro de 2014. Institui a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2014..

Além disso, é importante destacar que existem padrões internacionais que trazem princípios no tratamento das pessoas privadas de liberdade. As Regras de Nelson Mandela evidenciam que “todos os presos devem ser tratados com respeito, devido a seu valor e dignidade inerentes ao ser humano”1313 Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Regras de Mandela: regras mínimas das Nações Unidas para o tratamento de presos. Brasília: CNJ; 2016.. E as Regras de Bangkok enfatizam que as penitenciárias necessitam de profissionais de saúde qualificados para atender aos reclusos1414 Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Regras de Bangkok: regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras. Brasília, CNJ; 2016..

O acesso e a disponibilidade de medicamentos para a população são considerados indicadores essenciais de efetividade e equidade dos sistemas de saúde. A disponibilidade de medicamentos deve satisfazer às necessidades epidemiológicas, de forma integrada e orientada, com a finalidade de garantir o uso correto e adequado de produtos farmacêuticos1515 Brasil. Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS). Instrumento de Referência dos Serviços Farmacêuticos na Atenção Básica. Brasília: CONASEMS; 2020.. Nesse sentido, o objetivo desta pesquisa foi analisar como acontece o processo de dispensação de medicamentos essenciais e estratégicos de uso contínuo em unidades prisionais, sob a perspectiva de profissionais de saúde e pessoas privadas de liberdade.

Métodos

Trata-se de um estudo exploratório e descritivo, com abordagem qualitativa. O estudo foi desenvolvido em sete penitenciárias do estado da Paraíba, entre os meses de fevereiro e agosto de 2016. Para seleção das unidades prisionais foram adotados como critérios de inclusão: ter em sua estrutura física unidade de saúde, com equipe de profissionais conforme a PNAISP e, população carcerária inferior a 800 apenados, por questão de segurança e viabilidade.

Durante as visitas iniciais às unidades prisionais foram observados e registrados no diário de campo1616 Bogdan R, Biklen S. Investigação qualitativa em educação. Porto Alegre: Porto Editora; 1994. a rotina dos serviços, a estrutura física da farmácia/local destinado ao armazenamento e a dispensação dos medicamentos.

Nas visitas subsequentes, foram entrevistados profissionais de saúde e pessoas privadas de liberdade. A amostra foi do tipo intencional, incluiu profissionais das equipes de saúde e pessoas privadas de liberdade, mediante os seguintes critérios de inclusão: para os médicos e enfermeiros foi adotado o critério de trabalhar no mínimo há seis meses na unidade e, para as pessoas privadas de liberdade, ser homens e/ou mulheres condenados a regime fechado que fizessem uso de medicamentos essenciais e estratégicos há pelo menos três meses. Assim, foram entrevistados 13 profissionais de saúde e 43 pessoas privadas de liberdade.

Para coleta de dados foram realizadas entrevistas individuais, semi-estruturadas, audiogravadas, agendadas de acordo com a conveniência dos participantes e rotina do serviço, que tiveram uma duração média de 21 minutos. O fechamento amostral1717 Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde. Cad Saude Publica 2008; 24(1):17-27. para os profissionais de saúde foi por exaustão (em que são incluídos todos os indivíduos disponíveis), e para os demais participantes da pesquisa foi por saturação teórica (interrupção da captação nos dados coletados pois as informações não contribuem mais para o aperfeiçoamento da reflexão teórica pretendida).

Os resultados foram categorizados na perspectiva da análise de conteúdo1818 Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2014.. Foi realizada a identificação das unidades de análise após a leitura flutuante das entrevistas, sendo agrupadas por semelhança de conteúdo. Posteriormente, foi feita a decomposição das falas, que foram agrupadas em três categorias: armazenamento de medicamentos no sistema penitenciário, processo de dispensação de medicamentos no sistema penitenciário e responsabilidades sanitárias para garantir a assistência farmacêutica.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual da Paraíba, sob o CAAE nº 20476213.4.0000.5187. Os participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A fim de resguardar o sigilo dos participantes da pesquisa, bem como das instituições prisionais, as entrevistas foram identificadas em ordem sequenciada de realização de acordo com as cidades (α, β, γ, δ, ε, ζ, η), com os apenados (1, 2, ...) e com profissionais (A, B, ...), sendo o domínio exclusividade das pesquisadoras.

