A introdução precoce de sucos pode influenciar desfechos antropométricos e consumo alimentar em idade pré-escolar?

Patrícia Cemin Becker Renata Oliveira Neves Clécio Homrich da Silva Marcelo Zubaran Goldani Juliana Rombaldi Bernardi Sobre os autores

Resumo

Objetivou-se avaliar o impacto do consumo de sucos antes dos 6 meses de idade no Índice de Massa Corporal para Idade (IMC/I) e no consumo alimentar em pré-escolares. Estudo longitudinal com amostra composta por mães e seus filhos (n=103) entre 6 meses e 3 a 6 anos. Peso e estatura foram aferidos e convertidos para o escore z de IMC/I. Para avaliar o consumo alimentar, foi utilizado o Questionário de Frequência Alimentar Infantil. Testes de Qui-Quadrado e t de Student foram utilizados para comparação entre os grupos. Não houve diferença nos parâmetros antropométricos entre pré-escolares que receberam ou não suco antes dos seis meses. Aquelas que tiveram introdução de suco mais precoce (≤150 dias de vida) apresentaram consumo mais frequente (≥1x/dia) de suco artificial (63,8% versus 35,7%; p=0,028) e biscoito recheado (21,3% versus 14,3%; p=0,001) na idade pré-escolar. Crianças que receberam suco do tipo artificial antes dos 6 meses tiveram maior prevalência de consumo de refrigerante entre 1 e 4x/semana (69,2% versus 27,4%; p=0,014) e menor prevalência de consumo de achocolatado pelo menos 1x/dia (38,5% versus 69,4%; p=0,027). Sendo assim, crianças com introdução precoce de suco apresentaram maior consumo de alimentos doces e bebidas açucaradas em fase pré-escolar.

Palavras-chave:
Sucos; Estado nutricional; Bebidas adoçadas com açúcar; Consumo de Alimentos

Introdução

O consumo alimentar adequado e a prática do aleitamento materno (AM) na infância estão relacionados à diminuição da morbimortalidade na população infantil. Menor ocorrência de anemia, diarreia, problemas respiratórios e cáries pode ser observado, além de promover melhor desenvolvimento socioemocional, cognitivo e motor; aumentar a capacidade de aprendizado e produtividade e prevenir a obesidade e as doenças crônicas não-transmissíveis11 Black RE, Victora CG, Walker SP, Bhutta ZA, Christian P, Onis M, Ezzati M, Grantham-McGregor S, Katz J, Martorell R, Uauy R. Maternal and child undernutrition and overweight in low-income and middle-income countries. Lancet 2013; 382(9890):427-451.,22 Horta BL, Loret de Mola C, Victora CG. Long-term consequences of breastfeeding on cholesterol, obesity, systolic blood pressure and type 2 diabetes: a systematic review and meta-analysis. Acta Paediatr 2015; 104(467):30-37.. Em crianças saudáveis, as necessidades nutricionais do lactente nos primeiros meses são supridas integralmente pelo leite materno, enquanto a introdução precoce de bebidas ou outros alimentos nos primeiros seis meses não é recomendada e pode ser prejudicial à saúde da criança33 Robinson SM. Infant nutrition and lifelong health: current perspectives and future challenges. J Dev Orig Health Dis 2015; 6(5):384-389..

No Brasil, a prática do aleitamento materno exclusivo (AME) ainda não alcança a prevalência desejada, porém, o relatório lançado pelo Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (ENANI-2019) com dados preliminares demonstra aumento importante de prevalência de AME em menores de seis meses entre 1986 (2,9%) e 2020 (45,7%)44 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil -ENANI- 2019: Resultados preliminares - Indicadores de aleitamento materno no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ; 2020.. Adicionalmente, a II Pesquisa de Prevalência de Aleitamento Materno nas Capitais Brasileiras e Distrito Federal, realizada em 2008, verificou um elevado consumo de sucos (natural ou industrializado) pelos lactentes avaliados com 18,2% entre o 3º e 4º mês e 37% entre o 4º e 6º mês, sendo de forma mais intensa a partir do 3º mês de vida55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. II Pesquisa de Prevalência de Aleitamento Materno nas Capitais Brasileiras e Distrito Federal. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2009..

Pela alta prevalência de consumo de sucos (naturais ou artificiais), torna-se importante investigar desfechos adversos futuros na saúde da criança. Uma recente revisão sistemática e meta-análise, promovida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), investigou as evidências sobre os efeitos do consumo de alimentos e bebidas não saudáveis em crianças. Em relação às bebidas açucaradas (incluindo sucos industrializados), observou-se que o consumo pode aumentar desfechos relacionados ao Índice de Massa Corporal (IMC), o percentual de gordura corporal ou o risco para sobrepeso/obesidade em crianças menores de 10 anos (com baixa certeza). Por outro lado, o consumo de suco 100% natural faz pouca ou nenhuma diferença no aumento do IMC por Idade (IMC/I), percentual de gordura ou risco de sobrepeso/obesidade. Dentre 10 estudos que analisaram o consumo de suco natural e IMC/I, apenas dois deles analisaram o consumo em crianças menores de um ano de idade66 Rousham EK, Goudet S, Markey O, Griffiths P, Boxer B, Carroll C, Petherickk ES, Pradeilles R. Unhealthy Food and Beverage Consumption in Children and Risk of Overweight and Obesity: A Systematic Review and Meta-analysis. Adv Nutr 2022; 13(5):1669-1696..

