Considerações fenomenológicas sobre a percepção de si da criança/adolescente convivendo com irmão com deficiência

Phenomenological considerations regarding the self-perception of children/adolescents living with siblings with disabilities

Vera Lucia Freitag Maria da Graça Corso da Motta Gabriel Debatin Viviane Marten Milbrath Jéssica Stragliotto Bazzan Ruth Irmgard Bärtschi Gabatz Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste artigo é compreender a percepção de si de crianças/adolescentes que convivem com o irmão com deficiência. Pesquisa qualitativa, com abordagem hermenêutico-fenomenológica e participação de 20 crianças e adolescentes que convivem com o irmão com deficiência em um município do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Utilizou-se entrevista fenomenológica, diário de campo e interpretação hermenêutica. Evidenciaram-se lacunas de cuidado, necessidade de atenção, compreensão por parte da família, visto a atenção ser ao irmão com deficiência. O medo e a angústia da morte dos avós, da morte do irmão com deficiência, a saudade dos avós após sua morte. Percebe-se que essas crianças/adolescentes convivem e questionam o nascimento e a existência do irmão. Desvelou-se, ao dar luz ao mundo vivido da criança/adolescente, lacunas e fragilidades na relação com os pais, na atenção à saúde e nas situações de vulnerabilidades vivenciadas pela criança/adolescente e a família. Dessa forma, é necessário atenção a essa população, considerando que convivem com irmãos com deficiência e apresentam diversas vulnerabilidades que precisam ser discutidas, visando elaborações de estratégias de cuidado inclusivas e eficientes.

Key words:
Children with disabilities; siblings; phenomenology

Abstract

The scope of this article was to understand the self-perception of children/adolescents who live with siblings with disabilities. It involved qualitative research, with a hermeneutic-phenomenological approach, with 20 children and adolescents who live with a disabled sibling from a municipality in the state of Rio Grande do Sul/Brazil. Phenomenological interviews, field diaries and hermeneutic interpretations were used. There were gaps in care, need for attention and understanding on the part of the family, due to the attention given to the disabled sibling. Also, the fear and anguish of the death of the grandparents, the death of the disabled sibling, the nostalgia of the grandparents after their death. It was shown that these children/adolescents live together and question the birth and existence of the sibling. By shining a light on the child/adolescent’s life experience, gaps and weaknesses in the relationship with parents, in health care, in situations of vulnerabilities experienced by the child/adolescent and family were revealed. Thus, attention needs to be devoted to this population, considering that they live with siblings with disabilities, and have several vulnerabilities that need to be discussed, aiming at developing inclusive and efficient care strategies.

Key words:
Children with disabilities; siblings; phenomenology

Introdução

As crianças/adolescentes que convivem com o irmão com deficiência iniciam sua trajetória existencial de uma forma diferente daquela de outras crianças que não vivem esta circunstância, especialmente em relação ao cuidado com o irmão, colocando-se ou sendo colocadas em segundo plano em detrimento deste. Assim, desde a notícia do diagnóstico e a maneira como assimilam a situação, as crianças/adolescentes se sentem responsáveis pela inclusão do irmão nas atividades infantis, na escola e ao longo da vida11 Yamashiro JA, Lacerda, CBF. Ser irmão de uma pessoa surda: relatos da infância à fase adulta. Rev Bras Educ Esp 2016; 22(3):367-380..

Estudo observou que a criança/adolescente que convive com o irmão com deficiência se percebe com grandes responsabilidades em relação à saúde e ao cuidado dele. Isso pode gerar preocupações em relação ao futuro, principalmente por se sentir sozinha(o), sem os pais, visto que esse cuidado, por conta da deficiência, não ocorre apenas durante a infância do irmão, poderá se estender por toda a sua vida22 Alves CMP, Serralha CA. Repercussões emocionais em indivíduos que possuem irmãos com deficiência: uma revisão integrativa. Contextos Clinic 2019; 12(2):476-508.. Também se evidencia a existência de situações de vulnerabilidade, como a exclusão no cuidado das crianças que têm um irmão com deficiência33 Hilkner SH, Beck ARM, Tanaka EZ, Dini AP. Percepções de irmãos de crianças hospitalizadas por doença crónica. Rev Enferm Ref 2019; 4(20):77-86.

Nesse sentido, é fundamental ampliar a perspectiva do cuidado centrado na família, tendo a equipe de saúde um papel importante no acolhimento e na inserção de crianças/adolescentes no cuidado prestado ao irmão com deficiência em todos os pontos da Rede de Atenção à Saúde (RAS). A equipe multiprofissional em saúde também tem atribuição significativa no que diz respeito ao suporte da criança com deficiência, dos irmãos e da família. Portanto, é imprescindível refletir sobre esse tema, aproximando-o do setor saúde e integrando-o na formação profissional, de modo a promover um cuidado centrado na família.

Com base no exposto, surge a necessidade de voltar o olhar para crianças/adolescentes que convivem com o irmão com deficiência, visando ampliar o conhecimento acerca da percepção que apresentam sobre si, sua autopercepção. Assim, a partir da própria experiência interior, sob a ótica fenomenológica, o Ser conhece-se o Si mesmo e reconhece-se nos outros como eles mesmos44 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2013..

A fenomenologia é um referencial filosófico que busca compreender o ser no seu mundo vivido, desvelar o seu modo-ser-no-mundo no enfretamento das facticidades existenciais. Assim, utilizou-se a fenomenológica, na perspectiva filosófica de Martin Heidegger e Paul Ricoeur. Sob essa perspectiva, só é possível reconhecer-se a si mesmo pelos sinais que se dá de sua própria vida e por aqueles que são dados pelos outros55 Ricoeur P. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago; 1978..

