Alfabetização, letramento ou literacia em saúde? Traduzindo e aplicando o conceito de health literacy no Brasil

Health literacy? Adapting and applying the concept of health literacy in Brazil

Frederico Peres Sobre o autor

Resumo

O presente artigo buscou identificar como se deu o processo de tradução e aplicação do conceito de health literacy no país, através de uma análise de conteúdo da produção acadêmica nacional, estruturada em quatro etapas: organização da análise; codificação dos resultados obtidos a partir do uso de três traduções (alfabetização, letramento e literacia em saúde); categorização dos resultados de acordo com cada conceito e sua abrangência; e inferências a partir da aplicação de cada conceito em diferentes situações-problema. Foram identificados 1.441 trabalhos. De 2005 a 2016, preponderou o registro do conceito de alfabetização em saúde, fortemente vinculado à dimensão funcional da health literacy. A partir de 2017, o conceito de letramento em saúde torna-se mais evidente, apesar de, na prática, em pouco se distanciar da interpretação de informações para o autocuidado e a prevenção de doenças. Mais recentemente, observa-se o registro crescente do conceito de literacia em saúde, amplamente utilizado em Portugal e que se apresenta como uma tradução mais adequada e abrangente, capaz de expressar o caráter multidimensional dos modelos avançados de health literacy, que objetivam qualificar os processos individuais e coletivos de tomada de decisão informada sobre saúde e qualidade de vida.

Palavras-chave:
Letramento em saúde; Educação em saúde; Promoção da saúde; Alfabetização

Abstract

This article sought to describe the process of adaptation and application of the concept of health literacy in Brazil, through content analysis of the Brazilian academic literature, structured in four stages: organizational analysis; coding of the results from the use of three forms of health literacy expressions in Portuguese (alfabetização, letramento and literacia em saúde); categorization of results according to the concept and scope; and inferences from the application of each translated concept in different situations. A total of 1,441 documents were identified. From 2005 to 2016, the use of alfabetização em saúde prevailed, strongly associated with the functional dimension of health literacy. As of 2017, the concept of letramento em saúde became more evident, even though, in practical terms, there is little difference from the previous interpretation, focused on information for self-care and disease prevention. More recently, there is a growing record of the literacia em saúde concept, a translation widely used in Portugal, which is presented as a more adequate and comprehensive concept, capable of expressing the multidimensional character of the advanced health literacy models, which seek to express the individual and collective decision-making processes on health and quality of life.

Key words:
Health literacy; Health education; Health promotion; Literacy

Introdução

O termo health literacy, em língua inglesa, vem sendo amplamente utilizado, desde a década de 1970, para definir um conjunto amplo e diverso de habilidades e competências que os indivíduos utilizam para buscar, compreender, avaliar e dar sentido a informações sobre saúde, com o objetivo de cuidar de sua própria saúde ou de terceiros11 Zarcadoolas C, Pleasant A, Greer DS. Understanding health literacy: an expanded model. Health Prom Int 2005; 20(2):195-203.,22 Peres F, Rodrigues KM, Silva TS. Literacia em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021.. Desde o final dos anos 1990 e, com mais força, a partir dos anos 2000, estudos sobre health literacy vêm sendo desenvolvidos ao redor do planeta, visando compreender como tais habilidades e competências podem interferir nos resultados individuais e coletivos de saúde22 Peres F, Rodrigues KM, Silva TS. Literacia em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021.,33 Nutbeam D. Health literacy as a public health goal: a challenge for contemporary health education and communication strategies into the 21st century. Health Prom Int 2000; 15(3):259-267..

A evolução do campo de estudos e práticas sobre a health literacy, a partir dos anos 1990, pode ser delimitada em três momentos distintos. No primeiro momento, encontram-se os estudos pioneiros sobre health literacy, nos Estados Unidos, Austrália e em alguns países da Europa, focados nas habilidades e competências que os indivíduos utilizavam para a leitura e compreensão de informações sobre saúde22 Peres F, Rodrigues KM, Silva TS. Literacia em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021.,44 Silva TL. Contribuições da Literacia em Saúde (Health Literacy) para o aprimoramento das ações de educação em saúde na Atenção Básica [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2017.,55 Okan O. From Saranac Lake to Shanghai: A brief history of health literacy. In: Okan O, Bauer U, Levin-Zamir D, Pinheiro P, Sørensen K, organizers. International handbook of health literacy. Bristol: Policy Press; 2019. p. 21-38., em particular no que diz respeito à sua dimensão funcional (saber ler, escrever, operar números etc.). No segundo momento, situam-se os estudos que buscavam compreender como estas habilidades e competências interferiam nos resultados de saúde, individuais e coletivos e, com este propósito, instrumentos de medida ou avaliação dos níveis de health literacy começam a ser desenvolvidos, aplicados e validados em diferentes segmentos populacionais, visando contribuir para a melhoria dos serviços, programas e políticas de saúde22 Peres F, Rodrigues KM, Silva TS. Literacia em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021.,55 Okan O. From Saranac Lake to Shanghai: A brief history of health literacy. In: Okan O, Bauer U, Levin-Zamir D, Pinheiro P, Sørensen K, organizers. International handbook of health literacy. Bristol: Policy Press; 2019. p. 21-38.. Por fim, surgem, nos Estados Unidos e na Europa, os estudos voltados à compreensão da health literacy em uma perspectiva mais ampla e avançada, para além da dimensão funcional, como uma elemento-chave para a promoção da saúde11 Zarcadoolas C, Pleasant A, Greer DS. Understanding health literacy: an expanded model. Health Prom Int 2005; 20(2):195-203.