Outro estudo de revisão sobre a temática comparou os efeitos metabólicos produzidos pelo consumo de diferentes bebidas por adultos. Os resultados mostraram que, apesar dos sucos naturais e bebidas com adição de açúcar possuírem quantidades similares de açúcares livres, ainda não está claro se possuem as mesmas consequências metabólicas77 Pepin A, Stanhope KL, Imbeault P. Are Fruit Juices Healthier Than Sugar-Sweetened Beverages? A Review. Nutrients 2019; 11(5):1006..

Além do impacto no estado nutricional, é importante ressaltar que exposições repetidas a sabores específicos durante a infância podem predizer preferências alimentares futuras e, portanto, o consumo de alimentos doces e adoçantes artificiais na infância pode induzir a modulação de sabores88 Sylvetsky AC, Conway EM, Malhotra S, Rother KI. Development of Sweet Taste Perception: Implications for Artificial Sweetener Use. Endocr Dev 2017; 32:87-99.. Publicações anteriores já indicaram que o consumo de sucos e bebidas açucaradas na infância (até um ano de idade) estão associados com o consumo dessas bebidas durante os anos seguintes. Porém, ainda é escasso o número de estudos longitudinais comprovando a associação entre consumo de sucos e bebidas açucaradas na primeira infância e consumo alimentar em anos posteriores, assim como faltam evidências associando a introdução precoce de sucos e bebidas açucaradas com parâmetros antropométricos infantis99 Park S, Pan L, Sherry B, Li R. The association of sugar-sweetened beverage intake during infancy with sugar-sweetened beverage intake at 6 years of age. Pediatrics 2014; 134(Supl. 1):S56-S62.,1010 Sonneville KR, Long MW, Rifas-Shiman SL, Kleinman K, Gillman MW, Taveras EM. Juice and water intake in infancy and later beverage intake and adiposity: could juice be a gateway drink? Obesity (Silver Spring) 2015; 23(1):170-176..

Nesse sentido, o estudo acerca da influência da introdução precoce de sucos e bebidas açucaradas em parâmetros de saúde futuros torna-se essencial através de estudos longitudinais, como os estudos de coorte, a fim de elucidar o real impacto e produzir evidências que subsidiem a formação de políticas públicas para controle de consumo por parte da população infantil.

Levando em consideração a mudança de recomendação para consumo de suco que a edição mais recente do Guia Alimentar para crianças menores de dois anos trouxe (não oferecer suco de frutas, mesmo que naturais, para crianças menores de um ano)1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção à Saúde. Dez passos para uma alimentação saudável - Guia alimentar para crianças menores de dois anos. Brasília: MS; 2013.,1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde Departamento de Promoção da Saúde. Guia alimentar para crianças brasileiras menores de 2 anos. Brasília: MS; 2019., a falta de pesquisas que avaliem o consumo em crianças menores de um ano de idade e o aumento da prevalência de obesidade infantil, o objetivo do presente estudo foi investigar o impacto da introdução precoce de sucos em lactentes antes dos seis meses de idade em parâmetros antropométricos e no consumo de alimentos doces e bebidas açucaradas na idade pré-escolar.

Métodos

Trata-se de um estudo longitudinal prospectivo aninhado a um projeto maior, intitulado Impacto das Variações do Ambiente Perinatal sobre a Saúde da Criança nos Primeiros Cinco Anos de Vida (IVAPSA). Esse estudo foi realizado em duas fases. O protocolo do estudo original e o cálculo amostral, bem como seus resultados preliminares, foram publicados previamente1313 Bernardi JR, Ferreira CF, Nunes M, Silva CH, Bosa VL, Silveira PP, Goldani MZ. Impact of Perinatal Different Intrauterine Environments on Child Growth and Development in the First Six Months of Life--IVAPSA Birth Cohort: rationale, design, and methods. BMC Pregnancy Childbirth 2012; 12:25.,1414 Werlang ICR, Bernardi JR, Nunes M, Marcelino TB, Bosa VL, Michalowski MB, Silva CH, Goldani MZ. Impact of Perinatal Different Intrauterine Environments on Child Growth and Development: Planning and Baseline Data for a Cohort Study. JMIR Res Protoc 2019; 8(11):e12970.. A Figura 1 demonstra o fluxograma da amostra.

Figura 1
Fluxograma da amostra da coorte IVAPSA. Porto Alegre-RS, Brasil, 2011-2019.

Na primeira fase, uma amostra de 400 pares mãe-filho foi selecionada, no período de 2011 a 2016, em três hospitais públicos do município de Porto Alegre-RS: Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Hospital Conceição e Hospital Fêmina. As entrevistas foram realizadas: no pós-parto, aos sete, 15, 30, 90 e aos 180 dias de vida da criança. Para o presente artigo, foram utilizados somente as informações coletadas nas entrevistas de pós-parto e de 180 dias.

O município de Porto Alegre possui Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,805 e 93% dos domicílios com esgotamento sanitário adequado. De acordo com o censo mais atual (2010), a população de crianças entre 0 e 4 anos totaliza 78.626, representando 5,57% da população total (1.409.351). Em 2020, a taxa de mortalidade infantil média na cidade foi de 7,78 para 1.000 nascidos vivos1515 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE; 2012..