A partir desses pressupostos, o foco deste estudo está nas informações que retratam a percepção de si mesmo de crianças/adolescentes que convivem com o irmão com deficiência. Considerando as experiências que constituem esse ser como um ser-no-mundo essencialmente permeável ao outro e contornado por signos multiculturais, assevera-se a indispensável necessidade de compreender as repercussões da convivência de crianças/adolescentes com um irmão com deficiência e sua percepção de si, bem como a convivência no núcleo familiar.

Estudo demonstra que o apoio das crianças/adolescentes aos irmãos com deficiência promove resultados positivos, como melhor autoexpressão, saúde mental, bem-estar e habilidades66 Meltzer A. What is 'sibling support'? Defining the social support sector serving siblings of people with disability. Social Sci Med 2021; 291:114466.. Em estudo realizado no Japão, verificou-se a qualidade de vida de crianças/adolescentes que convivem com o irmão com deficiência motora e intelectual grave, identificando-se que crianças/adolescentes mais velhos têm maior empoderamento no cuidado, em especial os(as) do sexo feminino. Esse estudo sugere a necessidade de atendimento de enfermagem concentrada em toda a família para melhorar a qualidade da vida dos irmãos77 Wakimizu R, Fujioka H, Nishigaki K, Matsuzawa A. Quality of life and associated factors in siblings of children with severe motor and intellectual disabilities: a cross-sectional study. Nurs Health Sci 2020; 22(4):977-987..

Diante do exposto, visando ampliar o conhecimento acerca da temática, elaborou-se a questão de pesquisa: qual a percepção de si da criança/adolescente que convive com o irmão com deficiência? Com isso, objetivou-se compreender a percepção de si da criança/adolescente que convive com o irmão com deficiência.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa à luz da abordagem hermenêutico-fenomenológica, na perspectiva filosófica de Martin Heidegger44 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2013.,88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012. e Paul Ricoeur55 Ricoeur P. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago; 1978..

A expressão que remonta ao termo fenomenologia é o “mostrar-se”: o que se mostra é o ser que se desvela44 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2013., trazer para a luz, pôr em claro alguma coisa, revelando-se e tornando-se compreensível em si mesma44 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2013.. A hermenêutica aponta as raízes ontológicas da compreensão. A interpretação busca decifrar o que se encontra oculto na aparência, permitindo a abertura dos níveis de significação implicados na significação literal55 Ricoeur P. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago; 1978..

O estudo foi desenvolvido em uma Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) em um município do Rio Grande do Sul, Brasil. Os critérios de inclusão dos participantes foram: ser criança/adolescente que convive com o irmão com deficiência; ter idade igual ou superior a sete anos e menor ou igual a 18; ter irmão em tratamento de reabilitação na clínica da referida instituição no período da coleta das informações; ter sua participação autorizada pelo responsável. A escolha pela inclusão de crianças com idade de sete anos e mais deve-se ao fato de o período de desenvolvimento em que se encontram, de acordo com Piaget, estágio operacional concreto (7-11 anos) e estágio operacional formal (a partir dos 12 anos)99 Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Desenvolvimento infantil: o que é? conheça as 4 fases de Jean Piaget [Internet]. 2017. [acessado 2023 jan 1]. Disponível em: https://opas.org.br/desenvolvimento-infantil-o-que-e-e-as-4-fases-de-jean-piaget/
https://opas.org.br/desenvolvimento-infa...
. A partir dos sete anos as crianças começam a utilizar o pensamento lógico ou operacional, sendo que com o amadurecimento a compreensão sobre a saúde e a doença evolui de um pensamento mágico para um pensamento mais concreto e racional.

O convite aos participantes foi inicialmente mediado pelos profissionais da APAE, propiciando a aproximação da pesquisadora com as famílias. Os responsáveis legais foram acessados no Centro de Atendimento Especializado da APAE. As entrevistas foram realizadas pela pesquisadora em local de escolha pelo participante, sendo que sete ocorreram no domicílio e 13 na APAE, em sala reservada para tal.

As crianças/adolescentes participantes da pesquisa assinaram o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE), os pais ou responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para a coleta das informações, utilizou-se a entrevista fenomenológica, que se caracteriza pela profundidade. Ressalta-se que foram disponibilizados elementos lúdicos, como jogos, desenhos, colagem de revistas, entre outros, a fim de criar um espaço favorável para os participantes responderem às questões da pesquisa. O roteiro de entrevista apresentou a seguinte questão norteadora: você pode me falar sobre acontecimentos de sua vida a partir da convivência com um irmão com deficiência? A duração foi de aproximadamente 40 minutos, sendo as entrevistas gravadas em um aparelho de MP4, depois transcritas manualmente na íntegra.

A interpretação hermenêutica seguiu os seguintes passos: 1º passo: elaboração inicial do texto - é o primeiro contato com as informações coletadas, visando compreender os sentidos e significados da criança/adolescente que convive com irmão com deficiência. Nesse momento, realiza-se a transcrição das falas, transformando-se o falado em escrito, leituras e releituras dos dados qualitativos com o objetivo de aproximar-se e apropriar-se dele; passo: leitura crítica - o pesquisador precisa tornar-se um ser reflexivo, isolado de intenção do texto para a compreensão do fenômeno; passo: identificação da metáfora - ocorre a partir do que foi compreendido após a leitura e releitura do texto, procurou-se compreender as unidades de significação; passo: apropriação - busca revelar o que está oculto nos discursos, finalizando o processo de análise e interpretação hermenêutica de Ricoeur55 Ricoeur P. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago; 1978..

