O Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) como espaço estratégico para a modernização do SUS e para a geração dos empregos do futuro

Carlos Augusto Grabois Gadelha Denis Maracci Gimenez Juliana Pinto de Moura Cajueiro Juliana Duffles Donato Moreira Sobre os autores

Resumo

Esse artigo apresenta os primeiros resultados da pesquisa sobre o novo mundo do trabalho da saúde no contexto da revolução 4.0 que buscou, além de identificar o perfil e o volume de emprego gerado pelas atividades de saúde no Brasil, analisar as principais transformações no mundo do trabalho e do emprego provocadas pelas novas tecnologias e seus potenciais efeitos no âmbito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS). A metodologia busca contribuir para uma nova visão dos profissionais de saúde, pois além de caracterizar o perfil ocupacional, incluindo seu conteúdo tecnológico, incorpora profissionais alocados, direta e indiretamente, no CEIS. Os resultados apresentados, fruto da aplicação da metodologia nas bases de dados da RAIS e da PNAD Contínua, para os anos entre 2012 e 2019, revelam a elevada capacidade de geração de bons empregos no CEIS, mesmo em contexto de crise econômica. O mercado de trabalho em saúde, tanto por sua escala, complexidade e diversidade, quanto por seu dinamismo e potencial em termos de incidência das tecnologias 4.0, indica que o desenvolvimento do CEIS pode se constituir em motor do desenvolvimento do país, associando inovação e produção à modernização do Sistema Único de Saúde (SUS) e à geração de bons empregos.

Palavras-chave:
Complexo Econômico-Industrial da Saúde; Desenvolvimento; Mercado de Trabalho; Tecnologias 4.0; Sistema Único de Saúde

Introdução

Um dos principais desafios do mundo contemporâneo é o de promover o desenvolvimento para a geração de bons empregos e a garantia de acesso aos direitos sociais diante dos novos paradigmas tecnológicos. Na tradição crítica do pensamento econômico latino-americano, trata-se de reconhecer o conceito de desenvolvimento como um processo de mudança estrutural no qual o sistema produtivo, sob bases técnicas revolucionadas, é orientado para a generalização de direitos e garantia da sustentabilidade ambiental.

As mudanças climáticas, demográficas e epidemiológicas que pressionam o Sistema Único de Saúde (SUS) com novas, complexas e crescentes necessidades de saúde ocorrem em paralelo ao avanço da chamada Quarta Revolução Industrial e Tecnológica, colocando novos desafios, analíticos e políticos, para a discussão da relação entre desenvolvimento e saúde no contexto capitalista. O uso da biotecnologia, Inteligência Artificial, Big Data, edição genética, manufatura aditiva, nanotecnologia e Internet das Coisas são frentes de expansão e de inovação que se expressam no campo da saúde de forma decisiva, transformando-o num dos setores mais dinâmicos no contexto contemporâneo.

Em meio a essas transformações, a Fiocruz articulou o projeto “Desafios para o SUS no contexto nacional e global de transformações sociais, econômicas e tecnológicas - CEIS 4.0” que marca a cooperação de pesquisa no campo do desenvolvimento, do trabalho e da política social, no âmbito da agenda do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), buscando avançar na formulação de políticas públicas comprometidas com a transformação econômica e social, com o SUS e com os direitos sociais e trabalhistas.

A partir dessa perspectiva, buscou-se identificar o perfil e o volume de emprego gerado pelas atividades de Saúde no Brasil e discutir as principais transformações no mundo do trabalho e emprego, no âmbito do complexo, provocadas pelas transformações tecnológicas da revolução 4.0. Na metodologia desenvolvida busca-se contribuir para uma nova e complexa visão dos profissionais de saúde, pois a identificação dos trabalhadores em saúde incorpora profissionais alocados direta e indiretamente no CEIS.

