Promoção da saúde na atenção primária: efeitos e limitações em tempos de neoliberalismo conservador

Fernanda Carlise Mattioni Cristianne Maria Famer Rocha Sobre os autores

Resumo

Este artigo busca conhecer e analisar os efeitos e as limitações da Promoção da Saúde na Atenção Primária em Saúde (APS). Realizamos uma pesquisa qualitativa, de inspiração genealógica, com 23 trabalhadores da APS. A análise originou os seguintes conjuntos de dados: efeitos das práticas de Promoção da Saúde realizadas na APS e dificuldades e limitações para a realização das práticas. Os resultados apontam que o principal efeito das práticas de Promoção da Saúde está na diminuição da medicalização e na adoção de elementos da Clínica Ampliada no cuidado realizado. As principais dificuldades decorrem da precarização das políticas públicas, oriundas das medidas de austeridade fiscal adotadas nos últimos anos. Fortalecer o caráter coletivo das demandas em saúde e das respostas para elas parece ser uma possibilidade de resistência diante da racionalidade neoliberal autoritária que impera no Estado brasileiro atualmente.

Palavras-chave:
Promoção da Saúde; Saúde Coletiva; Atenção Primária em Saúde; Genealogia; Neoliberalismo

Introdução

A Promoção da Saúde (PS), em sua apresentação brasileira, se constituiu como uma síntese das vertentes conceituais do movimento originado no Canadá e da Saúde Coletiva, no Brasil, desde a década de 197011 Carvalho SR. Saúde coletiva e promoção da saúde: sujeito e mudança. São Paulo: Hucitec; 2007.. Essa fusão de perspectivas fez com que, ao longo dos anos, emergissem diferentes práticas no campo da PS, gerando um conjunto heterogêneo de saberes e práticas.

Ao mesmo tempo, é possível identificar a adoção de diferentes estratégias políticas nas práticas de PS, cujas características vão desde posturas ditas conservadoras até perspectivas críticas, denominadas radicais e libertárias. Assim, sob a ótica mais conservadora, a PS seria um meio de direcionar indivíduos a assumirem a responsabilidade por sua saúde e, ao assim fazerem, reduzirem o peso financeiro na assistência à saúde. Na via reformista, a PS atuaria como estratégia para criar mudanças na relação entre cidadãos e Estado, através da ênfase em políticas públicas e ação intersetorial. Ou, ainda, pode constituir-se em uma perspectiva libertária que busca mudanças sociais mais profundas22 Castiel LD, Diaz CAD. A saúde persecutória: os limites da responsabilidade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007..

As práticas de Promoção da Saúde, realizadas na Atenção Primária em Saúde (APS), parecem acompanhar o caráter heterogêneo acima descrito. Coexistem práticas direcionadas a mudanças individuais de comportamentos e controle de riscos, ocupando posição hegemônica nesse campo de saber-poder, com práticas que visam melhorar os Determinantes Sociais da Saúde (DSS). Estas últimas, com menor força e expressividade33 Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Bittencourt LSB, Rocha CMF. Health Promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. Am J Health Promo 2021; 35(6):845-852.. Os DSS são os fatores nos quais a vida transcorre, contemplando desde os aspectos mais individuais, como idade e fatores genéticos, passando pelas relações sociais e comunitárias, as políticas públicas e chegando às macrocondições de um país44 Buss PM, Hartz ZMA, Pinto LF, Rocha CMF. Promoção da saúde e qualidade de vida: uma perspectiva histórica ao longo dos últimos 40 anos (1980-2020). Cien Saude Colet 2020; 25(12):4723-4735..

As estratégias de governamento da população existem desde o surgimento dos Estados Nação, no século XV. No decorrer da história, foram se modificando, e ficando cada vez mais complexas, a fim de possibilitar a regulação da população e a modulação de comportamentos individuais para atender as necessidades do capitalismo, em suas diferentes fases. O conjunto de técnicas operadas sobre a população foi denominada como biopolítica, sendo a governamentalidade a estratégia principal para operá-la, a partir do século XVIII55 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2008..

O processo de redemocratização do Brasil, com as lutas por direitos sociais travadas na década de 1980, esteve ancorado em uma nova razão política, denominada governamentalidade democrática66 Gallo S. Biopolítica e subjetividade: resistência? Edu Rev 2017; 66:77-94.. Foi um período histórico de promoção da cidadania, evidenciando uma governamentalidade democrática como maquinaria posta em curso, legitimada pela Constituição Federal de 198877 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out.. Nos anos subsequentes, essa racionalidade se acentuou, por meio da ampla criação de políticas públicas por parte do Estado brasileiro66 Gallo S. Biopolítica e subjetividade: resistência? Edu Rev 2017; 66:77-94.. Nesse contexto, são construídas as bases técnicas, políticas e legais do Sistema Único de Saúde (SUS). Já a Promoção da Saúde ganha status de política pública no ano de 2006, demonstrando em seu texto as diferentes influências apontadas acima.