2 Peres F, Rodrigues KM, Silva TS. Literacia em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021.
-33 Nutbeam D. Health literacy as a public health goal: a challenge for contemporary health education and communication strategies into the 21st century. Health Prom Int 2000; 15(3):259-267.,55 Okan O. From Saranac Lake to Shanghai: A brief history of health literacy. In: Okan O, Bauer U, Levin-Zamir D, Pinheiro P, Sørensen K, organizers. International handbook of health literacy. Bristol: Policy Press; 2019. p. 21-38.,66 Sørensen K, Van den Broucke S, Fullam J, Doyle G, Pelikan J, Slonska Z, Brand H. Health literacy and public health: a systematic review and integration of definitions and models. BMC Public Health 2012; 12(1):1-13..

No Brasil, os primeiros estudos sobre a temática datam do início da década de 2000, nos quais o conceito em língua inglesa (health literacy) era registrado e vinha acompanhado, mais frequentemente, por dois termos, como tradução: alfabetização em saúde e letramento em saúde. Na maioria dos estudos, optava-se por utilizar um desses dois termos e, em alguns estudos, registrava-se ambos, como sinônimos22 Peres F, Rodrigues KM, Silva TS. Literacia em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021.,44 Silva TL. Contribuições da Literacia em Saúde (Health Literacy) para o aprimoramento das ações de educação em saúde na Atenção Básica [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2017..

Os estudos pioneiros sobre alfabetização ou letramento em saúde, no país, tinham por objeto a aplicação, adaptação e validação de instrumentos de medida da literacia fundamental (ou funcional), como o TOFHLA, o s-TOFHLA, bem como o uso de testes de legibilidade de materiais escritos, além de incluírem, pontualmente, revisões da literatura internacional44 Silva TL. Contribuições da Literacia em Saúde (Health Literacy) para o aprimoramento das ações de educação em saúde na Atenção Básica [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2017..

A partir da segunda metade da década de 2010, observa-se, na literatura acadêmica nacional, a incorporação do conceito de literacia em saúde, o qual vinha sendo registrado, desde meados da década de 2000, na produção acadêmica de Portugal sobre a temática. De forma crescente desde então, e com forte influência da contribuição portuguesa, o conceito de literacia em saúde vem sendo utilizado, no Brasil e, juntamente com os conceitos de alfabetização e letramento em saúde, representam as três principais traduções de health literacy adotadas na produção acadêmica nacional.

O presente artigo busca analisar o registro e uso das principais traduções de health literacy na produção acadêmica brasileira.

Metodologia

Trata-se de um estudo exploratório, descritivo, de base qualitativa, da produção acadêmica nacional sobre health literacy, estruturado a partir do modelo de análise de conteúdo desenvolvido por Bardin77 Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2008., em quatro etapas subsequentes: organização da análise; codificação; categorização; e inferências.

Para a organização da análise, definiu-se o desenho metodológico do estudo, incluindo o planejamento e as estratégias para o levantamento de dados, exploração do material coletado, o tratamento do material, as inferências e a interpretação dos resultados. Foi escolhida a ferramenta de busca de produção acadêmica Google Scholar, por se tratar de temática ainda incipiente, no país, demandando uma análise mais abrangente que, além da produção registrada em periódicos indexados, identifique registros de outros formatos de trabalhos acadêmicos, tais como monografias, teses, dissertações, apresentações em eventos acadêmicos etc.

Para fins de definição do escopo, considera-se, no presente estudo, health literacy como denominação de um amplo conjunto de competências e habilidades que os indivíduos usam quando buscam, compreendem, avaliam e dão sentido a informações sobre saúde, visando ao seu cuidado ou de terceiros22 Peres F, Rodrigues KM, Silva TS. Literacia em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021..

Utilizou-se, inicialmente, o descritor original (health litreacy), em língua inglesa. Posteriormente, foram utilizados os três descritores, em língua portuguesa, com maior número de recorrências nos resultados: alfabetização em saúde; letramento em saúde; e literacia em saúde.

Como critérios de inclusão, adotou-se: ser publicação de grupo ou autor brasileiro; ser publicação sobre estudo realizado no Brasil ou a partir da realidade brasileira (para contribuições teóricas); e conter, pelo menos, o resumo disponível, com acesso irrestrito. Não se utilizou nenhum limitador temporal, buscando-se identificar o total de ocorrências encontradas pela ferramenta de busca a partir do uso dos descritores abaixo detalhados. As buscas foram realizadas entre 1º e 5 de setembro de 2022.

Utilizando-se o descritor original (health literacy), a ferramenta de busca retornou 2.160 resultados. Após aplicação dos critérios de inclusão, foram identificados 1.513 trabalhos. Para o descritor “alfabetização em saúde”, foram identificados 1.040 resultados. Aplicando-se os critérios de inclusão e excluindo-se as repetições, foram restaram 513 trabalhos. Já o descritor “letramento em saúde” produziu 1.120 resultados. Após a aplicação dos critérios de inclusão (excluindo, também, os trabalhos já selecionados com o uso do primeiro descritor), foram identificados 708 trabalhos. Por sua vez, o descritor “literacia em saúde” produziu 4.400 resultados (mais de 4.000 destes realizados em Portugal) que, após aplicação dos critérios de inclusão, resultaram em 218 trabalhos. Por fim, 72 trabalhos que utilizaram apenas o descritor original (health literacy) em língua inglesa foram excluídos da amostra, em razão do objeto do estudo demandar a análise das traduções do conceito para o Português brasileiro.

Os resultados foram salvos na biblioteca do Google Scholar, organizados a partir de cada um dos três descritores e, posteriormente, exportados para o Mendeley Reference Manager, para análise de redundâncias e complementação de informações faltantes.

Posteriormente, foi realizada uma busca nas bases de dados acadêmicas PubMed e Scopus, como forma de verificar a representatividade dos resultados obtidos através da ferramenta Google Scholar. Para tanto, comparou-se, apenas, os resultados de artigos publicados em periódicos obtidos com o uso do Google Scholar (n=864), do PubMed (n=386) e da Scopus (n=321). Identificou-se que 98,7% do total dos artigos obtidos no PubMed (n=381) e 95,9% dos artigos obtidos na Scopus (n=308) haviam sido, também, identificados pela ferramenta Google Scholar, conferindo representatividade aos dados levantados e analisados ao longo do estudo, e indicando adequação, em termos de abrangência, da ferramenta de busca Google Scholar.