Identificar e compreender os avanços e as limitações com relação aos impactos das novas tecnologias na demanda, na oferta e na atuação dos profissionais da saúde é fundamental para captar o potencial e o futuro do complexo, com foco nos serviços de saúde, elemento central para o acesso universal. As novas mudanças tecnológicas impõem cada vez maior e mais rápida pressão sobre o CEIS podendo acentuar assimetrias e contradições entre os interesses do capital e o mundo da vida, conforme ficou evidente na pandemia COVID-1911 Gimenez DM, Cajueiro JPM. Ocupações e o novo mercado de trabalho no CEIS no contexto da pandemia Covid-19. Cad Desenvolv 2021; 16(28):221-238.

2 The Economist. Alphabet is spending billions to become a force in health care [Internet]. 2022 [cited 2023 jan 15]. Available from: https://www.economist.com/business/2022/06/20/alphabet-is-spending-billions-to-become-a-force-in-health-care?ppccampaignID=&ppcadID=&ppcgclID=&ppccampaignID=&ppcadID=&ppcgclID=&utm_medium=cpc.adword.pd&utm_source=google&ppccampaignID=19495686130&ppcadID=&utm_campaign=a.22brand_pmax&utm_content=conversion.direct-response.anonymous&gclid=CjwKCAjwoqGnBhAcEiwAwK-OkbwaKw2SegWzdr5nBSjLPYYp1xV-LSaujXpHV24ddK9hT37T_YKogBoC1pMQAvD_BwE&gclsrc=aw.ds.
https://www.economist.com/business/2022/...
-33 Gadelha CAG. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde 4.0: por uma visão integrada do desenvolvimento econômico, social e ambiental. Cad Desenvolv 2021; 16(28):25-50..

O quadro traz consigo ameaças e oportunidades. Num contexto no qual as assimetrias produtivas e de conhecimento apontam para segmentação dos serviços e polarização do mercado de trabalho, as diversas atividades ligadas à atenção à saúde se mantêm como grandes geradoras de ocupações qualificadas impulsionando um verdadeiro processo de “destruição criadora”. Nesse sentido, dois movimentos são observados no mercado de trabalho do CEIS: ao mesmo tempo que ocorre a substituição de algumas ocupações ou de parte das suas atividades, surgem novas ocupações, competências, capacitações ou formas de contratação, o que afeta o volume e os conteúdos ocupacionais de forma decisiva e irreversível.

Conseguir oferecer um serviço universal e integral de saúde, humanizado e de qualidade, incorporando as novas ferramentas disponíveis e a capacidade de precisão da medicina, exige uma base econômica e produtiva cada vez mais sofisticada, capaz de lidar com as novas tecnologias, e de um profissional de saúde preparado. Este profissional deve dispor de novas habilidades e competências, o que pode exigir a formação de novos profissionais ou a incorporação de outros profissionais de outras áreas do conhecimento, como as ligadas às tecnologias digitais ou à matemática ou engenharia avançada, para realizar as novas tarefas e utilizar as novas ferramentas disponíveis.

Mantendo a perspectiva de inovação como um processo de transformação política, econômica e social, busca-se nesse artigo apresentar os primeiros resultados da pesquisa sobre o impacto da 4ª revolução industrial com o objetivo central de identificar e analisar quais são os seus potenciais efeitos no mundo do trabalho e do emprego. Com isso, buscou-se identificar e analisar o potencial do CEIS em termos de geração de bons empregos e de empregos do futuro, dentro de uma estratégia de superação das desigualdades históricas que marcam a estrutura socio-ocupacional brasileira, dada a dependência produtiva e, principalmente, tecnológica, que tem colocado o País na posição de mero consumidor de tecnologias e inovações.

