Análise política da ação do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira na pandemia da COVID-19: 2020-2021

Jamilli Silva Santos Carmen Fontes Teixeira Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste trabalho é analisar a ação política do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB), notadamente Cebes e Abrasco, face à pandemia de COVID-19. As informações foram obtidas por meio de revisão documental de publicações das referidas entidades, que apresentam seus posicionamentos diante das ações governamentais implementadas entre janeiro de 2020 e junho de 2021. Os resultados evidenciam que a atuação dessas entidades incluiu ações diversas, em sua maioria reativas e críticas à atuação do governo federal na pandemia. Além disso, protagonizaram a criação da Frente pela Vida, organização que reuniu várias entidades científicas e organizações da sociedade civil, e cujo destaque foi a elaboração e difusão do “Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia de Covid-19”, documento que contém uma análise abrangente da pandemia e suas determinações sociais, bem como um conjunto de proposições para o enfrentamento da pandemia e dos seus efeitos sobre as condições de vida e saúde da população. Conclui-se que a atuação das entidades do MRSB revela alinhamento com o projeto original da RSB, enfatizando as relações entre saúde e democracia, a defesa do direito universal à saúde e a expansão e fortalecimento do SUS.

Palavras-chave:
Atividade política; COVID-19; Reforma do setor saúde; Movimento Sanitário; SUS

Introdução

A crise sanitária provocada pela pandemia de COVID-19, considerada até o momento o maior desafio sanitário deste século11 Roser M, Ritchie H, Ortiz-Ospina E, Hasell J. Coronavirus Pandemic (COVID-19) [Internet]. 2020. [cited 2022 jul 10]. Available from: https://ourworldindata.org/coronavirus
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, agudizou as crises política, econômica, social e ambiental em que o país mergulhou nos últimos anos22 Paim JS. A covid-19, a atualidade da reforma sanitária e as possibilidades do SUS. In: Santos A, Lopes LT, organizadores. Reflexões e futuro. Brasília: CONASS; 2021. p. 310-324. e deu visibilidade a uma grave crise institucional no âmbito do governo federal, expressa em tensões e conflitos em torno das estratégias de enfrentamento e controle da pandemia. A evolução da COVID-19 no país configurou uma verdadeira tragédia, medida pelo excesso de casos e óbitos, pela deterioração das condições de vida de amplas parcelas da população e pela incerteza com relação ao futuro imediato.

Essas múltiplas crises intensificaram o antagonismo político, que já vinha se configurando há várias décadas, entre os representantes do projeto ultra neoliberal, autoritário e conservador e as forças políticas e sociais que defendem um projeto democrático para a sociedade brasileira33 Souza Neto CP. Democracia em crise no Brasil: valores constitucionais, antagonismo político e dinâmica institucional. São de Paulo: Editora Contracorrente; 2020.. Nesse contexto, marcado ainda pelo desmonte de políticas públicas construídas anteriormente, a questão das relações entre saúde e democracia foi recolocada no centro do debate político, acirrando o enfrentamento entre atores políticos situados nas instituições governamentais e organizações e entidades da sociedade civil em várias áreas de políticas públicas, como economia, educação, saúde, meio ambiente e cultura.

O Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS), sediado no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC-UFBA) (http://www.analisepoliticaemsaude.org/oaps), vem monitorando semanalmente os pronunciamentos, as notícias e os documentos publicados em sites oficiais e de organizações e entidades da sociedade civil, de modo a compor uma matriz de acompanhamento dos principais fatos políticos que marcam esta conjuntura. Buscando superar a descrição dos fatos, segundo os atores que os protagonizaram e os efeitos que desencadearam no curso da pandemia, nos propusemos a investigar a ação política do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB), tratando de analisá-la à luz das dimensões e categorias propostas por Gohn44 Gohn MG. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola; 2014. para o estudo dos movimentos sociais, especialmente a identificação do projeto político para a saúde defendido pelo movimento, as formas de organização e as ações realizadas no período 2020-2021.

