Aceitabilidade e aplicabilidade de um programa de intervenção com usuários dependentes de substâncias

Paulo Rosário Carvalho Seabra Ana Lúcia Gonçalves Brantes Rui Manuel Russo Sequeira Ana Cristina Oliveira Arroja Sequeira Ana Susete Abreu Simões Inês da Cunha Baetas Robalo Nunes Paula Edna Amaral Carlos Alberto Cruz Sequeira Sobre os autores

Resumo

A complexidade dos problemas relacionados com o uso problemático de substâncias requer questionamento regular das práticas. O objetivo deste artigo é explorar a aceitabilidade e a aplicabilidade de um programa de intervenção com pessoas dependentes de substâncias. Estudo qualitativo. Recolha de dados, realizada através de 1 grupo focal com 6 enfermeiros e 6 entrevistas semiestruturadas a usuários em tratamento. Utilizou-se à análise textual lexicográfica. No grupo focal, foram analisados 151 segmentos de texto, retendo 85,8% do total para a criação de cinco classes. A análise de similitude conduziu à formação de dois núcleos centrais, representados pelas palavras: Enfermeiro e Intervenção. Das entrevistas, foram analisados 252 segmentos de texto, retendo 71,83% para a criação de 5 classes. A análise de similitude conduziu à formação de três núcleos centrais, representados pelas palavras: querer, programa e ver. Os enfermeiros reconhecem a necessidade de uma abordagem mais estruturada, centrada nas necessidades das pessoas e flexível. Os usuários, acrescentam a necessidade de ser flexível, sem tempo definido à partida, promovendo trabalho, suporte terapêutico para abstinência e gestão das comorbilidades.

Palavras-chave:
Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Alcoolismo; Desenvolvimento de programas; Percepção; Enfermagem

Introdução

Na Europa atualmente cerca 1,2 milhão de pessoas encontram-se em tratamento pelo uso de substâncias ilícitas com muitas necessidades em saúde11 European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction. European Drug Report 2018: Trends and Developments [Internet]. Luxembourg: Publications Office of the European Union; 2018 [cited 2021 dez 12]. Available from: https://www.emcdda.europa.eu/publications/edr/trends-developments/2018.. Em Portugal, a partir do ano 2000, foi implementada uma política com a perspetiva de descentralização, cobertura nacional, respostas de proximidade, orientação humanista de forma a reduzir os danos e assente em uma descriminalização para o uso público ou privado, aquisição e posse de qualquer droga. Esta política contribuiu para a criação de muitas unidades especializadas de apoio ambulatório com equipas multidisciplinares, integrando uma rede de apoio psicossocial, articuladas com a atenção básica de saúde. Centrada na saúde pública, permitiu reduzir a prevalência de consumos problemáticos de algumas substâncias, comparativamente a outros países da Europa, diminuir as taxas de infeção das doenças infeciosas, diminuir as condenações por crimes relacionados com o uso de drogas e permitiu que a sociedade e, mesmo os profissionais, encarassem este problema como um problema de todos22 Rêgo X, Oliveira MJ, Lameira C, Cruz OS. 20 years of Portuguese drug policy: developments, challenges and the quest for human rights. Subst Abus Treat Prev Policy 2021; 16(1):1-11.. Entre os diversos resultados associados a esta abordagem destaca-se a sobrevida dos usuários e o seu consequente envelhecimento. Nesta perspetiva, e face às complexas necessidades em saúde dos usuários, destaca-se a importância dos cuidados de enfermagem, visto terem um papel fundamental no desenvolvimento de respostas estruturadas aos problemas causados pelo abuso de substâncias. Os usuários apelam a um papel mais ativo dos enfermeiros nos seus processos de acompanhamento, que valorizem os seus cuidados e a sua co-decisão sobre o plano de cuidados33 Comiskey C, Galligan K, Flanagan J, Deegan J, Farnann J, Hall A. Clients' views on the importance of a nurse-led approach and nurse prescribing in the development of the healthy addiction treatment recovery model. J Addict Nurs. 2019; 30(3):169-176.. A enfermagem pode desempenhar um papel de liderança com intervenções direcionadas para a redução do estigma, aumento de conhecimento dos usuários, para o recovery, respondendo às necessidades daqueles com mais idade e ajudando na capacitação para a autogestão da dependência de substâncias. No entanto, no que se refere a “programas de intervenção de enfermagem” junto de pessoas dependentes de substâncias, a evidência é escassa33 Comiskey C, Galligan K, Flanagan J, Deegan J, Farnann J, Hall A. Clients' views on the importance of a nurse-led approach and nurse prescribing in the development of the healthy addiction treatment recovery model. J Addict Nurs. 2019; 30(3):169-176.. Os enfermeiros estão, de forma global, muito ligados aos programas de base medicamentosa44 Pearson C. Perceptions and experiences of methadone maintenance treatment. J Addict Nurs 2019; 30(4):248-253., através da realização de consultas e da gestão dos programas. Contudo, os enfermeiros devem procurar novas abordagens sistematizadas em resposta às necessidades das pessoas, aumentar o nível de evidência das intervenções que realizam, que devem ter uma matriz e aportes multidisciplinares55 Louie E, Barrett EL, Baillie A, Haber P, Morley KC. Implementation of evidence-based practice for alcohol and substance use disorders: Protocol for systematic review. Syst Rev 2020; 9(1):1-6..