Autores77 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out.,88 Lockmann K. As reconfigurações do imperativo da inclusão no contexto de uma governamentalidade neoliberal conservadora. Pedag Saberes 2020; 52:67-65. sustentam que a governamentalidade democrática tem suas bases na racionalidade neoliberal. Ao mesmo tempo em que são garantidos direitos sociais para a população, o preço pago por isso reside na necessidade de ser governado, em um regime democrático. No entanto, é justamente da suposta liberdade presente neste ideário que emergem as noções de competitividade extrema, de responsabilidade unicamente individual pelas questões da vida, de autogerenciamento e autoexploração.

A racionalidade neoliberal é definida não apenas como uma doutrina econômica, mas como uma normatividade capaz de estruturar uma nova racionalidade governamental, capaz de alcançar todas as relações sociais e dimensões da vida99 Foucault M. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes; 2008.,1010 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016.. Ela pressupõe a regulação do Estado em benefício do mercado (para garantir as melhores condições de competição), bem como, poucos investimentos em políticas sociais1010 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016..

A sedimentação dessa racionalidade, acompanhada das crises econômicas, legitimou a adoção de medidas de austeridade fiscal em diferentes países, especialmente nos últimos anos. No Brasil, sustenta-se que, a partir de 2016, uma nova razão política passou a ser adotada. A governamentalidade neoliberal democrática parece ter dado lugar a uma racionalidade neoliberal conservadora77 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out.,88 Lockmann K. As reconfigurações do imperativo da inclusão no contexto de uma governamentalidade neoliberal conservadora. Pedag Saberes 2020; 52:67-65.. Nesta, os investimentos em políticas sociais são reduzidos ao extremo. Isso impacta diretamente no SUS e em seus serviços. Nesse contexto, as práticas de Promoção da Saúde tendem a ser fragilizadas em todos os cenários em que são protagonizadas, inclusive na APS.

Assim, propomos a realização de uma pesquisa cujo objetivo foi conhecer e analisar os efeitos e as limitações das práticas de Promoção da Saúde na APS.

Métodos

Realizamos uma pesquisa de campo, descritiva e exploratória, qualitativa de inspiração genealógica, no contexto da APS de um município do Sul do Brasil. A pesquisa qualitativa de inspiração genealógica possibilita que tensões, disputas, discursos, práticas e relações de poder possam ser identificados1111 Foucault M. Microfísica do poder. 28ª ed. São Paulo: Paz e Terra; 2014.. Os dados da pesquisa foram produzidos por meio de entrevistas semiestruturadas com trabalhadores, responsáveis por conduzir práticas de Promoção da Saúde, em doze Unidades de Saúde (US), que correspondem a 39 equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF) e cinco Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Tais Unidades de Saúde são responsáveis pelo atendimento de aproximadamente cem mil usuários do SUS. Os núcleos profissionais (e o respectivo número) dos participantes foram: Serviço Social (06), Enfermagem (05), Psicologia (04), Agente Comunitário de Saúde (03), Medicina (02), Odontologia (02), Nutrição (01), totalizando 23 participantes. As entrevistas foram realizadas no período de fevereiro a maio de 2020.

A escolha dos trabalhadores convidados para participarem da pesquisa se deu pelo método “bola de neve”, que se caracteriza pela constituição de uma amostra não probabilística, utilizando cadeias de referência. A execução da amostragem iniciou por meio do contato com informantes-chaves, nomeados como sementes, realizada a fim de localizar algumas pessoas com o perfil necessário para a pesquisa, dentro das equipes participantes1212 Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Tematicas 2014; 44(22):203-220.. Esse procedimento foi realizado para mapear os trabalhadores diretamente envolvidos com as práticas de Promoção da Saúde. Assim, os informantes-chave (ou sementes), além de participarem da pesquisa, respondendo a mesma, forneceram novos contatos com potencial para participar. A finalização das entrevistas ocorreu no momento em que as práticas de Promoção da Saúde e as narrativas começaram a se repetir, indicando o ponto de saturação, conforme prevê a estratégia “bola de neve”1212 Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Tematicas 2014; 44(22):203-220..

As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas. Além disso, foi utilizado um diário de campo, no qual foram anotadas as impressões da pesquisadora que realizou as entrevistas.

A análise qualitativa dos dados correspondeu às seguintes etapas: leitura das entrevistas transcritas; descrição e análise dos efeitos, das dificuldades e limitações referentes às práticas de Promoção da Saúde no cenário da pesquisa. Os dados empíricos foram analisados a partir do referencial teórico da Promoção da Saúde e de alguns conceitos-ferramenta foucaultianos. Seguindo a perspectiva genealógica da pesquisa, buscamos contextualizar os achados do estudo em uma cadeia de acontecimentos históricos, e suas descontinuidades, que possibilitaram a configuração atual do cenário pesquisado. Isso pressupõe um exercício de deslocamento de análise, que perpassa dos aspectos locais aos aspectos mais gerais, que influenciam a configuração do campo de saber-poder no cenário pesquisado. Além disso, buscamos descrever achados da pesquisa que escapam aos discursos hegemônicos da Promoção da Saúde, e que podem sugerir possibilidades metodológicas, técnico-políticas e práticas para esse campo.