Para cumprir esse objetivo, além dessa introdução, o artigo está organizado em quatro seções. A primeira apresenta a perspectiva político-teórica do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Seguindo as linhas de investigação que buscam captar as ocupações em saúde para além dos enfoques convencionais44 Machado MH, Wermelinger M, Machado AV, Pereira EJ, Aguiar Filho W. Perfil e condições de trabalho dos profissionais da saúde em tempos de Covid-19: a realidade brasileira. In: Portela MC, Reis LGC, Lima SML, organizadoras. Covid-19: desafios para a organização e repercussões nos sistemas e serviços de saúde. Série Informação para ação na Covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2022. p. 283-296., a segunda seção apresenta a metodologia para investigação do mercado de trabalho no âmbito do CEIS e os potenciais efeitos da 4ª revolução tecnológica no chamado “CEIS 4.0”. Em seguida são apresentados os resultados e uma discussão sobre as características do mercado de trabalho em saúde organizada a partir de três aspectos: i) uma nova visão dos profissionais de saúde no mercado de trabalho do CEIS 4.0; ii) a centralidade dos serviços de atenção à saúde no contexto da 4ª revolução tecnológica; iii) a importância dos profissionais de saúde no contexto das transformações tecnológicas e da pandemia. Por fim, a última seção de conclusão aponta a importância do desenvolvimento do CEIS como elemento chave para associar a inovação e o cuidado em uma estratégia nacional de geração de bons empregos e bem-estar para toda a sociedade.

A perspectiva do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS)

A Constituição Federal de 1988 aprovou importante ampliação dos direitos sociais no Brasil, sendo particularmente relevante a universalização do acesso à saúde contemplada pelo SUS, que sinalizou a importância de sistemas universais e equânimes.

O avanço da compreensão dos desafios que se colocam para o SUS, como sistema universal, levou ao desenvolvimento do conceito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, originário de uma linha de pesquisa iniciada na Fiocruz nos anos 2000, que estabelece uma agenda de investigação em torno da relação entre saúde e desenvolvimento no contexto capitalista55 Gadelha CAG. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Cien Saude Colet 2003; 8(2):521-535.,66 Gadelha CAG, Temporão JG. Desenvolvimento, Inovação e Saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1891-902..

Fundamentado no campo da economia política e da saúde coletiva, o CEIS se afasta de abordagens que tratam as dimensões econômicas e sociais de forma analiticamente cindida, buscando superar seja a visão economicista e técnica quanto uma perspectiva insulada da área da saúde e do campo da proteção social e do bem-estar. O grande desafio é captar, no campo da saúde, a relação íntima entre o desenvolvimento da base econômica e tecnológica, a geração de empregos e o acesso aos direitos sociais de forma universal, equânime e integral.

A combinação de conhecimentos de quatro escolas de pensamento econômico compõe o fundamento teórico da abordagem do CEIS para compreensão da natureza do desenvolvimento capitalista: a marxista, a schumpeteriana, a keynesiana e a estruturalista (com ênfase na visão de Celso Furtado). A preservação da diversidade de diferentes concepções do desenvolvimento permitiu a consolidação de aspectos teóricos e políticos centrais: a visão sistêmica e do espaço econômico; a análise dialética do processo de desenvolvimento; a inovação como um processo de transformação política e social; a geração de assimetrias no processo de desenvolvimento; a importância da soberania nacional para alcançar a sustentabilidade do SUS (objetivo político e acadêmico da construção do conceito); e o papel decisivo do Estado para coordenar e dar direção às atividades do CEIS e promover o desenvolvimento.

Do ponto de vista analítico, o CEIS constitui o espaço econômico, institucional, político e social no qual se realiza a produção e a inovação em saúde33 Gadelha CAG. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde 4.0: por uma visão integrada do desenvolvimento econômico, social e ambiental. Cad Desenvolv 2021; 16(28):25-50., conforme apresentado na Figura 1.

Figura 1
Morfologia do Complexo Econômico-Industrial da Saúde no contexto da 4ª Revolução Industrial e Tecnológica.