Os 1.441 registros completos foram, então, exportados para o Excel, onde foram codificados segundo: tipo de publicação (artigo, tese, monografia, apresentação de trabalho em evento etc.); ano; título da publicação; local de publicação. Também se utilizou este programa para a categorização do material e a elaboração de gráficos e tabelas para análise de recorrências.

Por fim, os 10 trabalhos com melhor classificação, dentre os resultados produzidos por cada um dos três descritores utilizados, segundo o grau de relevância atribuído pelo Google Scholar, foram analisados na íntegra (total de 30 trabalhos completos) para compreensão dos significados de cada categoria empírica na explicação da situação-problema (inferências).

Resultados

A análise da produção acadêmica nacional sobre health literacy identificou 1.441 trabalhos que abordavam os conceitos de alfabetização em saúde, letramento em saúde e/ou literacia em saúde. Cabe menção ao fato que, além desses três conceitos traduzidos, cinco artigos (0,5% do total de artigos encontrados) utilizaram o termo em inglês acompanhado da tradução “alfabetismo em saúde” e, pelos critérios anteriormente descritos, não foram incluídos na análise.

Os registros mais antigos identificados datam do ano de 200588 Bizzo MLG, Leder L. Educação nutricional nos parâmetros curriculares nacionais para o ensino fundamental. Rev Nutr 2005; 18:661-667.,99 Moreira MF, Silva MIT. Legibilidade do material educativo escrito para pacientes diabéticos. Online Braz J Nurs 2005; 4(2):3-12., sendo dois trabalhos sobre a compreensão de informações sobre alimentação e nutrição, um voltado para o ambiente escolar88 Bizzo MLG, Leder L. Educação nutricional nos parâmetros curriculares nacionais para o ensino fundamental. Rev Nutr 2005; 18:661-667., outro para pacientes com diabetes99 Moreira MF, Silva MIT. Legibilidade do material educativo escrito para pacientes diabéticos. Online Braz J Nurs 2005; 4(2):3-12.. Ambos traziam o conceito de alfabetização em saúde e focavam na dimensão funcional, em particular as habilidades de leitura, de crianças e adultos portadores de diabetes, respectivamente.

A Figura 1 apresenta uma evolução da produção acadêmica nacional sobre a temática, entre o ano da primeira ocorrência (2005) e 2021. Exclusivamente para fins da análise temporal, excluiu-se o ano de 2022, por apresentar registros incompletos (até o mês de agosto apenas).

Figura 1
Evolução da produção acadêmica nacional sobre health literacy entre 2005 e 2021.

A maioria dos trabalhos identificados eram artigos publicados em periódicos (n=857; 59%), seguidos de dissertações de mestrado (n=197; 14%) e trabalhos apresentados em eventos acadêmicos (n=114; 8%) (Figura 2).

Figura 2
Distribuição da produção acadêmica nacional sobre health literacy por tipo de publicação (em nº e %) entre 2005 e 2022.

Nos artigos publicados em periódicos, predomina o registro do conceito de letramento em saúde (n=433 ou 50% dos trabalhos publicados) em relação aos demais, em parte pela exigência do uso de descritores registrados no tesauro “Descritores em Ciências da Saúde - DeCS”, onde figura apenas o conceito de letramento em saúde. A mesma observação se aplica a livros e capítulos de livros, onde o conceito de letramento em saúde é o mais utilizado (n=36 ou 53% dos trabalhos publicados).

Com relação aos trabalhos relacionados à formação (trabalhos de conclusão de curso de graduação ou pós-graduação, dissertações de mestrado e teses de doutorado), observa-se um predomínio de publicações vinculadas a instituições públicas de ensino e pesquisa. Dentre as 12 instituições que mais produziram trabalhos sobre health literacy no Brasil, 10 são públicas.

Nos trabalhos de conclusão de cursos de graduação, nas dissertações de mestrado e nas teses de doutorado predomina o uso do conceito de alfabetização em saúde, enquanto nos trabalhos de conclusão de cursos de pós-graduação lato sensu (especializações e residências) predomina o uso do conceito de letramento em saúde. Uma possível explicação para o fato pode estar relacionada às distintas áreas temáticas dos cursos onde os trabalhos foram desenvolvidos, já que a maioria das teses, dissertações e trabalhos de graduação foram defendidas em programas das ciências biomédicas (odontologia, enfermagem, medicina etc.), enquanto os trabalhos de conclusão de cursos lato sensu estavam mais vinculados à área da saúde coletiva, onde o conceito de letramento em saúde é predominante. Em todas as modalidades de trabalhos vinculados a cursos, o conceito de literacia em saúde é o menos trabalhado, em geral, apesar de um aumento em seu registro, na produção acadêmica nacional, a partir de 2017.

Dos 114 trabalhos publicados em eventos acadêmicos, 106 foram em eventos realizados/organizados no Brasil (presencial ou virtualmente). Os dois primeiros trabalhos sobre a temática publicados em eventos acadêmicos datam de 20091010 Valer DB. Alfabetização em saúde de pessoas idosas. Salão de Iniciação Científica; Livro de resumos. Porto Alegre: UFRGS; 2009.,1111 Griebeler IH, Maragno CAD. Letramento em Saúde. Salão de Iniciação Científica; Livro de resumos. Porto Alegre: UFRGS; 2009.. Já o ano de 2019 foi aquele onde o maior número de trabalhos foi apresentado (n=27, ou 23% dos trabalhos em eventos). Até o ano de 2016, observa-se nesses trabalhos o maior registro do conceito de alfabetização em saúde em relação ao de letramento, e apenas um registro do conceito de literacia em saúde. A partir de 2017, observa-se a prevalência do conceito de letramento em saúde em relação ao de alfabetização, com aumento do registro do conceito de literacia em saúde nesses trabalhos.