Em muitas situações de doença crónica, como o consumo de substâncias, as pessoas precisam de programas para treinar e desenvolver uma melhor capacidade para a autogestão da sua situação de saúde66 Van de Velde D, Zutter F, Satink T, Cost U, Janquart S, Senn D, De Vriendt P. Delineating the concept of self-management in chronic conditions: a concept analysis. BMJ Open 2019; 9(7):e027775.. É por esta razão que um conjunto de intervenções ou estratégias podem ser consideradas num “Programa de intervenção” definido como num conjunto de atividades, organizadas e estruturadas em sessões, visando um determinado objetivo. Alguns autores contextualizam os programas como uma forma de desenvolver competências sociais, adquirir confiança e devem-se constituir contextos de apoio e estimulo77 Sousa L, Sequeira C. Conceção de um programa de intervenção na memória para idosos com défice cognitivo ligeiro. Rev Port Enferm Saúde Ment 2012; 8:7-15.. Muitos destes programas, são díspares na sua estrutura, conteúdo, população alvo e tipologia de resposta88 Seabra P, Boska G, Sequeira R, Sequeira A, Simões A, Nunes I, Sequeira, C. Structured programs for the self-management of substance addiction consequences of adults in outpatient services: A Scoping Review. Curr Psychol [seial on the Internet] 2023 [cited 2021 dez 12]:[about 14 p.]. Available from: https://link.springer.com/article/10.1007/s12144-023-04267-z#citeas.
https://link.springer.com/article/10.100...
, não se podendo considerar adequada a sua utilização indiscriminada. Quando a opção passa por criar um “novo” programa deve-se considerar as características culturais da população, o problema de saúde, os cuidados a prestar e a acessibilidade. Requer que sejam ouvidos peritos profissionais e peritos pela experiência (pessoas com a vivência do problema de saúde), que forneçam aportes e detalhes imprescindíveis sobre a sua necessidade, comparando com o existente, e adequando ao contexto para o seu desenvolvimento, viabilidade e efetividade99 Khonsari S, Chandler C, Parker R, Holloway A. Increasing cardiovascular medication adherence: A medical research council complex mhealth intervention mixed-methods feasibility study to inform global practice. J Adv Nurs 2020; 76(10):2670-2684..

Na linha do que defendem alguns autores1010 Clancy C, Kelly P, Loth C. Walls are not the answer! Addiction nurses show the way in cross-national collaboration. J Addict Nurs 2019; 30(3):136-138., esta investigação pretende contribuir para maior consistência na forma como os tratamentos são implementados e para a identificação de melhores configurações para os programas de intervenção. Assim, o objetivo deste estudo é explorar a aceitabilidade e a aplicabilidade de um programa de intervenção com pessoas dependentes de substâncias.

Métodos

Tipo de estudo

Estudo exploratório, com abordagem qualitativa, integrado no desenvolvimento de uma intervenção complexa. Pretende-se estruturar a intervenção e fazer a análise inicial da aceitabilidade e aplicabilidade, pelos diferentes agentes envolvidos (usuários e enfermeiros) pertencentes ao contexto onde a intervenção poderá ser implementada99 Khonsari S, Chandler C, Parker R, Holloway A. Increasing cardiovascular medication adherence: A medical research council complex mhealth intervention mixed-methods feasibility study to inform global practice. J Adv Nurs 2020; 76(10):2670-2684.,1111 Rousseau N, Turner KM, Duncan E, O'Cathain A, Croot L, Yardley L, Hoddinott P. Attending to design when developing complex health interventions: A qualitative interview study with intervention developers and associated stakeholders. PLoS One 2019; 14(10):1-20.. Foram definidas as atividades para as fases do grupo focal (GF), planeamento, preparação, moderação (introdução, desenvolvimento e conclusão), análise dos dados e divulgação dos resultados1212 Morgan D. Basic and advanced focus groups. Los Angeles: SAGE Publications; 2018..

População, amostragem e critérios de seleção

Amostragem por conveniência. Critérios de inclusão: enfermeiros que trabalhassem em unidades públicas de saúde, ambulatoriais, especializadas na área dos comportamentos aditivos e dependências (CAD) de diferentes regiões do país, há mais de 5 anos, ou em instituições de ensino superior, com experiência na área dos CAD e no desenvolvimento de intervenções complexas. Os usuários foram selecionados por enfermeiros de uma equipa com as características referidas anteriormente, integrados em um programa de base medicamentosa, seguidos em consulta de enfermagem ou pessoas com alta de um programa nos últimos 6 meses.

Coleta de dados e variáveis em estudo

Recolha de dados dos participantes enfermeiros, através de um GF online, com recurso a plataforma Zoom para gravação áudio, em fevereiro de 2021. O GF com 6 enfermeiros foi dinamizado pelo investigador principal, com a duração de 1h40min. Por existir conhecimento pessoal e profissional prévio entre o investigador principal e os participantes, por aproximação da área de atuação clínica e de investigação, houve especial atenção no esclarecimento do estudo e na obtenção do consentimento. O GF foi gravado, transcrito e o texto analisado. As questões que nortearam o GF foram: 1. No âmbito dos programas de apoio medicamentoso, considera vantajoso um programa estruturado de capacitação para a autogestão das consequências da dependência de substâncias? 2. O que deve constar num programa deste tipo (intervenções, duração, objetivos, intervenientes)? 3. Como um programa destes se pode tornar atrativo para as pessoas? Complementarmente questionou-se a idade, nível de formação, profissão, tempo de experiência profissional na área dos CAD, experiência prévia na construção de programas de intervenção.