Neste artigo, são apresentados os resultados parciais da pesquisa realizada para a construção de Tese de Doutorado, junto ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os dados foram organizados em dois conjuntos: efeitos das práticas de Promoção da Saúde realizadas na APS, e dificuldades e limitações para a realização de práticas de Promoção da Saúde na APS. Para preservar o anonimato, os participantes da pesquisa foram identificados com codinomes, que remetem a expressões artísticas, por eles mesmos escolhidos no momento das entrevistas.

Durante todo o estudo, foram observados os procedimentos éticos recomendados para estudos com seres humanos no Brasil1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Diário Oficial da União 2013; 13 dez.. A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Grupo Hospitalar Conceição, de acordo com os números CAAE 16078319.7.0000.5347 e 16078319.7.3001.5530, respectivamente.

Resultados

Efeitos das práticas de Promoção da Saúde realizadas na APS

A partir do relato dos entrevistados, foram identificados os seguintes efeitos, como produto das práticas de Promoção da Saúde, no cenário pesquisado: mudança parcial de hábitos; empoderamento dos usuários; socialização e constituição de redes de apoio; aumento da qualidade de vida e diminuição da medicalização; integralidade da atenção à saúde; e a geração de renda.

Uma das dimensões que ocupa centralidade na Promoção da Saúde são as práticas educativas voltadas à mudança de hábitos e comportamentos individuais. No cenário da pesquisa, encontramos os seguintes relatos, que se referem às atividades educativas voltadas a mudanças de hábitos alimentares, ao sedentarismo e à utilização adequada dos medicamentos:

Nós percebemos que as pessoas não mudam seus hábitos. Elas relatam que é difícil mudar porque são coisas culturais. Para receber os netos, têm que ter um refrigerante. Para encontrar a vizinha, tem que levar um bolinho. Então, mesmo já tendo entendido as relações da alimentação com a saúde, elas seguem com os mesmos hábitos (Pintura).

Os participantes dessa atividade são selecionados por meio de uma lista de usuários que estão com a Hipertensão Arterial e/ou a Diabetes Melitus descompensadas. Embora não seja obrigatória a participação na atividade, elas são mobilizadas a participar pela equipe de saúde. Muitas delas, inclusive, demonstram interesse em participar pela possibilidade de socialização e encontro (com a equipe e com os vizinhos), mas não por um desejo real de mudar o seu modo de viver.

A seguir, outro relatado de atividade voltada à mudança de hábitos alimentares:

Em algumas oportunidades nós medimos [os resultados]. Observamos ao perguntar se eles tinham mudado alguns hábitos. Todos tinham mudado pelo menos um hábito [...] como beber mais água, comer mais vegetais ou parar de jantar comida pesada... (Música).

Observamos que o fator que parece interferir no desfecho das práticas acima descritas é o objetivo e a motivação dos participantes em relação à atividade. Na primeira, os usuários não desejam uma mudança de hábitos, ou ainda, seu contexto de vida não é favorável para tal. Além disso, abordagens centradas no alcance de metas estabelecidas por protocolos de saúde podem estar muito distantes da trajetória de vida destas pessoas. A constituição da noção do que será ou não um risco/ameaça para a pessoa não depende apenas do que é determinado pelos especialistas, com estudos e evidências. As pessoas constroem seus hábitos a partir de diferentes influências, que operaram tanto no campo subjetivo, quanto nos aspectos materiais da vida. Ou seja, a adoção de um hábito não depende unicamente do acesso às informações de saúde. É algo complexo, condicionado por fatores sociais, culturais, psicológicos, econômicos, entre outros1414 Lupton D. Risk. Londres: Key Ideas; 1999..

No segundo relato, a atividade é realizada com pessoas que buscam o espaço espontaneamente. Ou seja, elas mesmas entenderam que seria o momento de mudar algum hábito. A abordagem adotada leva em consideração o contexto de vida da pessoa e as possibilidades de mudanças. Não se espera que todos os hábitos sejam modificados, mas de acordo com uma construção que é singular, considerando as possibilidades individuais, algo acaba sendo modificado, contribuindo para a melhoria da saúde. Essa perspectiva se alinha à Clínica Ampliada, estratégia presente no arcabouço da Saúde Coletiva. Nela, o sujeito que se encontra na relação de cuidado ganha centralidade, com os aspectos que o constituíram, sejam fatores subjetivos ou objetivos. Tal abordagem tende a tornar a relação de cuidado capaz de produzir resultados de acordo com planos de cuidado compartilhados, construídos a partir do desejo e das possibilidades do usuário11 Carvalho SR. Saúde coletiva e promoção da saúde: sujeito e mudança. São Paulo: Hucitec; 2007..

Em relação ao empoderamento, podemos identificar, no relato que se refere ao grupo de gestantes, um exemplo de como ele pode ser produzido:

As mulheres se fortalecem para as questões da sua “parição” [sic], nas questões do cuidado com o bebê, ficam mais atentas ao início dos sinais de trabalho de parto e também sobre as questões da amamentação. Com acesso a estas informações, as mulheres e suas famílias ficam mais empoderadas para questionar condutas biomédicas que muitas vezes atrapalham o processo do nascimento por parto normal e depois na amamentação (Ovelha, grifo no original).