O Conceito de Alfabetização em Saúde

O conceito de alfabetização em saúde foi a tradução de health literacy com maior registro na produção acadêmica nacional entre os anos de 2005 e 2016. Neste período, esteve fortemente associado a estudos sobre a dimensão funcional da health literacy (habilidades de leitura, escrita e numeracia), em particular no que diz respeito à capacidade de grupos populacionais específicos compreenderem e utilizarem informações sobre saúde para o autocuidado.

Na produção acadêmica nacional, o conceito de alfabetização em saúde está registrado de maneira muito próxima ao conceito de alfabetização funcional e, sobretudo, à influência dos anos de escolaridade sobre a capacidade dos indivíduos em compreenderem informações sobre saúde e de tomarem decisões baseadas nessa compreensão. Entre os temas mais explorados nos estudos sobre a alfabetização em saúde, está a compreensão de orientações médicas em ambientes ambulatoriais e hospitalares, a legibilidade de materiais (bulas e outros materiais informativos e/ou educativos), a capacidade de adoção de práticas alimentares saudáveis e o cuidado de condições crônicas de saúde.

O conceito de alfabetização em saúde, como tradução do conceito de health literacy, foi registrado de forma diversa na literatura acadêmica nacional, com acepções que abrangiam diferentes domínios relacionados às habilidades e competências utilizadas para buscar, compreender, avaliar e dar sentido a informações sobre saúde. Entre as principais acepções de alfabetização em saúde, registradas nesses estudos, estão: capacidade dos indivíduos em acessar, compreender e utilizar informações, como forma de promoção e manutenção da saúde1212 Santana JF, Toledo Neto JL, Bravo DS, Costa AB. Desafios e potencialidades da alfabetização em saúde no contexto do empoderamento: revisão sistemática da literatura. Interscientia 2017; 5(1):211-224.; habilidades de busca da informação, compreensão, avaliação, uso, compartilhamento e tomada de decisão sobre os processos e procedimentos de atenção à saúde1313 Queiroz JPC, Machado ALG, Vieira NFC. Alfabetização em saúde de cuidadores informais do idoso com doença de alzheimer. Rev Bras Enf 2020; 73(Supl. 3):e20190608.; não apenas a capacidade de recepção e interpretação de mensagens, mas também a capacidade de ação, a partir da compreensão de uma mensagem1414 Nogueira A, Damásio MJ. Alfabetização em saúde. Dispositiva 2022; 11(19):124-144.; habilidades dos indivíduos para obter acesso, compreender e usar informações para promover uma boa saúde1515 Polonski TC, Zanin L, Oliveira AMG, Dutra ER, Silva Filho DA, Flório FM. Influência da inclusão digital na alfabetização em saúde de idosos. ETD Ed Tem Dig 2022; 24(3):584-597.; habilidades de inteligência e comunicação que os pacientes devem ter ao tomarem decisões informadas sobre o que é melhor para sua saúde1616 Martins AMEBL, Almeida ER, Oliveira CC, Oliveira RCN, Pelino JEP, Santos ASF, Costa AS, Souza GM, Batista BP, Ferreira EF. Alfabetização em saúde bucal: uma revisão da literatura. Rev Assoc Paul Cir Dent 2015; 69(4):328-334.; grau em que as pessoas estão aptas para buscar, compreender e partilhar informações em saúde, para manter e promover a saúde1717 Paskulin LMG, Aires M, Valer DB, de Morais EP, Freitas IBA. Adaptação de um instrumento que avalia alfabetização em saúde das pessoas idosas. Acta Paul Enferm 2011; 24(2):271-277.,1818 Serbim AK, Santos NOD, Paskulin LMG. Efeitos da intervenção Alfa-Saúde na alfabetização em saúde do idoso na atenção primária à saúde. Rev Bras Enferm 2022; 75(Supl. 4):e20200978.; e habilidades dos indivíduos para compreenderem aspectos do autocuidado e dos cuidados no sistema de saúde para, assim, tomarem decisões adequadas1919 Paskulin LMG, Bierhals CCBK, Valer DB, Marinês Aires M, Guimarães NV, Brocker AR, Lanziotti LH, Morais EP. Alfabetização em saúde de pessoas idosas na atenção básica. Acta Paul Enferm 2012; 25(Supl. 1):129-135..

A análise do conteúdo dos trabalhos baseados no conceito de alfabetização em saúde e que obtiveram grau de relevância mais alto, atribuído pelo Google Scholar, evidenciou uma nítida vinculação, na produção acadêmica nacional, do conceito de alfabetização em saúde à dimensão funcional, ou seja, à habilidade de interpretar textos e mensagens-chave sobre saúde, como estratégia de enfrentamento de doenças/condições de saúde. Também se observou uma forte associação do conceito com dois aspectos fundamentais da health literacy: a compreensão de informações sobre saúde; e a tomada de decisão informada.

Nesses estudos, eram destacadas as habilidades e competências dos indivíduos em compreenderem textos ou informações de profissionais de saúde, para que tais informações fizessem parte do processo de tomada de decisão, por parte do indivíduo, quanto ao cuidado de sua saúde ou de terceiros. O grau de alfabetização em saúde estava, nesses estudos, associado principalmente à capacidade de interpretação de textos e mensagens-chave sobre diferentes problemas de saúde. E a própria noção de saúde estava mais próxima a ausência ou ao controle adequado de doenças.