Devido à situação pandémica causada pela COVID-19, para a recolha de dados junto dos usuários optou-se pela realização de 6 entrevistas semiestruturadas, entre junho e agosto de 2021. As entrevistas foram realizadas nas instalações de uma unidade pública ambulatória, especializada, na região da grande Lisboa, gravadas em computador, formato áudio e depois transcritas. As entrevistas, transcrição e análise dos textos, foram realizadas pelo investigador principal (externo à equipa e sem conhecimento pessoal) assim como por outros investigadores externos à equipa da unidade. A duração média das entrevistas foi 22 minutos. As questões formuladas na entrevista foram: 1. De que modo tem sido ajudado a lidar com as consequências da sua dependência? 2. Como acha que as equipas podiam ajudar melhor as pessoas a lidar com as consequências da sua dependência? 3. Considera vantajoso um programa estruturado de capacitação para a autogestão/autocuidado das consequências da dependência de substâncias? Complementarmente questionou-se a idade, tempo de consumo de substâncias psicoativas e tempo de acompanhamento em programas medicamentosos.

Tratamento e análise dos dados e quadro conceitual

A análise dos dados que resultaram do conteúdo do GF e das entrevistas se fez com recurso à análise textual lexicográfica, recorrendo à Classificação Hierárquica Descendente (CHD) e análise de similitude, através do software IRaMuTeQ - Interface de R, seguindo as recomendações de outros autores1313 Brantes A, Curado A. Percepção dos enfermerios sobre a alimentação do recém-nascido. Texto Context Enferm 2021; 30:e20200597.. Esta abordagem não requer qualquer codificação ou classificação prévia do conteúdo. Nenhum conteúdo foi enviado aos participantes para validação. O investigador principal discutiu os dados, já anonimizados, com a equipa de investigação. Foram seguidas as recomendações COREG no que se refere a elaboração e reporte de estudos qualitativos1414 Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): A 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Heal Care 2007; 19(6):349-357..

Aspectos éticos

Foram explicados os objetivos, esclarecidas as dúvidas e obtido o consentimento livre e esclarecido dos participantes. Este estudo teve o parecer positivo da comissão de ética em saúde da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (7211/CES/2020) e todas as autorizações institucionais foram obtidas.

Resultados

No GF participaram 5 enfermeiros especialistas em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica e 1 enfermeiro generalista, com idades compreendidas entre 35-54 anos (média 47,3, desvio-padrão (dp)=7), 3 homens e 3 mulheres, 2 com doutoramento em Enfermagem, 2 com mestrado e 2 licenciados. Quanto ao tempo de serviço junto de pessoas com CAD verificou-se um intervalo entre 11-20 anos (média 18, dp=3,9). Dos 6 participantes, 3 tinham experiência prévia de ter contribuído para a elaboração de programas de intervenção junto de pessoa com CAD. Nas entrevistas os participantes foram 5 homens e 1 mulher, com idades compreendidas entre 45-63 (média 58,4 com dp=7,6); com um tempo médio de uso de substâncias de 27,4 anos (dp=14,1) [9-43] e com um tempo médio de permanência nos programas de 11 anos (dp=8,8) [2-11]. Na dimensão social podemos dizer que 3 trabalhavam regularmente, 1 com trabalho esporádico, 1 reformado e 1 desempregado. Todos viviam em cada própria ou alugada e nenhum vivendo em situação de rua. Apenas 1 dos entrevistados vivia sozinho.

No que se refere a análise lexicográfica, na CHD o critério utilizado como ponte de corte para a inclusão dos elementos nas classes do dendrograma, foi o valor de X²≥3,84, sendo o cálculo definido segundo um nível de significância de 95%. Todas as palavras incluídas apresentam um X22 Rêgo X, Oliveira MJ, Lameira C, Cruz OS. 20 years of Portuguese drug policy: developments, challenges and the quest for human rights. Subst Abus Treat Prev Policy 2021; 16(1):1-11. superior ao valor de referência e com um valor de p<0,0001. Na análise correspondente ao corpus do focus e ao corpus das entrevistas nem sempre foi possível aplicar o critério dobro da frequência média possivelmente pelo número de textos (16 textos no focus e 6 textos nas entrevistas). Da análise do focus o dobro da frequência média foi de 18 (2*9) e nas entrevistas foi de 12 (2*6). A análise textual lexicográfica proveniente do GF revelou 6381 ocorrências de palavras, distribuídas por 715 formas, com uma média de 9 palavras por cada forma.

Através da CHD foram analisados 151 segmentos de texto, retendo 85,8% do total para a criação de 5 classes resultantes da participação do conteúdo relativamente à perceção dos Enfermeiros sobre a necessidade e a estrutura de um programa de intervenção (Tabela 1).

Tabela 1
Classes de segmentos de texto obtidos através da análise do corpus textual do GF. Portugal, 2022.

