Da erradicação ao risco de reintrodução da poliomielite no Brasil

Ligia Kerr Sobre o autor

A estratégia de vacinação da população infanto-juvenil é, com certeza, uma das intervenções de saúde pública mais bem-sucedidas. As vacinas têm sido responsáveis por substanciais reduções na mortalidade infantil e se colocam entre as intervenções de maior custo-benefício da área da saúde. Estima-se que a vacinação de dez patógenos selecionados tenha evitado cerca de 37 milhões de mortes (CI95%I: 30-48) entre 2000 e 201911 Li X, Mukandavire C, Cucunubá ZM, Echeverria Londono S, Abbas K, Clapham HE, Jit M, Johnson HL, Papadopoulos T, Vynnycky E, Brisson M, Carter ED, Clark A, de Villiers MJ, Eilertson K, Ferrari MJ, Gamkrelidze I, Gaythorpe KAM, Grassly NC, Hallett TB, Hinsley W, Jackson ML, Jean K, Karachaliou A, Klepac P, Lessler J, Li X, Moore SM, Nayagam S, Nguyen DM, Razavi H, Razavi-Shearer D, Resch S, Sanderson C, Sweet S, Sy S, Tam Y, Tanvir H, Tran QM, Trotter CL, Truelove S, van Zandvoort K, Verguet S, Walker N, Winter A, Woodruff K, Ferguson NM, Garske T, Vaccine Impact Modelling Consortium. Estimating the health impact of vaccination against ten pathogens in 98 low-income and middle-income countries from 2000 to 2030: a modelling study. Lancet 2021; 397 (10272):398-408..

Entretanto, as coberturas vacinais têm caído no mundo e no Brasil de forma alarmante, antes e após os primeiros dois anos da pandemia da COVID-19. O mundo registrou uma queda nas vacinações infantis no período de aproximadamente 30 anos22 Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Pandemia de covid-19 alimenta o maior retrocesso contínuo nas vacinações em três décadas [intenet]. 2022. [acessado 2022 nov 29]. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/pandemia-de-covid-19-alimenta-o-maior-retrocesso-continuo-nas-vacinacoes-em-tres-decadas
https://www.unicef.org/brazil/comunicado...
, sendo considerada a maior queda continuada em uma geração. É considerada a maior queda continuada na imunização infantil em uma geração.

O Programa Nacional de Imunização brasileiro (PNI), criado em 1975, é referência mundial e pioneiro na incorporação de diversas vacinas no calendário do Sistema Único de Saúde (SUS). O Brasil é dos poucos países que ofertam de maneira universal um rol extenso e abrangente de imunobiológicos.

A poliomielite, doença imunoprevenível de grande importância em saúde pública, está incluída no calendário nacional e mundial pelas suas sequelas permanentes e risco de morte. É causada pelos poliovírus 1, 2 e 3. A proteção vacinal da poliomielite tem sido feita no mundo por meio de duas vacinas: a vacina Salk, ou vacina injetável do poliovírus inativado (IPV), e a vacina oral Sabin, produzida com vírus vivo atenuado (OPV).

Assim como a maioria dos países, o Brasil escolheu a OPV de Sabin para controlar a poliomielite. O baixo custo, a facilidade na administração, o fato de produzir excelente imunidade no intestino e se disseminar entre pessoas não vacinadas influenciaram na escolha. Entretanto, mesmo que raramente, o vírus atenuado pode sofrer mutação e causar paralisia, em especial ao circular em regiões de baixa imunização. Dessa forma, a maioria dos países trocaram a OPV pela IPV, incluindo o Brasil, que disponibilizou a IPV a partir de 2012, aplicando no primeiro ano de vida (2, 4 e 6 meses), combinando com a vacina oral no segundo ano de vida (15 meses e 4 anos) e em campanhas anuais.

O último caso confirmado de poliomielite no Brasil foi registrado em 1989 e a doença foi erradicada das Américas nos anos 1990. Entre 2010 e 2015, a vacina da pólio e quase todas as vacinas no Brasil atingiram a cobertura universal, próxima a 100%. Mas após 2015, foi registrada queda intensa nas coberturas vacinais no país. Um esforço de mobilização nacional foi realizado na época, recuperando ligeiramente em 2018, para despencar muito abaixo de níveis protetores em 2019, agravando-se com a pandemia da COVID-19 a partir de 2020. A queda observada foi nacional, mas não homogênea, atingindo mais gravemente as regiões mais pobres do país, Norte e Nordeste, e municípios justapostos que formam bolsões de pobreza.

É bastante provável que estes períodos temporais, entre 2015 e 2022, não por acaso coincidam com governos que instituíram políticas neoliberais com controle de gastos da área da saúde e da educação, que retiraram recursos do SUS e, consequentemente, do programa de vacinação. Por decisões políticas, o PNI ficou acéfalo por meses durante a pandemia, ministros da saúde assumiram o sistema brasileiro de saúde sem sequer saber o que era o SUS, e o crescimento da pobreza, iniciado antes mesmo da pandemia, recolocou o país no mapa da fome.

Há, hoje, um risco iminente da entrada da pólio no Brasil se medidas de controle contundentes não forem tomadas para aumentar as coberturas vacinais. Pesquisadores afirmam que, para avaliar melhor o sucesso esperado dos programas e das campanhas de vacinação, é necessário dar atenção ao contexto sócio-político33 Baumgaertner B, Carlisle JE, Justwan F. The influence of political ideology and trust on willingness to vaccinate. PloS One 2018; 13(1):e0191728.. E o sucesso de um programa de imunização será fruto das decisões políticas feitas por dirigentes que considerem as reais necessidades de saúde de sua população.

Referências

  • 1
    Li X, Mukandavire C, Cucunubá ZM, Echeverria Londono S, Abbas K, Clapham HE, Jit M, Johnson HL, Papadopoulos T, Vynnycky E, Brisson M, Carter ED, Clark A, de Villiers MJ, Eilertson K, Ferrari MJ, Gamkrelidze I, Gaythorpe KAM, Grassly NC, Hallett TB, Hinsley W, Jackson ML, Jean K, Karachaliou A, Klepac P, Lessler J, Li X, Moore SM, Nayagam S, Nguyen DM, Razavi H, Razavi-Shearer D, Resch S, Sanderson C, Sweet S, Sy S, Tam Y, Tanvir H, Tran QM, Trotter CL, Truelove S, van Zandvoort K, Verguet S, Walker N, Winter A, Woodruff K, Ferguson NM, Garske T, Vaccine Impact Modelling Consortium. Estimating the health impact of vaccination against ten pathogens in 98 low-income and middle-income countries from 2000 to 2030: a modelling study. Lancet 2021; 397 (10272):398-408.
  • 2
    Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Pandemia de covid-19 alimenta o maior retrocesso contínuo nas vacinações em três décadas [intenet]. 2022. [acessado 2022 nov 29]. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/pandemia-de-covid-19-alimenta-o-maior-retrocesso-continuo-nas-vacinacoes-em-tres-decadas
    » https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/pandemia-de-covid-19-alimenta-o-maior-retrocesso-continuo-nas-vacinacoes-em-tres-decadas
  • 3
    Baumgaertner B, Carlisle JE, Justwan F. The influence of political ideology and trust on willingness to vaccinate. PloS One 2018; 13(1):e0191728.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Fev 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br