O empoderamento, presente no arcabouço teórico-metodológico da Promoção da Saúde, e amplamente difundido em seu campo de atuação, possui múltiplos sentidos11 Carvalho SR. Saúde coletiva e promoção da saúde: sujeito e mudança. São Paulo: Hucitec; 2007.. Atenta-se para a utilização desse conceito como estratégia para delegar a responsabilidade do cuidado individual aos usuários, na medida em que lhes são “ensinados” os métodos de cuidado, por meio do repasse de informações. A escolha informada, que ocorre a partir da premissa que os sujeitos estão aptos a decidir sobre sua própria saúde, de acordo com seus desejos e prioridades, pode ser compreendida a partir da noção de neossujeito, segundo a qual a livre escolha não é uma opção, mas uma norma de conduta presente no ideário neoliberal. Ao ser livre para escolher, conforme sua vontade individual, as pessoas assumem, na mesma medida, toda a responsabilidade dessa escolha1010 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016.. Por outro lado, o empoderamento pode se constituir como ferramenta para produzir efeitos que se colocam na contramão da racionalidade neoliberal. Na medida em que são compartilhadas informações, nos serviços de saúde, que possibilitam o questionamento de práticas instituídas e a garantia de direitos (como no caso da gestante, a escolha pelo parto, recusa de procedimentos invasivos e a presença do acompanhante), o empoderamento ganha outro sentido, inscrito nas lutas feministas históricas. Uma boa questão para se avaliar os efeitos do empoderamento e do sentido em que ele está sendo operado, é identificar o quanto tais efeitos impactam na correlação de forças, presente nas relações de poder existentes nos serviços de saúde, alterando desfechos nas decisões tomadas nessas relações.

A socialização e a constituição de redes de apoio podem ser identificadas no relato do grupo de convivência, que existe em quase todas as US pesquisadas:

Estamos sempre encaminhando idosos para o grupo, porque a vida deles melhora, eles ficam menos tristes, conseguem se comunicar, fazem novas amizades, depois de perder entes queridos, então eles precisam ter outras relações, construir novas redes (Criatividade).

Outro efeito das práticas de Promoção da Saúde foi a geração de renda, através da produção de artesanato no grupo de convivência:

Aqui encontram outras pessoas, criam laços. Com o dinheiro gerado pelo artesanato que é produzido, fazem passeios que não conseguiriam fazer com a renda própria (Artecriativa).

A constituição de redes de apoio comunitário é estratégia presente no marco operativo da Promoção da Saúde1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.426, de 11 de novembro de 2014. Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde. Diário Oficial da União 2014; 12 nov.. A organização de espaços capazes de promover a construção de laços de apoio indica que tal trabalho em saúde permite conhecer e transformar as vulnerabilidades dos moradores em motivação para o desenvolvimento e fortalecimento de potenciais individuais e coletivos1616 Cardoso LS, Cezar-Vaz MR, Costa VZ, Bonow CA, Almeida MCV. Promoção da saúde e participação comunitária em grupos locais organizados. Rev Bras Enferm 2013; 66(6):928-934.. Novamente, atenta-se para os riscos da investida da racionalidade neoliberal sobre tais espaços, na medida em que governos e serviços de saúde possam considerá-los substitutivos às políticas de proteção social, destinadas a prover condições elementares da vida. Ou seja, o apoio comunitário e as relações solidárias são benéficas e necessárias para a manutenção da saúde. No entanto, elas não eximem o Estado de sua responsabilidade de prover políticas públicas capazes de criar ambientes favoráveis à saúde.

O aumento da qualidade de vida - e consequente diminuição da medicalização - foram identificados nos relatos referentes às Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS):

A prática meditativa dá qualidade de vida. Temos relatos de pessoas que sentiam menos dores depois de meditar, que passaram a utilizar menos medicação (Pérola).

Estudo aponta que a utilização das PICS tanto pode fortalecer a medicalização na área da saúde, como pode fragilizá-la, de acordo com as práticas utilizadas e o profissional ou agente que está operando tal prática. Na APS, no entanto, os autores sustentam que a utilização de PICS leva à diminuição da medicalização da vida1717 Tesser CD, Dallegrave D. Práticas integrativas e complementares e medicalização social: indefinições, riscos e potências na atenção primária à saúde. Cad Saude Publica 2020; 36(9):e00231519., promovendo saúde e qualidade de vida.

Já a integralidade da atenção é produzida a partir do olhar ampliado em relação à saúde. Isso pode ser identificado tanto no Grupo de Crianças, que busca promover a saúde sem medicalizar e, também, nas atividades do Programa Saúde na Escola que, através de parcerias intersetoriais, alcançam outras dimensões da vida que não apenas a doença, como a aprendizagem, por exemplo:

Conseguimos acompanhar as crianças por meio do grupo e identificar situações que precisam de intervenção precocemente. Intervir em situações que podem gerar traumas na criança é algo muito importante. Trabalhamos em parceria com a escola, que ajuda nessas situações (Mandala).