Resultados

Caracterização dos participantes

Foram entrevistados 14 profissionais, sendo seis médicos, sete enfermeiros e um representante da Coordenação de Saúde Penitenciária da Paraíba. Além destes, 43 participantes estavam privados de liberdade e em uso de medicamentos essenciais e/ou estratégicos, sendo 35 (81,4%) homens e 08 (18,6%) mulheres. Quanto à faixa etária, os prisioneiros foram classificados da seguinte forma: 1 (2,3%) com menos de 19 anos, 04 (9,3%) entre 20-29 anos, 19 (44,2%) entre 30-39 anos, 09 (20,9%) entre 40-49 anos, 08 (18,6%) entre 50-59 anos e 02 (4,6%) com 60 ou mais anos.

Quando investigados sobre as patologias, 21 (48,8%) eram portadores de hipertensão, 03 (7%) de diabetes, 08 (18,6%) eram hipertensos e diabéticos, 05 (11,6%) tinham diagnóstico de tuberculose, 01 (2,3%) de hanseníase, 01 (2,3%) de hanseníase e diabetes e 04 (9,3%) soropositivos para o HIV.

Referente aos profissionais responsáveis pela prescrição dos medicamentos, em 39 prontuários (90,7%) foram os médicos, em 03 (7%) os enfermeiros e em 01 (2,3%) não constava no prontuário quem fez a prescrição inicial.

Após as análises dos resultados, três categorias emergiram: local de armazenamento de medicamentos no sistema penitenciário, processo de dispensação de medicamentos no sistema penitenciário e responsabilidades sanitárias para garantir a AF.

Discussão

Armazenamento de medicamentos no sistema penitenciário

A Constituição Federal (CF) de 1988 dispõe em seu art. 5º, XLIX que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”, demonstrando a necessidade de se respeitar os direitos humanos dentro das penitenciárias, como o número de presos dentro das celas, pois o conglomerado em um pequeno espaço gerará problemas sérios de saúde e comportamento, retirando os direitos básicos1919 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out..

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) destaca a precária situação dos serviços de saúde nas prisões brasileiras, destacando a falta de medicamentos e equipamentos necessários e alertando que a superlotação, a falta de higiene e ventilação inadequada constituem uma séria ameaça à saúde dos detentos2020 Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Situação dos direitos humanos no Brasil. Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 12 de fevereiro de 2021 [Internet]. Organização dos Estados Americanos; 2021 [acessado 2022 jan 21]. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/Brasil2021-pt.pdf.
http://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pd...
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Após observação in loco, foi constatado que nas penitenciárias α, γ, δ, ε e ζ não há estrutura física que abrigue a farmácia. Essa inexistência foi atestada nas falas dos profissionais dos serviços, como pode ser verificado a seguir:

Os medicamentos ficam guardados nas gavetas dos armários nos consultórios, porque aqui não tem farmácia. (ε-H).

Dessa forma, também não se realiza a organização por ordem alfabética, classe de medicamentos, tampouco se verifica a validade. À medida que os medicamentos chegam às unidades, apenas são colocados no local destinado e a distribuição é feita de acordo com a livre demanda.

Nas unidades β e η há um local destinado para armazenamento das medicações, embora não possuam autorização do Conselho Regional de Farmácia nem o Alvará Sanitário, emitido pela Vigilância Sanitária Municipal, para garantir o cumprimento dos requisitos técnicos e sanitários que abrangem o funcionamento de um estabelecimento de dispensação de medicamentos2121 Brasil. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE). Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Diretrizes para estruturação de farmácias no âmbito do Sistema Único de Saúde. Brasília: SCTIE; 2009..

Na penitenciária β, o local destinado a farmácia possui janela sem grade ou tela, permitindo a incidência direta de luz solar e a entrada de pássaros e outros animais que podem contaminar o local e inviabilizar o uso dos medicamentos. Já a penitenciária η, mesmo com um local específico para armazenar as medicações e com estrutura física bem próxima dos padrões recomendados, não possuía a organização devida, conforme destacado nas falas que seguem:

A farmácia é muito suja, tem fezes de pássaros. [...] não raras vezes atendemos e não podemos entregar medicação ou atender uma urgência simplesmente por falta de acesso. Ou quando pegamos o medicamento está vencido ou em condições visíveis de inutilização. (β-C).

A farmácia fica numa sala atrás dessa porta. Nunca vi, mas muitas vezes a gente precisa e dizem que está fechada. (β-40).