A amostra foi dividida em cinco diferentes grupos de ambientes intrauterinos conforme as condições clínicas gestacionais da mãe: 1) Diabéticas; 2) Hipertensas; 3) Tabagistas; 4) Com restrição de crescimento intrauterino (RCIU) mediante recém-nascidos considerados pequenos para idade gestacional (PIG), conforme Alexander et al.1616 Alexander GR, Himes JH, Kaufman RB, Mor J, Kogan M. A United States national reference for fetal growth. Obstet Gynecol 1996; 87(2):163-168.; e 5) Controle. Nesta primeira fase foram excluídas da amostra puérperas com teste positivo para o vírus da imunodeficiência humana (human immunodeficiency vírus - HIV) e recém-nascidos gemelares, com doença crônica ou congênita, que necessitaram internação hospitalar ou que apresentaram peso inferior a 500 gramas.

Os dados sociodemográficos (idade, escolaridade e raça/cor materna, renda familiar, IMC pré-gestacional e sexo da criança) foram obtidos por meio do questionário aplicado às participantes nas primeiras 48 horas após o parto e por meio do prontuário médico hospitalar. Para o cálculo do IMC pré-gestacional foram utilizados o peso pré-gestacional e a altura materna, os quais foram obtidos no prontuário hospitalar. Os seguintes valores foram utilizados para classificação do IMC pré-gestacional: <18,5 kg/m² foi considerado baixo peso; entre 18,5 e 24,9 kg/m², eutrofia; entre 25 e 29,9 kg/m², sobrepeso e ≥30 kg/m², obesidade1717 Institute of Medicine (US) and National Research Council (US) Committee to Reexamine. IOM Pregnancy Weight Guidelines. In: Rasmussen KM, Yaktine AL, editors. Weight gain during pregnancy: reexamining the guidelines. Washington, D.C.: National Academies Press; 2009..

As entrevistas por ocasião do sexto mês do lactente ocorreram no Centro de Pesquisa Clínica (CPC) do HCPA. As informações de consumo dos sucos foram obtidas por meio do questionário estruturado com a pergunta “O seu bebê recebe ou recebeu suco?”. Se a resposta fosse positiva, as seguintes perguntas consecutivas eram feitas: “Quando introduziu?”; “Qual o volume por dia?”; “Qual o tipo (natural, concentrado, diluído, artificial)?” e “Alguém recomendou?”. Definiu-se como suco natural aquele extraído da própria fruta, sem adição de açúcar, suco concentrado aquele natural do qual parte da água foi extraída, suco diluído aquele obtido através da diluição do suco natural e para o suco artificial foram incluídos os sucos em pó, néctares ou refrescos. A prática do AM aos seis meses de idade também foi questionada mediante a pergunta se a criança estava ou não consumindo leite materno. O peso da criança foi calculado através da subtração do peso da mãe, aferido com a criança no colo, e do peso da mãe sozinha. Essa aferição era realizada sem fraldas e com o mínimo de roupas possível utilizando-se uma balança Plenna® com precisão de 50 gramas. A medida de comprimento do lactente foi realizada na posição deitada em decúbito dorsal, utilizando estadiômetro profissional Sanny®.

Para a segunda fase do estudo, ocorrida entre 2017 e 2019, a amostra foi constituída por mães e seus respectivos filhos entre três e seis anos que haviam participado da primeira entrevista realizada aos seis meses de vida da criança. Nessa ocasião foi aplicado um questionário sobre informações gerais maternas, da criança e socioeconômicas. A aferição de peso e estatura da criança na idade pré-escolar foi realizada em duplicata. O consumo alimentar foi investigado através do Questionário de Frequência Alimentar Infantil (QFAI) desenvolvido por Collucci et al.1818 Colucci ACA, Philippi ST, Slater B. Desenvolvimento de um questionário de freqüência alimentar para avaliação do consumo alimentar de crianças de 2 a 5 anos de idade. Rev Bras Epidemiol 2004; 7(4):393-401. para avaliar a dieta habitual de crianças entre 2 e 5 anos. A ferramenta possui 57 itens alimentares e sete opções de resposta para cada item alimentar: desde “nunca” até “duas ou mais vezes por dia”. Para melhor distribuição do número de casos, as respostas foram categorizadas em três grupos: “≤3x/mês”, “1 a 4x/semana” e “≥1x/dia”.

Para a investigação do consumo energético do pré-escolar, foi aplicado o Recordatório de 24 horas e, posteriormente, calculado os valores energéticos consumidos utilizando o software Dietbox®. A escolha da análise do consumo energético como variável descritiva deve-se a associação entre balanço energético positivo e ganho de peso1919 Kumar S, Kelly AS. Review of Childhood Obesity: From Epidemiology, Etiology, and Comorbidities to Clinical Assessment and Treatment. Mayo Clin Proc 2017; 92(2):251-265. e, desse modo, torna-se importante investigar se houve diferença entre os diferentes grupos de consumo de suco quanto a ingestão calórica. O tempo de tela diário foi obtido através do Questionário de Atividade Física da Criança2020 Oliveira NKR, Lima RA, Mélo EM, Santos CM, Barros SSH, Barros MVG. Reprodutibilidade de questionário para medida da atividade física e comportamento sedentário em crianças pré-escolares. Rev Bras Ativ Fis Saude 2011; 16(3):228-233. e foi classificado em três categorias: não utiliza/assiste; até uma hora por dia e mais de uma hora por dia.