Nesse sentido, trabalhamos com a hipótese de que as tensões e os conflitos entre atores e instituições governamentais e organizações e entidades da sociedade civil vinculadas ao MRSB durante a pandemia evidenciaram, mais uma vez, a disputa entre projetos políticos para a saúde que vem se desenvolvendo ao longo dos últimos 46 anos, uma vez que o projeto de democratização da saúde originário do MRSB nos anos 1970, que defende o direito universal à saúde, valoriza o Sistema Único de Saúde (SUS) e propõe o fortalecimento de uma atenção integral à saúde da população55 Souza LEPF, Paim JS, Teixeira CF, Bahia L, Guimarães R, Almeida-Filho N, Machado CV, Campos GW, Azevedo-e-Silva G. Os desafios atuais da luta pelo direito universal à saúde no Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(8):2783-2792., vem enfrentando, em distintas conjunturas políticas, o projeto mercantilista, ou liberal-conservador, que considera a saúde como mercadoria e, portanto, defende a expansão do setor privado de assistência médico-hospitalar e prevê a configuração de um “SUS para pobres”, ou um “SUS “reduzido”22 Paim JS. A covid-19, a atualidade da reforma sanitária e as possibilidades do SUS. In: Santos A, Lopes LT, organizadores. Reflexões e futuro. Brasília: CONASS; 2021. p. 310-324., no qual os serviços de maior complexidade estejam, inclusive, sob gestão privada, por meio de organizações sociais ou de parcerias público-privadas66 Romano CMC, Scatena JHG, Kehrig RT. Articulação público-privada na atenção ambulatorial de média e alta complexidade do SUS: atuação da Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso. Physis 2015; 25(4):1095-1115..

No curso da pandemia de COVID-19, esse embate se apresentou no interior do próprio SUS, na medida em que a rede assistencial vinculada diretamente ao setor privado mostrou-se ineficiente para dar conta da clientela vinculada a planos e seguros de saúde, de modo que coube ao setor público, especialmente, investir nas ações de controle da pandemia e na assistência aos casos de COVID-1977 Scheffer M, Bahia L. Planos e seguros de saúde privados na pandemia de covid-19 no Brasil. In: Santos AO, Lopes LT, organizadores. Planejamento e gestão. Brasília: CONASS; 2021. p. 256-270.. Nesse contexto, observou-se ausência de um planejamento integrado entre as diversas esferas de gestão do SUS, descoordenação e conflitos entre governo federal (GF) e governos estaduais e municipais88 Lima LD, Pereira AMM, Machado CV. Crise, condicionantes e desafios de coordenação do Estado federativo brasileiro no contexto da COVID-19. Cad Saude Publica 2020; 36(7):e00185220., em paralelo à mobilização da comunidade científica do campo da saúde99 Souto LRF, Travassos C. Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da Covid-19: construindo uma autoridade sanitária democrática. Saude Debate 2020; 44(126):587-589., da mídia e de organizações da sociedade civil.

O objetivo deste trabalho é analisar a ação política das principais entidades do MSRB durante a pandemia: o Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde) e a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), selecionadas em função da liderança que exercem na articulação do movimento sanitário desde a sua emergência até o período mais recente, tratando de caracterizar o projeto político para a saúde que fundamenta as decisões e ações do MRSB como parte da disputa pela hegemonia de distintos projetos políticos para a saúde e para a sociedade brasileira na atual conjuntura.

Metodologia

Trata-se de uma análise do processo político em saúde1010 Paim JS. Pósfacio - Análise política em saúde: um pensamento estratégico para a ação estratégica. In: Federico L. Análise política em saúde: a contribuição do pensamento estratégico. Salvador: EDUFBA; 2015. p. 279-286.,1111 Esperidião MA. Análise política em saúde: síntese das abordagens teórico-metodológicas. Saude Debate 2018; 42(Esp. 2):341-360., com foco na atuação de entidades do MRSB e nos embates entre elas e instituições governamentais no período compreendido entre janeiro de 2020, mês em que a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou emergência global pelo coronavírus, e junho de 2021, quando o Brasil registrou a marca de 500 mil óbitos por COVID-19.

A análise da ação política das entidades do MRSB foi realizada a partir de categorias sistematizadas por Gohn44 Gohn MG. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola; 2014. para o estudo de movimentos sociais, a saber: composição, que se refere à identificação do conjunto de entidades e sujeitos que o compõem; projeto sociopolítico, o conjunto de princípios e pautas que os aglutinam; e, por fim, organização e práticas, ou seja, a forma como se organiza e atua na atual conjuntura, por meio de práticas formais e informais frente a seus diversos opositores.

A produção de informações foi feita por meio de revisão bibliográfica de artigos, publicações e textos que analisam a evolução da pandemia e posicionamentos oficiais de Cebes e Abrasco no período definido. De forma complementar, foram utilizados trechos de entrevistas feitas com as presidentes das referidas entidades no período estudado, parte de uma pesquisa em andamento, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do ISC-UFBA sob protocolo nº 50945621.8.0000.5030121212 Santos JS. Movimento da Reforma Sanitária Brasileira na conjuntura 2013-2020: posicionamentos e formas de atuação [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2020..

