Perfil e essencialidade da Enfermagem no contexto da pandemia da COVID-19

Betânia Maria Pereira dos Santos Antonio Marcos Freire Gomes Luciano Garcia Lourenção Isabel Cristina Kowal Olm Cunha Aurilene Josefa Cartaxo de Arruda Cavalcanti Manoel Carlos Neri da Silva David Lopes Neto Neyson Pinheiro Freire Sobre os autores

Resumo

A pesquisa tem por objetivo descrever o perfil sociodemográfico e de saúde dos profissionais de enfermagem no contexto da pandemia da COVID-19 e propõe uma análise reflexiva sobre a essencialidade da categoria frente às demandas intrínsecas dos pacientes e do sistema de saúde brasileiro, especialmente, no contexto da emergência de saúde pública deflagrada pelo avanço exponencial do vírus SARS-CoV-2. O estudo revela a relação entre as injustiças históricas e os diferentes tipos de desigualdade que afetam e causam a vulnerabilidade da profissão, com fulcro na apresentação de potenciais perspectivas decorrentes desse processo histórico e dos acontecimentos recentes.

Palavras-chave:
Demografia; Condições de Trabalho; Profissionais de Enfermagem; COVID-19

Introdução

A enfermagem responde por aproximadamente 59% da força de trabalho na área da saúde11 Silva MCN, Machado MH. Sistema de Saúde e Trabalho: desafios para a Enfermagem no Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(1):7-13.. É uma profissão essencial para o funcionamento dos sistemas de saúde público, privado e filantrópico de atenção à saúde. A essencialidade da enfermagem decorre da indispensabilidade de enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, diuturnamente, trabalhando na rede de atenção à saúde, lócus laboral no qual devem ser concebidas as condições mínimas para o desenvolvimento de trabalho digno na atenção à saúde humana com o fito de fazer prevalecer o paradigma da essencialidade, pautado na dignidade da pessoa humana, na valoração do trabalhador e nas relações contratuais de trabalho22 Ribeiro MCP, Steiner RC. O paradigma da essencialidade nos contratos: recensão da obra de Teresa Negreiros. Rev Direito GV 2008; 4(2):569-581..

A enfermagem é uma profissão predominantemente feminina, que vem passando por um processo de masculinização nas últimas três décadas. Dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen)33 Machado MH, Aguiar Filho W, Lacerda WF, Oliveira E, Lemos W, Wermelinger M, Vieira M, Santos MR, Souza Junior PB, Justino E, Barbosa C. Características gerais da enfermagem: o perfil sociodemográfico. Enferm Foco 2015; 6(1/4):11-17., mostram que atualmente existem 450.770 auxiliares, 1.611.639 técnicos e 670.581 enfermeiros registrados no Brasil. Desses trabalhadores, 85,1% se declaram do sexo feminino e 14,1%, masculino. Aproximadamente 50% desse contingente atuou na linha de frente durante a crise de saúde pública decorrente da pandemia de COVID-19.

No Brasil, a mão de obra da enfermagem está concentrada nos grandes centros urbanos, com 56,8% dos profissionais atuando nas 27 capitais e suas regiões metropolitanas, e 40,9% nas mais de cinco mil cidades do interior do país33 Machado MH, Aguiar Filho W, Lacerda WF, Oliveira E, Lemos W, Wermelinger M, Vieira M, Santos MR, Souza Junior PB, Justino E, Barbosa C. Características gerais da enfermagem: o perfil sociodemográfico. Enferm Foco 2015; 6(1/4):11-17.. Dada a sua demografia, a enfermagem representa melhor que qualquer outra profissão o tratamento que é dispensado às mulheres no mercado de trabalho e na sociedade, ao longo da história44 Machado MH. Profissão da Enfermagem: essencialidade x piso salarial [Internet]. [acessado 2022 nov 2]. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=profissao-da-enfermagem-essencialidade-piso-salarial.
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. São pessoas expostas a salários miseráveis, jornadas exaustivas, descanso indigno, preconceito, assédio moral e sexual, transporte precário, insegurança, violência e sobrecarga com as responsabilidades do lar e da família55 Machado MH, Teixeira EG, Freire NP, Pereira EJ, Minayo MCS. Óbitos de Médicos e da equipe de Enfermagem por COVID-19 no Brasil: uma abordagem sociológica. Cien Saude Colet 2022; 28(2):405-419.. Assim como acontece no magistério, as desigualdades de gênero saltam aos olhos.