O cálculo de escore z de IMC por Idade (IMC/I) foi realizado no software Anthro® (crianças até cinco anos) e Anthro Plus® (crianças maiores de cinco anos), que possuem como referência as curvas de crescimento propostas pela Organização Mundial da Saúde (OMS)2121 World Health Organization (WHO). WHO child growth standards: length/height-for-age, weight-for-age, weight-for-length, weight-for-height and body mass index-for-age. Geneva: WHO; 2006.,2222 Onis M, Onyango AW, Borghi E, Siyam A, Nishida C, Siekmann J. Development of a WHO growth reference for school-aged children and adolescents. Bull World Health Organ 2007; 85(9):660-667..

Para análise de associação do consumo de suco do lactente aos seis meses e parâmetros antropométricos na idade pré-escolar, as crianças foram divididas em dois grupos: aquelas que já haviam tido a introdução de qualquer tipo de suco e aquelas que não. Considerou-se como “suco” tanto os naturais, extraídos da própria fruta, quanto os artificiais. Para análise de associação entre introdução de suco aos seis meses em lactentes e o consumo alimentar na idade pré-escolar, as crianças que receberam suco foram divididas em três categorias: momento de introdução (≤150 dias versus >150 dias), quantidade de suco introduzida (≥60ml versus <60ml) e tipo de suco (artificial ou não artificial). O ponto de corte para a divisão dos grupos do momento de introdução e quantidade de suco introduzida se deu através do valor da mediana, que foram de 150 dias e 60 ml, respectivamente. Os itens alimentares presentes no QFAI escolhidos para realização das análises foram: suco artificial, refrigerante, leite fermentado, queijo petit suisse, biscoito recheado, achocolatado, bolo, chocolate e açúcar adicional. A escolha desses itens se deu pela hipótese de que o consumo de sucos antes do primeiro ano de vida pode estimular a preferência pelo paladar doce da criança, influenciando seu consumo de alimentos açucarados em anos posteriores.

As variáveis contínuas não paramétricas foram analisadas por meio de mediana e intervalos de percentil 25 e 75 e as variáveis categóricas por intermédio de número absoluto e percentual. Para realizar comparação entre os grupos que receberam ou não suco até os 6 meses de vida, foi realizado Teste de Qui-Quadrado para as variáveis categóricas (escolaridade materna, raça/cor materna, IMC pré-gestacional, classificação pelo número de filhos, sexo da criança, AM, condição clínica gestacional, tempo de tela do pré-escolar, estado nutricional da criança e frequência de consumo de alimentos em idade pré-escolar) e Teste de Mann-Whitney para as contínuas não paramétricas (idade materna, renda familiar, consumo energético do pré-escolar e escore-Z de IMC). O Teste t de Student foi utilizado para comparação das médias e da variação de escore z de IMC/I. O modelo de Regressão Logística Multinomial foi testado para avaliar a probabilidade de alteração de desfechos antropométricos entre os diferentes grupos de consumo de sucos. A medida de associação utilizada foi o odds ratio. Foram criados dois modelos para análise ajustada dos dados da Regressão: (1) ajuste de raça/cor materna, idade materna, escolaridade materna, paridade e AM aos seis meses para associação do consumo de sucos antes dos seis meses e estado nutricional aos seis meses; e (2) ajuste de raça/cor materna, idade materna, escolaridade materna, paridade, AM aos seis meses, tempo de tela do pré-escolar e consumo energético diário do pré-escolar para associação do consumo de sucos antes dos seis meses e estado nutricional em fase pré-escolar. A escolha das variáveis dos modelos ajustados se deu através da criação de um DAG (Directed Acyclic Graph) através do programa DAGitty® (version 3.0, Johannes Textor). Os dados foram analisados por meio do programa estatístico SPSS® (Statistical Package for the Social Sciences) versão 18.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA). O cálculo do poder amostral foi realizado através do programa PSSHealth® (Power and Sample Size for Health Researchers), e foi estimado em menor de 80%.

Todos os participantes que aceitaram participar da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O projeto da primeira fase foi aprovado pelos Comitês de Ética e Pesquisa (CEP) do HCPA e do Grupo Hospitalar Conceição, que representava os hospitais Conceição e Fêmina, mediante, respectivamente os protocolos de nº 11-027 e nº 11-0097. Na segunda fase, o projeto foi aprovado pelo CEP do HCPA mediante o protocolo de nº 17-0107.

Resultados

Participaram deste estudo 103 duplas mãe-criança, indicando uma perda de 43,8% em relação a amostra que realizou a entrevista aos 6 meses de vida da criança na primeira fase do estudo (n=235). Comparando as características amostrais das duplas que participaram da segunda fase da coleta e as perdas, foi encontrada diferença significativa para as variáveis número de filhos e aleitamento materno aos 6 meses: a multiparidade se mostrou mais prevalente em mulheres que não realizaram a coleta na fase 2 (p=0,013) e a prevalência de aleitamento materno foi maior entre crianças que participaram de todas as fases da coorte (p=0,011).