A análise das informações contemplou a caracterização do processo de articulação das entidades da Reforma Sanitária Brasileira (RSB), do seu projeto político e das ações realizadas durante a pandemia. Nesse sentido, tratou-se de descrever o processo de organização da Frente Pela Vida (FPV) e caracterizar o projeto político para a saúde ao qual as propostas elaboradas pelas entidades do MRSB e da FPV estão vinculadas. Em seguida, foram analisadas as ações promovidas por essas entidades, buscando-se identificar o tipo de ação e a natureza do posicionamento político delas em face da atuação das instâncias governamentais, especialmente o governo federal (GF), além de indicar o caráter reativo, crítico e/ou propositivo dos documentos e o teor de rejeição ou apoio a decisões e ações desencadeadas nas diversas esferas de governo.

Resultados

Considerando as categorias de análise definidas anteriormente, os resultados relativos à atuação das entidades serão apresentados em três subitens: a) processo de organização da FPV a partir da mobilização do Cebes e da Abrasco no âmbito do Conselho Nacional de Saúde (CNS); b) projeto sociopolítico para a saúde, atualizado, ampliado e redefinido por Cebes, Abrasco e FPV, a partir de análise e elaboração de propostas de combate à pandemia; c) ações realizadas por Cebes, Abrasco e FPV no período 2020-2021, tendo em vista contribuir para o debate em torno do enfrentamento da pandemia de COVID-19.

Atuação do Cebes e da Abrasco e organização da Frente Pela Vida (FPV)

Desde o mês março de 2020, Cebes e Abrasco, juntamente com entidades científicas e outras organizações da sociedade civil, posicionaram-se criticamente à atuação do GF na pandemia e elaboraram propostas alternativas, visando subsidiar as decisões e ações dos governos subnacionais, bem como informar a população em geral acerca das melhores práticas a serem adotadas no cotidiano pandêmico. Esse processo de interlocução com diversos atores da sociedade civil, e também com instâncias governamentais, resultou na organização de uma grande “coalizão” de sujeitos políticos interessados no enfrentamento da crise sanitária, tendo como marco inicial a elaboração do “Pacto pela vida e pelo Brasil”, lançado em 7 de abril de 2020 pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns (Comissão Arns). Esse documento foi endossado por outras 100 entidades da sociedade civil, entre as quais o Cebes e a Abrasco, e já apontava a “necessidade de colaboração estreita entre sociedade civil e classe política (sic), entre agentes econômicos, pesquisadores e empreendedores na conjugação de esforços para uma resposta à COVID-19”1313 Associação brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Posicionamentos oficiais [Internet]. 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/categoria/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/
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Inspirado nessa experiência, o grupo constituído por representantes do Cebes, da Abrasco, Rede Unida e SBB, que faziam parte do CNS, ocupando, alternadamente, as vagas de titular e primeiro e segundo suplentes do segmento de Entidades Nacionais de Profissionais de Saúde/Comunidade Científica na Área da Saúde, iniciou uma articulação que culminou na criação da FPV. Essas quatro entidades haviam, desde 2018, conformado um colegiado com o objetivo de compartilhar discussões e posições face aos temas discutidos no CNS, mantendo reuniões periódicas, o que favoreceu o estreitamento das relações entre seus membros e o desenvolvimento de ações políticas conjuntas.

As quatro entidades da saúde coletiva anteriormente citadas (Abrasco, Cebes, Rede Unida, SBB) se uniram ao CNS e depois mobilizaram outras entidades nacionais (SBPC, CNBB, Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior - Andifes e Associação Brasileira de Imprensa - ABI) para uma reunião em que debateram estratégias de ação conjunta diante da pandemia. Nessa reunião, os respectivos presidentes decidiram, por consenso, que o movimento que se iniciava deveria ser denominado de “Frente pela Vida” e adotaria como princípios e diretrizes, o direito à vida, o estabelecimento de medidas de prevenção e controle da pandemia da COVID-19, a defesa do SUS, a solidariedade com os grupos mais vulneráveis, em especial a preservação do meio ambiente e da biodiversidade, e por fim a defesa da democracia e do respeito à Constituição Federal de 198899 Souto LRF, Travassos C. Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da Covid-19: construindo uma autoridade sanitária democrática. Saude Debate 2020; 44(126):587-589.,1414 Frente pela Vida (FPV). 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/
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,1515 Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Lançada a Frente pela Vida [Internet]. 2020. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/lancada-a-frente-pela-vida/
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O lançamento oficial da FPV ocorreu em uma conferência online realizada em 29 de maio de 2020, com a presença de lideranças das entidades fundadoras e representantes de diversas instituições convidadas, que destacaram a importância da iniciativa, convidando os setores organizados da sociedade a se juntarem à Frente, em defesa da democracia, da Constituição, dos direitos humanos, do Estado de direito e do SUS1313 Associação brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Posicionamentos oficiais [Internet]. 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/categoria/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/
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14 Frente pela Vida (FPV). 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/
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-1515 Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Lançada a Frente pela Vida [Internet]. 2020. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/lancada-a-frente-pela-vida/
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. Esse evento, transmitido peloCanal da TV Abrasco no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=AX7fg_WNiC4), foi compartilhado nas mídias das demais entidades, alcançando ampla visualização simultânea.