A farmácia funciona em local próprio. Embora precário, com armazenamento que só quem entende é o funcionário do setor. (η-A).

As inadequações no que se referem ao espaço físico estão presentes não somente nas unidades penitenciárias. Em estudo realizado no estado do Espírito Santo foi observado que também há dificuldades e inobservâncias nos serviços da rede do SUS1717 Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde. Cad Saude Publica 2008; 24(1):17-27.,2222 Fernandes BD, Freitas RR, Melchiors AC. Avaliação dos serviços farmacêuticos: indicadores de estrutura e processo em farmácias comunitárias. Rev Bras Pesqui Saude 2015; 17(1):31-37.. Essa desorganização pode comprometer a qualidade dos medicamentos, fazendo com que os serviços gastem recursos para provimento, os presos recebam medicamentos com propriedades farmacológicas comprometidas2121 Brasil. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE). Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Diretrizes para estruturação de farmácias no âmbito do Sistema Único de Saúde. Brasília: SCTIE; 2009. e, por consequência as necessidades de saúde não sejam atendidas, tão pouco os problemas não resolvidos.

As Regras de Bangkok afirmam que os estabelecimentos penitenciários devem “dispor de instalações, material e produtos farmacêuticos que permitam prestar aos reclusos doentes os cuidados e o tratamento adequados” e que os profissionais devem ter uma formação profissional suficiente para atender as necessidades dessa população1414 Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Regras de Bangkok: regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras. Brasília, CNJ; 2016.,2323 United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). Compendium of United Nations standards and norms in crime prevention and criminal justice. New York: UN; 2016..

O ambiente destinado ao armazenamento dos medicamentos precisa atender as normas técnicas da legislação vigente e as especificações do fabricante, garantindo a manutenção de sua identidade, integridade, qualidade, segurança, eficácia e rastreabilidade, com a conservação necessária para manter a qualidade dos medicamentos2121 Brasil. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE). Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Diretrizes para estruturação de farmácias no âmbito do Sistema Único de Saúde. Brasília: SCTIE; 2009.. Além do que, a Lei nº 13.021, de 8 de agosto de 2014, condiciona o funcionamento de farmácias à autorização/licenciamento da autoridade competente, à presença de farmacêutico e, à observância da localização conveniente, considerando o aspecto sanitário44 Brasil. Lei nº 13.021, de 8 de agosto de 2014. Dispõe sobre o exercício e a fiscalização das atividades farmacêuticas. Diário Oficial da União; 2014..

Há de se registrar que nas penitenciárias que possuem farmácias, não atestamos rotina de limpeza do ambiente, além do que, as áreas internas e externas das farmácias não estão em boas condições físicas e estruturais, de modo a permitir a higiene, e, portanto, oferecem riscos aos usuários e funcionários, como se pode observar nas falas a seguir:

Neste local, devido à falta de higiene, os medicamentos ficam mofados, perdemos muitos, e isso não é porque eles não estejam precisando. É porque não se reconhece o medicamento como componente tão importante quanto médico e enfermeiro na assistência à saúde. (η-I).

Podem verificar que ventilação, iluminação, higiene estão comprometidos. A entrada de insetos, roedores ou outros animais precisava ser considerada. (β-B).

As estruturas das farmácias existentes não promovem adequada assistência farmacêutica e, findam por comprometer aos esforços para implantação de políticas. Desta forma, merecem destaque como desafios para AF apropriada, a garantia de estrutura adequada e, consequente ampliação do acesso da população a medicamentos, de fundamental importância para a organização dos serviços pelos gestores estaduais e municipais, no sentido de garantir um funcionamento eficiente55 Silva Júnior EB, Nunes LMN. Avaliação da Assistência Farmacêutica na atenção primária no município de Petrolina (PE). ABCS Health Sci 2012; 37(2):65-69..

Processo de dispensação de medicamentos no sistema penitenciário

Dentre as etapas técnico-assistenciais para garantir assistência farmacêutica, a dispensação consiste no serviço do farmacêutico, em cumprimento a uma prescrição de profissional habilitado, que envolve a análise dos aspectos legais/ técnicos da receita, a efetivação de intervenções, a entrega de medicamentos ao paciente ou responsável, com orientações sobre o uso adequado e seguro e, a conservação/descarte, com o objetivo de garantir a segurança do paciente, o acesso e a utilização adequadas88 World Health Organization (WHO). The rational use of drugs, report of the conference of experts (Nairobi nov. 1985). Genebra: WHO; 1987.. Além de fornecer orientação e educação adequadas quanto ao uso e aos cuidados para o uso do medicamento e a promoção da adesão, na busca pelos melhores resultados da terapêutica e pela redução dos riscos77 Leite SN, Bernardo NLMC, Álvares J, Guerra Junior AA, Costa EA, Acurcio FA, Guibu IA, Costa KS, Karnikowski MGO, Soeiro OM, Soares L. Serviço de dispensação de medicamentos na atenção básica no SUS. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):11s..