As ações do PSE, quando conseguimos dar seguimento às demandas, impactam na possibilidade de aprendizagem da criança. Quando identificamos um problema de acuidade visual e aquela criança consegue ter acesso aos óculos, todo o curso de aprendizagem vai ser favorecido (Cinema).

O conceito ampliado de saúde, o cuidado integral e a instersetorialidade são pressupostos da PS presentes em suas estratégias de operacionalização1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.426, de 11 de novembro de 2014. Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde. Diário Oficial da União 2014; 12 nov.. Ações coordenadas entre diferentes setores da administração pública, nas quais estão previstas as demandas geradas, podem produzir efeitos positivos na vida das pessoas, proporcionando uma abordagem integral pelo setor saúde, desde que consigam atender as demandas identificadas.

Dificuldades e limitações para a realização de práticas de Promoção da Saúde na APS

As dificuldades e limitações relatadas pelos entrevistados em relação à realização de práticas de PS na APS se referem a: mudanças no modelo de atenção e falta de legitimação/priorização da PS no processo de trabalho das equipes de APS; precarização das políticas públicas; falta de infraestrutura e espaço físico; falta de participação dos usuários nas atividades; dificuldades de diálogo e articulação com outros setores; e, violência presente nos territórios.

As mudanças no modelo de atenção e a falta de legitimação/priorização da PS no processo de trabalho das equipes de APS, são apontadas nos seguintes relatos:

A falta de cobertura de 100% de equipes de APS no município nos limita, porque identificamos demandas com as ações do PSE que acabam ficando sem seguimento, porque o aluno não tem uma Unidade de Saúde de referência (Cinema).

Perda do modelo de atenção pautado no modelo da Saúde da Família e Comunidade. Temos a perda dos ACS que trabalhavam com essa articulação entre equipe e comunidade. Então, por isso, a importância de resgatar o Conselho [Local de Saúde], como um local de defesa da própria Unidade de Saúde (Capoeira).

O modelo da Estratégia Saúde da Família (ESF) foi eleito, nas primeiras edições da Política Nacional da Atenção Básica (PNAB)1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 648, de 28 de março de 2006. Institui a Política Nacional da Atenção Básica. Diário Oficial da União 2006; 29 mar. como estratégia prioritária para a organização da APS no Brasil. Inicialmente, a adoção desse modelo foi fortemente induzida nos municípios e, a partir da publicação da PNAB, em 20111919 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Redefine a Política Nacional da Atenção Básica. Diário Oficial da União 2011; 22 out., o Ministério da Saúde aumentou os incentivos financeiros para a ampliação e a qualificação do número de equipes de ESF. Além disso, outras estratégias foram oportunizadas aos municípios, como o programa Requalifica UBS (Unidade Básica de Saúde), voltado à melhoria da estrutura física das Unidades de Saúde; o programa das academias da saúde, voltado à criação de espaços para a realização de atividade física, próximos às US e sob coordenação dos Núcleos de Apoio a Saúde da Família (NASFs), que também se constituem como uma estratégia de qualificação da APS no país desde 20082020 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 154, de 24 de janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família. Diário Oficial da União 2008; 25 jan.. Além disso, destacam-se a vinculação territorial das equipes e a vinculação dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) a um número específico de usuários/famílias desse território.

O modelo de atenção utilizado na ESF deveria priorizar as ações de promoção, prevenção e reabilitação em saúde, enfocando a promoção no processo de trabalho das equipes. A atuação nos territórios e a vinculação proporcionada pelo trabalho dos ACS possibilitava que as ações das equipes fossem organizadas de acordo com as necessidades da comunidade. Além disso, oportunizava a problematização dessas questões nos territórios, buscando o enfrentamento coletivo dos problemas e a responsabilização do Estado.

Nos últimos anos, no entanto, observamos uma fragilização maciça da atuação do Estado na condução das políticas públicas de saúde e a emergência de um neoliberalismo conservador ou autoritário88 Lockmann K. As reconfigurações do imperativo da inclusão no contexto de uma governamentalidade neoliberal conservadora. Pedag Saberes 2020; 52:67-65., que conduziu à adoção de medidas de austeridade fiscal. Estas, ao retirar investimentos públicos da área social, reduzem a sua capacidade de atuação. O reflexo de tais medidas pode ser observado já na publicação da PNAB de 2017, na qual são flexibilizados aspectos como a vinculação territorial das equipes, o número de ACS e o financiamento dos serviços2121 Pinto HA. Análise da mudança da política nacional da atenção básica. Saude Redes 2018; 2:191-217.. Somado a isso, o não credenciamento de novas equipes de NASF também limitou a atuação das equipes de APS, especialmente em relação às práticas de Promoção da Saúde.