O duplo vínculo empregatício é uma realidade imposta pelos baixos salários aos profissionais da área. Trabalhar em duas ou mais unidades de saúde acaba sendo a alternativa para ter uma remuneração decente. A pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil mostra que66 Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Perfil da enfermagem no Brasil: banco de dados [Internet]. [acessado 2022 nov 3]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/perfilenfermagem/index.html.
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, pelo menos, 25% da categoria atua em dois empregos. Premida pelos baixos salários, outra parcela significativa das categorias que compõem a classe de enfermagem é empurrada para a informalidade, tendo que fazer “bicos” e “atividades extras” para sobreviver, tais como serviços de babá, cuidador de idosos, salão de beleza, diaristas de serviços domésticos, serviços na construção civil, seguranças privados, office boy, entre outros.

A sobrecarga de trabalho dos profissionais de enfermagem é uma realidade brutal e está presente nos 75 mil estabelecimentos de saúde do setor público e 60 mil do setor privado77 Machado MH, Koster I, Aguiar Filho W, Wermelinger MCMW, Freire NP, Pereira EJ. Mercado de trabalho e processos regulatórios - a Enfermagem no Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(1):101-112.. Em linhas gerais, a vida do profissional de enfermagem nesse espaço se divide em quatro fases: o início da vida profissional - até 25 anos de idade; a fase da formação profissional - entre 26 e 35 anos; a maturidade profissional - entre 36 e 50 anos; e a fase definida como desaceleração profissional - entre 51 e 60 anos33 Machado MH, Aguiar Filho W, Lacerda WF, Oliveira E, Lemos W, Wermelinger M, Vieira M, Santos MR, Souza Junior PB, Justino E, Barbosa C. Características gerais da enfermagem: o perfil sociodemográfico. Enferm Foco 2015; 6(1/4):11-17..

De acordo com as métricas oficiais, 59,3% das equipes de enfermagem atuam no setor público, 31,8% no privado, 14,6% no filantrópico e 8,2% nas atividades de ensino88 Agência Fiocruz de Notícias. Pesquisa inédita traça perfil da enfermagem no Brasil [Internet]. [acessado 2022 nov 1]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-inedita-traca-perfil-da-enfermagem-no-brasil.
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. Apenas 40% das pessoas que compõem as equipes de enfermagem tiveram condições de fazer alguma capacitação profissional após a formação, devido aos baixos salários e às jornadas exaustivas. Esse cenário pode favorecer a estagnação dos profissionais, que tendem a se manter ligados à carreira por receio de perder direitos e benefícios, sem perspectiva de crescimento e desenvolvimento profissional99 Lourenção LG, Silva RAS, Moretti MSR, Sasaki NSGMS, Sodré PC, Gazetta CE. Career commitment and entrenchment among Primary Care nurses. Rev Esc Enferm USP 2021; 55:e20210186.. Por outro lado, numa clara demonstração de superação, aproximadamente 30% dos auxiliares e técnicos cursaram graduação, para se tornar enfermeiro. No mesmo sentido, a maioria absoluta (85%) deseja seguir os estudos para chegar ao nível superior, demonstrando grande comprometimento com a carreira66 Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Perfil da enfermagem no Brasil: banco de dados [Internet]. [acessado 2022 nov 3]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/perfilenfermagem/index.html.
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,1010 Lourenção LG, Oliveira JF, Ximenes Neto FRG, Cunha CLF, Valenzuela-Suazo SV, Borges MA, Gazetta CE. Career commitment and career entrenchment among Primary Health Care workers. Rev Bras Enferm 2022; 75(1):e20210144..