Em relação as mães que participaram de todas as fases da coorte, a mediana (percentil 25; 75) de idade foi de 28 (21; 33) anos. A maioria das mulheres apresentavam entre 9 e 11 anos completos de estudo (n=59; 57,3%), eram da raça/cor branca (n=60; 58,3%) e pertenciam ao grupo controle (n=46; 44,7%). Cerca de 25% (n=25) das mulheres possuíam diagnóstico de obesidade segundo o IMC pré-gestacional. Aos seis meses de idade, aproximadamente 77% (n=80) das crianças estavam em AM. Entre as crianças que haviam recebido suco aos seis meses de idade, a prevalência de AM foi de 73,3% (n=55), enquanto essa prevalência foi de 89,3% (n=25) para as crianças que ainda não tinham recebido suco, sem diferença entre os grupos (p=0,143).

A mediana (percentil 25; 75) de consumo energético das crianças em idade pré-escolar foi de 2.037 (1.662; 2.537) kcal. Além disso, a maioria dos pré-escolares (n=86; 83,5%) somaram tempo de tela maior que uma hora ao dia. Não foi encontrada diferença significativa entre os grupos que introduziram suco antes dos seis meses versus aqueles que não introduziram em relação às características sociodemográficas (p>0,05) (Tabela 1).

Tabela 1
Características gerais e sociodemográficas segundo categorização por introdução de suco antes dos seis meses; coorte IVAPSA. Porto Alegre-RS, Brasil, 2011-2019.

Entre os lactentes que já haviam recebido suco antes dos seis meses de idade (n=75), a mediana (percentil 25; 75) do momento de introdução de sucos foi de 150 (120; 180) dias. A mediana (percentil 25; 75) de quantidade de suco introduzida encontrada foi de 60 (30; 100) ml. Os profissionais da saúde foram os mais citados como as pessoas de referência que recomendaram a introdução de sucos (n=36; 48%), seguido por decisão própria da mãe (n=29; 38,7%) e outros (n=10; 13,3%). Dentre as crianças que receberam suco, 72 (96%) receberam suco natural, 13 (17,3%) receberam suco artificial, quatro (5,3%) receberam suco diluído e duas (2,7%) receberam suco concentrado. A soma dos valores não resulta em 100% pois a mesma criança pode ter recebido mais de um tipo de suco (dados não apresentados em tabela).

A Tabela 2 apresenta a classificação do estado nutricional das crianças aos seis meses de idade e na idade pré-escolar, segundo o escore z de IMC/I. Aos seis meses de idade, 6% (n=6) das crianças apresentavam sobrepeso ou obesidade, enquanto, na idade pré-escolar, 26,2% (n=27) apresentavam esse diagnóstico. Não houve diferença significativa do estado nutricional entre as crianças que receberam suco antes dos seis meses e as que não receberam. A variação de escore z de IMC/I entre seis meses e a idade pré-escolar é apresentada na Figura 2. Não houve diferença significativa entre os grupos de introdução ou não de sucos antes dos seis meses para os seguintes parâmetros: IMC/I aos seis meses (p=0,379); IMC/I em idade pré-escolar (p=0,282) e variação de escore z de IMC/I entre os dois períodos (p=0,824).

Tabela 2
Classificação do estado nutricional aos seis meses e em idade pré-escolar segundo categorização por introdução de suco antes dos seis meses; coorte IVAPSA. Porto Alegre-RS, Brasil, 2011-2019.

Figura 2
Variação na média de escore Z de IMC categorizado por consumo de suco antes dos seis meses.

Igualmente, no modelo de regressão bruto realizado, não foi encontrada diferença significativa entre os grupos de introdução ou não de suco antes dos seis meses e o risco de desenvolver sobrepeso ou obesidade aos seis meses de vida (p=0,532), magreza ou magreza acentuada aos seis meses de vida (p=0,562), sobrepeso ou obesidade em idade pré-escolar (p=0,468) e magreza em idade pré-escolar (p=0,651). Da mesma forma, no modelo ajustado 1 (raça/cor materna, idade e escolaridade materna, paridade e AM aos seis meses) não foi encontrada associação significativa para os grupos de introdução ou não de suco antes dos seis meses e o risco de desenvolver sobrepeso ou obesidade aos seis meses de vida (p=0,700) ou magreza ou magreza acentuada aos seis meses de vida (p=0,356). O modelo ajustado 2 (raça/cor materna, idade e escolaridade materna, paridade, AM aos seis meses, tempo de tela do pré-escolar e consumo energético diário do pré-escolar) também não demonstrou associação significativa entre o consumo de sucos aos seis meses e o risco de desenvolver sobrepeso ou obesidade em idade pré-escolar (p=0,325) e magreza em idade pré-escolar (p=0,688) (dados não apresentados em tabela).

A Tabela 3 representa a frequência de consumo de diferentes alimentos e bebidas pela criança na idade pré-escolar categorizadas em grupos de consumo de suco de acordo com momento de introdução ou tipo de suco introduzido. Foram apresentados os alimentos que obtiveram diferença significativa, entre eles: o consumo de suco artificial (p=0,028) e de biscoito recheado (p=0,001) de acordo com momento de introdução; e consumo de refrigerante (p=0,014) e de achocolatado (p=0,027) de acordo com tipo de suco introduzido.