A Organização Mundial da Saúde destaca que para a realização de um tratamento medicamentoso efetivo devem ser consideradas as necessidades de cada preso, fornecendo as medicações pelo período e dose adequados, de forma contínua e individual, o que reduz os riscos de complicações e hospitalizações e melhora o bem-estar2424 World Health Organization (WHO). Regional Office for Europe, United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). Prisons and health. Copenhagen: WHO; 2014..

No cenário das penitenciárias pesquisadas, a entrega de medicamentos varia de acordo com os profissionais de cada penitenciária, com a doença do apenado e com o comportamento dele. Mas, em nenhuma é possível classificar a entrega como dispensação uma vez que não cumpre aspectos mínimos necessários.

Em todas as penitenciárias estudadas a entrega de medicamento acontecia no próprio consultório médico/enfermagem sem salvaguardar a privacidade do apenado. Além do que, não há a observância de reter no prontuário a prescrição médica ou realizar o devido registro:

Aqui apenas entregamos os medicamentos. Nem sempre é possível fazer orientações, mas, como muitas vezes eles já tomavam antes de ser presos, ficamos mais tranquilos, já sabem tomar e, assim adiantamos nosso trabalho. (α-A).

A entrega do medicamento é feita, a receita fica retida, às vezes fracionado, às vezes a caixa toda. Depende do estoque, do período do mês, da condição do paciente e, do agente de segurança responsável. (ε-G).

De uma forma geral, o processo de dispensação deveria envolver etapas como, avaliar a prescrição, correlacionar os medicamentos prescritos com as condições de saúde e características do paciente, considerar fatores que interfeririam no resultado do tratamento e na segurança do paciente2525 Conselho Federal de Farmácia (CFF). Serviços farmacêuticos diretamente destinados ao paciente, à família e à comunidade: contextualização e arcabouço conceitual. Brasília: CFF; 2016..

A literatura internacional tem apontado o papel central da avaliação de tecnologias em saúde (ATS) no acesso a medicamentos e seu potencial para além da entrega do medicamento e do propósito de alocação de recursos em situação de escassez2626 Ventura M. O direito ao acesso a medicamento e a avaliação e incorporação tecnológica no SUS: uma questão de saúde global e de direitos humanos. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2021..

Nesse sentido, quando questionados sobre a regularidade dessa entrega os detentos de algumas penitenciárias afirmaram que recebem os medicamentos mensalmente, a depender do estoque, independente da condição clínica ou avaliação de rotina:

Pegamos todos uma vez por mês. (β-38).

Uma vez por semana eles entregam uma cartela. (γ-15).

Ao realizar apenas um encontro mensal com o apenado, o processo de comunicação e diálogo fica comprometido, e impede que o profissional identifique o nível de conhecimento e experiência do paciente com o tratamento.

A falta de estrutura das farmácias identificada no estudo também impede a realização do fracionamento na entrega dos medicamentos. A penitenciária delta é a única que entrega os medicamentos de forma mais fracionada, como se pode verificar nas falas:

O médico ou a enfermeira me entregam para eu passar três dias. (δ-23).

A enfermeira me dá os tabletezinhos para quatro dias. (δ-24).

Essa entrega fracionada é fundamental para o sucesso do processo de dispensação, devendo o farmacêutico fazer perguntas ao usuário sobre o processo de uso do medicamento e corrigir eventuais irregularidades, como as relacionadas à indicação, posologia, tempo de tratamento e resultados esperados, além de possíveis reações adversas, interações com medicamentos e alimentos, guarda dos medicamentos e monitoramento quando necessário2121 Brasil. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE). Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Diretrizes para estruturação de farmácias no âmbito do Sistema Único de Saúde. Brasília: SCTIE; 2009..