O CEIS é um espaço sistêmico onde podemos observar um conjunto amplo de atividades industriais e de serviços, que conformam a dinâmica competitiva e tecnológica de mercados articulados em quatro subsistemas: i) atividades e setores envolvidos na produção de serviços de atendimento à saúde, abrangendo a produção hospitalar, ambulatorial, os serviços de diagnóstico e tratamento e os serviços de varejo e distribuição de bens em saúde; ii) atividades e setores econômicos envolvidos no desenvolvimento e produção de Medicamentos de síntese química e biológica, Insumos Farmacêuticos Ativos, Vacinas, Hemoderivados e reagentes para diagnóstico; iii) atividades e setores envolvidos no desenvolvimento e produção de equipamentos médico-hospitalares, insumos, próteses e órteses, dispositivos de diagnóstico, equipamentos de proteção individual; iv) atividades e setores, emergentes no contexto da 4ª revolução tecnológica, envolvidos no desenvolvimento e produção de serviços para gerar, processar e transformar em conhecimento e dados na área da saúde, reforçando a conexão entre os diferentes subsistemas.

Nessa perspectiva, a saúde é compreendida como um direito de cidadania, ao mesmo tempo constitui um campo econômico, produtivo e de inovação de grande relevância no contexto atual. Ações e serviços de saúde, públicos e privados, são responsáveis por cerca de 9 milhões dos empregos, 10% do PIB e ⅓ do investimento nacional em pesquisa e inovação11 Gimenez DM, Cajueiro JPM. Ocupações e o novo mercado de trabalho no CEIS no contexto da pandemia Covid-19. Cad Desenvolv 2021; 16(28):221-238.,77 Gadelha CAG, Kamia FD, Moreira JDD, Montenegro KBM, Safatle LP, Nascimento MAC. Dinâmica global, impasses do SUS e o CEIS como saída estruturante da crise. Cad Desenvolv 2021; 16(28):281-302..

Contudo, desde o marco constitucional em 1988, que estabeleceu a saúde como direito de todos e dever do Estado, observa-se uma situação de descompasso entre a expansão do acesso universal e a base produtiva e tecnológica em saúde, que vem acentuando a situação de dependência e vulnerabilidade do SUS. Esse cenário não é exclusivo da área da saúde, mas reflexo da inserção precária do Brasil no processo de globalização, a partir dos anos 1990, e da regressão sistêmica, do ponto de vista econômico e social, que assola o país desde os anos 198088 Belluzzo LG, Galípolo G. A escassez na abundância capitalista. São Paulo: Contracorrente/FACAMP; 2019.,99 Pochmann M. O Neocolonialismo à espreita: Mudanças estruturais na sociedade brasileira. São Paulo: Edições Sesc; 2022..

A (des)associação entre a estrutura produtiva e o atendimento das necessidades sociais, não restritas à saúde, mas tendo nela o seu foco central, ficou clara durante a pandemia de COVID-19. Ao contrário do que sugerem visões restritas, que opõem em campos distintos a economia e o bem-estar, foram os países com capacidade produtiva, tecnológica e de conhecimento que puderam dar respostas e sair na frente no enfrentamento da doença, enquanto muitos países ficaram para trás nessa corrida e mostraram-se dependentes dos primeiros.

Essa situação reflete uma divisão internacional do trabalho que torna alguns países meros consumidores de tecnologia enquanto outros definem o padrão tecnológico vigente, conformando uma clara relação centro-periferia. Como afirmam os economistas ligados à tradição do pensamento estruturalista, com a grande referência de Celso Furtado, a difusão dos direitos de cidadania está intimamente relacionada ao desenvolvimento de uma base econômica compatível com esse desafio.

A condição de dependência tecnológica-produtiva do Brasil está associada ao padrão histórico de desenvolvimento que reproduz um sistema econômico desarticulado dos interesses nacionais, centrado na especialização primário-exportadora e numa estrutura produtiva pouco diversificada. Uma estrutura econômica incapaz de se manter e estar à frente de setores tecnologicamente mais avançados1010 Furtado C. Brasil: uma construção interrompida. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra; 1992., o que se reflete diretamente nas possibilidades de geração de bons empregos e de superação do padrão compensatório das políticas sociais.