Na realização deste estudo foram respeitados os preceitos éticos das resoluções nº 466/12 e 510/2016 acerca de pesquisas envolvendo seres humanos66 Meltzer A. What is 'sibling support'? Defining the social support sector serving siblings of people with disability. Social Sci Med 2021; 291:114466.,77 Wakimizu R, Fujioka H, Nishigaki K, Matsuzawa A. Quality of life and associated factors in siblings of children with severe motor and intellectual disabilities: a cross-sectional study. Nurs Health Sci 2020; 22(4):977-987.. Houve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob o parecer nº 2.958.289, de 11 de outubro de 2018.

O anonimato dos entrevistados foi respeitado, sendo utilizados códigos alfanuméricos assim organizados: a letra C para crianças e os números 1 a 10 consecutivamente conforme a ordem da entrevista (C1 a C10), e para os adolescentes a letra A, e os números de 1 a 10 consecutivamente conforme a ordem da entrevista (A1 a A10).

Resultados e discussão

Os participantes do estudo foram 10 crianças, com idade de 7 a 11 anos e 10 adolescentes, de 12 a 18 anos, e que convivem com irmãos com deficiência física, mental, intelectual ou sensorial. Totalizando assim 20 participantes. A idade do(a) irmão(ã) com deficiência variou de três a 20 anos. O número de irmãos dos participantes variou entre 1 e 11, e a idade dos demais irmãos entre 10 meses e 31 anos. O grau de escolaridade foi do primeiro ano do ensino fundamental ao ensino médio. No que se refere ao número de membros da família, variou entre três e oito pessoas.

Sobre a religião, três participantes referiram não saber sua religião, dez consideram-se evangélicos, dois adventistas e cinco católicos. Em relação ao tipo de deficiência do(a) irmão(ã), oito têm diagnóstico de paralisia cerebral, sete de autismo, três síndrome de Down, uma mielomeningocele e outro retardo mental.

A partir da interpretação das informações, desvela-se o mundo vivido das crianças e dos adolescentes, seu modo de ser no mundo, suas fragilidades e necessidades de cuidado ao se deparar com as situações de vulnerabilidades do irmão com deficiência e do contexto familiar.

Expõem-se a seguir as principais dimensões existenciais reveladas no modo de ser das crianças/adolescentes.

“Eu tenho bastante falta de alguém para desabafar”

Ao dialogar com as crianças/adolescentes foi possível perceber a priorização do cuidado ao irmão com deficiência, tanto da família quanto deles. A fragilidade do irmão parece ser compreendida como a prioridade da atenção, enfoque que acaba trazendo implicações pragmáticas, psicológicas e existenciais.

A percepção do irmão estar em primeiro lugar se agrega em alguns casos ao sentimento de ser colocado em segundo plano, como se sua existência não fosse uma prioridade ou a família não conseguisse estabelecer um cuidado solícito. Indiferentemente, os depoimentos mostram que para algumas dessas crianças/adolescentes os vínculos afetivos estabelecidos com a família são muito tênues, a exemplo de uma das adolescentes:

Mas eu não sou uma pessoa. Sabe, eu faço amizade fácil, converso bastante, mas não é aquela amizade verdadeira nunca, sabe. E eu tenho bastante falta de alguém para desabafar, às vezes eu fico muito (silêncio)... Guardo tudo pra mim, e isso me sufoca. Até a vó estava falando que eu precisava de um psicólogo [...], estava com umas complicações, fui no médico, e ele falou que era do estresse, que eu guardava muita coisa aqui (peito). Aí ele falou pra vó pra procurar um psicólogo, só que eu não quero psicólogo. E eu também tive problema de depressão, de automutilação (mostrou as cicatrizes nos braços), que foi quando eu troquei bastante de escola e eu achava que ninguém me entendia, eu tinha 12 anos. [...] sentia muita falta do meu pai, sentia falta da mãe parar em casa, tudo isso. Aí na escola eu comecei a me fechar, ficar tímida, aí foi tudo complicado. Professores e diretoras sempre em cima, sabe, aí foi o ano em que rodei. Eu não sentia vontade de ir para a escola, não sentia vontade de fazer nada, sabe, virei uma pessoa vegetativa [...] (A8, 14 anos, feminino).

[...] na escola é normal, assim, na maioria das vezes não falo com ninguém (A6, 15 anos, feminino).

Quando a adolescente diz “Mas eu não sou uma pessoa”, apresenta em sua fala um elemento que se encontra oculto: “Mas eu não sou (considerada) uma pessoa”. Trata-se, primeiramente, da autopercepção do indivíduo, que se vê desprovido da dignidade de pessoa, e não de uma condição objetiva, caso em que não seria, de fato, pessoa. Conforme a perspectiva heideggeriana, seria possível aventar que o Dasein (ser-aí) que é essa adolescente se percebe como ser-no-mundo, e por isso, mais especificamente, dá-se conta de uma fragilidade na sua categoria existencial de ser-com. Ser Dasein é ser-com, pelo que, quando esta categoria não preenche sua existência de sentido, o Dasein se angustia e toma consciência do seu si, torna-se autêntico. Esse evento pode ser considerado de plena autenticidade, porque a adolescente viveu a angústia, deu-se conta de quem é e de como é tratada - percebe-se considerada pelos seus apenas como ausência, apenas como não-pessoa88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012..