Vale ressaltar que o quantitativo de pessoas privadas de liberdade em algumas unidades pode ser um fator que dificulte a realização de acompanhamento diário e individualizado, em função do número de profissionais de saúde e agentes penitenciários para atender a demanda. Contudo, a ocupação das celas acima do número estabelecido de vagas viola os direitos humanos, sendo considerado como tratamento cruel, desumano ou degradante e infringe a garantia constitucional da dignidade da pessoa humana, pondo em risco a integridade física, moral e psíquica dos indivíduos e dificultando o acesso aos recursos materiais elementares para a vida2727 Organização dos Estados Americanos (OEA). Direitos das Pessoas Privadas de Liberdade [Internet]. 2006 [acessado 2022 jan 21]. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/ppl/default.asp.
https://www.oas.org/pt/cidh/ppl/default....
,2828 Brasil. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Diário Oficial da União; 1992..

Além disso, um atendimento farmacêutico individual assegura a adesão ao tratamento e proporciona um impacto positivo nos resultados clínicos. Na prática, o medicamento pode ser entregue sem profissional de saúde, mas nunca será entregue sem a colaboração efetiva dos agentes de segurança penitenciária:

Todo mês os hipertensos e diabéticos sobem, eu verifico a pressão e entrego a medicação para 15 dias, aí se tiver com pouco agente para trazer os apenados, nos outros 15 dias eu peço para um agente entregar, eu mando com o nome e eles já sabem direitinho como tomar. (ζ-I).

Outra característica relevante sobre a entrega de medicamentos está relacionada ao responsável por distribuir as medicações e ao local que ela é realizada, sendo feita diversas vezes em vários locais, por diferentes profissionais:

Quem entrega é o enfermeiro mesmo. Também o chefe de farmácia entrega, depende do horário. Venho na grade, eles avisam na unidade, venho e recebo. (β-12).

Os agentes. Geralmente eles entregam no portão do pavilhão ou nas celas. Não tem essa de falar com médico ou enfermeira. Todos já usam o medicamento. (ζ-37).

A técnica de enfermagem entrega, a enfermeira também entrega, a psicóloga entrega, a assistente social entrega, até o apenado que ajuda nos serviços entrega. A realidade é assim, se for necessário, qualquer pessoa entrega. (γ-E).

Apenas duas das sete penitenciárias deste estudo apresentavam um profissional responsável pela farmácia da unidade de saúde, e eles não eram farmacêuticos. Nas demais unidades, como é ressaltado nas falas, os medicamentos são entregues por diversas pessoas, sem um protocolo previamente estabelecido. Além disso, foi observado ainda que essa entrega muitas vezes é realizada na grade de entrada dos pavilhões, sem qualquer orientação específica e individualizada. Além do que, em nenhum dos momentos há a certificação de que os apenados sabem ler para compreender a recomendação de uso, embora os medicamentos não sejam acompanhados de bulas ou de prescrições.

Diversos autores relatam que no Brasil, aproximadamente 50% dos medicamentos receitados são prescritos, dispensados ou aplicados inadequadamente, na ausência de farmacêutico2929 Mainardes NM, Sousa SF, Xavier MP. Análise do perfil das prescrições médicas e da dispensação farmacêutica em uma farmácia escola do município de Gurupi-TO. Rev Amaz 2014; 2(1):19-27.

30 Bueno D, Guzatto P. Análise de prescrições medicamentosas dispensadas na farmácia de uma unidade básica de saúde de Porto Alegre RS. Rev HCPA 2007; 27(3):20-26.

31 Angonesi D. Dispensação Farmacêutica: uma análise de diferentes conceitos e modelos. Cien Saude Colet 2008; 13(Supl.):629-640.
-3232 Portela AS, Simões MOS, Fook SML, Montenegro Neto NA, Silva PCD. Prescrição médica: orientações adequadas para o uso de medicamentos? Cien Saude Colet 2010; 15(3):3523-3528.. A dispensação de medicamentos é uma atribuição privativa do farmacêutico2525 Conselho Federal de Farmácia (CFF). Serviços farmacêuticos diretamente destinados ao paciente, à família e à comunidade: contextualização e arcabouço conceitual. Brasília: CFF; 2016.,3333 Brasil. Decreto nº 85.878, de 7 de abril de 1981. Estabelece normas para execução da Lei nº 3.820, de 11 de novembro de 1960, sobre o exercício da profissão de farmacêutico, e dá outras providências. Diário Oficial da União; 1981., não podendo ser delegada a outrem, pois este é capacitado para fornecer orientações adequadas sobre o uso correto e seguro, para avaliar e interpretar a prescrição além de, nortear os usuários quanto a correta conservação e descarte, devendo levar em consideração os aspectos terapêuticos, as contraindicações e interações, como também aspectos técnicos e legais2525 Conselho Federal de Farmácia (CFF). Serviços farmacêuticos diretamente destinados ao paciente, à família e à comunidade: contextualização e arcabouço conceitual. Brasília: CFF; 2016..