Não obstante, a busca, o domínio e o monopólio do saber aproximam cada vez mais a enfermagem da autonomia e do prestígio social77 Machado MH, Koster I, Aguiar Filho W, Wermelinger MCMW, Freire NP, Pereira EJ. Mercado de trabalho e processos regulatórios - a Enfermagem no Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(1):101-112.. Apesar das dificuldades enfrentadas, a profissão rompeu o histórico do trabalho filantrópico e religioso de assistência aos enfermos, prestado nas Santas Casas de Misericórdia, e se profissionalizou. A figura caritativa e altruísta vem se desvanecendo como coisa do passado. Hoje, a atividade reúne os elementos sociológicos que projetam a seu futuro: conhecimento próprio, vasto mercado de trabalho e reconhecimento social44 Machado MH. Profissão da Enfermagem: essencialidade x piso salarial [Internet]. [acessado 2022 nov 2]. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=profissao-da-enfermagem-essencialidade-piso-salarial.
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Durante a pandemia, a enfermagem brasileira cuidou de 34 milhões de pacientes infectados pela COVID-19, aplicou 519 milhões de doses de vacinas contra a doença e deu conforto para centenas de milhares de doentes da COVID-19, sendo que, destes, 680 mil foram a óbito1111 Santos BM. A quem interessa sucatear a enfermagem? [Internet]. [acessado 2022 out 29]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/08/a-quem-interessa-sucatear-a-enfermagem.shtml.
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. Esse trabalho resgatou e realçou a narrativa do heroísmo1212 Bessa MM, Lima LS, Silva SWS, Bessa MS, Souza JO, Freitas RJM. Protagonism of nursing in times of COVID-19: heroes? Rev Enferm UFPI 2020; 9(1):e10781., ao ponto de as pessoas irem para as janelas aplaudirem o trabalho de profissionais valentes, que arriscam a vida na linha de frente, sem proteção e com coragem1313 O Globo. Profissionais de saúde são homenageados com aplausos nas janelas [Internet]. [acessado 2022 out 27]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/coronavirus-profissionais-de-saude-sao-homenageados-com-aplausos-nas-janelas-24319194.
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. Como nunca antes, a enfermagem ocupou os editoriais, protagonizou reportagens nos meios de comunicação e os representantes da categoria passaram a ser convidados para opinar sobre os problemas da saúde pública1414 Freire NP, Castro DA, Fagundes MCM, Ximenes Neto FRG, Cunha ICKO, Silva MCN. Notícias sobre a Enfermagem Brasileira na pandemia da COVID-19. Acta Paul Enferm 2021; 34:eAPE02273.. Dessa forma, a história e as reivindicações da classe chegaram ao centro do debate político nacional1515 Senado Federal. Piso salarial para a enfermagem é sancionado, mas Bolsonaro veta indexação [Internet]. [acessado 2022 out 22]. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/08/05/piso-salarial-para-enfermagem-e-sancionado-mas-bolsonaro-veta-indexacao.
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. Contudo, a despeito da narrativa, a pandemia revelou para a sociedade que, por trás da estética do herói, existe uma categoria cansada, explorada e exposta aos riscos de um sistema de saúde desumano, que não respeita regras de segurança e saúde nem os aspectos humanos dos processos de trabalho. De acordo com dados oficiais, no Brasil, a COVID-19 infectou 64.629 profissionais de enfermagem e matou 872 deles1616 Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Observatório da Enfermagem [Internet]. [acessado 2022 out 25]. Disponível em: http://observatoriodaenfermagem.cofen.gov.br/.
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. A cada três profissionais da área que morreram por causa da doença no mundo, um foi no Brasil1717 El País. Brasil responde por um terço das mortes globais entre profissionais de enfermagem por Covid [Internet]. [acessado 2022 out 26]. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-08/brasil-responde-por-um-terco-das-mortes-globais-entre-profissionais-de-enfermagem-por-COVID-19.html.
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. O país responde por 3% da população mundial e por 11% das mortes totais causadas pelo novo Coronavírus1818 Rede Brasil Atual. Com 3% da população, Brasil tem 11% das mortes por COVID-19 no mundo em 2020 [Internet]. [acessado 2022 out 19]. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/saude-e-ciencia/com-3-populacao-brasil-tem-11-das-mortes-por-COVID-19-no-mundo-em-2020/.
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. Uma tragédia sem precedentes, que revela o nível de precariedade sanitária a que a enfermagem está submetida.

Para 60% dos profissionais de enfermagem brasileiros, durante a pandemia de COVID-19 faltou apoio institucional para o enfrentamento da doença; 21% se sentiram desvalorizados pela própria chefia; 40% viveu algum tipo de violência no ambiente de trabalho; 33,7% sofreu discriminação na própria vizinhança e 27,6% foi vítima de discriminação no trajeto entre a casa e o trabalho, pois as pessoas acreditavam que o trabalhador transportava o vírus e, portanto, representava um risco ambulante. Como consequência dessa situação, 15,8% dos profissionais declararam sofrer com perturbação do sono, 13,6% relataram irritabilidade e choro frequente, 11,7% disseram ser incapazes de relaxar e com sensação de estresse, 9,2% têm dificuldade de concentração ou pensamento lento, 9,1% informaram ter perda de satisfação na carreira ou na vida, 8,3% narraram sensação negativa do futuro e pensamento negativo ou suicida e 8,1% enfrentaram alteração no apetite e alteração de peso1919 Leonel F. Pesquisa analisa o impacto da pandemia entre profissionais de saúde [Internet]. [acessado 2022 out 5]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-analisa-o-impacto-da-pandemia-entre-profissionais-de-saude.
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No decorrer da pandemia, o Cofen recebeu 6.200 denúncias sobre a precariedade das condições de trabalho dos profissionais de enfermagem no atendimento dos casos de COVID-19 e, por meio dos Conselhos Regionais de Enfermagem (COREN), fiscalizou 8.674 instituições de saúde2020 Estúdio Folha. É hora de cuidar do essencial [Internet]. [acessado 2022 out 14]. Disponível em: https://estudio.folha.uol.com.br/cofen-perigosdacovid/2020/05/1988719-e-hora-de-cuidar-do-essencial.shtml.
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. A instituição lidou com uma tempestade sanitária guiada por diretrizes experimentais extraídas de um conhecimento rudimentar. A situação se converteu em um cenário que exacerbou as desigualdades e evidenciou que não estamos todos no mesmo barco. Nessa metáfora, é evidente que as embarcações mais frágeis são as que levam os profissionais de saúde à linha de frente2121 Minayo MCS, Freire NP. Pandemia exacerba desigualdades na Saúde. Cien Saude Colet 2020; 25(9):3555-3556.. Tanto que, na equipe de enfermagem, 65,9% das pessoas acusam desgaste profissional, principalmente por causa da sobrecarga de responsabilidades.