A superação do subdesenvolvimento passa, necessariamente, pela compreensão dessa realidade e pela superação de velhas fronteiras epistemológicas que cindem o mundo social, ambiental e econômico em dimensões distintas. Para se contrapor ao projeto de submeter a sociedade aos imperativos do mercado, que condena o País a uma posição passiva e subordinada na ordem internacional, é necessário um projeto, com base social e política de sustentação, para superar nossa insuficiência teórica e vulnerabilidade estrutural.

Métodos

Com base no enfoque teórico do CEIS, desenvolveu-se uma metodologia para investigação do mercado de trabalho em saúde, para além dos enfoques convencionais, representando um avanço no programa de pesquisa sobre os profissionais de saúde1111 Krein A, Santos AL, Gimenez DM, Cajueiro JPM, Manzano M. Relatório Metodológico: mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021.. A identificação dos trabalhadores inclui os que atuam nos serviços de saúde, mas, também, aqueles que estão na produção ou no comércio de medicamentos, fármacos ou equipamentos médicos, assim como todos aqueles que desenvolvem pesquisas ou estão no ensino nas áreas da saúde, ou alocados no mercado privado de saúde dos planos e seguros - este conjunto de atividades foi denominado “CEIS restrito”.

Aprofundando o caminho trilhado por Maria Helena Machado et al.44 Machado MH, Wermelinger M, Machado AV, Pereira EJ, Aguiar Filho W. Perfil e condições de trabalho dos profissionais da saúde em tempos de Covid-19: a realidade brasileira. In: Portela MC, Reis LGC, Lima SML, organizadoras. Covid-19: desafios para a organização e repercussões nos sistemas e serviços de saúde. Série Informação para ação na Covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2022. p. 283-296., a metodologia desenvolvida vai além de setores com ligação direta ao atendimento e ao cuidado. De forma complementar e constituindo o chamado “CEIS abrangente”, também foram considerados setores indiretamente ligados ao núcleo do Complexo e com forte nexo com a promoção e a prevenção da saúde humana, quais sejam: veterinária e zootecnia, saneamento, segurança e higiene do trabalho, seguridade e assistência social, condicionamento físico e funeral e sepultamento.

Diante do desafio de incorporar essa perspectiva ampla, foi necessário identificar os ocupados no CEIS, partindo, de um lado, da composição de um duplo movimento de identificação das ocupações e dos setores de atividades e, por outro lado, da combinação dos dados de duas fontes primárias do mercado de trabalho, a RAIS e a PNAD Contínua, elaborados pelo Ministério do Trabalho e pelo IBGE, respectivamente. Nessa etapa analisou-se o mercado de trabalho no CEIS, tanto a sua caracterização (aspecto qualitativo), quanto o seu desempenho (aspecto quantitativo). Foram considerados outros estudos realizados e buscou-se avançar na sistematização de novos conceitos, metodologias e informações, o que permitiu apontar as características centrais do mercado de trabalho no CEIS e calcular os indicadores da estrutura ocupacional, a partir das ocupações e dos setores de atividade, para os anos entre 2012 e 2019.