Tabela 3
Frequência de consumo de alimentos no pré-escolar categorizados por momento de introdução e tipo de suco introduzido; coorte IVAPSA. Porto Alegre-RS, Brasil, 2011-2019.

Discussão

O presente estudo mostrou que a introdução precoce de suco antes dos seis meses de idade esteve associada ao consumo de bebidas açucaradas e alimentos doces pela criança na idade pré-escolar, evidenciando que a exposição a sabores específicos durante a infância pode alterar o consumo alimentar e predizer preferências alimentares futuras.

Apesar de haver evidências consistentes do impacto na saúde de crianças na segunda infância, nos adolescentes e adultos, o impacto do consumo de sucos artificiais por crianças na primeira infância, especialmente no primeiro ano de vida, segue ainda não elucidado66 Rousham EK, Goudet S, Markey O, Griffiths P, Boxer B, Carroll C, Petherickk ES, Pradeilles R. Unhealthy Food and Beverage Consumption in Children and Risk of Overweight and Obesity: A Systematic Review and Meta-analysis. Adv Nutr 2022; 13(5):1669-1696.. No nosso estudo, apesar de não recomendada, verificou-se alta prevalência de introdução de sucos naturais e artificiais em lactentes menores de seis meses de idade.

Da mesma forma, crianças que haviam recebido suco aos seis meses de idade apresentaram frequência de AM 16% menor (73,3% versus 89,3%) comparado com aquelas que ainda não tinham recebido suco, porém sem diferença estatisticamente significativa. Esses dados reforçam a importância das recomendações atuais para não introdução de sucos antes do primeiro ano de idade pelo fato de promoverem a redução do consumo de leite materno e, consequentemente, redução de consumo de proteínas, lipídeos, vitaminas e minerais2323 Heyman MB, Abrams SA; Section on Gastroenterology, Hepatology, and Nutrition; Committee on Nutrition. Fruit Juice in Infants, Children, and Adolescents: Current Recommendations. Pediatrics 2017; 139(6):e20170967.. Ademais, a prática de AM favorece a aceitação da introdução alimentar, uma vez que a transmissão de sabores através do leite materno contribui para a exposição repetida a diversos deles e, portanto, desenvolvendo melhor tolerância a novos alimentos2424 Ventura AK. Does Breastfeeding Shape Food Preferences? Links to Obesity. Ann Nutr Metab 2017; 70(Supl. 3):8-15.. Além disso, entre as crianças que já tinham recebido suco antes dos seis meses de idade, a mediana de introdução foi de 150 dias, demonstrando uma introdução precoce desse alimento na amostra pesquisada.

Entre as recomendações para a introdução de suco, o profissional de saúde foi o mais citado como quem indicou. Considerando que ele é, muitas vezes, uma referência para as famílias, torna-se importante sua atualização quanto às informações adequadas que devam ser transmitidas às famílias para assim não introduzirem o suco precocemente. Em um estudo qualitativo de grupos focais com pais de pré-escolares com excesso de peso, os pais solicitaram aos pediatras o uso de demonstrações concretas, como mostrar a quantidade de açúcar presente nos sucos2525 Bolling C, Crosby L, Boles R, Stark L. How pediatricians can improve diet and activity for overweight preschoolers: a qualitative study of parental attitudes. Acad Pediatr 2009; 9(3):172-178.. Sabendo-se disso, torna-se importante o esclarecimento aos pais acerca dos motivos para não introduzir sucos antes do primeiro ano de vida.

A edição do Guia Alimentar para Crianças Menores de 2 anos, lançada em 2019, não recomenda a introdução de sucos antes do primeiro ano de vida. A introdução entre um e três anos de idade também não é recomendada, porém, o Guia orienta que, se forem oferecidos, devam ser sucos naturais sem adição de açúcar em uma quantidade aproximada de 120 ml por dia1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde Departamento de Promoção da Saúde. Guia alimentar para crianças brasileiras menores de 2 anos. Brasília: MS; 2019.. É importante ressaltar que o fornecimento de uma quantidade aproximada e não de quantidade máxima possibilita uma margem de erro para a oferta de quantidades inadequadas, além de reforçar o consumo. Além disso, o consumo de açúcar, que pode estar presente nos sucos industrializados, não é recomendado nos dois primeiros anos de vida1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde Departamento de Promoção da Saúde. Guia alimentar para crianças brasileiras menores de 2 anos. Brasília: MS; 2019..