O Conceito de Letramento em Saúde

O conceito de letramento em saúde é, dentre as três traduções mais utilizadas na literatura acadêmica nacional sobre health literacy, aquele com o maior número de registros, sobretudo a partir de 2017. Apresenta-se, nesses estudos, como um contraponto à associação do conceito de alfabetização em saúde à dimensão funcional da health literacy e, nesse sentido, ganha espaço e maior sintonia com a produção acadêmica internacional.

No que diz respeito à contraposição entre os conceitos de alfabetização e letramento em saúde, cabe destaque ao registro do conceito de letramento funcional em saúde como tradução de health literacy restrita à sua dimensão funcional. Pelo menos 55 dos 708 trabalhos que adotaram o conceito de letramento em saúde incluíram o termo funcional ao conceito e focaram suas análises na dimensão funcional da health literacy. Outros 305 trabalhos, embora tenham utilizado o conceito mais abrangente, de letramento em saúde, também estiveram restritos à análise de questões relacionadas à compreensão de textos e mensagens-chave, em acepção muito próxima aos estudos de alfabetização em saúde, ou seja, à dimensão funcional da health literacy.

Apesar de aproximadamente 40% dos estudos baseados no conceito de letramento em saúde estarem associados ao controle de condições crônicas de saúde, observa-se um aumento expressivo de estudos focados na promoção da saúde e sustentados por uma visão mais avançada de saúde, como bem-estar físico e psíquico. E embora os estudos estruturados a partir da aplicação de instrumentos para a mensuração da health literacy ainda tenham sido os mais evidenciados na análise da produção acadêmica nacional, cabe registro ao grande número de estudos teórico-conceituais sobre o tema, bem como de revisões sistemáticas e integrativas da literatura internacional.

O conceito de letramento em saúde também foi registrado de forma ampla e diversa na literatura acadêmica nacional. Entre as principais acepções de letramento em saúde, registradas nesses estudos, estão: competência dos indivíduos para obter, processar, compreender informações e serviços de saúde, visando tomar decisões adequadas de sua própria saúde2020 Maragno CAD, Luiz PPV. Letramento em saúde e adesão ao tratamento medicamentoso: uma revisão da literatura. Rev Inic Cient 2016; 14(1):1-4.; capacidade de julgar e tomar decisões sobre o cuidado, a prevenção de patologias e a promoção da saúde2121 Borges FM, Silva ARVD, Lima LHDO, Almeida PCD, Vieira NFC, Machado ALG. Letramento em saúde de adultos com e sem hipertensão arterial. Rev Bras Enferm 2019; 72:646-653.; conhecimento, motivação e competência das pessoas para acessar, compreender, avaliar e aplicar informações de saúde na tomada cotidiana de decisões2222 Marques SRL, Lemos SMA. Instrumentos de avaliação do letramento em saúde: revisão de literatura. Audiology-Comm Res 2017; 22:e1757.; habilidades cognitivas e sociais que determinam a motivação e a capacidade dos indivíduos de ter acesso, compreender e utilizar a informação como maneiras de promover e manter uma boa saúde2323 Martins-Reis VO, Santos JN. Maximização do letramento em saúde e recordação do cliente em um contexto em desenvolvimento: perspectivas do fonoaudiólogo e do cliente. Rev Soc Bras Fonoaudiol 2012; 17:113-114.; habilidade de leitura e numeracia que permite ao indivíduo navegar pelo ambiente de saúde2424 Santos LTM, Mansur HN, Paiva TFPS, Colugnati FAB, Bastos MG. Letramento em saúde: importância da avaliação em nefrologia. J Bras Nefrol 2012; 34(3):1-10.; e habilidades para ter acesso, compreender, avaliar e aplicar orientações para cuidar da saúde2525 Marques SRL, Escarce AG, Lemos SMA. Letramento em saúde e autopercepção de saúde em adultos usuários da atenção primária. CoDAS 2018; 30(2):e20170127.

Já o letramento funcional em saúde foi definido, nesses estudos, como: um conjunto de habilidades que envolvem uma variedade de métodos, como a capacidade de entender e interpretar as informações de saúde, escritas ou faladas, de forma que possam ser aplicadas no cotidiano2626 Bezerra JNM, Lessa SRO, do Ó MF, Luz GOA, Borba AKOT. Letramento em saúde dos indivíduos submetidos à terapia dialítica. Texto Contexto Enferm 2019; 28:e20170418.; capacidade de obter, processar e compreender informações de forma a tomar decisões apropriadas quanto ao autocuidado2727 Chehuen JA, Costa LA, Estevanin GM, Bignoto TC, Vieira CIR, Pinto FAR, Ferreira RE. Letramento funcional em saúde nos portadores de doenças cardiovasculares crônicas. Cien Saude Colet 2019; 24(3):1121-1132.; e competências básicas de leitura, escrita e habilidades matemáticas, aplicadas no contexto de saúde2828 Scortegagna HDM, Santos PCSD, Santos MIPDO, Portella MR. Letramento funcional em saúde de idosos hipertensos e diabéticos atendidos na Estratégia Saúde da Família. Esc Anna Nery 2021; 25(4):e20200199..

O Conceito de Literacia em Saúde

O conceito de literacia em saúde foi a tradução de health literacy com menos ocorrências na produção acadêmica nacional, sendo pontualmente registrado na literatura brasileira a partir do final dos anos 2000, como referência a estudos realizados em Portugal. A partir de 2013, passa a ser registrado na literatura brasileira como conceito e descritor, com crescente ocorrência desde então.

A análise da produção acadêmica nacional sobre health literacy mostrou que, nos últimos anos, o conceito de literacia em saúde vem sendo utilizado para corresponder à perspectiva avançada da health literacy, principalmente no que diz respeito à incorporação de outras dimensões à dimensão funcional. Nessa perspectiva, a literacia em saúde, enquanto conceito, vem sendo associada a estudos e análises sobre a vasta gama de habilidades e competências, circunscritas a diferentes níveis e domínios, que as pessoas usam, individual ou coletivamente, para acessarem, compreenderem, avaliarem e darem sentido a informações sobre saúde, com vistas ao cuidado de sua própria saúde ou de terceiros. E, nesse contexto, apresenta-se como contraponto mais bem estabelecido aos conceitos de alfabetização e letramento em saúde, em particular no que diz respeito à primazia da dimensão funcional e do peso das habilidades de leitura, escrita e numeracia na construção e aplicação de tais conceitos.