O convívio com a dor, o sofrimento e a doença, associado às más condições laborais, tem levado a um panorama desolador. Apenas 34% dos profissionais de enfermagem pratica algum esporte ao longo da semana, ou seja, 66% é declaradamente sedentário. Um quarto da categoria apresenta comorbidades como hipertensão, obesidade, doenças pulmonares, depressão e diabetes e mais de 70% apresenta sinais de esgotamento extremo, além de sequelas físicas e psicológicas decorrentes da pandemia44 Machado MH. Profissão da Enfermagem: essencialidade x piso salarial [Internet]. [acessado 2022 nov 2]. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=profissao-da-enfermagem-essencialidade-piso-salarial.
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. A rigor, são indivíduos impedidos de levar uma vida saudável.

Dado o contexto, as pesquisas “Condições de Trabalho dos Profissionais de Saúde no Contexto da Covid-19 no Brasil”2222 Machado MH, coordenadora. Condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2020/2021. e “Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil”2323 Machado MH, coordenadora. Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2021/2022., cujos resultados inéditos subsidiam este trabalho e serão demonstrados a seguir, apresentam dados reveladores sobre a situação da profissão no Brasil e dão contribuição relevante para o avanço do conhecimento sobre a situação da maior força de trabalho da saúde no país, a Enfermagem.

Ante o exposto, este estudo objetivou descrever o perfil sociodemográfico e de saúde dos profissionais de enfermagem no contexto da pandemia da COVID-19.

Método

Estudo descritivo, com delineamento transversal, construído a partir dos dados obtidos nas pesquisas “Condições de Trabalho dos Profissionais de Saúde no Contexto da Covid-19 no Brasil”2222 Machado MH, coordenadora. Condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2020/2021. e “Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil”2323 Machado MH, coordenadora. Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2021/2022., coordenadas pelo Centro de Estudos Estratégicos da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (CEE/ENSP/FIOCRUZ). Essas pesquisas são oriundas de um projeto matricial de abrangência nacional e contaram, respectivamente, com a participação de 8.897 enfermeiros, 11.469 auxiliares e técnicos e enfermagem.

Os profissionais de enfermagem que compuseram a amostra do estudo atuaram na linha de frente do enfrentamento à pandemia da COVID-19 em instituições públicas e privadas de saúde de 2.200 municípios de todo o país. A divulgação das pesquisas ocorreu por meio das redes sociais e de contatos institucionais, através de entidades nacionais e regionais que congregam trabalhadores da saúde, entre elas o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Enfermagem.

A base de dados da pesquisa foi constituída a partir de um questionário on-line, contendo questões fechadas, aplicado entre junho e dezembro de 2020, utilizando a plataforma Research Electronic Data Capture (RedCap). As respostas foram recebidas e armazenadas no servidor do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT) da Fiocruz. Os dados foram analisados por meio dos programas Microsoft Excel e Microsoft SQL Server.

As pesquisas adotaram amostragem não probabilística, por meio do modelo de bola de neve, a partir do uso das redes sociais dos atores envolvidos para o acesso ao coletivo que constituiu o público-alvo de cada pesquisa, de modo que a escolha dos participantes não suguiu modelo aleatório. O questionário aplicado foi de autopreenchimento e de livre disseminação, e a análise dos dados foi realizada por meio de métodos estatísticos descritivos.

O projeto matricial, coordenado pela Fiocruz, foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob Parecer nº 4.081.914 (CAAE nº 32351620.1.0000.5240).

Resultados

O estudo contou com uma amostra de 20.393 profissionais de enfermagem, sendo 8.897 enfermeiros (43,6%), oriundos da pesquisa “Condições de Trabalho dos Profissionais de Saúde no Contexto da COVID-19 no Brasil”2222 Machado MH, coordenadora. Condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2020/2021. e 11.496 (56,4%) auxiliares e técnicos de enfermagem, que integraram a pesquisa “Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da COVID-19 no Brasil”2323 Machado MH, coordenadora. Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2021/2022..