São poucos os estudos longitudinais que avaliam o impacto da introdução de bebidas açucaradas antes do primeiro ano de vida da criança no seu estado nutricional em anos posteriores. Em uma revisão sistemática, realizada em 2019, foram avaliadas associações entre consumo alimentar durante o período de introdução de alimentação complementar e desfechos de crescimento. Os autores sugerem uma associação positiva entre consumo de sucos (naturais e artificiais) e escore z de IMC/I e Peso para Estatura (P/E). Entretanto, os resultados derivaram de estudos observacionais, nos quais houve variação no tipo de suco e na idade da criança2626 English LK, Obbagy JE, Wong YP, Butte NF, Dewey KG, Fox MK, Greer FR, Krebs NF, Scanlon KS, Stoody EE. Types and amounts of complementary foods and beverages consumed and growth, size, and body composition: a systematic review. Am J Clin Nutr 2019; 109(Supl. 7):956S-977S.. Pan et al.2727 Pan L, Li R, Park S, Galuska DA, Sherry B, Freedman DS. A longitudinal analysis of sugar-sweetened beverage intake in infancy and obesity at 6 years. Pediatrics 2014; 134(Supl. 1):S29-S35., em um estudo com 1.189 crianças, compararam a prevalência de obesidade aos 6 anos de idade de acordo com o consumo de bebidas açucaradas no primeiro ano de vida. Os autores encontraram que a obesidade foi duas vezes maior entre crianças que consumiam bebidas açucaradas (17%), comparado com as que não consumiam (8,6%).

É conhecido que os sucos podem contribuir substancialmente para a ingestão energética diária, a qual está diretamente relacionada com alterações de peso. Porém, no presente estudo não foi possível observar essa associação entre introdução de suco em lactentes menores de seis meses e alterações de parâmetros antropométricos na idade pré-escolar. A prevalência de sobrepeso e obesidade não foi estatisticamente diferente entre os dois grupos (introdução precoce de suco versus não introdução), tanto aos seis meses quanto na idade pré-escolar. A variação de escore z de IMC/I entre os seis meses e a idade pré-escolar também não diferiu entre esses mesmos grupos. Por outro lado, na amostra total, foi possível observar um aumento da prevalência de sobrepeso e obesidade entre a primeira e a segunda fase do estudo, de 5,8% para 26,2%.

Houve a união das variáveis consumo de suco natural e artificial nas análises, pois apesar de conter vitaminas e fitonutrientes, os ingredientes predominantes no suco natural são água e açúcar (natural ou de adição), assim como nas bebidas açucaradas. Além disso, os tipos de açúcar predominantes presente em ambos são similares: monossacarídeos (glicose e frutose) e dissacarídeos (sacarose). Contudo, ainda não está claro se possuem as mesmas consequências metabólicas77 Pepin A, Stanhope KL, Imbeault P. Are Fruit Juices Healthier Than Sugar-Sweetened Beverages? A Review. Nutrients 2019; 11(5):1006.. Além disso, os sucos de uma forma geral, especialmente o natural, são considerados como alimentos saudáveis pelos pais e, por isso, não necessitariam limite de consumo2525 Bolling C, Crosby L, Boles R, Stark L. How pediatricians can improve diet and activity for overweight preschoolers: a qualitative study of parental attitudes. Acad Pediatr 2009; 9(3):172-178..

Apesar de não ter sido encontrada associação estatisticamente significativa entre consumo de sucos em geral e parâmetros antropométricos, o consumo de sucos artificiais, encontrado em 17,3% das crianças, pode levar a malefícios à saúde pela presença de corantes, adoçantes artificiais e açúcar adicionado. Além dos efeitos maléficos que os sucos artificiais podem causar na saúde da criança, deve-se ainda destacar que essa população possui preferência inata pelo sabor doce e está em processo de construção de hábitos alimentares. Sendo assim, idealmente, o consumo de açúcar deveria ser eliminado, especialmente nos dois primeiros anos de vida.

Numa perspectiva de paladar e formação de hábitos, foi observado que aquelas crianças que tiveram introdução de suco mais precoce (≤150 dias de vida) apresentaram significativamente maior consumo de suco artificial na idade pré-escolar. Esse achado corrobora com resultados de outros estudos que demonstraram associação entre o consumo de bebidas açucaradas em crianças antes de um ano de idade e nas faixas etárias superiores99 Park S, Pan L, Sherry B, Li R. The association of sugar-sweetened beverage intake during infancy with sugar-sweetened beverage intake at 6 years of age. Pediatrics 2014; 134(Supl. 1):S56-S62.,1010 Sonneville KR, Long MW, Rifas-Shiman SL, Kleinman K, Gillman MW, Taveras EM. Juice and water intake in infancy and later beverage intake and adiposity: could juice be a gateway drink? Obesity (Silver Spring) 2015; 23(1):170-176.. Além disso, o momento de introdução também foi associado com maior consumo de biscoito recheado em crianças na idade pré-escolar. Os dois grupos (≤150 dias versus >150 dias) não apresentaram diferença na categoria ≥1 vez ao dia, porém naquelas que tiveram introdução mais precoce, foi observada uma maior prevalência de consumo na frequência de 1 a 4 vezes por semana. Ainda, crianças que consumiram suco artificial antes dos seis meses apresentaram maior prevalência de consumo de refrigerante entre 1 e 4 vezes por semana na idade pré-escolar (69,2%), comparado com aquelas que tinham recebido outros tipos de sucos (natural, diluído ou concentrado) antes dos seis meses de idade (27,4%).