O vocabulário presente na classe 1 permitiu denominá-la de “Modelo da intervenção”, sendo responsável por 15,9% dos segmentos de texto analisados no corpus. As palavras: mudança, precisar, teórico, status, enfermagem, ajudam a compreender a visão partilhada pelos participantes, concordando no benefício de uma mudança no modo de intervenção. Esta intervenção deverá ser centrada na pessoa e no seu comportamento, assente em diagnósticos de enfermagem e num referencial teórico definido. A necessidade de poder realizar uma intervenção estruturada e centrada na capacitação para a autogestão das consequências da dependência de substâncias, reuniu consenso e aceitabilidade, sendo inerente o conhecimento em enfermagem.

Os excertos do discurso dos participantes, demonstram que, analisando as suas práticas, os enfermeiros consideram vantajoso a discussão, construção e criação de um modelo estruturado de intervenção:

[...] Podem funcionar como inspiração para a organização destas etapas, que de algum modo irão corresponder ao que são as etapas de um percurso de mudança, ou seja, de mudança de status que é o que se pretende (enfermeiro 5 (e5)).

[...] há intervenções que eu posso fazer e mensurar e perceber que ao fim de tantas consultas de enfermagem eu consigo um ganho em determinada área, um ganho é uma mudança, a mudança do status, do comportamento (e2).

[...] é isto que me incomoda, é o facto de nós estarmos agarrados a um tipo de trabalho que vamos fazendo e que há uma série de coisas que nós até detetamos e sentimos que as pessoas precisam (e6).

Em todas as classes foi possível identificar palavras que surgiam em 100% dos segmentos de texto da classe 1, embora com valores de referência sem significância estatística (p>0,001), mas com aproximação semântica com as incluídas na classe (significância à conceção lexical). Nesta classe 1, as palavras diagnósticos, ajuda e precisar, podem-se relacionar com um modelo de intervenção com foco final na promoção de bem-estar e satisfação das necessidades.

A classe 2 foi intitulada “Intervenientes do processo” justificada por 21,2% dos dados textuais analisados. As palavras: técnico, referência e individuo, revelam a abrangência da reflexão dos intervenientes sobre os agentes envolvidos. Profissionais com diferentes origens disciplinares como dinamizadores/terapeutas, as pessoas alvo de cuidados e a relação enquanto vínculo, emergiram como a matriz de referência para delimitar os agentes ativos neste processo. A competência do interveniente é talvez a referência principal para a dinamização, se somando o papel ativo das pessoas alvo de cuidados:

[...] esse enfermeiro vai trabalhar com a pessoa dentro daquilo que são as suas competências. Vai ter interações com outros técnicos dentro daquilo que são as diversas necessidades que as pessoas têm (e5).

[...] depois temos a questão da relação e da vinculação. As vezes não é por ser técnico de referência do utente que ele é mais vinculado, às vezes é precisamente a outro técnico que ele se vai vincular (e3).

[...] os indivíduos são únicos e a verdade é que tem que haver uma necessidade, às vezes a necessidade não é identificada pelo próprio, é por nós, pelos técnicos, que em princípio vêm as coisas sob um outro prisma (e3).

Da análise complementar das palavras que surgem nos segmentos de texto, destacam-se: terapeuta, psicólogo, enfermeiro, médico, competência, utente, relação. Evidenciam um afastamento da conceção única de quem é o profissional mais indicado para a intervenção e sugere a associação entre diferentes saberes. A realização apenas por um enfermeiro foi considerada possível, de forma unânime, mas questionou-se a indicação da realização por enfermeiro generalista ou especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica.

A classe 3 denominou-se “Estrutura da intervenção”, totalizando 25,8% do corpus analisado, emergindo como principais palavras: individual, grupo, mês. A maioria dos participantes ao refletir sobre uma problemática tão complexa, teve dificuldade em ser direto e objetivo na reflexão sobre a estrutura, o que se verificou no vocabulário lexical da classe, pois uma intervenção desta natureza pode ter diferentes estruturas:

[...] existem diferentes questões de caracter individual que necessitam ser trabalhadas como a gestão emocional, ansiedade, tristeza, onde muitas vezes podem ser trabalhadas em grupo, mas necessita ser complementada com uma abordagem individual (e3).

[...] sobre a durabilidade dos 3 meses, eu também já trabalhei em programas em que havia um tempo limitado, 2 ou 3 meses, às vezes esse tempo não é o tempo da pessoa (e6).

Complementarmente as palavras durabilidade, limitado, integrar, programa, intervenção, consulta de enfermagem, contribuem para uma reflexão da integralidade e intencionalidade terapêutica de um programa.

A classe 4 representa 17,2% dos segmentos textuais e foi denominada “Foco da intervenção”, por conter as palavras consequências, problema, capacitação, autogestão, abordar, parar, consumo. Esta classe foca-se na necessidade de ajuda perante as consequências da dependência de substâncias, na capacitação para a autogestão da problemática, incluindo ainda a paragem de consumos, como se pode observar nas frases:

[...] existe um problema associado ao consumo de cocaína que as equipas têm dificuldade em lidar. Voltando à questão da capacitação da autogestão das consequências, o que nós queremos é educar as pessoas para uma melhor saúde e tentamos arranjar estratégias para dar resposta a este desafio (e4).

[...] cada etapa teria dentro um determinado objetivo e um conjunto de atividades sendo que a ordem das etapas não é necessariamente rígida. Gostei da sistematização dos fatores que podem contribuir para uma maior eficácia na autogestão das consequências (e5).

[...] muitas vezes isto tem por trás o não parar consumos. Eu não consigo parar consumos porque não arranjo trabalho, porque estou ansioso, triste ou por causa de condições familiares (e1).