Após o lançamento, somaram-se ao movimento outras entidades científicas da saúde, como a Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABRES), a Associação Paulista de Saúde Pública (APSP), a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMMP), a Associação Brasileira de Enfermagem e várias outras. Em sequência, a FPV realizou, no dia 9 de junho de 2020, a primeira Marcha Virtual pela Vida, que contou com o apoio de mais de 500 entidades, além de movimentos sociais, artistas, ativistas e intelectuais1313 Associação brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Posicionamentos oficiais [Internet]. 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/categoria/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/
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,1414 Frente pela Vida (FPV). 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/
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, agregando assim novos membros, ao passo que, em 2021, a frente já contava com mais de 560 entidades científicas e organizações representativas de diversos segmentos da sociedade civil, como mulheres, população negra, LGBTQIA+, indígenas, trabalhadores urbanos e rurais, profissionais, estudantes, professores, usuários e instâncias do controle social do SUS, além de representações ligadas à diversas igrejas1414 Frente pela Vida (FPV). 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/
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Projeto sociopolítico do Cebes, da Abrasco e da FPV para a saúde

O projeto sociopolítico defendido por Cebes, Abrasco e FPV durante o período analisado (2020-2021) se referencia no “paradigma ideológico”44 Gohn MG. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola; 2014. da RSB1616 Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1723-1728., isto é, na defesa da democracia e do direito universal à saúde, materializada na proposta de construção do SUS, segundo os princípios e diretrizes que foram consagrados na Constituição Federal de 1988 (CF).

Na conjuntura pandêmica, esse paradigma inspirou a elaboração de propostas específicas com relação a problemas emergentes, a exemplo das “Diretrizes para o enfrentamento da pandemia nas periferias urbanas, favelas e junto aos grupos sociais vulneráveis”1717 Abap, Abong, Abramd, Abres, AGB, Anpur, Anparq, ARL, Atua Porto Alegre, BR Cidades, Cebes. O combate à pandemia Covid-19 nas periferias urbanas, favelas e junto aos grupos sociais vulneráveis: propostas imediatas e estratégias de ação na perspectiva do direito à cidadania e da justiça social [Internet]. 2020. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/04/Documento-pol%C3%ADtico-unificado-vFINAL-3.pdf
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, que contou com a adesão de 80 entidades dos mais diversos setores da sociedade civil, e o manifesto “Ocupar as escolas, proteger pessoas, valorizar a educação”1818 ABdC, Aben, Abrasco, Abrastt, Abres, Andifes, Anped, Cebes. Manifesto "Ocupar escolas, proteger pessoas, valorizar a educação" [Internet]. 2020. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2020/10/MANIFESTO-_OCUPAR-ESCOLAS-PROTEGER-PESSOAS-RECRIAR-A-EDUCACAO_2-1.pdf
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, assinado por 40 entidades da saúde e da educação, expressando posicionamento contrário à flexibilização das restrições sanitárias na rede escolar dos estados brasileiros em um momento crítico da pandemia, processo liderado pela Abrasco e pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED).

O documento que expressa mais amplamente o projeto sociopolítico da FPV é, no entanto, o “Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia de COVID-19”, lançado em julho de 20201919 Abrasco, Cebes, Rede Unida, Abres, Abrasme, Abrastt, Aben, SBV, SBB, CNS, SBMT, Sobrasp, RMMP, ABMMD, SBMFC. Plano Nacional de enfrentamento à pandemia da Covid-19 - Versão 3 [Internet]. 2020. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/uploads/documentos/PEP-COVID-19_v3_01_12_20.pdf
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. Segundo as presidentes da Abrasco e do Cebes, o processo de elaboração do plano contemplou a redação de uma versão preliminar por membros dos diversos grupos de trabalho da Abrasco, sob coordenação de um dos vice-presidentes da entidade, que posteriormente recebeu contribuições das demais entidades da FPV.