Se por um lado o conceito de literacia em saúde também aparece, na produção acadêmica brasileira, associado a iniciativas e ao potencial da educação em saúde como estratégia de desenvolvimento de habilidades e competências para o cuidado, torna-se mais frequente e evidente sua vinculação com o campo da Promoção da Saúde, registrada de forma pontual e marginal nos estudos sobre alfabetização e letramento em saúde. Enquanto aproximadamente 3% dos estudos sobre alfabetização e letramento em saúde fazem referência ao campo da Promoção da Saúde, quase 10% dos estudos baseados no conceito de literacia em saúde evidenciam essa associação e aproximação. Evidencia-se, também, uma maior associação do conceito de literacia em saúde com a promoção da hábitos saudáveis e sustentáveis de vida, em relação à vinculação com o controle de doenças e condições crônicas de saúde.

Entre as principais acepções de literacia em saúde, registradas nos estudos identificados, estão: uma ferramenta que confere aos indivíduos maior controle sobre a própria saúde, capacidade de buscar informação, bem como a oportunidade de assumir responsabilidades no autocuidado2929 Rodrigues VP, Matos LR, Tenani CF, Batista MJ. Literacia em saúde em adultos e idosos diabéticos usuários do serviço público de saúde em municípios de São Paulo. Rev Cien Med 2022; 31:e215094.; um meio de empoderamento da população, pois confere a estes autonomia e capacidade de usar as informações de saúde de maneira efetiva3030 Fede BP, Artuso LR, Tenani CF, Lino CM, Batista MJ. Literacia em saúde e práticas para prevenção da COVID-19: um estudo transversal em adultos brasileiros. Res Soc Dev 2021; 10(16):e425101623839.; capacidade de utilizar informações sobre saúde de maneira eficaz, para se obter uma saúde melhor3131 Nogueira A, Pereira LM, Sares MIF. Literacia em saúde e literacia de mídia: um olhar sobre os conceitos e as práticas. In: Silva MP, organizador. A produção do conhecimento nas ciências da comunicação. Ponta Grossa: Atena; 2021. p. 89-94.; amplo e diverso conjunto de habilidades e competências que os indivíduos utilizam para buscar, compreender, avaliar e dar sentido a informações sobre saúde, visando ao cuidado de sua própria saúde ou de terceiros22 Peres F, Rodrigues KM, Silva TS. Literacia em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021.; habilidades pessoais, cognitivas e sociais necessárias às pessoas para que elas possam acessar, compreender, avaliar e aplicar as informações necessárias à manutenção da saúde3232 Sousa ÁADD, Quintão ALA, Brito AMG, Ferreira RC, Martins AMEDBL. Desenvolvimento de um instrumento de avaliação da literacia em saúde relacionada ao pé diabético. Esc Anna Nery 2019; 23(3):e20180332.; e capacidade de obter e compreender informações básicas necessárias para tomar decisões em saúde, abrangendo componentes fundamentais na busca por bem-estar e na promoção da saúde3333 Tenani CF, Silva-Junior MF, Lino CM, Sousa MDLRD, Batista MJ. O papel da literacia em saúde como fator associado às perdas dentárias. Rev Saude Publica 2021; 55:116..

Discussão

A tradução do conceito de health literacy para o Português do Brasil resultou na adoção de, pelo menos, três conceitos que, mais que sinônimos, se diferenciam quando analisamos sua aplicação em diferentes situações, nos registros da produção acadêmica nacional. Alfabetização, letramento e literacia em saúde têm sido utilizados, de forma crescente na literatura nacional, para definir um conjunto de habilidades que os indivíduos utilizam no processo de significação de informações sobre saúde. Diferem, como observado na seção anterior, na acepção e na abrangência do termo literacy nos estudos nacionais.

O termo literacy, cunhado e amplamente utilizado na língua inglesa, tem origem imprecisa, embora diversos autores apontem para os primórdios da construção do alfabeto na Grécia Antiga, com raiz etimológica associada ao verbete latino littera (letra)3434 Murray DE. Changing technologies, changing literacy communities? Lang Learn Tech 2000; 4(2):39-53.. Nos séculos que se seguiram ao surgimento do alfabeto, e até o final do século XVIII, o domínio das letras (leitura e escrita) esteve restrito a poucos indivíduos, geralmente clérigos ou membros da alta aristocracia de sociedades mais desenvolvidas, marcando uma clara distinção entre os letrados e os iletrados (ou illiterate, na língua inglesa)3434 Murray DE. Changing technologies, changing literacy communities? Lang Learn Tech 2000; 4(2):39-53.,3535 Hobbs R. Expanding the concept of literacy. In: Kubey R, editor. Media literacy in the information age. New Brunswick: Transaction Publishers; 2018. p. 163-183..

Nesta distinção está, também, o cerne da acepção moderna de literacy: a constatação que indivíduos têm habilidades e competências distintas para interpretar e fazer uso da imensa quantidade de informações que são produzidas e veiculadas, diariamente, sobre diferentes temas, inclusive sobre a saúde11 Zarcadoolas C, Pleasant A, Greer DS. Understanding health literacy: an expanded model. Health Prom Int 2005; 20(2):195-203.,22 Peres F, Rodrigues KM, Silva TS. Literacia em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021.,3535 Hobbs R. Expanding the concept of literacy. In: Kubey R, editor. Media literacy in the information age. New Brunswick: Transaction Publishers; 2018. p. 163-183.,3636 Speros C. Health literacy: concept analysis. J Adv Nurs 2005; 50(6):633-640..