A palavra vantagem demostra o consenso na criação de um modelo de intervenção. As palavras dependência, estruturado, são fatores relacionados ao foco da intervenção, orientando no sentido da estrutura adaptada ao foco e apresentam uma significância à conceção lexical. A palavra familiar alarga a visão do cliente alvo de cuidados.

À classe 5 atribuiu-se o nome de “Indicadores para a operacionalização do programa”, abrangendo 19,9% do corpus analisado, com as palavras dificuldades, criar, avaliar, que se articulam em indicadores de processo e resultado, fundamentais para a criação e condução do programa:

[...] para tornar um programa apelativo para os utentes este tem de ter uma boa adesão. É necessário ter em conta as características dos nossos utentes pois existe a dificuldade de adesão ao acompanhamento psicoterapêutico e farmacológico (e2).

[...] precisa de estar sistematizado dentro de um programa. Isto são intervenções, se estiver sistematizado acaba por ser organizador e permite avaliar de uma forma diferente do que se faz até agora que não existe nada (e6).

Com esta classe ficou claro que há necessidade de indicadores para esta intervenção e que os participantes têm dificuldade em antecipar o âmbito e o percurso de implementação deste programa, como sugerem as palavras estar, sistematizar, prever e intervenção.

A análise de similitude, referente à análise de dados do GF, conduziu à composição de dois núcleos centrais (Figura 1) representados pelas palavras intervenção e enfermeiro. A interligação entre estes dois conceitos revela-se forte, e na sua ligação a palavra achar, revela o carater exploratório do GF, mas reforça a convicção de que a intervenção deve e pode ser liderada por enfermeiros e que as necessidades podem ser vantajosamente respondidas por estes. No núcleo intervenção, os ramos com maior conexidade são: foco, querer, consumo, parar, área, ajudar, diferente, importante, coisa, que como referido nas classes 1 e 4, o foco da intervenção deve considerar as múltiplas necessidades das pessoas. Há ainda conexidade com a classe 5 e às dificuldades inerentes a uma implementação. Quanto ao núcleo enfermeiro, os ramos com maior conexidade são técnico, utente, trabalhar, precisar e mudança, que remete para classe 2 e o papel das competências dos vários profissionais, em conjunto com os usuários, no desenvolvimento de uma abordagem de mudança. Esta ligação estende-se às classes 1 e 3, com as reflexões sobre a mais-valia da abordagem individual ou em grupo. Com menor conexidade emerge a necessidade de mudança.

Figura 1
Árvore de coocorrência entre as palavras do corpus textual do GF. Portugal, 2022.

A análise textual realizada com o corpus que resultou das 6 entrevistas, revelou 8.836 ocorrências de palavras, distribuídas por 1.509 formas, com uma média de 6 palavras por cada forma. Através da CHD foram analisados 252 segmentos de texto, retendo 71,83% do total para a criação de 5 classes resultantes da participação do conteúdo, conforme a Tabela 2, relativamente à perceção dos usuários sobre a necessidade e a estrutura de um programa de intervenção. O vocabulário presente na classe 1 permitiu denominá-la de “Expectativas face ao programa”, sendo responsável por 14,4% dos segmentos de texto analisados no corpus.

Tabela 2
Classes de segmentos de texto obtidos através da análise das entrevistas. Portugal, 2022.

Os excertos do discurso dos entrevistados demonstram que a expetativa face a um programa de capacitação dependerá da opção de mudança, entre o que a pessoa quer na sua realidade atual, e o que quer mudar na sua vida (representado pela palavra porta). Revelam a necessidade de as pessoas serem ajudadas a clarificar o que querem, após confrontação com a sua situação presente, e demostra a necessidade de responder à instabilidade dos usuários:

[...] se eu vier para aqui só para estar a marcar o ponto porque convém ou pior ainda só venho quando me apetece se calhar eu não estou muito interessado tem de haver um controlo a ver se quero deixar as drogas (p1).

[...] aqui dentro às vezes posso ser muito forte e encarar o mundo, mas se calhar noutras situações pareço um baralho de cartas e vocês aí fortes e eu me espalhava todo (p5).

[...] o que ajuda mais são os aconselhamentos, ter alguma porta que eu possa recorrer em alguma situação que eu tenha dificuldade estar em grupo para falar dos seus problemas, acho que é vantajoso cada um tirar um pouco da vivência do outro (p3).

Complementarmente as palavras ver, situação, aconselhamento, pedir, remetem para o consenso sobre a mais-valia de um programa, a dificuldade de fixar tempo de forma rígida e a necessidade do aconselhamento em resposta aos pedidos e necessidades.

As palavras programa, certeza e querer levaram à denominação da Classe 2 “Vínculo ao programa” com 21,55% dos dados analisados. Analisando, verificou-se a necessidade do vínculo efetivo dos usuários com um programa estruturado, com o qual concordam e que deve estar centrado na satisfação das suas necessidades. Consideram necessário que os participantes tenham refletido profundamente na sua opção, querer efetivamente mudar:

[...] acho que o aconselhamento era bom estar neste programa (p5).

[...] o programa deve ser focado primeiro trabalho e a pessoa se sentir integrada e depois a pouco e pouco ir abrindo os horizontes (p1).

[...] o controlo tem de ser vosso com tantas incertezas e tantas culpas e é aí é que eu quero a vossa ajuda percebes (p3).