Quando questionados sobre o profissional responsável por fazer entrega do medicamento e orientar o uso, apenados e profissionais relataram:

Quem orientou foi o agente de saúde. Ou o povo nas celas mesmo. Aqui muitos tomam estas medicações. (α-4).

O enfermeiro dá as orientações a todos. (β-7).

A médica explica como é o uso na hora do atendimento. (δ-F).

O chefe de farmácia também faz orientações quanto ao uso das medicações. (η-K).

Poucos são os casos em que o profissional responsável pela farmácia é quem orienta o tratamento. As recomendações indicam que o farmacêutico, quando presente, deve ter especial cuidado no fornecimento das informações e principalmente certificar-se de que o usuário compreendeu todo o processo de uso do medicamento1717 Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde. Cad Saude Publica 2008; 24(1):17-27..

Responsabilidades sanitárias para garantir a assistência farmacêutica

Em reconhecimento do dever jurídico e ético e das recomendações descritas em documentos internacionais de direitos humanos, os novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), para serem alcançados até 2030, trazem o objetivo de proporcionar acesso a medicamentos, garantindo que todos os seres humanos possam atingir seu potencial em dignidade e igualdade, em um ambiente saudável3434 Fernandes DA. Direito a saúde e a dignidade da pessoa humana: acesso a medicamentos e a visão das farmacêuticas. Rev Interdisc Direito 2021; 19(1):92-112.. Este acesso constitui uma parte indispensável do direito à saúde, conforme resolução da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas3535 Hogerzeil HV, Samson M, Casanovas JV, Rahmani-Ocora L. Is access to essential medicines as part of the fulfilment of the right to health enforceable through the courts? Lancet 2006; 368(9532):305-311.. Assim sendo, convém registrar que as reflexões aqui suscitadas teoricamente apoiam-se no reconhecimento teórico do princípio da dignidade da pessoa humana como valor basilar do Estado Brasileiro2828 Brasil. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Diário Oficial da União; 1992..

Os serviços farmacêuticos na rede do SUS têm a finalidade de propiciar o acesso qualificado aos medicamentos pelos seus usuários. Para isso, o MS disponibiliza aos municípios o Sistema Nacional de Gestão de Assistência Farmacêutica - HÓRUS -, que é uma ferramenta para a qualificação da gestão da AF, já que possibilita a definição dos fluxos e responsabilidades no processo de trabalho, o registro sistemático das ações e a possibilidade de acompanhamento, em tempo real, do serviço por meio da emissão e avaliação de relatórios que permitem maior agilidade, segurança e controle das atividades aqui descritas1818 Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2014..

Ao entrevistarmos os profissionais, foram questionados sobre quem seria o responsável pela aquisição e distribuição dos medicamentos, para garantir a AF nas unidades prisionais. A profissional da gestão farmacêutica relatou como acontece a distribuição dos medicamentos para as penitenciárias:

Como não temos farmacêutico, eu [enfermeira] solicito às unidades e os medicamentos para hipertensão e diabetes são enviados mensalmente pela coordenação do estado. Para tuberculose, hanseníase e HIV, dependemos dos municípios. (ζ-I).

Foi percebido que na ausência do farmacêutico nas equipes de saúde nas penitenciárias, a responsabilidade por solicitar, receber e armazenar os medicamentos é papel atribuído mais comumente a enfermagem.

Não foi possível consultar a Programação Pactuada Integrada (PPI) do estado e municípios nem verificar se a pactuação referida é de conhecimento de todos e retrata as responsabilidades. Cabe ao MS garantir o fornecimento regular de kits de medicamentos básicos para todas as equipes compostas pelos profissionais citados. Nesse sentido, cada esfera do governo apresenta responsabilidades quanto à aquisição, distribuição e acesso dos apenados aos tratamentos prescritos1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. Brasília: MS; 2005..