Assim, vivenciar a angústia existencial é o primeiro passo para atingir a autenticidade. A expressão “na escola é normal, assim, na maioria das vezes não falo com ninguém” remete ao silêncio, o que um adolescente diz quando não fala? Percebe-se que existem sentimentos guardados para si, não expressados e guardados pelo silêncio de suas angústias, segundo a analítica existencial heideggeriana88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012..

Quando a criança/adolescente se percebe em segundo plano no que se refere ao cuidado e atenção de seus pais, observa-se o silêncio refletido em forma de expressão, angústia por vivenciar um contexto em que não são colocados como prioridade, pelo fato de terem um irmão com deficiência.

Falar nem sempre é emitir palavras, pois se pode falar muito sem nada dizer, por outro lado, ao se calar e silenciar, alguém pode dizer muito88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012.. O silêncio manifesta uma disposição de humor importantíssima do Dasein (Ser-aí). Nem sempre o silêncio é o de alguém que nada tem a dizer. Muitas vezes, o silêncio manifesta uma contenção que o Dasein exerce sobre si, desenvolvendo a solidão88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012..

O impessoal é um modo impróprio de existir, configura-se na autenticidade, um modo de não-ser-si-mesmo e não decidir sobre o seu modo-de-ser88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012.. Nesse contexto, sentir-se-sem-mundo é também não sentir-se-com, categoria existencial fundamental do Dasein. Demonstra uma inautenticidade existencial originária, mas que, contudo, quando vem à consciência, abre ao Dasein a possibilidade para tomar conta do seu si-mesmo em vistas da autenticidade plena. É o que se interpreta no desabafo, pleno de sentido existencial e angústia pela ausência de ser-com: “eu achava que ninguém me entendia.”

O modo de não-ser-si-mesmo, quando trazido à consciência, abre ao Dasein a disposição da angústia e possibilita a reflexão sobre seu ser-no-mundo. Ninguém é si-mesmo na cotidianidade, assim, a criança/adolescente precisa sair do cotidiano para permitir-se angustiar-se, transcender a cotidianidade e sua impessoalidade, para depois da crise existencial dar-se conta do seu si-mesmo de fato, consciente não só de si, mas de sua condição no mundo, com os outros e sobretudo com sua própria morte.

Nessa conjuntura, “a angústia manifesta no Dasein o ser para o poder-ser mais próprio, isto é, ser livre para a liberdade do-a-si-mesmo” (p. 525)88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012.. Todavia, este “isolamento social” pode se configurar como um mecanismo de defesa usado por estas crianças e estes adolescentes, possivelmente pelo receio de não vir a ser importante para o outro, manifestando novamente uma disposição de insuficiência na categoria existencial de ser-com88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012..

As crianças/adolescentes que convivem com o irmão com deficiência necessitam de atenção, ser cuidadas. Existe nelas um sofrimento inter e intrapessoal, pois quando a criança/adolescente tem uma visão de si vegetativa, tímida, silenciosa, até mesmo ao ponto da depressão clínica e automutilação, é sinal de que há sofrimento profundamente estabelecido, não só do ponto de vista psíquico, mas existencial. O cuidado sensível possibilita um equilíbrio entre o interior e o exterior, auxiliando-a a construir seu mundo - de maneira saudável do ponto de vista psicológico, e de maneira autêntica do ponto de vista existencial.

Assim, o trabalho da equipe multiprofissional em saúde e educação poderá auxiliar no enfrentamento de situações, a exemplo da automutilação, que é a prática de danos ao próprio corpo de forma proposital, cujo objetivo é obter alívio de um estado de sentimento negativo1010 Aratangy EW. Como lidar com a automutilação: guia prático para familiares, professores e jovens que lidam com o problema da automutilação. São Paulo: Hogrefe; 2017..

Nesse mesmo contexto, C6 ressalta que precisa de ajuda e que chega a esquecer da sua infância:

Eu me esqueço de tudo, passou a aula e eu esqueço, a única coisa que lembro é dos piás (meninos) chatos que tem lá. Eu estou com este problema que esqueço tudo, preciso de ajuda. Eu me esqueço de tudo, até da minha infância (C6, 9 anos, feminino).

Destaca-se que a referida citação é de uma criança de 9 anos. Isso demonstra que ela precisa de atenção, de cuidado. O desejo de também ser cuidada, de ter a atenção da mãe e do pai, visto que nas notas de campo da pesquisadora se observou que, em algum momento de sua vida, essa criança desejou ter a mesma deficiência do irmão para receber a mesma atenção que este recebia dos pais.

Quando uma criança fala que esquece de sua infância, remetendo a uma necessidade de atenção, de cuidado, ou ainda o desejo de ser cuidada, percebe-se que ninguém é si-mesmo na cotidianidade. A impessoalidade toma conta de sua existência de tal modo que na maior parte do tempo não está propriamente consciente do seu “si”. É preciso sempre que haja um momento de ruptura, de suspensão da cotidianidade para dar-se conta do si, para alcançar a autenticidade, é isso ocorre por meio da angústia88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012..

A angústia emerge como disposição existencial, crítica, reflexiva, que propicia uma “suspensão da cotidianidade”, esse tipo de angústia aparece quando o ser se põe diante da possibilidade de sua própria morte88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012.. Estudo realizado com irmãos de crianças com paralisia cerebral mostrou que o irmão da criança com deficiência é bastante afetado com o nascimento desta e frequentemente pouco assistido, especialmente pelos pais1111 Navarausckas HDB, Sampaio IB, Urbini MP, Costa RCV. "Ei, eu também estou aqui": aspectos psicológicos da percepção de irmãos frente à presença de uma criança com paralisia cerebral no núcleo familiar. Estud Psicol (Campinas) 2010; 27(4):505-513..