As palavras dever, mesmo, bom, acreditar, reforçam a designação da classe. Estão associadas a necessidade de serem apoiados na clarificação. Remetem também para o reconhecimento do benefício quando se vincula a um programa estruturado.

A classe 3, intitulada “Articulação com programa medicamentoso” é responsável por 28,18% dos segmentos de texto, foca-se nas repostas fornecidas aos pedidos concretos das pessoas quando precisam de ajuda. Para esta população, a articulação com um programa medicamentoso é considerada imprescindível, como é verificado nas seguintes falas:

[...] acontece é que há aqui isto, é um rolo de neve há aqui muita gente que está aqui porque estão num sistema de vida que leva precisamente a isto (p6).

[...] mas o acompanhamento não é só psicologicamente porque a gente chegar à mesa e não ter um prato de comer você tem que ir buscar a qualquer lado (p1).

[...] vou tomando a metadona tem sido a ajuda que eu tenho tido e que eu precisava (p2).

As palavras segurança, simpático, consulta, ouvir, reforçam as características reconhecidas e necessárias nesta articulação, pela segurança que fornece, relacionado com o suporte medicamentoso e o espaço terapêutico que se pode criar.

Na classe 4 intitulada “Apoio centrado nas necessidades” (20,99%) emerge a expressão do apoio considerado fundamental para as necessidades expressas pelos entrevistados, relacionados com a forma como sentem o que mais os ajuda. Desde a escuta dos seus problemas, até a ajuda para suprir necessidades mais objetivas:

[...] a ajuda para lidar com as consequências da dependência significou muito, primeiro souberam ouvir (p6).

[...] a gente tem de ocupar o tempo a questão fundamental era um apoio extra serviços arranjar emprego de acordo com as capacidades de cada um do trabalho da ocupação porque a pessoa tem que se governar (p5).

[...] um programa deveria ter um tempo para a pessoa falar com o psicólogo um tempo de aconselhamento falar sobre as consequências do efeito do álcool consequências de outras doenças (p1).

As palavras lidar, grande, necessitar e serviço, indicam a forma desafiadora como os usuários olham para a necessidade que têm, da ajuda que precisam para lidar e do enorme compromisso dos profissionais para articular com diferentes serviços relacionados.

A classe 5, denominada “Pilares de dignidade” (14,92%), representada pelas palavras casa, receber, dinheiro, rendimento, permite verificar uma relação mais objetiva à classe 4. A análise permite desocultar as necessidades consideradas mais prementes, como ter uma casa e um rendimento, considerados fatores de dignidade individual, essenciais no roteiro de um programa:

[...] muitos não têm habitação para necessidades básicas (p3).

[...] basicamente o trabalho é o centro de tudo (p3).

[...] depois quando há desemprego as pessoas têm que ir buscar dinheiro a algum lado (p5).

[...] a mãe trabalhava e a mulher trabalha para me aguentar foi a minha sorte se não talvez estivesse a falar de outra maneira, eu recebo a minha reforma (p6).

Nesta classe as palavras reforma, mãe, viver, ordenado revelam-se importantes por serem reconhecidas como fontes de apoio financeiro, de sustento, fundamentais para a dignidade pessoal e qualidade de vida. Demostram a dependência económica aos progenitores e a mais-valia da autonomia neste domínio é assinalada por todos.

A análise de similitude conduziu igualmente à composição de 3 núcleos centrais, como observado na Figura 2, representados pelas palavras programa, querer e ver. No núcleo programa, as palavras associadas: ajuda e dever sustentam a necessidade premente de uma resposta de apoio às pessoas, com compromisso de todos os atores no dever para a intervenção e remetem para a classe 2. Nesse núcleo surge ainda uma conexidade com palavra achar reveladora da incerteza sobre a intervenção em resposta às consequências, depois a palavra falar como um veículo necessário e fundamental, o que remete para a classe 4. Saliente-se ainda a conexão com a palavra mesmo, como o posicionamento motivacional para alterar muitas variáveis ligadas ao estado da pessoa. No núcleo querer destaca-se o ramo andar que se associa a uma mudança comportamental relacionada com os consumos e a palavra trabalhar uma necessidade apontada como imprescindível para a melhoria da qualidade de vida e facilitadora do querer motivacional, que se liga com a classe 5. A conexidade com a palavra tomar, nos remete para a necessidade de adesão aos programas medicamentosos, que emergiu na classe 3. Este núcleo articula-se fortemente com núcleo ver que remete para a classe 1, ou seja, sobre as expetativas de um programa com estas características. Interpreta-se que há mais pessoas na mesma situação a precisar de uma ajuda mais estruturada (remete para a classe 2).

Figura 2
Árvore de coocorrência entre as palavras do corpus textual das entrevistas. Portugal, 2022.

Discussão

Este estudo procurou contribuir para a identificação de melhores configurações dos programas de intervenção que respondam às necessidades das pessoas.