O conceito de alfabetização é aquele com mais forte vinculação às habilidades de leitura, escrita e interpretação de números (numeracia). Designa o processo de aquisição do alfabeto, ou seja, das habilidades de ler e escrever. Segundo Soares3737 Soares MB. As muitas facetas da alfabetização. Cad Pesq 1985; 52:19-24., em estudo seminal sobre o tema, apesar das tentativas de se atribuir ao conceito de alfabetização uma acepção mais abrangente, relacionada ao desenvolvimento de habilidades de interpretação de informações ao longo da vida, ele deve ser entendido na sua especificidade ou sentido próprio: o de aquisição do código escrito, das habilidades de leitura e escrita3737 Soares MB. As muitas facetas da alfabetização. Cad Pesq 1985; 52:19-24..

Seguindo esta acepção, diversos autores11 Zarcadoolas C, Pleasant A, Greer DS. Understanding health literacy: an expanded model. Health Prom Int 2005; 20(2):195-203.

2 Peres F, Rodrigues KM, Silva TS. Literacia em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021.

3 Nutbeam D. Health literacy as a public health goal: a challenge for contemporary health education and communication strategies into the 21st century. Health Prom Int 2000; 15(3):259-267.
-44 Silva TL. Contribuições da Literacia em Saúde (Health Literacy) para o aprimoramento das ações de educação em saúde na Atenção Básica [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2017.,3131 Nogueira A, Pereira LM, Sares MIF. Literacia em saúde e literacia de mídia: um olhar sobre os conceitos e as práticas. In: Silva MP, organizador. A produção do conhecimento nas ciências da comunicação. Ponta Grossa: Atena; 2021. p. 89-94.,3838 Freebody P, Luke A. Literacies programs: Debates and demands in cultural context. Prospect Aust J TESOL 1990; 5(3):7-16.,3939 Baker DW. The meaning and the measure of health literacy. J Gen Inter Med 2006; 21(8):878-883. apontam as limitações de uso do conceito de alfabetização em saúde como expressão da diversa gama de habilidades que os indivíduos utilizam para buscar, compreender, avaliar e dar sentido a informações sobre saúde. Para estes autores, e corroborando com os resultados da análise da produção acadêmica nacional sobre o tema, o conceito de alfabetização se presta a descrever, exclusivamente, a dimensão funcional da health literacy, devendo-se optar por este somente em tais condições.

Já o conceito de letramento em saúde surge a partir de uma discussão, no campo da Educação nacional, sobre a amplitude das habilidades e competências a serem desenvolvidas através da escolaridade. O conceito de letramento mais utilizado no país foi cunhado por Soares4040 Soares MB. Letramento, um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Editora Autêntica; 1998. a partir da premissa que o processo de aquisição de habilidades de leitura e escrita (a alfabetização) se diferencia do processo de uso e desenvolvimento dessas habilidades, ao longo da vida, no conjunto das práticas sociais que envolvem a linguagem escrita (o letramento)4040 Soares MB. Letramento, um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Editora Autêntica; 1998.,4141 Soares MB. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Rev Bras Edu 2004; 25:5-17.. Para a autora, o letramento circunscreve competências e habilidades que vão além da dimensão funcional (saber ler, escrever e operar números) e incluem práticas e competências adquiridas no curso de vida, no âmbito das relações sociais4040 Soares MB. Letramento, um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Editora Autêntica; 1998.,4141 Soares MB. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Rev Bras Edu 2004; 25:5-17..

Baseado nessa acepção, a opção de se traduzir o conceito de health literacy em letramento em saúde corresponde a uma ampliação de escopo, quando comparado ao conceito de alfabetização em saúde. Permite, entre outros aspectos, considerar o que os indivíduos podem fazer uma vez tendo acesso a informações sobre saúde, ou seja, a significação de mensagens e sua tradução em práticas voltadas ao cuidado de sua saúde ou de terceiros.

Apesar de representar um avanço, quando comparado a alfabetização em saúde, o conceito de letramento em saúde apresenta algumas limitações quanto à possibilidade de representar, na amplitude, o que alguns autores têm chamado de modelos avançados da health literacy. Estes modelos surgem a partir do início da década de 2000, na Europa e nos Estados Unidos, justamente para enfatizar a necessidade de se compreender a health literacy em uma perspectiva mais abrangente que a capacidade de ler e interpretar informações sobre saúde, ou seja, ir mais além da dimensão funcional.

Um primeiro autor a chamar atenção para a questão foi Nutbeam33 Nutbeam D. Health literacy as a public health goal: a challenge for contemporary health education and communication strategies into the 21st century. Health Prom Int 2000; 15(3):259-267., na Inglaterra, ao elaborar um modelo multidimensional que buscava compreender a diversidade de habilidades e competências circunscritas ao conceito de health literacy a partir de três níveis distintos: o funcional, relacionado às habilidades de compreender e interpretar informações sobre saúde (próximo à ideia de alfabetização em saúde); o interativo, que diz respeito a um conjunto de habilidades que se desenvolve, no conjunto das práticas sociais, buscando dar sentido ao conhecimento produzido e compartilhado sobre saúde (e, por tanto, com fortes vínculos com a ideia de letramento em saúde); e o nível crítico, resultado do desenvolvimento cognitivo individual e de habilidades orientadas a apoiar a participação dos indivíduos em ações sociais e políticas voltadas à promoção da saúde e do bem-estar (nível este não contemplado nem pela alfabetização, nem pelo letramento em saúde).