Nessa conjuntura, a presença de uma pessoa com deficiência na família pode modificar amplamente o ambiente familiar22 Alves CMP, Serralha CA. Repercussões emocionais em indivíduos que possuem irmãos com deficiência: uma revisão integrativa. Contextos Clinic 2019; 12(2):476-508.. Outro estudo observou que as mães transformam a criança com deficiência no centro de atenção de suas vidas, abdicando de outros papéis, como o ser mulher, profissional, e inclusive do cuidado com os outros filhos, não porque deixaram de amá-los, mas por sentirem a responsabilidade pelo filho com deficiência1212 Freitag VL, Milbrath VM, Motta MGC. Mãe-cuidadora de criança/adolescente com Paralisia Cerebral: o cuidar de si. Enfermería Global 2018; 17(50):337-348..

Isso denota que ter uma pessoa com deficiência na família propicia a possibilidade de que os seus membros saiam da impessoalidade, do “senso comum”, e se disponham, por meio da angústia, de modo existencialmente autêntico. A impessoalidade é algo natural, mas que, exacerbada, é certamente negativa. Isso porque a impessoalidade demasiada impossibilita a autenticidade, o ser-si-mesmo.

Se uma pessoa com deficiência retira os outros “do modo automático”, faz com que prestem atenção em coisas que não perceberiam se não fosse ela, assim percebe-se que, através da pessoa com deficiência, tem-se uma abertura para a autenticidade. A criança/adolescente vivencia suas angústias, medos, preocupação, suas mudanças no cotidiano, nos seus hábitos, pensamentos e sentimentos, que são uma abertura para a autenticidade88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012..

Sob esse prisma, por mais que a criança/adolescente perceba seu irmão com deficiência às vezes como um peso, porque lhe dá trabalho extra e atenção familiar diminuída, podendo lhe causar sofrimentos, ele se mostra no final das contas uma oportunidade de libertação existencial que as outras crianças/adolescentes não têm, porque é uma oportunidade de ser-si-mesmo, de assumir-se como pessoa, consciente de si e dos outros em suas próprias circunstâncias, boas ou ruins, oportunidade que todos aqueles que estão perdidos na impessoalidade não têm. Reconhece-se essa vicissitude como oportunidade de refletir sobre o ser-si-mesmo, criança/adolescente com irmão com deficiência, que precisa de espaço de fala e expressão de suas vivências.

“Eu tenho medo de chegar uma hora a vó ou o vô falecer”

A morte de algum membro da família de alguma maneira sempre vai trazer saudade, principalmente se ele foi significante na vida. O ser humano é sempre um ser-para-o-fim: a existência, a factualidade e o decair do Dasein se desvendam no fenômeno da morte88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012.. Neste estudo, ressalta-se a falta que as crianças/adolescentes sentem dos avós que os cuidavam:

Às vezes eu me sinto mal por perder meu avô, porque ele sempre contava as historinhas dele. Como eu era criancinha, a gente brincava, ele comprava uma bala, ele sempre estava presente quando eu chegava, daí foi o que mais me marcou na vida (C4, 7 anos, masculino).

Percebe-se que esse avô cuidava dessa criança, contava histórias, brincava, comprava bala e estava presente quando ele chegava. Acredita-se que esses eram os momentos que ela se sentia cuidada e, consequentemente, tendo sua existência preenchida de sentido, visto que o cuidado dos pais, possivelmente, era focado no filho com deficiência. Sob essa ótica, pode-se dizer que o cuidado solícito, uma vez não ofertado pelos pais, incorre em uma perda; todavia, era realizado por outra pessoa, nesse caso o avô ou a avó, de modo que, quando esses morrem, ocorre uma nova perda para a criança/adolescente, que vai então se constituindo existencialmente sobre a ausência de cuidado.

Pode-se observar como o convívio com as avós marcou a vida dessas crianças/adolescentes:

Às vezes, eu lembro da minha avó, sabe, minha bisavó. Ela morreu, e de vez em quando me dá umas coisas na cabeça, [...] eu não consigo mais lembrar. Sempre sonho com ela e isso tenho na minha cabeça. A minha mãe sempre limpava a casa, sabe, e a única que não podia fazer limpeza era minha bisavó e ela sempre me cuidava, eu tinha uns sete anos [...] ficava lá brincando e ela sempre gritava pra mim: Venha, venha!, porque ela sabia que eu gostava de comer muita fruta, daí ela me chamava pra comer com ela (A1, 12 anos, masculino).

O que marcou muito minha vida foi quando minha avó morreu. Aqui atrás, naquele terreno, tinha a casa da minha avó [...] eu lembro que ela dava sopa para mim ali. Já fez nove anos, ela era velhinha, tinha 89 anos (A9, 12 anos, masculino).

Com olhar das crianças/adolescentes voltados para a saudade dos avós após sua morte, ela é considerada a possibilidade mais própria, irremetente e insuperável88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012.. Assim, pode-se dizer que a morte é a certeza que se tem na vida. O ser caminha para a morte desde que nasce, sendo o limite que perpassa o ser humano. A morte é o momento em que o ser humano se defronta com o seu ser pleno, é quando há a possibilidade de sair do ente e de colocar-se diante de si-mesmo, é na angústia da morte que se manifesta o nada - e, portanto, também o ser88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012..