O plano apresenta inicialmente um panorama epidemiológico da evolução da pandemia de COVID-19 no Brasil, incorporando, em sua análise, a determinação social do processo saúde-doença, destacando, portanto, a desigualdade econômica e social das condições de vida da população brasileira e as iniquidades de gênero e raça/etnia como um agravante da crise sanitária, o que se traduz, no âmbito das propostas, no reconhecimento das necessidades prioritárias de populações vulnerabilizadas e na ênfase em medidas de proteção social e promoção da saúde para mitigar os efeitos da pandemia1919 Abrasco, Cebes, Rede Unida, Abres, Abrasme, Abrastt, Aben, SBV, SBB, CNS, SBMT, Sobrasp, RMMP, ABMMD, SBMFC. Plano Nacional de enfrentamento à pandemia da Covid-19 - Versão 3 [Internet]. 2020. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/uploads/documentos/PEP-COVID-19_v3_01_12_20.pdf
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A análise do conjunto das propostas contidas nesse documento evidencia que, de modo geral, estão alinhadas com o projeto sócio-político original da RSB2020 Paim JS. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador, Rio de Janeiro: EDUFBA/Fiocruz; 2008. e incorporam problemas e demandas que ganharam maior visibilidade em função da dinâmica dos movimentos sociais contemporâneos, a exemplo dos movimentos das mulheres, dos negros e do indígenas1919 Abrasco, Cebes, Rede Unida, Abres, Abrasme, Abrastt, Aben, SBV, SBB, CNS, SBMT, Sobrasp, RMMP, ABMMD, SBMFC. Plano Nacional de enfrentamento à pandemia da Covid-19 - Versão 3 [Internet]. 2020. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/uploads/documentos/PEP-COVID-19_v3_01_12_20.pdf
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, bem como incorpora o reconhecimento da problemática ambiental, no campo e nas cidades. Isso revela o interesse das lideranças do MRSB em “atualizar” o projeto original face às mudanças dos cenários econômico, político, social e ambiental no mundo e no Brasil, incorporando, de um lado, o avanço do conhecimento científico no campo da saúde coletiva, e de outro o reconhecimento da pluralidade de sujeitos políticos coletivos em movimento, com suas agendas, demandas e reivindicações.

Nessa perspectiva, o capítulo dedicado ao SUS incorpora o conjunto de análises acerca dos problemas crônicos e dos desafios agudos enfrentados pelo sistema na pandemia, a exemplo do subfinanciamento/desfinanciamento, da privatização da gestão e da precarização do trabalho em saúde, temas que têm sido objeto de vários estudos e pesquisas. Além disso, apresenta uma série de propostas que resgatam a defesa do SUS constitucional e aponta estratégias para a retomada da direcionalidade prevista em suas bases legais e para o fortalecimento de políticas e programas essenciais para o enfrentamento da pandemia e dos efeitos negativos sobre a saúde da população, potencializados por ela, enfatizando assim as ações de promoção e vigilância em saúde, a expansão e a melhoria da qualidade da atenção básica e a ampliação do complexo industrial da saúde1919 Abrasco, Cebes, Rede Unida, Abres, Abrasme, Abrastt, Aben, SBV, SBB, CNS, SBMT, Sobrasp, RMMP, ABMMD, SBMFC. Plano Nacional de enfrentamento à pandemia da Covid-19 - Versão 3 [Internet]. 2020. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/uploads/documentos/PEP-COVID-19_v3_01_12_20.pdf
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O “Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia de COVID-19” foi entregue ao Ministério da Saúde pelos presidentes das entidades de saúde coletiva e do CNS, sendo recebido pelos secretários da Atenção Primária à Saúde e Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, em reunião virtual realizada em julho de 2020, que contou ainda com a presença do presidente do CONASS. O referido documento foi entregue também aos parlamentares da Câmara dos deputados em audiência pública realizada no mês seguinte2121 Conselho Nacional de Saúde (CNS). Plano Nacional de Enfrentamento à Covid-19, construído pelas instituições que compõem a Frente pela Vida, foi entregue ao Ministério da Saúde e CONASS [Internet]. 2020. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/frente-pela-vida
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. O plano encontra-se disponível para consulta no site das entidades, de modo a subsidiar a continuidade e o aprofundamento do debate sobre a pandemia, ainda em curso, e as estratégias de ação do Estado e da sociedade em defesa da saúde e da vida.

Ações realizadas por CEBES, ABRASCO e FPV

A atuação de Cebes e Abrasco durante a pandemia se deu por meio de ações diversas, realizadas tanto de forma isolada quanto em conjunto com outras entidades, sobretudo depois da criação da FPV (um apanhado geral dessas iniciativas foi sistematizado no Quadro 1). Essa multiplicidade de ações pode ser subdividida, com relação ao caráter, em dois tipos, reativas e propositivas. O primeiro tipo foi predominante e contemplou principalmente a crítica à ação/omissão do Estado na condução da política de saúde diante da Covid-19, o segundo contemplou a proposição de ações para o adequado enfrentamento da pandemia1313 Associação brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Posicionamentos oficiais [Internet]. 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/categoria/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/
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,1414 Frente pela Vida (FPV). 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/
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,2222 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). Posicionamentos políticos [Internet]. 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: http://cebes.org.br/categoria-documento/posicionamentos-politicos-do-cebes/
http://cebes.org.br/categoria-documento/...
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Quadro 1
Ações realizadas por Cebes, Abrasco e FPV durante o período 2020-2021, distribuídas por tipo e temática.