Vale ressaltar também que alguns medicamentos financiados pelo SUS são de responsabilidade da União e outros das Secretarias Estaduais de Saúde, no entanto, os usuários buscam o acesso a medicamentos nos municípios e nem sempre a gestão municipal tem as informações necessárias para orientar uma correta organização e distribuição3636 Brasil. Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS). Manual do(a) gestor(a) municipal do SUS - diálogos no cotidiano. 2ª ed. Brasília: CONASEMS; 2021..

O PNSSP institucionalizou o programa Farmácia Penitenciária, em 2003, para prover a atenção integral à saúde da população prisional, contribuindo para um maior controle e/ou redução dos agravos mais prevalentes e incidentes à saúde. Para isto, os kits são compostos por medicamentos essenciais (HA/DIA) com a quantidade estabelecida de forma proporcional ao número de pessoas presas vinculadas às equipes de saúde cadastradas no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES)3737 Brasil. Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). Assistência Farmacêutica no SUS. Brasília: CONASS; 2011..

Quando questionados se reconhecem de quem é a responsabilidade pelo suprimento, alguns profissionais de saúde das penitenciárias confirmaram que acontecem parcerias com os municípios, mas que enfrentam dificuldades:

Penso que a responsabilidade deve ser de todos, município, estado e governo federal. Aqui temos boas relações políticas e quando o estado não manda o município se vira para garantir e evitar que estes sujeitos não busquem outras instâncias ou serviços da rede. E assim temos conseguido nunca passar aperto com medicações para TB e HIV. (α-A).

Não temos uma relação amistosa com o município. O estado parece não reconhecer a existência dos presos e dos presídios, acho que é porque estamos longe demais. Mas quando a coisa aperta o município recorre, os presos saem da penitenciária e ficam perambulando nos serviços de saúde da rede. Isso assusta. (ε-G).

Todavia, equipes de saúde relatam extrema dificuldade em acessar a rede de serviço e, por conseguinte, garantir os medicamentos necessários. Segundo os profissionais, parece que o presídio é um recorte geográfico a margem do município. E se não fossem ações isoladas de profissionais e familiares, a AF estaria relegada à conveniência, descumprindo as responsabilidades sanitárias:

A gente tem dificuldades, pois nem sempre recebemos todos os medicamentos básicos. Só que às vezes os profissionais substituem a medicação por uma que tem na farmácia popular e os familiares que pegam. (δ-F).

A Comissão Intergestores Bipartite (CIB) exerce o papel de aprovar a relação dos medicamentos básicos destinados ao atendimento das doenças prevalentes identificadas na atenção primária de cada município. Deste modo, cada estado e seus municípios terão sua relação de medicamentos selecionados, devendo conter o elenco mínimo de medicamentos para pactuação na atenção básica, seja dentro ou fora de unidades prisionais. Já as definições relacionadas ao financiamento envolvem as três esferas de gestão do SUS3636 Brasil. Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS). Manual do(a) gestor(a) municipal do SUS - diálogos no cotidiano. 2ª ed. Brasília: CONASEMS; 2021.,3838 Paniz VMV. Acesso a medicamentos em população assistida por diferentes modelos de atenção básica nas regiões Sul e Nordeste do Brasil [tese]. Pelotas: Universidade Federal de Pelotas; 2009..

Ao garantir o acesso ao medicamento como direito humano o Estado reconhece como uma obrigação a ser cumprida, considerando a constante avaliação das necessidades de saúde da população e, quando oportuno e necessário a ampliação do rol de medicamentos2626 Ventura M. O direito ao acesso a medicamento e a avaliação e incorporação tecnológica no SUS: uma questão de saúde global e de direitos humanos. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2021..

Na realidade estudada, as necessidades são avaliadas e os profissionais afirmaram que enviam o mapa com as solicitações dos medicamentos para a devida aquisição tem tempo hábil, mas nem sempre existe um meio de transporte para pegar os medicamentos:

Eu faço o pedido todo mês, se eu não pegar o meu carro e for lá pegar a medicação não chega até aqui, porque nunca tem um carro, o transporte do Estado sempre está quebrado, sempre tem algum problema. Ou simplesmente não tem o medicamento. (ζ-I).

Os medicamentos dispensados no âmbito do SUS devem ser distribuídos para as unidades de saúde penitenciárias de acordo com o estabelecido na CIB, sendo de inteira responsabilidade da gestão o provimento das medicações, e não dos profissionais, familiares e/ou outros3939 Brasil. Coordenadoria de Planejamento de Saúde. Deliberação CIB - 72, de 20 de dezembro de 2013. Aprova as diretrizes para dispensação de medicamentos, no âmbito do Sistema Único de Saúde, no Estado de São Paulo. Diário Oficial do Estado de São Paulo; 2013..