A relação entre netos e avós, na atualidade, está diferente. Com a diminuição da taxa de natalidade e o aumento de sobrevida dos idosos, os avós passam a dar uma atenção mais individualizada a cada neto. Os avôs ocupam uma posição importante na família, e a interação com os netos é essencial, pois é uma das mais significativas da vida da pessoa e é a segunda mais importante da vida de uma criança. Para os netos, os avós são uma fonte familiar, que lhes proporciona amor, carinho, ajuda no que é necessário1212 Freitag VL, Milbrath VM, Motta MGC. Mãe-cuidadora de criança/adolescente com Paralisia Cerebral: o cuidar de si. Enfermería Global 2018; 17(50):337-348., e eles geralmente têm mais tempo do que os pais, que muitas vezes trabalham fora e ficam pouco tempo com os filhos.

Diante disso, na ausência do cuidado dos pais, as crianças/adolescentes podem ficar mais próximos dos avós pela atenção que recebem. Entretanto, na falta destes, podem sentir-se desamparados e temerosos em relação à morte, o que é positivo na perspectiva heideggeriana, necessário para a autenticidade. A morte é a possibilidade mais-própria do Dasein. O ser-para-a-morte abre para o Dasein seu poder-ser mais-próprio, que, na assinalada possibilidade de si mesmo, é subtraído do a-gente, da impessoalidade, isto é, pode se subtrair do impessoal88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012..

Nessa premissa, compreende-se que ao experienciar a morte, possibilita-se às crianças/adolescentes refletirem sobre suas vidas, ao mesmo tempo em que precisam readaptar a rotina do já-não-ser-“aí”, no sentido do já não ser-no-mundo dos avós. Ainda, nesse contexto, a morte dos outros traz à tona a consciência de sua própria morte, visto que, do ponto de vista existencial, ninguém é diferente dos outros. Percorrem-se possibilidades distintas, mas se caminha sobre as mesmas categorias e passa-se inevitavelmente pelos mesmos ciclos existenciais: do nascimento e da morte só escapa quem nunca veio-a-ser88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012..

Sendo assim, as crianças/adolescentes, além de perderem os avós, ainda padecem pela ausência deste cuidado que recebiam, e de alguma maneira estão sempre “presentes” para eles. E nesse não-ser-no-mundo dos avós não há sucedâneo para dar continuidade ao cuidado, gerando certa “angústia”.

Destaca-se que o temor da criança/adolescente em relação ao que possa acontecer ao irmão com deficiência, pois já vivenciou a morte, a perda, assim, o medo do vir-a-ser, aflora:

Só tenho que ter paciência, não pode incomodar ele, se incomodar ele fica mais nervoso [...] ele ficando nervoso, ele fica bravo, daí tem que brincar com ele, fazer os gostos dele [...] aí eu tenho que respeitar ele né, porque ele é doente (A1, 12 anos, feminino).

Eu gosto muito dele, eu entendo que ele é uma criança especial, não dá para brigar, não dá para xingar ele [...] (A8, 14 anos, feminino).

O temor, o medo, são entes intramundanos, pessoas ou coisas do mundo aparecem como ameaçadoras, e desse modo o temeroso fica retido por aquilo que amedronta. O temor é uma maneira imprópria de a angústia se manifestar, apresentada na fala a seguir:

Eu tinha medo que acontecesse alguma coisa com ela, porque pra mim ela nasceu pra ser o amiguinho para brincar e daí aconteceu isso. Na verdade, com dois meses [...] que fui ver ela só, antes de ela sair da incubadora até. Esta parte foi (silêncio) [...] os outros nenezinhos que nasceu, dois, três dias iam para casa e ela ficou um ano e pouco no hospital e eles não falavam nada, só falavam que ela estava doente. Mas eu não sabia o que era (A2, 17 anos, masculino).

O irmão acreditava que sua irmã viria ao mundo para ser sua amiga, brincar com ele, todavia, ao nascer ficou no hospital e só pode conhecê-la após dois meses. Pode-se imaginar a angústia que viveu enquanto aguardava a chegada da irmã em casa, e sem entender o que estava acontecendo com ela. Ainda, no primeiro momento precisou se adaptar à ausência da mãe que permanecia no hospital com a irmã, e depois se adaptar ao novo desenho familiar, no qual havia uma irmã com deficiência.

O ser-no-mundo que se angustia tem a possibilidade de abertura para a autenticidade, a deficiência, neste sentido, causa um desnível no relacionamento interpessoal, que se caracteriza como ser-com: o irmão mais velho “perde” o irmão idealizado, podendo dessa forma justificar o negativismo em suas reações88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012.. Diante do desconhecimento sobre o diagnóstico, a criança/adolescente cria crenças e fantasias:

Eu não consegui fixar a cabeça num pensamento, porque eu não sabia e nem imaginava o que era, imaginava coisas aleatórias [...] tinha nascido doente, problema que nasceu na verdade, mas eu não sabia o que era, não sabia o porquê (A2, 17 anos, masculino).

A criança angustiou-se a ponto de questionar a existência do outro. O problema não foi a sua irmã ter nascido doente, o “problema que nasceu na verdade”. Essa criança, conscientemente, está pensando na existência, sua e do outro. É certo que está sofrendo, mas essa angústia lhe põe em uma crise que faz pensar, toma consciência de si, “eu não sabia o que era, não sabia o porquê” - e da sua irmã com deficiência. Nesse momento de sofrimento, questiona a existência da irmã, mas, se amadurecer, perceberá que a existência da irmã com deficiência o constitui, faz parte de quem ele é: um adolescente com uma irmã com deficiência. Tornar-se consciente disso é existir autenticamente. Pôr-se em crise, angustiar-se, é a disposição fundamental para uma existência autêntica.