A produção de documentos foi extensa e diversificada, constituindo-se, portanto, na ação mais frequente protagonizada pelas entidades (Quadro 1). Quanto ao primeiro tipo, as notas de repúdio, identificou-se seu direcionamento, na maioria das vezes, às ações e declarações do presidente da República, cuja postura diante da pandemia foi caracterizada como “crime de responsabilidade e genocídio” pelas entidades, sendo inclusive considerado motivo suficiente para seu impeachment, classificado como “tarefa imediata” para o enfrentamento da crise atual1313 Associação brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Posicionamentos oficiais [Internet]. 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/categoria/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/
https://www.abrasco.org.br/site/categori...
. Por meio de cartas, as entidades do MRSB apelaram às demais autoridades sanitárias pelo adequado enfrentamento da pandemia, e ao povo brasileiro para a adesão às medidas sanitárias e à defesa do SUS.

A elaboração de análises, documentos e propostas sobre temas relacionados às necessidades de saúde de grupos específicos, a exemplo das populações indígenas, em situação de rua e LGBTQIA+, são exemplos de ações propositivas, contidas também no “Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia de Covid-19” da FPV1313 Associação brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Posicionamentos oficiais [Internet]. 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/categoria/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/
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,2121 Conselho Nacional de Saúde (CNS). Plano Nacional de Enfrentamento à Covid-19, construído pelas instituições que compõem a Frente pela Vida, foi entregue ao Ministério da Saúde e CONASS [Internet]. 2020. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/frente-pela-vida
http://conselho.saude.gov.br/frente-pela...
. Documentos curtos incluíram manifestações em solidariedade às milhares de vidas perdidas frente à omissão do governo federal, e ações conjuntas com o CONASS e o CONASEMS, a exemplo da crítica à matriz de risco para flexibilização do distanciamento social no país, produzida pelo MS, e do apoio da FPV ao “Pacto Nacional pela Vida e pela Saúde”, firmado por 21 dos 27 governadores do país em resposta à omissão do GF face à pandemia1313 Associação brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Posicionamentos oficiais [Internet]. 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/categoria/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/
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,1414 Frente pela Vida (FPV). 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/
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As entidades do MRSB também se posicionaram contra as ações protagonizadas pelo GF durante o período pandêmico que contribuíram para o desmonte das áreas de saúde, educação e ciência e tecnologia, convergindo para o agravamento da pandemia no país2323 Aragão ES, Funcia FR. Austeridade fiscal e seus efeitos no Complexo Econômico-Industrial da Saúde no contexto da pandemia da COVID-19. Cad Saude Publica 2021; 37(9):00100521.. Também se posicionaram contra a instituição da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS), contra o desmonte da Política de Saúde Mental, as alterações na Política Nacional sobre Drogas e diversas outras mudanças político-legais na contramão da Reforma Psiquiátrica Brasileira, além de denunciarem retrocessos no campo dos direitos sexuais e reprodutivos.

Muitos dos temas anteriormente citados foram também apontados por Cebes, Abrasco e FPV nos atos virtuais promovidos por outras entidades, nas marchas virtuais pela Vida realizadas pela FPV, nas campanhas virtuais e manifestações de rua, retomadas, com restrições, em maio de 20211313 Associação brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Posicionamentos oficiais [Internet]. 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/categoria/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/
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,1414 Frente pela Vida (FPV). 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/
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,2222 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). Posicionamentos políticos [Internet]. 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: http://cebes.org.br/categoria-documento/posicionamentos-politicos-do-cebes/
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As entidades promoveram ainda inúmeras edições de webinários que proporcionaram diálogos e debates sobre diversos aspectos da pandemia com diferentes públicos, envolvendo convidados da comunidade científica, gestores e ex-ministros da Saúde. Esses eventos veicularam informações confiáveis e cientificamente embasadas, na tentativa de fazer frente “àsfake newse às campanhas de desinformação estimuladas e disseminadas por atores políticos no contexto desta pandemia”1313 Associação brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Posicionamentos oficiais [Internet]. 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/categoria/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/
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,2121 Conselho Nacional de Saúde (CNS). Plano Nacional de Enfrentamento à Covid-19, construído pelas instituições que compõem a Frente pela Vida, foi entregue ao Ministério da Saúde e CONASS [Internet]. 2020. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/frente-pela-vida
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Por fim, as entidades acionaram os demais poderes da República, apelando em favor da adoção de medidas efetivas para o controle da COVID-19 no país, e destacaram o importante papel da CPI na apuração da responsabilidade pelos casos e mortes evitáveis durante a pandemia, ocasião em que o Cebes compôs, com diversas outras entidades, a autoria do pedido de impeachment do presidente da República protocolado no Senado1313 Associação brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Posicionamentos oficiais [Internet]. 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/categoria/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/
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,1414 Frente pela Vida (FPV). 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/
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,2222 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). Posicionamentos políticos [Internet]. 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: http://cebes.org.br/categoria-documento/posicionamentos-politicos-do-cebes/
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Diante do exposto, destaca-se a incorporação das novas tecnologias e ferramentas de informação e comunicação à organização e à atuação política das entidades do MRSB durante a pandemia de COVID-19, com intensificação do uso de redes sociais, mídias digitais (sites, blogs, podcasts, canais de vídeos) e aplicativos de mensagens para a difusão de seus documentos (textos, podcasts, vídeos, entre outros) e eventos. Assim, foram amplamente utilizadas as plataformas de reuniões virtuais e de streaming em eventos públicos transmitidos em tempo real pela internet para espectadores em qualquer parte do mundo, cujas gravações ficavam disponibilizadas para acesso posterior. Destacam-se também novas formas de mobilização virtual por meio de aplicativos específicos (como o Manif.app), os “tuitaços” (postagens coordenadas em datas e horários específicos com a utilização de determinadas hashtags, a fim de inserir um tema no topo da lista de assuntos mais comentados), campanhas nas redes sociais e mídias diversas (estímulo às postagens de textos, áudios ou vídeos).