Outro avanço metodológico foi no sentido de captar as transformações no mercado de trabalho do CEIS considerando a incorporação das novas tecnologias 4.0, caracterizando o mercado de trabalho “CEIS 4.0”. Dado que não existe outro tipo de análise realizada nesse campo, foi necessário criar uma metodologia, partindo de algumas escolhas realizadas por outros especialistas e avançando na direção das especificidades do CEIS e do contexto brasileiro, seja da própria estruturação do mercado de trabalho, seja das bases de dados disponíveis1212 Gimenez DM, Cajueiro JPM, Oliveira GRR, Krein A. Ocupações e a dinâmica regional do mercado de trabalho no CEIS 4.0. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2022.. Neste caso, o estudo foi desenvolvido a partir de um referencial teórico-conceitual selecionado sobre as definições dos termos ligados ao CEIS 4.0, às tecnologias 4.0 ou digitais e à medicina de precisão; assim como sobre outras pesquisas que procuram identificar e analisar o impacto da incorporação destas tecnologias sobre o mercado de trabalho como um todo, tanto no Brasil, quanto em outras partes do mundo. Do ponto de vista quantitativo, foram levantados os dados para os anos entre 2012 e 2019, baseado na CBO e na RAIS (CBO-RAIS), dado que esta base permite identificar um conjunto amplo e detalhado de ocupações e, com isso, captar aquelas com um potencial de ligação com as novas tecnologias.

Adicionalmente, nesta etapa, foi utilizada, como parâmetro e fonte de informações sobre o perfil ocupacional, a fonte primária de dados do mercado de trabalho norte-americano, a Standard Occupational Classification (SOC) e a Occupational Information Network (O*NET) (SOC-O*NET), que se encontra mais completa e atualizada, e através da qual já é possível identificar as profissões, habilidades, tarefas e ferramentas, com forte vínculo com as tecnologias 4.0. Nessa etapa foi analisada a incidência das novas tecnologias 4.0 sobre o mercado de trabalho do CEIS, buscando caracterizar e avaliar o desempenho do mercado de trabalho CEIS 4.0.

Após a definição e aplicação das duas etapas da metodologia nas bases de dados da RAIS e da PNAD Contínua, para os anos de 2012 e 2019, foi possível evidenciar a importância do mercado de trabalho do CEIS, tanto em relação à sua composição, quanto em relação à sua evolução, mesmo em contexto de crise econômica. Além disso, a pesquisa mostra a realidade e o potencial em termos de incidência das tecnologias 4.0 no âmbito do conteúdo das ocupações, analisadas a partir das tarefas executadas. O período considerado, imediatamente anterior ao período da pandemia, aponta a quantidade e a diversidade, além do potencial, da disponibilidade de profissionais de saúde que o país dispunha quando da chegada da crise econômico-sanitária.

Resultados e discussão

O mercado de trabalho no CEIS 4.0: uma nova visão dos profissionais de saúde

A partir da nova visão aqui proposta, na qual o mercado de trabalho em saúde foi analisado de forma abrangente em termos metodológico e conceitual, os profissionais que atuam e são absorvidos nos segmentos do CEIS mostram seu alto potencial de impacto no mercado de trabalho brasileiro, tanto em termos do emprego de parcela significativa de ocupados quanto pela qualidade e diversidade de ocupações geradas.

Em 2019, 8,7 milhões de profissionais estão ocupados no CEIS, representando 9,2% da população ocupada no Brasil. Além disso, o aumento do emprego no CEIS foi muito superior ao total do mercado de trabalho, mesmo em um contexto de crise econômica. Entre 2012 e 2019, a variação foi positiva e da ordem de 33,9% - com crescimento de 31,8% no setor de serviços e atendimento de saúde e de 101,7% no setor de cuidados; frente ao crescimento de 6,1% de toda a população ocupada e 3,9% da população ocupada fora do CEIS. Dessa forma, destaca-se o comportamento anticíclico do emprego no CEIS, além da característica de que grande parte dos empregos gerados foram de boa qualidade, muito superior à média do mercado de trabalho brasileiro1111 Krein A, Santos AL, Gimenez DM, Cajueiro JPM, Manzano M. Relatório Metodológico: mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021..