As crianças/adolescentes temem pelo que possa acontecer ao seu irmão com deficiência, sendo o temor uma maneira imprópria de a angústia se manifestar. Em relação a isso, expõe-se que, “diante do que se tem medo, o que dá medo, o ‘temível’ é cada vez um ente que-vem-de-encontro no interior do mundo, um ente do modo-de-ser do utilizável, do subsistente ou do Dasein-com” (p. 399)88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012..

Além do mais, a criança/adolescente sente medo de sentir-se culpada por temer o que pode acontecer com o irmão; quando diz “Não pode incomodar ele”, põe em liberdade o irmão com deficiência e fecha-se em si-mesmo. No entanto, em relação à constituição existencial, as crianças/adolescentes se constituem pelas relações que estabelecem e reproduzem aquilo que lhes é ensinado ou dito. Dessa forma, pode-se perceber a influência de tal constituição sobre eles. Será que a essas crianças/adolescentes foi dito, em algum momento, que poderão ser responsabilizados por algo que possa acontecer ao irmão?

Pode-se dizer que a morte é uma contingência inerente ao ser humano e não pode ser eliminada do horizonte das pessoas, faz-se necessário, pois, que os pais expliquem aos filhos esse processo para que assim possam elaborar o luto e aceitar a condição existencial atual. A morte é a possibilidade mais própria do Dasein, por isso a criança/adolescente a teme ou o que possa acontecer com o irmão com deficiência.

Contudo, a preocupação com a morte dos irmãos acontece também em famílias que não vivenciam a condição de deficiência. Um estudo com dois grupos de crianças/adolescentes, um que convive com o irmão com deficiência e outro com irmãos típicos, evidenciou que 81,2% dos participantes que convivem com o irmão com deficiência demonstram preocupação com o irmão especial. Essa preocupação se justifica principalmente por fatos que concernem à própria deficiência e às complicações dela advindas1111 Navarausckas HDB, Sampaio IB, Urbini MP, Costa RCV. "Ei, eu também estou aqui": aspectos psicológicos da percepção de irmãos frente à presença de uma criança com paralisia cerebral no núcleo familiar. Estud Psicol (Campinas) 2010; 27(4):505-513..

No que diz respeito ao nascimento da criança com deficiência, os irmãos sofrem o impacto: os pais disseram à criança que o irmão que nasceria seria seu companheiro, que brincariam juntos, e esse sonho foi interrompido. Assim, os pais precisam lidar com a frustração desse sonho. O ser humano é um ser temporal, e a temporalidade está nele inscrita de uma forma determinada e aberta, coletiva e singular. Isso implica que o ser-aí é passado, presente e futuro concomitantemente, pelo que vive, então, expressões desse estar a cada vez projetado, nunca conforme a concepção vulgar de tempo, como uma sucessão de “agoras”. Quando a criança é informada que terá um irmão, ela projeta a experiência que irá vivenciar, no momento em que esse irmão não condiz com o projetado, ela precisa se (re)organizar para viver um presente diferente daquele que havia antecipado.

Nesse sentido, reflete-se sobre tais questões, visto que, em muitas famílias, até mesmo os pais têm dificuldade de aceitar a criança que veio diferente dos sonhos, diferente do planejado. Como ajudar a criança/adolescente na aceitação da condição do irmão com deficiência? Todo esse processo causa angústia. Nessa dimensão, angústia pelo medo do desconhecido, o impessoal reverte a angústia em um medo diante de algo que está por vir44 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2013..

A criança/adolescente pode vivenciar inúmeras transformações na dinâmica familiar, na vida social e nos papéis desempenhados em relação ao irmão com deficiência, uma vez que a relação fraterna está entre as mais complexas e duradouras experiências de vida1414 Loureto GDL, Moreno, SIR. As relações fraternas no contexto do autismo: um estudo descritivo. Rev Psicopedag 2016; 33(102):307-318.. Assim, precisam lidar com uma vasta gama de inquietações. Se ele é o primogênito, inicia-se desde o nascimento do bebê, a ausência de informações sobre o diagnóstico, isolamento da família, o redimensionamento do modo de ser-no-mundo da família para se adaptar ao novo ser que passa a existir no mundo de uma maneira diferente do projetado, assim o irmão necessita de acompanhamento e auxílio para vivenciar tais experiências1515 Hamer BL, Manente MV, Capellini VLMF. Autismo e família: revisão bibliográfica em bases de dados nacionais. Rev Psicopedag 2014; 31(95):169-177..

Nesse contexto, a comunicação por parte da equipe multiprofissional em saúde é fundamental, visto que a criança/adolescente não compreende o que está acontecendo, quais perspectivas de futuro poderá ter em detrimento de sua vivência. A enfermagem, por ter contato direto e contínuo com a família em todos os pontos da Rede de Atenção à Saúde (RAS), pode proporcionar o diálogo inicial para que todos possam compreender o processo que engloba o nascimento de uma criança com deficiência. O cuidado e acompanhamento da equipe de saúde, levando em consideração a importância das equipes multiprofissionais e de atuação interdisciplinar nos territórios, por meio de diferentes metodologias, expandem a compreensão sobre a situação vivida, ajudando a família, que tem um integrante com deficiência, a enfrentar os desafios e nutrir as forças pessoais de coragem, esperança e autoestima para manejar com assertividade os cuidados que o indivíduo com deficiência necessita1616 Marcheti MA, Mandetta MA. Criança e adolescente com deficiência: programa de intervenção de enfermagem com família. Goiânia: AB Editora; 2016..