Em 2005, nos Estados Unidos, Zarcadoolas et al.11 Zarcadoolas C, Pleasant A, Greer DS. Understanding health literacy: an expanded model. Health Prom Int 2005; 20(2):195-203. desenvolveram outro modelo avançado health literacy não organizado a partir de níveis de interação, mas a partir de domínios nos quais as habilidades e competências ao conceito relacionadas estariam organizadas11 Zarcadoolas C, Pleasant A, Greer DS. Understanding health literacy: an expanded model. Health Prom Int 2005; 20(2):195-203.. Segundo o modelo, as competências e habilidades circunscritas ao conceito de health literacy estariam organizadas em quatro domínios: o domínio fundamental, que se refere às habilidades de leitura, escrita e numeracia (equivalentes à dimensão ou nível funcional); o domínio científico, relacionado com o conhecimento de conceitos e processos próprios da ciência, bem como de seu funcionamento; o domínio cívico, relacionado às competências que os indivíduos utilizam para atuar, enquanto cidadãos, em uma sociedade (em acepção próxima ao descrito por Nutbeam em seu nível crítico); e o domínio cultural, relacionado às habilidades e competências determinadas por padrões culturais e moldadas por normas compartilhadas nos grupos sociais.

Já em 2012, Sørensen et al.66 Sørensen K, Van den Broucke S, Fullam J, Doyle G, Pelikan J, Slonska Z, Brand H. Health literacy and public health: a systematic review and integration of definitions and models. BMC Public Health 2012; 12(1):1-13., a partir de uma ampla revisão da literatura internacional sobre a temática, propuseram um modelo avançado de desenvolvimento da health literacy estruturado a partir do processo contínuo de desenvolvimento de habilidades e competências, ao longo do curso de vida, voltadas para o uso do conhecimento sobre saúde nas relações individuais, no escopo dos grupos sociais e nas interações dos indivíduos com os serviços, programas e sistemas de saúde66 Sørensen K, Van den Broucke S, Fullam J, Doyle G, Pelikan J, Slonska Z, Brand H. Health literacy and public health: a systematic review and integration of definitions and models. BMC Public Health 2012; 12(1):1-13.. Neste modelo, os autores conseguiram organizar as habilidades e competências de acordo com as demandas dos serviços de saúde, das estratégias para o cuidado e da promoção da saúde, tendo como elemento condutor o processo de determinação social da saúde66 Sørensen K, Van den Broucke S, Fullam J, Doyle G, Pelikan J, Slonska Z, Brand H. Health literacy and public health: a systematic review and integration of definitions and models. BMC Public Health 2012; 12(1):1-13..

Isto posto, e considerando: o avanço representado por estes modelos, amplamente reproduzidos e aplicados no âmbito de estudos, programas e políticas de saúde nos Estados Unidos, Canadá, Austrália e diversos países da Europa, inclusive em Portugal; os limites de abrangência dos conceitos de alfabetização e letramento em saúde para contemplar a multidimensionalidade dos modelos avançados de health literacy; a necessidade de orientação das estratégias de desenvolvimento de habilidades e competências para a garantia da autonomia e do empoderamento dos indivíduos no processo de tomada de decisões sobre sua saúde ou de terceiros; e a orientação de serviços, programas e políticas de saúde na perspectiva da health literacy, com a real possibilidade de incorporar componentes fundamentais na busca pelo bem-estar e a promoção da saúde; acredita-se que o conceito de literacia em saúde apresenta-se como uma tradução mais adequada, abrangente e contextualizada do conceito de health literacy que os conceitos de alfabetização ou letramento em saúde.

Por fim, é importante destacar que ainda se encontram imbricados, na incipiente (porém crescente) produção acadêmica nacional, aqui devidamente mapeada, os conceitos de literacia em saúde e educação em saúde. Faz-se necessário avançar na distinção de ambos, conceitual e metodologicamente, deixando claro que o primeiro (literacia) está relacionado a um conjunto de habilidades e competências que podem ser desenvolvidas através do segundo (educação). Uma avançada literacia em saúde é condição que se adquire, dentre outras formas, através da educação em saúde. São distintos conceitos que se aproximam pela finalidade que compartilham: a melhoria das condições de saúde dos indivíduos e da população como um todo.

Conclusões

A análise da produção acadêmica brasileira sobre health literacy apontou para a existências de distintas interpretações, no país, sobre a abrangência do conceito. Esta análise mostrou que os processos de tradução do conceito para o Português do Brasil e de aplicação a diferentes situações-problema, no país, passou por três momentos distintos. Entre 2005 e 2016, houve uma preponderância de registro do conceito de alfabetização em saúde, fortemente vinculado à dimensão funcional da health literacy e aplicado em estudos sobre a interpretação de informações e mensagens-chave para o autocuidado e a prevenção de doenças.

Em um segundo momento, a partir de 2017, passa-se a registrar, com mais evidência, os estudos baseados no conceito de letramento em saúde, que se apresentavam como um contraponto a ideia de alfabetização, mas que, na prática, avançavam pouco em relação à vinculação com a dimensão funcional da health literacy. Mesmo ampliando o escopo e abrangência das habilidades e competências estudadas, o conceito de letramento em saúde apresentou algumas limitações quanto à possibilidade de representar os modelos avançados de health literacy, amplamente difundidos e aplicados internacionalmente nos campos de estudos e práticas sobre as estratégias de prevenção de doenças e promoção da saúde, individual, coletivamente ou no contexto de serviços, programas e sistemas de saúde.

Considerando estes aspectos, o conceito de literacia em saúde, tal qual amplamente utilizado em Portugal e paulatinamente incorporado na produção acadêmica brasileira, se apresenta como uma tradução mais adequada e abrangente, capaz de expressar o caráter multidimensional dos modelos avançados de health literacy e possibilitar, no país, a orientação de estudos, programas e políticas voltadas ao desenvolvimento de habilidades para a melhor significação de informações sobre saúde, visando qualificar os processos individuais e coletivos de tomada de decisão informada sobre saúde e qualidade de vida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Maio 2023

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2022
  • Aceito
    29 Out 2022
  • Publicado
    01 Nov 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br