Conforme demonstrado na Tabela 1, estes profissionais estão distribuídos em todo o território nacional, com predomínio tanto de enfermeiros (45,1%) quanto de auxiliares e técnicos de enfermagem (33,9%) na região Sudeste. Observou-se menor concentração de enfermeiros na região Norte (7,6%) e de auxiliares e técnicos de enfermagem na região Centro-Oeste (8,1%). Destaca-se uma concentração de profissionais trabalhando nas capitais dos estados brasileiros: enfermeiros (40,8%) e auxiliares e técnicos de enfermagem (38,0%); e em cidades de regiões de interior: enfermeiros (39,6%) e auxiliares e técnicos de enfermagem (37,5%).

Tabela 1
Distribuição dos profissionais de enfermagem, segundo região do Brasil e local onde trabalham. Brasil, 2020-2021.

De acordo com o perfil demográfico (Tabela 2), a maioria dos profissionais que participaram do estudo eram do sexo feminino (enfermeiros: 84,3%; auxiliares e técnicos de enfermagem: 83,1%), com concentração de profissionais na fase de maturidade profissional (36 a 50 anos), seguido da fase de formação profissional (26 a 35 anos), sendo respectivamente 48,2% e 35,1% dos enfermeiros, 48,5% e 29,3% dos auxiliares e técnicos de enfermagem. Em relação à cor/raça, a maioria dos enfermeiros eram brancos (51,6%). Entre os auxiliares e técnicos de enfermagem observou-se predomínio de profissionais pardos (46,2%).

Tabela 2
Perfil demográfico dos profissionais de enfermagem. Brasil, 2020-2021.

Conforme demonstra a Tabela 3, o perfil laboral evidenciou que, no contexto da pandemia da COVID-19, a maioria dos profissionais de enfermagem trabalhavam de 21 a 40 horas semanais (53,2% dos enfermeiros e 50,2% dos auxiliares e técnicos de enfermagem). Destaca-se, contudo, que 30,9% dos enfermeiros e 29,1% dos auxiliares e técnicos de enfermagem trabalhavam entre 41 e 60 horas semanais. Esses resultados evidenciam a presença de mais de um vínculo laboral dos profissionais de enfermagem estudados.

Tabela 3
Perfil laboral dos profissionais de enfermagem. Brasil, 2020-2021.

A rede hospitalar constituiu o principal grupo de estabelecimentos de saúde em que os profissionais de enfermagem aturaram durante a pandemia da COVID-19: 56,2% dos enfermeiros e 65,2% dos auxiliares e técnicos de enfermagem atuavam em unidades hospitalares.

A despeito do protagonismo da atuação da enfermagem no enfrentamento da pandemia da COVID-19, os profissionais que atuaram na linha de frente sofreram risco de contaminação. Observou-se que 24,4% dos enfermeiros (2.173 profissionais) afirmaram ter recebido diagnóstico positivo para a COVID-19. Entre os auxiliares e técnicos de enfermagem, esse percentual foi de 38,5% (4.418 profissionais) (Figura 1).

Figura 1
Distribuição dos profissionais de enfermagem, segundo diagnóstico da COVID-19. Brasil, 2020-2021.

Muitos profissionais de enfermagem que atuaram na linha de frente da COVID-19 eram portadores de doenças pré-existentes, que podem constituir fator de risco para o aumento da gravidade da doença e o óbito. O estudo mostra que quase um quarto dos profissionais afirmaram possuir doença pré-existente, entre as quais destaca-se a hipertensão arterial (26,4% enfermeiros; 29,6% auxiliares e técnicos de enfermagem), obesidade (18,6% enfermeiros; 16,4% auxiliares e técnicos de enfermagem) e doenças pulmonares (15,7% enfermeiros; 15,9% auxiliares e técnicos de enfermagem) (Tabela 4).

Tabela 4
Perfil clínico dos profissionais de enfermagem, segundo presença de doença pré-existente. Brasil, 2020-2021.