Discussão e conclusões

O processo da RSB ao longo dos últimos 40 anos2424 Virgens JHA, Teixeira CF. Reforma Sanitária Brasileira: uma revisão sobre os sujeitos políticos e as estratégias de ação. Saude Debate 2022. 46(133):534-550. tem alternado períodos de maior ou menor mobilização social, observando-se, entretanto, a permanência do protagonismo político do Cebes, sujeito coletivo que tem atualizado periodicamente suas teses2525 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). Saúde é democracia, democracia é saúde [tese]. 2022. [acessado 2022 jun 21]. Disponível em: https://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2022/01/TESE-CEBES-2021-2022-SAUDE-E-DEMOCRACIA-DEMOCRACIA-E-SAUDE.pdf
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em função das alterações da conjuntura. A Abrasco, por sua vez, tem investido principalmente na expansão e consolidação do campo da saúde coletiva2626 Vieira-da-Silva LM, Esperidião MA, Silveira AS, Paim JS. A construção do campo da Saúde Coletiva e as políticas de saúde - Contribuições da Revista Ciência & Saúde Coletiva. Cien Saude Colet 2020; 25(12):669-4680., sobretudo em sua dimensão científica, nas diversas áreas e subáreas de conhecimento, sem negligenciar, entretanto, a tomada de posição acerca dos rumos da política de saúde, por meio da participação na construção das agendas do MRSB1313 Associação brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Posicionamentos oficiais [Internet]. 2021. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/categoria/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/
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,2727 Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Associação Brasileira Rede Unida (Rede Unida), Associação Paulista de Saúde Pública (APSP), Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Conselho Federal de Medicina (CFM), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Agenda estratégica para a saúde no Brasil - 5 diretrizes de uma política de saúde 5 estrelas para pobres ou ricos [Internet]. 2011. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2017/02/agendasus.pdf
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Na atual conjuntura, marcada por intenso retrocesso nas políticas públicas e de saúde em particular2828 Teixeira CFS, Paim JS. A crise mundial de 2008 e o golpe do capital na política de saúde no Brasil. Saude Debate 2018; 42(Esp. 2):11-21., a emergência da pandemia de COVID-19 se configurou, simultaneamente, como um problema e uma oportunidade, ou melhor, uma necessidade de reativação do debate político em torno do papel do Estado e da responsabilidade social no campo da saúde, bem como exigiu adaptação e criatividade das organizações da sociedade civil. Nessa perspectiva, Cebes e Abrasco experimentaram novas formas de articulação política e intensificaram o uso de mecanismos de informação e comunicação virtual, que garantiram a continuidade e até a amplificação da militância frente às limitações impostas pelas medidas de distanciamento social. Assim, conseguiram construir uma ampla articulação com entidades das mais diversas áreas - saúde, educação, ciência e tecnologia, meio ambiente, comunicação, direito -, constituindo um sujeito político coletivo novo, a Frente pela Vida.

Desse modo, a oportunidade/necessidade histórica criada pela pandemia demarca um novo ponto de inflexão no processo da RSB, à medida em que, para responder à complexidade do fenômeno pandêmico2929 Almeida-Filho N. Modelagem da pandemia Covid-19 como objeto complexo (notas samajianas). Estud Av 2020; 34(99):97-118. e das ameaças à democracia e aos direitos sociais já conquistados, o MRSB se viu desafiado a se reinventar, mobilizando militantes históricos, vinculados a Cebes, Abrasco e demais entidades da FPV, e também antigos e novos sujeitos vinculados a associações profissionais de saúde, intelectuais do campo da saúde coletiva, lideranças de movimentos identitários, enfim, uma pluralidade de militantes que têm em comum o compromisso com a luta pela democracia e a defesa da vida.