Os NASF são equipes constituídas por profissionais que não integram a equipe mínima de ESF (quais sejam: Medicina, Enfermagem e Agente Comunitário de Saúde). Sua atuação se sustenta nos princípios do apoio matricial e da Educação Permanente. O apoio destas equipes para as equipes de ESF tem uma importante dimensão pedagógica, pois amplia o escopo de atuação da ESF, incluindo também as práticas de Promoção da Saúde, junto aos territórios dos quais são corresponsáveis. Ressaltamos que o cenário em que foi realizada a pesquisa ainda conta com equipes de NASF atuantes. Boa parte dos trabalhadores entrevistados são integrantes do NASF e se responsabilizam por uma parcela importante das práticas de PS relatadas. Outro núcleo profissional responsável por conduzir um número expressivo de práticas de PS são os ACS. Por isso, podemos relacionar a fragilização das equipes de NASF e a diminuição do número de ACS nas equipes à diminuição e desqualificação das práticas de PS nos territórios em que tais medidas estão sendo adotadas. Tal situação tende a ser generalizada no país, pois a principal forma de manutenção destes serviços depende do financiamento ofertado pelos governos federais e estaduais2121 Pinto HA. Análise da mudança da política nacional da atenção básica. Saude Redes 2018; 2:191-217..

Outro aspecto apontado como dificuldade se refere ao espaço secundário ocupado pela Promoção da Saúde na organização do processo de trabalho das equipes:

As atividades assistenciais têm espaço protegido. Para outras, como a Promoção da Saúde e a Educação em Saúde, a coisa não é tão espontânea, elas ficam nesse limbo do “se der tempo eu faço, se eu tiver vontade eu faço”. Isso gera uma sobrecarga para o trabalhador. Porque é preciso estar sempre se convencendo que é algo importante (Dança, grifos no original).

Identificamos o lugar marginal que as ações de Promoção da Saúde acabam ocupando no cotidiano de trabalho das equipes. As atividades assistenciais possuem rotinas bem estabelecidas e diretrizes institucionais para que sejam realizadas, incluindo metas e indicadores. Ações de prevenção ainda acontecem com maior frequência, pois se destinam a evitar doenças e agravos específicos. Já a Promoção da Saúde demanda ações mais abrangentes, com necessidade de disponibilidade de tempo dos trabalhadores e envolvimento dos participantes. Com as mudanças no modelo de atenção adotado, a PS parece ter cada vez menos espaço em relação às atividades assistenciais.

Somada à precarização das políticas públicas de saúde, a precarização de outras políticas intersetoriais, que tem relação direta com a saúde, também fragilizam as ações capazes de alcançar os DSS:

A precarização da rede de serviços, de saúde, assistência social, educação, no território limita as possibilidades de pensarmos de maneira integral o território e as possibilidades de produção de práticas e sentidos em Promoção da Saúde. Quando precisamos olhar para o que é mais urgente, não conseguimos fazer Promoção da Saúde, ficamos na linha do tratamento (Bacurau).

As medidas de austeridade fiscal, legitimadas pela Emenda Constitucional 952222 Brasil. Emenda Constitucional 95, de 15 dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2016; 15 dez. em 2016, já demonstram os sinais de devastação do padrão de proteção social brasileiro. Os efeitos até agora observados, no curto intervalo de tempo, são de um desastroso rebaixamento das condições de vida dos cidadãos brasileiros, anulando conquistas históricas2323 Santos JWB. Flexibilização e precarização do trabalho no desmonte da política de assistência social. SER Soc 2020; 22(46):153-170.. Na área da saúde, o desmonte do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) impacta diretamente na abordagem integral das situações identificadas nos territórios e no alcance das práticas de Promoção da Saúde. A rede de proteção social, constituída por políticas intersetoriais, nelas incluídas as políticas integrantes do SUAS, são imprescindíveis para que o cuidado realizado pelas equipes de saúde, nos territórios, possa ter abordagem ampliada, capaz de atingir minimamente os DSS e, assim, produzir a integralidade da atenção. Isso pode ser exemplificado pela fragilização dos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS), presentes nos territórios em que atuam as equipes pesquisadas, por meio da precarização dos vínculos de trabalho dos profissionais que atuam nesses espaços, pela falta de condições mínimas de trabalho (linha telefônica e internet, por exemplo) e, também, pelas poucas possibilidades de ofertar políticas inclusivas para a população atendida.

Ainda, integrando as dificuldades, em quase todas as US foram relatadas limitações em relação ao espaço físico para realizar as atividades:

Nossa principal dificuldade é o espaço físico. O grupo precisou ser interrompido porque não tínhamos onde fazer. Agora conseguimos um espaço da comunidade para fazer a atividade (Pérola).

Essa limitação se inscreve na precarização dos serviços de saúde, cuja estrutura física necessitaria de reformas e investimentos para ampliação e melhoria da ambiência. Na mesma linha, os espaços públicos também apresentam fragilidades:

Temos a questão do espaço para fazer a atividade. Geralmente, caminhamos nas praças do bairro. Algumas tem o terreno um pouco irregular, que é ruim. Tem também a questão da segurança. Temos receio de assaltos (Movimento).