A população consumidora de substâncias, principalmente os dependentes de opiáceos e de álcool, frequentemente são integrados em programas medicamentosos, acompanhados por equipas multidisciplinares. Nestes programas procura-se responder às necessidades em saúde, relacionadas com a severidade das comorbilidades como hepatite C, VIH, das doenças decorrentes dos anos de consumo e do natural envelhecimento, sejam cardíacas, gástricas ou respiratórias44 Pearson C. Perceptions and experiences of methadone maintenance treatment. J Addict Nurs 2019; 30(4):248-253.,1515 Seabra P, Sequeira A, Filipe F, Amaral P, Simões A, Sequeira R. Substance addiction consequences: Outpatients severity indicators in a medication-based program. Int J Ment Health Addict 2022; 20:1837-1853.. Pretende-se ajudar nas situações de menor bem-estar mental, como a depressão, ansiedade, angústia, baixa autoestima, diminuição cognitiva1616 McKowen JW, Isenberg BM, Carrellas NW, Zulauf CA, Ward NE, Fried RS, Wilens TE. Neuropsychological changes in patients with substance use disorder after completion of a one month intensive outpatient treatment program. Am J Addict 2018; 27(8):632-638., promovendo diminuição de consumos e controlo de situações de risco1717 Wieben ES, Nielsen B, Nielsen AS, Andersen K. Elderly alcoholics compared to middle-aged alcoholics in outpatient treatment-6-month follow-up. Nord J Psychiatry 2018; 72(7):506-511.. Os programas utilizam diferentes intervenções de base cognitivo comportamental1818 Schuman DL, Slone NC, Reese RJ, Duncan B. Efficacy of client feedback in group psychotherapy with soldiers referred for substance abuse treatment. Psychother Res 2015; 25(4):396-407. com reforço da estrutura motivacional, individuais ou em grupo1919 Amiri Z, Mirzaee B, Sabet M. Evaluating the efficacy of Regulated 12-Session Matrix Model in reducing susceptibility in methamphetamine-dependent individuals. Int J Med Res Heal Sci 2016; 5(8):77-85., presenciais ou à distância2020 Tiburcio M, Lara MA, Martínez N, Fernández M, Aguilar A. Web-based intervention to reduce substance abuse and depression: A three arm randomized trial in Mexico. Subst Use Misuse 2018; 53(13):2220-2231..

Neste estudo verificou-se ser consensual entre os enfermeiros e usuários, o beneficio de um novo programa estruturado, com momentos focados em tópicos que capacitem as pessoas, tal como defendem alguns autores66 Van de Velde D, Zutter F, Satink T, Cost U, Janquart S, Senn D, De Vriendt P. Delineating the concept of self-management in chronic conditions: a concept analysis. BMJ Open 2019; 9(7):e027775.,2121 Campbell ANC, Turrigiano E, Moore M, Miele GM, Rieckmann T, Hu MC, Kropp F, Ringor-Carty R, Nunes EV. Acceptability of a web-based community reinforcement approach for substance use disorders with treatment-seeking american indians/Alaska natives. Community Ment Health J 2015; 51(4):393-403.. As classes encontradas nos corpus textuais, e as palavras que integram e especificam a sua agregação, reforçam esta perspetiva, que se verifica na relação entre as das classes que emergiram do GF e das entrevistas. Depreende-se uma aproximação no benefício de um programa, com os seus agentes bem definidos, com vínculo e motivação necessários, centrado nas elementares necessidades, de forma a proporcionar dignidade. A flexibilidade é condição essencial para os dois grupos de participantes. Esta conjugação pode ajudar na construção de um programa que dê efetiva atenção às necessidades, pois é assente numa perspetiva conjunta.

Um estudo recente, que ouviu enfermeiros e pessoas em tratamento, sobre um modelo de intervenção na área dos CAD, verificou, à semelhança deste estudo, que as pessoas integradas reconhecem aos enfermeiros intervenções sobre o seu cuidado físico, mas também fonte essencial de suporte psicológico. Estas expressaram, ainda, o desejo de ver expandido o seu papel na gestão do tratamento com metadona e na possibilidade de estes articularem e facilitarem a ligação a outros serviços necessários33 Comiskey C, Galligan K, Flanagan J, Deegan J, Farnann J, Hall A. Clients' views on the importance of a nurse-led approach and nurse prescribing in the development of the healthy addiction treatment recovery model. J Addict Nurs. 2019; 30(3):169-176..

Das palavras que foram extraídas no discurso dos participantes, podemos destacar várias que fornecem orientações para a intervenção. Como sejam apoio, escuta, apoio social, dinheiro, querer, que vimos serem alvo de atenção em outros estudos, focando uma interação social mais adequada, menos uso de drogas e álcool, menos sofrimento psíquico e aumento da motivação para adesão terapêutica1919 Amiri Z, Mirzaee B, Sabet M. Evaluating the efficacy of Regulated 12-Session Matrix Model in reducing susceptibility in methamphetamine-dependent individuals. Int J Med Res Heal Sci 2016; 5(8):77-85.,2020 Tiburcio M, Lara MA, Martínez N, Fernández M, Aguilar A. Web-based intervention to reduce substance abuse and depression: A three arm randomized trial in Mexico. Subst Use Misuse 2018; 53(13):2220-2231..

A maior vantagem de uma intervenção grupal, referida como positiva pelos participantes deste estudo, é a promoção de reabilitação e reintegração social, pois a troca de experiências, é vista como empoderadora para enfrentar fatores promotores de recaída2222 Sousa JM, Farinha MG, Silva NS, Caixeta CC, Lucchese R, Esperidião E. Potencialidades das intervenções grupais em Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas. Esc Anna Nery 2022; 26:1-10.. É identificada a necessidade de não estipular tempos fixos de duração, mas é reconhecida como das mais eficazes na promoção de capacidade de reflexão e autoconhecimento2323 Rettie HC, Hogan LM, Cox WM. Identifying the main components of substance-related addiction recovery groups. Subst Use Misuse 2021; 56(6):840-847..