No entanto, ao mesmo tempo que é espaço de incorporação, o mercado de trabalho no CEIS reproduz as características do padrão de desenvolvimento brasileiro, marcado pela desigualdade, em seus diferentes aspectos. Com relação à desigualdade de gênero, a estrutura ocupacional do CEIS revela a elevada presença das mulheres, demarcando a característica da feminização da força de trabalho na saúde. A desigualdade de gênero vai na direção oposta ao que se assiste no mercado de trabalho como um todo. Enquanto apenas 44% dos ocupados formais, em 2019, pelos dados da RAIS, eram mulheres, no âmbito do CEIS essa participação era de 66,3%, com destaque para 75,4% de ocupadas nos serviços de saúde1111 Krein A, Santos AL, Gimenez DM, Cajueiro JPM, Manzano M. Relatório Metodológico: mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021..

Com relação à desigualdade de raça, os negros (pretos e pardos) ocupados no CEIS representam 44,1% do total, o que segue alinhado ao traço do mercado de trabalho em geral em que 45,3% da população ocupada é negra. Quando se associa o gênero à raça, observa-se que, na composição dos ocupados do CEIS, a mulher negra está ocupada em 27,8% das ocupações, contra apenas 15,9% ocupadas no mercado de trabalho em geral. Quando se associa ao rendimento, a maior parte dos ocupados negros alocados no CEIS recebe até 2 salários mínimos (SM), com uma representatividade maior das mulheres - 64,3% das mulheres negras e 57% dos homens negros. No caso das mulheres brancas ocupadas, a maioria (51%) também está nesta faixa salarial. Desta forma, fica evidente o menor rendimento da mulher, seja branca ou negra, principalmente neste último caso e em relação ao homem branco, o que é um traço marcante do mercado de trabalho brasileiro1111 Krein A, Santos AL, Gimenez DM, Cajueiro JPM, Manzano M. Relatório Metodológico: mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021..

Com relação à desigualdade regional, a distribuição dos ocupados do CEIS segue a mesma tendência do mercado de trabalho em geral: 49,5% da população ocupada total e 51,2% dos ocupados do CEIS encontram-se na região Sudeste1111 Krein A, Santos AL, Gimenez DM, Cajueiro JPM, Manzano M. Relatório Metodológico: mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021.,1313 Gimenez DM, Cajueiro JPM, Krein A. Ocupações e o novo mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021..

Além destas fragilidades e limitações, o desempenho positivo do mercado de trabalho do CEIS é resultado da combinação de outras características, distintivas em relação ao mercado de trabalho em geral.

A primeira característica refere-se à centralidade do trabalho humano nos serviços de saúde, tanto em termos quantitativo quanto qualitativo, dado que é constituído por atividades intensivas em mão de obra, mesmo em condição de incorporação de tecnologia; é difícil expandir os serviços de saúde sem aumentar o nível de ocupação; apresenta uma tendência crescente de expansão e incorporação de força de trabalho de forma independente da conjuntura econômica; e o dinamismo do emprego no setor de serviços impulsiona o crescimento do emprego nos demais setores do complexo.

Segundo a RAIS e PNADC, em 2019, a composição dos setores do CEIS foi a seguinte: 57,6% de ocupados estão nos serviços e no atendimento de saúde, 8,5% no comércio, 7,5% no cuidado, 7,4% no saneamento, 5,5% na assistência social, 3,9% no condicionamento físico, 3,3% na produção e manutenção, 2,0% em veterinária e zootecnia, 1,4% em seguros e planos, dentre outros1111 Krein A, Santos AL, Gimenez DM, Cajueiro JPM, Manzano M. Relatório Metodológico: mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021.,1313 Gimenez DM, Cajueiro JPM, Krein A. Ocupações e o novo mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021..