Observa-se também o esforço da equipe e da própria comunidade em solucionar questões que seriam responsabilidade da administração pública. Acompanhando a racionalidade neoliberal, o Estado se exime de suas responsabilidades e delega para os trabalhadores da saúde e usuários a busca por alternativas, de acordo com as suas possibilidades, o que nem sempre é o mais adequado e seguro2323 Santos JWB. Flexibilização e precarização do trabalho no desmonte da política de assistência social. SER Soc 2020; 22(46):153-170..

A falta de participação nas atividades também foi apontada como uma limitação:

A maior dificuldade é a participação. Fazer as pessoas participarem de um grupo para mudança de estilos de vida (Música).

A dificuldade é conseguir com que as pessoas [participem]. Tem gente que vai sempre, mas são poucos. A gente não dá o devido valor para os espaços de participação social (Teatro).

A pouca participação nos espaços de Promoção da Saúde pode ser entendida como reflexo também da expansão da racionalidade neoliberal que, como descrevemos antes, constrói subjetividades segundo as quais as pessoas precisam enfrentar seus problemas sozinhas, sem identificar a dimensão coletiva deles11 Carvalho SR. Saúde coletiva e promoção da saúde: sujeito e mudança. São Paulo: Hucitec; 2007.,1010 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016..

Outra dificuldade apresentada se refere à realização de ações intersetoriais:

Às vezes, é difícil conseguir uma boa articulação com a escola. Conseguir sentar juntos e planejar as atividades de maneira compartilhada. Parece que não conseguimos ter os mesmos objetivos e dar a mesma importância para a atividade (Nataraja).

São apontadas como limitações, na ação intersetorial, a falta de comunicação e as articulações descontínuas entre os atores e setores como os aspectos mais frágeis. O planejamento de ações incoerentes com as necessidades de saúde da população pode gerar sobreposição de ações no território e limitar o alcance das intervenções. Por outro lado, iniciativas intersetoriais foram mais abrangentes quando definidas como política integrada do governo municipal para a construção de interfaces e cooperação entre os diversos setores2424 Magalhães R, Bodstein, R. Avaliação de iniciativas e programas intersetoriais em saúde: desafios e aprendizados. Cien Saude Colet 2009; 14(3):861-868..

Por fim, a questão da violência nos territórios é uma dificuldade importante, pois afeta tanto os trabalhadores, quanto os moradores:

Fomos assaltadas saindo do grupo. Estávamos de carro, com computador, celular… levaram tudo! Depois disso, decidimos não levar mais recursos próprios. Então, os professores emprestavam os seus recursos próprios (Dança).

Na comunidade, temos dificuldades em relação ao poder paralelo, ao tráfico. As pessoas têm medo de se reunir e se expor (Capoeira).

A violência presente nos territórios de atuação da APS pode ser também entendida como produto da forte investida da racionalidade neoliberal sobre estes locais. Abandonados pelo Estado, os territórios mais empobrecidos são ocupados pelo poder paralelo, que impõe suas regras de funcionamento. Para a população que reside nas comunidades, resta aceitar tais regras, considerando o perigo que seria afrontá-las. Igualmente, em relação à violência sofrida pelos trabalhadores das equipes, novamente a precarização, proveniente da lógica econômica vigente, pode ser entendida como fator preponderante. Ao utilizar os recursos próprios, como computador, carro, celular, para viabilizar as atividades, as equipes se tornam alvos fáceis e tem prejuízos que são por eles mesmos assumidos, sem contar os efeitos psicológicos deletérios para essas pessoas.

É necessário qualificar a caracterização qualitativa e quantitativa da violência armada e de suas consequências, a partir de uma abordagem intersetorial com ampla participação comunitária na busca por respostas coerentes e significativas. Também é preciso garantir a proteção e a segurança, bem como as condições de trabalho, dos profissionais para que a presença dos serviços de saúde nos espaços seja contínua e respaldada pelo Estado2525 Barbar AEM. Atenção primária à saúde e territórios latino-americanos marcados pela violência. Rev Panam Salud Publica 2018; 42:e142.. Além destas medidas emergenciais, é imperativo que tais questões sejam problematizadas junto ao Estado, de modo que medidas de segurança pública sejam implementadas, com políticas públicas adequadas, presentes dentro das comunidades, oferecendo oportunidades para os seus integrantes.

Discussão

De acordo com os resultados, o principal efeito das práticas de Promoção da Saúde está na diminuição da medicalização e na adoção de elementos da Clínica Ampliada no cuidado realizado. Podemos inferir que esse desfecho se inscreve na perspectiva da governamentalidade55 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2008. neoliberal democrática66 Gallo S. Biopolítica e subjetividade: resistência? Edu Rev 2017; 66:77-94., cuja principal característica é a criação de políticas públicas voltadas à modulação de comportamentos, visando fazer com que a população viva, e, mais do que isso, viva de acordo com determinados parâmetros para que o sistema capitalista encontre às condições para se desenvolver. Essa descrição vai ao encontro do conceito de biopolítica55 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2008., utilizado por Foucault para sustentar que ao longo da história as sociedades ocidentais construíram estratégias para possibilitar os avanços do capitalismo por meio da vida e, mais especificamente por meio da modulação de comportamentos (governamentalidade)55 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2008..