Discussão

Os resultados deste estudo expressam o perfil da enfermagem brasileira no contexto da pandemia da COVID-19 e denotam que estes profissionais foram imprescindíveis para a assistência à saúde das pessoas acometidas pela doença. Apontam, ainda, que a distribuição dos profissionais de enfermagem nas diferentes regiões acompanha a distribuição espacial da população, com maior concentração na região Sudeste, a mais desenvolvida e que possui maior disponibilidade de recursos e serviços de saúde no país2424 Ranzani OT, Bastos LSL, Gelli JGM, Marchesi JF, Baião F, Hamacher S, Bozza FA. Characterization of the first 250,000 hospital admissions for COVID-19 in Brazil: a retrospective analysis of nationwide data. Lancet Respir Med 2021; 9(4):407-418.. Essa disparidade na distribuição dos profissionais de enfermagem pode ter se intensificado no contexto da pandemia da COVID-19, em decorrência da disponibilidade de recursos, impactando mais fortemente a população economicamente mais vulnerável2525 Santos HLPCD, Maciel FBM, Santos Junior GM, Martins PC, Prado NMBL. Public expenditure on hospitalizations for COVID-19 treatment in 2020, in Brazil. Rev Saude Publica 2021; 55:52..

Não se trata objetivamente da descentralização do sistema de saúde, tampouco da divisão das responsabilidades federal, estadual e municipal na consecução dos serviços de baixa, média e alta complexidade ao cidadão2626 Felli VEA. Condições de trabalho de enfermagem e adoecimento: motivos para a redução da jornada de trabalho para 30 horas. Enferm Foco 2012; 3(4):178-181.. Se assim fosse, o sistema funcionaria de forma equânime e universal, independentemente das disparidades regionais, conforme dispõem os preceitos constitucionais. Com literal expressão da realidade, aqui se trata da desigualdade estipulada sobretudo pelo viés econômico de um país marcado por desigualdades estruturais que remontam ao período colonial, com marcada estratificação dos pobres2727 Santos NR. O Sistema Único de Saúde pobre para os pobres, a COVID-19 e o capitalismo financeirizado. Cad Saude Publica 2022; 38(2):e00076321..

Com efeito, essas assimetrias na distribuição da força de trabalho da enfermagem refletem e representam as próprias desigualdades sociais e econômicas da sociedade brasileira2828 Pitombeira DF, Oliveira LC. Pobreza e desigualdades sociais: tensões entre direitos, austeridade e suas implicações na atenção primária. Cien Saude Colet 2020; 25(5):1699-1708.. Mais especificamente, representam essencialmente as dificuldades e os preconceitos enfrentados pelas mulheres na busca da ascensão social, emancipação financeira e independência profissional2929 Oliveira D. Gênero e classe: as mulheres na enfermagem [Internet]. [acessado 2023 fev 15]. Disponível em: https://contrapontodigital.pucsp.br/noticias/genero-e-classe-mulheres-na-enfermagem.
https://contrapontodigital.pucsp.br/noti...
,3030 Oliveira JF, Oliveira AMN, Barlem ELD, Lourenção LG. The vulnerability of the family: reflections about human condition. Rev Bras Enferm 2021; 74(1):e20190412.. Sufocadas pelos baixos salários, contingente significativo das profissionais são obrigadas a manter mais de um emprego, além de ainda ter que continuar se responsabilizando por afazeres domésticos e maternais. Não é exagero dizer que são trabalhadoras que enfrentam jornada tripla, sem o devido reconhecimento e valorização3131 Spindola T. Mulher, mãe e trabalhadora de enfermagem. Rev Esc Enferm USP 2000; 34(4):344-363., e mesmo diante destas dificuldades, apresentam engajamento com o trabalho e demonstram energia, resiliência e entusiasmo, que fortalecem o comprometimento com a carreira99 Lourenção LG, Silva RAS, Moretti MSR, Sasaki NSGMS, Sodré PC, Gazetta CE. Career commitment and entrenchment among Primary Care nurses. Rev Esc Enferm USP 2021; 55:e20210186.,3232 Silva AG, Cabrera EMS, Gazetta CE, Sodré PC, Castro JR, Cordioli Junior JR, Lourenção LG. Engagement in primary health care nurses: A cross-sectional study in a Brazilian city. Public Health Nurs 2020; 37(2):169-177.,3333 Lourenção LG. Work engagement among participants of residency and professional development programs in nursing. Rev Bras Enferm 2018; 71(Supl. 4):1487-1492..

Nesse ínterim, corrobora-se a hipótese de que a enfermagem é discriminada, subjugada e alijada de direitos fundamentais por ser formada majoritariamente por mulheres. Ou seja, o machismo impregnado na sociedade se reproduz nas relações de trabalho nos serviços de saúde e provoca a sedimentação da cultura fundada no patriarcado, que subalterniza o feminino e promove a divisão injusta do trabalho3030 Oliveira JF, Oliveira AMN, Barlem ELD, Lourenção LG. The vulnerability of the family: reflections about human condition. Rev Bras Enferm 2021; 74(1):e20190412.,3434 Galvão E. Gênero feminino: os desafios dos profissionais de enfermagem [Internet]. [acessado 2023 fev 15]. Disponível em: https://multisaude.com.br/artigos/genero-feminino-e-os-desafios-dos-profissionais-de-enfermagem/.
https://multisaude.com.br/artigos/genero...
.