Experiências sensoriais no início da vida podem moldar preferências e predileção de sabores no futuro. Dessa forma, a introdução precoce de açúcar (presente no suco) em lactentes pode ter influenciado essas preferências alimentares em pré-escolares (consumo de suco artificial, refrigerantes e biscoito recheado)88 Sylvetsky AC, Conway EM, Malhotra S, Rother KI. Development of Sweet Taste Perception: Implications for Artificial Sweetener Use. Endocr Dev 2017; 32:87-99.. Por outro lado, de forma curiosa e diferentemente dos resultados discutidos acima, o consumo de suco artificial pelo lactente antes dos seis meses esteve associado a um menor consumo de achocolatado na idade pré-escolar.

Há evidências demonstrando que o tempo de tela (tempo por dia em que a criança permanece assistindo ou utilizando dispositivos eletrônicos como televisão, celular, computador, tablets, entre outros) esteja associado com consumo de bebidas açucaradas na infância2828 Mazarello Paes V, Hesketh K, O'Malley C, Moore H, Summerbell C, Griffin S, van Sluijs EM, Ong KK, Lakshman R. Determinants of sugar-sweetened beverage consumption in young children: a systematic review. Obes Rev 2015; 16(11):903-913.. Uma das possíveis razões para isso é que a exposição a comerciais na televisão e em mídias sociais pode favorecer o maior consumo desse tipo de bebida, mesmo com algumas restrições publicitárias atualmente impostas pelos órgãos reguladores. Nos pré-escolares avaliados foi encontrada alta prevalência (83,5%) de tempo de uso que somava mais de uma hora por dia. Esse tempo foi superior à recomendação da OMS que é de até uma hora por dia para crianças entre três e quatro anos, indicando que essas crianças possam estar sujeitas a alta exposição a comerciais de bebidas açucaradas2929 World Health Organization (WHO). Guidelines on physical activity, sedentary behaviour and sleep for children under 5 years of age. Geneva: WHO; 2019..

Outro fator que pode contribuir para o consumo de bebidas açucaradas é o nível de taxação dessas bebidas. Em um estudo de metanálise que avaliou o impacto do aumento de tributos sobre bebidas açucaradas em localidades ao redor do mundo, foi encontrado que o incremento de 10% no imposto sobre essas bebidas resultou em diminuição média de 10% na aquisição e consumo delas. Aos formadores de políticas públicas, os autores recomendam maiores níveis de taxação com o objetivo de implicar em maiores quedas nos níveis de consumo3030 Teng AM, Jones AC, Mizdrak A, Signal L, Genç M, Wilson N. Impact of sugar-sweetened beverage taxes on purchases and dietary intake: Systematic review and meta-analysis. Obes Rev 2019; 20(9):1187-1204..

O presente estudo possui algumas limitações, as quais podem explicar os motivos de ausência de associação entre introdução precoce de sucos e parâmetros antropométricos em pré-escolares: o baixo número de indivíduos analisados causado pelas perdas de seguimento dos participantes e a inexistência de algumas variáveis consideradas fatores confundidores que poderiam influenciar o estado nutricional da criança, tais como atividade física e consumo alimentar habitual. Por outro lado, a perda no acompanhamento é uma dificuldade comum em estudos longitudinais3131 Grimes DA, Schulz KF. Cohort studies: marching towards outcomes. Lancet 2002; 359(9303):341-345.. Além disso, considerando o tempo decorrido entre as duas fases do estudo, quando não se manteve contato permanente com os participantes da pesquisa e pelo fato de alguns apresentarem maior vulnerabilidade social, é possível considerar o número total de casos analisados como razoável e esperado dentro das condições existentes. No entanto, os pontos positivos devem ser destacados, entre eles: o delineamento longitudinal; a inclusão de lactentes na idade da introdução da alimentação complementar, pois poucos estudos avaliaram o impacto da introdução de sucos e bebidas açucaradas antes de um ano de idade; e a alta qualidade de aferição das medidas antropométricas com peso e altura aferidos por pesquisadores treinados com dupla checagem minimizando possíveis vieses.

Os resultados do presente estudo permitiram concluir que a introdução de sucos a lactentes antes dos seis meses não influenciou em parâmetros antropométricos na idade pré-escolar. Por outro lado, também foi possível concluir que a introdução precoce de sucos em lactentes antes do sexto mês de vida mostrou associação com o consumo de suco artificial, biscoito recheado e refrigerante na idade pré-escolar. Portanto, são necessárias mais pesquisas a fim de esclarecer se a introdução precoce de sucos naturais e artificiais podem implicar em consequências de saúde a longo prazo.

Tais achados reforçam a necessidade de atualização e de educação continuada dos profissionais da saúde sobre introdução alimentar e a sua influência sobre hábitos alimentares futuros. Além disso, é fundamental o desenvolvimento de políticas públicas que contribuam para reduzir o consumo de bebidas açucaradas entre crianças de todas as idades. Entre elas, ações intersetoriais a nível nacional como aumento da taxação sobre essas bebidas, adoção de campanhas de incentivo ao consumo de bebidas saudáveis, proibição da venda em escolas, limitação do marketing dessas bebidas para crianças e adoção de um sinal de alerta na rotulagem de bebidas açucaradas são relevantes para estimular a formação de hábitos alimentares saudáveis e para a proteção e promoção da saúde em nível populacional.

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  • Financiamento

    FAPERGS/CNPq - 10/0018.3. FIPE/HCPA. PRONEX 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Jan 2023

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2021
  • Aceito
    12 Ago 2022
  • Publicado
    14 Ago 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br