Já as principais dificuldades para as práticas de PS na APS, de acordo com os resultados, decorrem da precarização das políticas públicas, oriundas das medidas de austeridade fiscal adotadas nos últimos anos. Esse achado vai ao encontro da ideia de governamentalidade neoliberal autoritária66 Gallo S. Biopolítica e subjetividade: resistência? Edu Rev 2017; 66:77-94., noção desenvolvida por Silvio Gallo a partir da governamentalidade descrita por Foucault55 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2008.. Assim, ao serem adotadas medidas de austeridade fiscal, reduzindo drasticamente os investimentos na arena pública, se fragilizam as políticas públicas, dentre elas as de saúde, deixando populações extremamente vulneráveis sem cobertura de serviços de saúde, de modo que em muitas situações, especialmente em tempos de pandemia por COVID-19, significou a morte de milhares de pessoas. Essa razão de Estado, denominada governamentalidade neoliberal conservadora, está alinhada à noção de necropolítica2626 Mbembe A. Necropolítica. 3ª ed. São Paulo: N1-edições; 2018., que ao contrário da biopolítica55 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2008., compreende um conjunto de estratégias que operam para fazer morrer determinados grupos populacionais indesejáveis nas sociedades mais conservadoras e em que o capitalismo alcança suas características extremas de supremacia do capital em relação a qualquer forma de vida.

Ainda na perspectiva das análises foucaultianas, pode-se dizer que onde há poder, existem resistências e contracondutas55 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2008.. Se podemos dizer que, no cenário pesquisado, encontramos o produto da atuação de políticas públicas inscritas em uma governamentalidade neoliberal democrática66 Gallo S. Biopolítica e subjetividade: resistência? Edu Rev 2017; 66:77-94., podemos dizer também que nesse mesmo campo, encontramos práticas que escapam à essa governamentalidade, expressando às tensões que decorrem entre às práticas inscritas na governamentalidade e as práticas que se colocam como resistências e contracondutas. Estas últimas, podem ser descritas como as práticas que tensionam o modelo biomédico. Encontramos também práticas que tensionam a governamentalidade neoliberal conservadora, que são aquelas que estimulam a coletivização das demandas em saúde e buscam problematizar questões que envolvem os Determinantes Sociais da Saúde, explicitando a importância da manutenção e expansão do Sistema Único de Saúde como política pública de Estado, bem como, demais políticas públicas intersetoriais que afetam diretamente a vida das pessoas.

Considerações finais

As práticas de PS, relatadas no cenário pesquisado, têm seu maior efeito como resistência aos processos de medicalização. Se colocam como oposição à tendência medicalizante que reforça a indústria e o mercado da saúde. Tem pouco alcance, no entanto, em relação aos DSS, em função dos processos de fragilização das políticas públicas intersetoriais, evidenciada, especialmente nos últimos anos, com a incrementação de medidas de austeridade fiscal no Brasil.

As análises desta pesquisa apontam que a Promoção da Saúde parece assumir um caráter heterogêneo, que a caracteriza com a polissemia conceitual e com a multiplicidade de práticas realizadas, no cenário pesquisado. Algumas se alinham à vertente de abordagem comportamental, presente nas correntes mais antigas e conservadoras da Promoção da Saúde. Outras práticas assumem o caráter de resistência e contraconduta à perspectiva da medicalização absoluta da vida e propõe a ampliação da clínica, como forma de promover outros modos de vida. Estas últimas estão inscritas e encontram suas bases técnico-operacionais na Saúde Coletiva do Brasil, que possui relação intrínseca com as lutas travadas pelo Movimento Sanitário Brasileiro, na constituição do SUS.

As estratégias de PS estruturadas tanto em nível macro quanto as identificadas no cenário da pesquisa parecem se caracterizar e alcançar as duas vertentes da PS acima descritas: a comportamental e a reformista. Uma focada na mudança de hábitos e comportamentos individuais e a outra propondo a estruturação de políticas públicas favoráveis a criar ambientes de vida saudáveis. Embora exista, no discurso de grupos e coletivos organizados na área da Saúde Coletiva, a identificação e o desejo de que sejam operadas mudanças estruturais profundas na sociedade brasileira, como imperativo para que as pessoas consigam efetivamente ter uma vida com mais qualidade e que isso seja permanente, sem estar à mercê da mudança de governos e influências da instabilidade econômica, não são encontrados relatos históricos que apontem para qualquer investida nesse sentido, em nosso país, pelo menos nas últimas décadas. Em nível local, encontramos esse mesmo cenário, talvez ainda mais fragilizado, pois o alcance das práticas de Promoção da Saúde identificadas na pesquisa, parece ter pouco impacto coletivo. Resgatar o caráter coletivo das demandas em saúde, bem como as possibilidades de conquistas reais para as comunidades, parece ser uma possibilidade para resistir a racionalidade neoliberal, que impõe a competitividade, a culpabilização e a responsabilização individual.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    Ago 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2022
  • Aceito
    28 Mar 2023
  • Publicado
    20 Abr 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br