Os profissionais de saúde poderão atentar para as particularidades da família, desenvolvendo um cuidado autêntico, dando ênfase às políticas em saúde e auxiliando a dar sentido aos sentimentos vivenciados nos itinerários existenciais de tal condição1717 Motta MGC, Ribeiro AC, Issi HB, Poletto PMB, Pedro ENR, Wachholz NIR. Diagnóstico revelado à criança e ao adolescente com HIV/AIDS: implicações para o familiar/cuidador. Rev Enferm UERJ 2016; 24(3):e55973707..

Outro depoimento sobre o qual se deve refletir é o de uma criança com deficiência que está sendo criada pelos avós. A adolescente apresenta uma preocupação em relação a quem cuidará do irmão na finitude dos avós, pois, sob sua ótica, os pais não têm condições para tanto:

[...] ah, eu tenho medo de chegar uma hora a vó ou o vô falecer, pelo nenê sabe, ninguém tem aquela paciência que eles têm com ele, ninguém, ninguém no mundo tem. Aquela atenção, podem até tentar, mas o jeito que o vô troca ele sabe, o jeito de lidarem com ele. Eu tenho muito medo, porque os dois estão muito velhinhos. A vó pode parecer fortona, mas a vó está muito velhinha, [...] o vô também está acabado [...]. Então tenho medo disso, porque se acontecer, ele vai cair para a mãe, e ela não tem esta paciência com ele, nem comigo, que dirá com o (irmão com deficiência) que é especial. Tipo, o pai dele não tá nem aí pra ele, paga pensão e nunca veio visitar o guri [...]. Chega a dá dó, sabe! [...] (A8, 14 anos, feminino).

Observa-se que o medo faz parte do itinerário existencial dessa adolescente, visto que são os avós que cuidam de seu irmão com deficiência, têm paciência, fornecem atenção; no entanto, estão envelhecendo. A adolescente sabe que a sua mãe não tem a mesma paciência com o irmão que é especial, nem com ela nem com os demais irmãos. O pai também não dá atenção. Assim, preocupa-se com quem cuidará do irmão quando os avós falecerem. Nesse contexto, emergem medos e angústias, que são positivos e necessários para uma existência autêntica.

A angústia gera medo e receio, porém possibilita a abertura do ser para a autenticidade. É nela que o ser se manifesta, se mostra, apresenta sua potência e sua força. Heidegger vê na angústia a própria essência da existência humana, e a possibilidade de o homem alcançar nela o “existir”, ultrapassando a barreira do ser88 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2012..

Diante das vicissitudes experienciadas pelas crianças/adolescentes e das fragilidades da condição humana, os profissionais de saúde poderão apoiá-los e auxiliá-los a dar significado a seus sentimentos relacionados à angústia que gera o medo da finitude dos avós. Dessa forma, favorece reflexões à criança/adolescente e à sua família para a condição fática da existência. O irmão com deficiência é, assim como cada pessoa, lançado no mundo, os seres humanos “caem”, são jogados no reino das coisas, e não têm a menor liberdade sobre isso. Não se escolhe quem nasce, nem onde, nem como. Simplesmente se nasce. Esse é o primeiro caráter fático da existência. Assim, o profissional, ao compreender o mundo vivido e as situações existenciais de crianças/adolescentes, procura sensibilizar e auxiliar a família a tomar consciência da situação tal qual é dada.

Considerações finais

Compreender a percepção de si de crianças/adolescentes que convivem com o irmão com deficiência permitiu o desvelamento de questões existenciais importantes, visto que em muitas situações elas(es) não se sentem valorizados nem parte da família e do mundo, ou no contexto familiar não recebem a atenção devida.

Por meio das expressões verbais, não verbais e do silêncio, os participantes evidenciaram a lacuna de cuidado e referência que vivenciam cotidianamente. Fato esse que se sustenta na falta de alguém para desabafar e compartilhar as experiências de ter/conviver com um irmão com deficiência e no medo da morte dos avós, que na maioria das vezes são a referência de cuidado mais próxima, bem como o temor pela finitude do próprio irmão.

Nesse sentido, este estudo traz contribuições significativas e inovadoras ao dar visibilidade a angústias, fragilidades, situações de vulnerabilidade e necessidades de cuidado da criança/adolescente ao viver-com o irmão com deficiência. Destaca-se a importância de (re)pensar e/ou qualificar os serviços de saúde e a formação dos profissionais de saúde para o cuidado integral à saúde da família, em particular aquela que tem filho com deficiência. Assim, capacitar profissionais a desenvolver ações de cuidado valorizando o modo de ser e as questões existenciais de cada família, concebendo o todo, minimizando as situações de vulnerabilidade e auxiliando crianças/adolescentes e família a viver-no-mundo saudável.

Como limitações, considera-se o fato de ter abordado participantes que estavam vinculados a uma única instituição, o que pode mostrar uma realidade mais particularizada, contudo, por ser um estudo qualitativo, não se almeja generalizações. Por fim, sugere-se a realização de mais estudos com essa população, considerando que crianças e adolescentes que convivem com irmãos com deficiência apresentam diversas vulnerabilidades que precisam ser discutidas, visando elaborações de estratégias de cuidados mais inclusivas e eficientes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Set 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2022
  • Aceito
    24 Jan 2023
  • Publicado
    26 Jan 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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