Dessa forma, o projeto sociopolítico do MRSB vem sendo atualizado e ampliado, com a incorporação de novos temas e propostas, como o atendimento das necessidades de saúde de grupos populacionais específicos e minorias, a defesa e proteção do meio ambiente, a análise crítica da financeirização da saúde e, principalmente, a necessidade de se repensar as estratégias de fortalecimento do SUS e de reestruturação do Estado, bem como a mobilização da sociedade brasileira para o enfrentamento dos efeitos trágicos das crises econômica e social potencializadas pela pandemia.

A FPV protagonizou a defesa do SUS 100% público, universal, integral e de qualidade, e seguindo o compromisso histórico das entidades da reforma sanitária, mobilizou representantes da vertente crítica da saúde coletiva, produzindo, ainda, uma compreensão dos determinantes da pandemia e das estratégias para seu enfrentamento, que evidencia os limites da atenção biomédica, clínica e hospitalocêntrica, e mesmo da atuação da saúde pública institucionalizada, apontando a necessidade de se adotar uma perspectiva ampliada de vigilância em saúde3030 Teixeira C. Desafios da Vigilância em Saúde no momento atual. Epidemiol Serv Saude 2022; 31(2):e2022357., articulada a um conjunto de políticas intersetoriais que contribuam para a melhoria das condições de vida da população.

Além disso, tensionou as relações entre organizações da sociedade civil e o GF, somando-se a um processo de crescimento da insatisfação popular com a atuação do governo vigente no início da pandemia (2020-2022), contribuindo para evidenciar sua incompetência, negacionismo e autoritarismo, em grande parte responsável pela extensão da crise relacionada à ausência de medidas de promoção da saúde, proteção específica, vigilância e controle3131 Duarte AM, César MRA. Negação da política e negacionismo como política: pandemia e democracia. Educ Realidade 2020; 45(4):e109146..

Diante dos desafios à garantia do direito à saúde no Brasil, evidenciados no retrocesso pelo qual passa a RSB22 Paim JS. A covid-19, a atualidade da reforma sanitária e as possibilidades do SUS. In: Santos A, Lopes LT, organizadores. Reflexões e futuro. Brasília: CONASS; 2021. p. 310-324., e ainda no fortalecimento do setor privado e do capital na área da saúde55 Souza LEPF, Paim JS, Teixeira CF, Bahia L, Guimarães R, Almeida-Filho N, Machado CV, Campos GW, Azevedo-e-Silva G. Os desafios atuais da luta pelo direito universal à saúde no Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(8):2783-2792., além da fragilização do SUS ao longo das mais de três décadas de sua implantação22 Paim JS. A covid-19, a atualidade da reforma sanitária e as possibilidades do SUS. In: Santos A, Lopes LT, organizadores. Reflexões e futuro. Brasília: CONASS; 2021. p. 310-324.,3232 Cohn A, Gleriano JS. A urgência da reinvenção da Reforma Sanitária Brasileira em defesa do Sistema Único de Saúde. R Dir Sanit 2021; 21:e0012., impõe-se, objetivamente, reconhecer que o projeto sociopolítico do MRSB permanece subalterno ao projeto mercantilista, liberal-conservador, que inclusive se fortaleceu na conjuntura pandêmica. Porém, a análise da atuação das entidades do movimento nesse período indica a possibilidade de se avançar na luta contra o projeto ultra neoliberal em execução, sinalizando um caminho possível de revitalização da “via sociocomunitária”22 Paim JS. A covid-19, a atualidade da reforma sanitária e as possibilidades do SUS. In: Santos A, Lopes LT, organizadores. Reflexões e futuro. Brasília: CONASS; 2021. p. 310-324., pela mobilização de lideranças partidárias, institucionais, sindicais e de movimentos sociais diversos (mulheres, LGBTQIA+, negras/os, indígenas, sem-terra, trabalhadoras/res etc.), parlamentares vinculados a partidos progressistas e lideranças do poder Judiciário.

Nesse sentido, cabe reconhecer que a radicalização das contrarreformas e as ameaças à democracia na conjuntura mais recente têm motivado o crescimento da mobilização, articulação e organização dos setores democráticos e populares, com um alargamento de demandas e lutas por outras gerações de direitos, entre as quais permanece a luta pelo direito à saúde, a resistência em defesa do SUS e a participação no debate sobre a reconstrução do Estado e a consolidação da democracia.

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  • Financiamento

    Apoio financeiro para a tradução do manuscrito para a língua inglesa: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Maio 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2022
  • Aceito
    12 Set 2022
  • Publicado
    14 Set 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br