Observa-se a necessidade de articular o apoio profissional, com o suporte de pares com experiência de adição, o que tem demostrando efetividade2424 Gilbert WC. Voices from the rooms and programs: recovery capital speaks. J Soc Work Pract Addict 2022; 22(1):53-67.. A dificuldade em encontrar trabalho é um dos fatores assinalados pelos usuários, como sendo um problema na adesão e para a qualidade de vida. Consideram ser fundamental receberem ajuda para conseguir trabalho, tal como em outros artigos com população em programa de base medicamentosa2525 Ware OD, Frey JJ, Cloeren M, Mosby A, Imboden R, Bazell AT, Huffman M, Hochheimer M, Greenblatt A, Sherman S. Examining employment and employment barriers among a sample of patients in medication-assisted treatment in the United States. Addict Disord Their Treat 2021; 20(4):578-586..

A relação entre os achados reforçam o encontrado em estudos sobre a opinião e aceitabilidade de intervenções implementadas nesta área da adição, onde esse exercício é realizado durante a implementação da intervenção2626 Imani S, Atef Vahid MK, Gharraee B, Noroozi A, Habibi M, Bowen S. Effectiveness of mindfulness-based group therapy compared to the usual opioid dependence treatment. Iran J Psychiatry 2015; 10(3):175-184. ou, numa fase de construção através de uma investigação participativa2727 Loth C, Schippers GM, Harm't H, van de Wijngaart G. Enhancing the quality of nursing care in methadone substitute clinics using action research: a process evaluation. J Av Nurse 2007; 57(4):422-431.. Não encontramos outros estudos de recolha prévia da opinião de profissionais ou peritos pela experiência nesta área de cuidados de saúde com pessoas aditas. Esta prática é pouco utilizada na construção de intervenções complexas1111 Rousseau N, Turner KM, Duncan E, O'Cathain A, Croot L, Yardley L, Hoddinott P. Attending to design when developing complex health interventions: A qualitative interview study with intervention developers and associated stakeholders. PLoS One 2019; 14(10):1-20..

Este estudo contribui para reforçar o conhecimento na área da saúde e na especificidade das intervenções de enfermagem, alertando para a satisfação de necessidades complexas e recentrando na necessidade de atendermos às necessidades mais básicas. A flexibilidade apontada pelos enfermeiros, mas principalmente pelos usuários, é uma notável contribuição para a construção de um novo programa e confronta os alicerces de intervenções / programas previamente definidos com conteúdos e sessões obrigatórias para todos.

Este estudo tem como limitação a dimensão da amostra entrevistada. A sua análise direciona-se ao contexto em estudo e com o objetivo específico delineado, não podendo os resultados serem extrapolados para outros contextos.

Conclusão

Este trabalho pretendeu auscultar os intervenientes - enfermeiros peritos e peritos pela experiência - num processo de acompanhamento no âmbito da dependência de substâncias. As pessoas com CAD, assistidas em unidades especializadas, têm uma média de idades cada vez mais elevada, com várias comorbilidades físicas e psíquicas e com policonsumos, o que revela a severidade das consequências da dependência de substâncias, com impacto em várias áreas da vida.

Assente no pressuposto que as pessoas acompanhadas em consulta de enfermagem têm benefícios com esse acompanhamento, questionamos enfermeiros e usuários sobre a mais-valia de um programa de intervenção estruturado. Ficou evidente a aceitabilidade e a concordância para a sua aplicabilidade, flexível, sem tempo definido à partida, possibilitando momentos de interação individual e em grupo, centrado inicialmente na satisfação das necessidades humanas básicas com destaque ao apoio para conseguir um emprego. Os espaços de ventilação de emoções e a ajuda para fazer face a situações do dia a dia, foram igualmente dos mais consensuais.

Os usuários têm expetativas que se alinham com os enfermeiros. Acolhem uma ideia construtiva de um programa, lembrando a necessidade de ser criado vínculo efetivo a esta proposta de intervenção por parte das pessoas incluídas. Relembram a imprescindibilidade da manutenção dos programas de base medicamentosa articulados com esta proposta. Indicam o benefício de focar e centrar o programa primeiro nas necessidades mais fundamentais, com posterior oferta de outras intervenções promotoras de bem-estar e menor sofrimento emocional. Não deixam de assinalar que é uma necessidade humana básica ter uma casa onde morar e preferencialmente onde a pessoa seja detentora da sua autonomia e, complementarmente, ter um emprego e rendimento. Os desafios apontados são enormes, pela complexidade das situações de vida das pessoas, e pelas consequências do uso problemático de substâncias. Há consenso na necessidade e no benefício, de uma estrutura terapêutica flexível e estratégias de vinculação. Destaca-se a forma como tudo se articula na capacidade de comunicar e ajudar o outro, escutando, interpretando os seus sinais de angústia, incerteza e dificuldade de decisão. Considera-se que esta perspetiva, possa ser inovadora respondendo de forma mais individualizada e holística, contrariando intervenções/programas com sequências modulares formatadas de forma mais rígida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Jan 2022
  • Aceito
    28 Set 2022
  • Publicado
    30 Set 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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