Paralelamente, a realidade dos homens que exercem a profissão também não é confortável. Os resultados da pesquisa indicam que, guardadas as devidas proporções, eles também são atingidos pelo preconceito que delineia a sociedade brasileira. Assim, igualmente adoecem por causa das injustiças sociais e do excesso de responsabilidade, convergindo para uma vida sedentária em decorrência da falta de tempo e de recursos para o lazer e para as atividades físicas3535 Muniz DC, Andrade EGS, Santos WL. A saúde do enfermeiro com a sobrecarga de trabalho. Rev Inic Cient Ext 2019; 2(2):274-279..

Sobretudo, perpassando as questões de gênero, as desigualdades também são observadas, inclusive, dentro da própria profissão. Note-se que a maioria das pessoas brancas são graduadas (enfermeiras e enfermeiros) enquanto a maioria dos profissionais de nível médio (técnicas, técnicos e auxiliares) se declara parda ou negra. Os séculos de escravidão levaram ao racismo e ao estabelecimento de níveis desiguais de acesso à educação e à carreira na enfermagem, realçando a reprodutibilidade de relações raciais e sociais, que se perpetuam até os dias atuais3636 Silva ACO, Vale JS. Racismo institucional na enfermagem: um revisão integrativa da literatura [Internet]. [acessado 2023 fev 15]. Disponível em: https://repositorio.faema.edu.br/handle/123456789/3072.
https://repositorio.faema.edu.br/handle/...
. Ainda, reputa-se como impossível trabalhar de 41 a 60 horas por semana em instituições de saúde - como faz aproximadamente um terço dos profissionais de enfermagem brasileiros - e continuar plenamente saudável3737 Lima MB, Silva LMS, Almeida FCM, Torres RAM, Dourado HHM. Agentes estressores em trabalhadores de enfermagem com dupla ou mais jornadas de trabalho. Rev Pesq Cuid Fundam 2013; 5(1):3259-3266.. As longas jornadas de trabalho associadas aos elevados níveis de estresse ocupacional, geram adoecimento psíquico dos profissionais de enfermagem3838 Cordioli DFC, Cordioli Jr JR, Gazzeta CE, Silva AG, Lourenção LG. Occupational stress and work engagement in primary health care workers. Rev Bras Enferm 2019; 72(6):1580-1587.

39 Rotta DS, Pinto MH, Lourenção LG, Teixeira PR, Gonsalez EG, Gazetta CE. Anxiety and depression levels among multidisciplinary health residents. Rev Rene 2016; 17(3):372-377.
-4040 Julio RS, Lourenção LG, Penha JGM, Oliveira AMN, Nascimento VF, Oliveira SM, Gazetta CE. Anxiety, depression, and work engagement in Primary Health Care nursing professionals. Rev Rene 2021; 220:e70762.. Além disso, a convivência com a dor, com a chance de se infectar, com o risco de adoecer e com a sobrecarga de responsabilidades, levam estes indivíduos a se depararem com uma vida prejudicada, sem margem e espaço para o autocuidado e para o autoconhecimento4141 Salomé GM, Martins MFMS, Espósito VHC. Sentimentos vivenciados pelos profissionais de enfermagem que atuam em unidade de emergência. Rev Bras Enferm 2009; 62(6):856-862..

Mormente a visibilidade e o reconhecimento alcançado pela enfermagem após a pandemia da COVID-19, esses fatores não tornaram a realidade da categoria melhor, pelo menos por enquanto4242 Spagnol CA, Pereira MS, Cunha CT, Pereira KD, Araújo KLS, Figueiredo LG, Almeida NG. Holofotes acesos durante a pandemia da COVID-19: paradoxos do processo de trabalho da enfermagem. REME 2020; 24:e-1342.. Em que pese o avanço da regulamentação do piso salarial, buscado há pelo menos três décadas, não há discussão promissora em andamento sobre a necessária redução da jornada de trabalho para 30 horas semanais4343 Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil. FNE repudia arquivamento de projeto que defende jornada de 30h para enfermagem [Internet]. [acessado 2023 fev 15]. Disponível em: https://ctb.org.br/saude/fne-repudia-arquivamento-de-projeto/.
https://ctb.org.br/saude/fne-repudia-arq...
, tampouco houve redução dos riscos envolvidos no exercício da atividade profissional. Isso se reflete no aumento do estresse e da prevalência de doenças preexistentes, como a hipertensão, a obesidade e as doenças pulmonares, que se manifestam como fator de risco de morte em diferentes contextos e escalas, sobretudo mediante infecções e acidentes laborais2626 Felli VEA. Condições de trabalho de enfermagem e adoecimento: motivos para a redução da jornada de trabalho para 30 horas. Enferm Foco 2012; 3(4):178-181.,3838 Cordioli DFC, Cordioli Jr JR, Gazzeta CE, Silva AG, Lourenção LG. Occupational stress and work engagement in primary health care workers. Rev Bras Enferm 2019; 72(6):1580-1587.,4444 Ximenes Neto FRG, Teixeira SES, Santos FD, Lourenção LG, Dourado Júnior FW, Flôr SMC, Oliveira EN, Cunha ICKO, Machado MH. Acidente de trabalho com exposição a material biológico entre enfermeiros. Poblac Salud Mesoam 2022; 20(2):51221..