É importante destacar também que o CONASEMS elaborou um Instrumento de referência para os serviços farmacêuticos na Atenção Básica (IRSFAB), que tem como objetivo dispor de uma definição operativa das ações e serviços ofertados pela AF na atenção básica, para dar suporte aos demais profissionais e melhorar os resultados em saúde nos indivíduos e na população1515 Brasil. Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS). Instrumento de Referência dos Serviços Farmacêuticos na Atenção Básica. Brasília: CONASEMS; 2020..

Por fim, é válido ressaltar que as responsabilidades são solidárias no que se refere à AF para pessoas privadas de liberdade no ambiente prisional, como está disposto na Portaria nº 2.765/2014, sendo o financiamento desse Componente de responsabilidade do MS, porém, a execução das ações e serviços de saúde é descentralizada, com ações solidárias entre os Estados e do Distrito Federal4040 Brasil. Portaria nº 2.765, de 12 de dezembro de 2014. Dispõe sobre as normas para financiamento e execução do Componente Básico da Assistência Farmacêutica no âmbito da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), e dá outras providências. Diário Oficial da União; 2014.. Verifica-se assim, a imperiosa necessidade de considerar o princípio da dignidade da pessoa humana, ao discorrer sobre o direito à saúde, como direito fundamental que deve ser protegido e nortear no país o ordenamento jurídico e as políticas públicas.

Considerações finais

A maioria das unidades visitadas não possui farmácia em sua estrutura física. Quando existente, são instalações que não atendem ao preconizado, comprometendo a AF, pois não realizam devidamente a dispensação, armazenamento e correta conservação dos medicamentos. Destarte, a concepção que guia o processo de dispensação está restrita a entrega do medicamento, por qualquer profissional, não primando pela individualidade no atendimento e humanização da assistência, nem pela importância do papel do profissional farmacêutico e tampouco a importância dos prescritores utilizarem prioritariamente medicamentos contidos na RENAME.

Contudo, é evidente que o ambiente prisional possui peculiaridades que dificultam ainda mais o processo de dispensação de medicamentos de forma adequada, como a precariedade na infraestrutura, a falta insumos e a ausência do profissional farmacêutico, responsável pela AF. Assim, é importante frisar a ineficiência e insegurança do processo de uso de medicamentos nas unidades prisionais, já que os medicamentos são dispensados sem orientação adequada, sem o devido acompanhamento e avaliação do uso.

Esses fatores podem comprometer os resultados clínicos esperados com o uso dos medicamentos e aumentar os riscos para a saúde da população prisional, principalmente se somados aos riscos associados com o uso de medicamentos armazenados inadequadamente, sem controle das condições ambientais e da validade.

No que se refere às responsabilidades sanitárias, anteriormente a dispensação de medicamentos, é importante destacar que as unidades interfederativas priorizem a organização, estruturação, gestão, logística e acesso a medicamentos da AF, ressaltando que existe claramente, no Estado, entraves políticos que vão além das instâncias técnicas administrativas. Isso finda por instalar na prática o descumprimento de atribuições e competências de cada instância de governo.

Sendo assim, cabe ressaltar a importância dos Serviços Farmacêuticos na Atenção Básica (SFAB) para a AF na gestão municipal, que necessitam estar integrados às outras ações e serviços de saúde, com vistas a responder adequadamente às necessidades de saúde da população, contemplando desde a dimensão técnico-gerencial, voltada para o planejamento, logística e acesso a medicamentos, como também a clínico-assistencial, com vistas ao alcance de melhores resultados terapêuticos, advindos com o uso da farmacoterapia, em busca da melhoria da qualidade de vida das pessoas.

Nesse sentido, o estudo apresenta como limitação a impossibilidade de consulta direta à pactuação integrada para real identificação de responsabilidades.

Os achados contribuem para que pesquisas relacionadas especificamente ao cenário das penitenciárias sejam empreendidas a nível federal, para assim avaliar a dimensão dos gastos e a eficiência da AF em unidades prisionais, a existência de farmácias e o cumprimento legal da presença do profissional com habilidade e competência técnica para realizar a dispensação e todo o processo que esta ação envolve.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Nov 2021
  • Aceito
    13 Ago 2022
  • Publicado
    15 Ago 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br