De maneira geral, a situação da enfermagem tem impacto direto na qualidade do cuidado de saúde oferecido aos usuários dos serviços de saúde. Não é razoável exigir qualidade sem o devido investimento. Qualquer solução que se preze não poderá ficar restrita aos insumos e tecnologias, mas deverá alcançar a esfera humana dos processos de trabalho, pois é impossível chegar a melhores índices na prestação assistencial, sem o atendimento das urgências desses trabalhadores, que ainda parecem ter um longo passado pela frente.

A conjuntura apresentada por este estudo não é recente, mas soma agravantes ao longo do tempo. As mazelas que afetam a categoria e a trajetória de luta da enfermagem por direitos, reconhecimento e melhores condições de trabalho já completa quase cem anos no Brasil. Remonta ao ano de 1926, quando egressas da Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública (atual Escola de Enfermagem Anna Nery, da UFRJ), inconformadas com a situação laboral, começaram a se organizar politicamente para expor as agruras da profissão4545 Barreira IA. Os primórdios da Enfermagem Moderna no Brasil. Esc Anna Nery 1997; 1(1):161-176.. De lá para cá, esse processo se intensificou até se tornar tema latente no debate público.

Sabe-se que a equipe de enfermagem é a espinha dorsal do sistema de saúde brasileiro. Evidentemente, todos os trabalhadores da equipe multiprofissional são essenciais para o funcionamento das instituições de saúde. Entretanto, a enfermagem é a categoria mais próxima dos pacientes e se define como essencial no cuidado da dor, na administração de medicamentos, na gestão das terapias, na busca do conforto humano, na imunização da população e no manejo da vida e da morte, que são atividades-fim de quem atua no segmento.

Conclusão

Os resultados deste estudo permitem delinear alguns aspectos referentes ao perfil da enfermagem, no contexto da pandemia da COVID-19, como: predomínio de profissionais do sexo feminino, com idade correspondente às fases de formação e de maturidade profissional; distribuição heterogênea dos profissionais no território nacional, com maior número na região Sudeste; concentração de profissionais trabalhando nas capitais dos estados e em unidades hospitalares; presença de mais de um vínculo laboral; e muitos profissionais portadores de doenças pré-existentes, especialmente hipertensão arterial sistêmica, obesidade e doenças pulmonares.

Ao traçar o perfil da categoria, o estudo oferece contribuição devida para a definição de políticas públicas e abordagens adequadas à necessidade destes profissionais para o país, principalmente, em relação às parcelas mais vulneráveis da população. Afinal, conforme preconiza a Organização Mundial de Saúde, ser saudável não implica estar livre de doenças, mas ter condições de vida que garantam bem-estar físico, mental e social, entre os quais inclui o acesso aos serviços de saúde, cuja garantia depende da valorização dos profissionais de enfermagem.

A situação da saúde brasileira, que já não era favorável, foi agravada pela pandemia da COVID-19. A falta de equipamentos de proteção, o déficit de profissionais, os baixos salários, as jornadas exaustivas e o alto índice de adoecimento e mortes entre colegas de profissão abalaram alicerces que já eram frágeis. Sob essa perspectiva, a enfermagem foi fustigada por dificuldades praticamente intransponíveis nos últimos três anos, ao mesmo tempo em que foi alçada à figura pública respeitada pela sociedade, haja visto a quantidade de editoriais e homenagens rendidas à categoria nesse período.

Mas, as homenagens não significaram melhores condições de trabalho e de vida para enfermeiras, auxiliares e técnicos em enfermagem, pelo menos no curto prazo, conforme evidenciam os dados deste estudo. Assim, a superação dessa realidade e a construção de um futuro melhor para a enfermagem e para a saúde passa pelo atendimento das demandas expressas nos coeficientes da pesquisa em epígrafe, que revela informações imprescindíveis para a compreensão científica e política do tema.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Out 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2022
  • Aceito
    01 Jun 2023
  • Publicado
    26 Jun 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br