A segunda característica revela que a média de rendimento dos ocupados no CEIS é superior à média de rendimentos do mercado de trabalho. Enquanto a população ocupada, segundo a RAIS, em 2019, apresenta a maior parte dos ocupados (56,1%) na faixa de rendimentos de até 2 SM e apenas 31,5% entre 2 SM e 5 SM e 12,4% mais de 5 SM; a população ocupada no CEIS também é mais representativa na faixa de até 2 SM, porém em menor percentual (50%), e possui maiores participações nas outras faixas - 34,8% entre 2 SM e 5 SM; 15,2% mais de 5 SM. No caso dos serviços e atendimento de saúde, 48,4% recebem até 2 SM, 36,1% entre 2 SM e 5 SM e 15,5% mais de 5 SM. Por outro lado, 92% dos ocupados nos cuidados recebem até 2 SM e 57,5% dos ocupados na pesquisa e no ensino recebem mais de 5 SM1111 Krein A, Santos AL, Gimenez DM, Cajueiro JPM, Manzano M. Relatório Metodológico: mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021.,1313 Gimenez DM, Cajueiro JPM, Krein A. Ocupações e o novo mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021..

A terceira característica está vinculada à elevada e diversificada qualificação frente ao mercado de trabalho em geral. De um lado, do total da população ocupada, 17,2% possuem até o ensino fundamental, 55,7% possuem até ensino médio e 27,0% possuem ensino superior incompleto ou mais. Por outro lado, na população ocupada no CEIS, 7,8% possuem até o ensino fundamental; 54,9% possuem até ensino médio; 37,3% possuem ensino superior incompleto ou mais (RAIS, 2019). No caso dos serviços e atendimento, 6,0% possuem até o ensino fundamental, 56,3% possuem até ensino médio e 37,8% possuem ensino superior incompleto ou mais. Merece destaque o caso dos ocupados na pesquisa e no ensino, dado que 98,7% possuem ensino superior incompleto ou mais; assim como o caso dos cuidadores, cuja maior participação (71,9%) é no nível de escolaridade até o ensino médio e 15,1% possuem até ensino fundamental1111 Krein A, Santos AL, Gimenez DM, Cajueiro JPM, Manzano M. Relatório Metodológico: mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021.,1313 Gimenez DM, Cajueiro JPM, Krein A. Ocupações e o novo mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021..

É importante frisar que a qualificação ou o conteúdo ocupacional devem ser analisados a partir não só do nível de escolaridade, mas, também, a partir da classificação do tipo de ocupação, da definição do perfil ocupacional (habilidades e competências, tarefas, ferramentas, dentre outras variáveis) e da identificação das novas modalidades e/ou das novas qualificações profissionais exigidas para o trabalho no campo da saúde, vinculadas à incorporação ou incidência tecnológica. Estes aspectos foram incorporados à metodologia desenvolvida1313 Gimenez DM, Cajueiro JPM, Krein A. Ocupações e o novo mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021..

A quarta característica revela que as ocupações típicas, ou nucleares, vinculadas ao atendimento de saúde, são regulamentadas e reguladas pela esfera pública, tanto pelo Ministério da Saúde, quanto pelos conselhos profissionais específicos de cada categoria profissional. Ademais, existe no CEIS um conjunto relevante de ocupações parcialmente reguladas e que podem ser ocupadas por outros profissionais não exclusivos de saúde, mas que recebem um treinamento específico no próprio local de trabalho1313 Gimenez DM, Cajueiro JPM, Krein A. Ocupações e o novo mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021..

A quinta característica está associada ao fato de que o CEIS exerce papel relevante na geração de emprego assalariado e no grau de formalização dos contratos de trabalho, a despeito da precarização que se observa nas relações de trabalho dos profissionais de saúde, processo que reflete um movimento estrutural presente em todo o mercado de trabalho brasileiro. De acordo com a PNADC, no ano de 2019, 42,7% da população ocupada fora do CEIS e 41,1% da população ocupada total estava vinculada ao trabalho informal; enquanto a taxa de trabalhadores informais no CEIS se situava entre 20,3% e 35,4% dos ocupados, sendo muito provavelmente próxima dos 20%1111 Krein A, Santos AL, Gimenez DM, Cajueiro JPM, Manzano M. Relatório Metodológico: mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021.,1313 Gimenez DM, Cajueiro JPM, Krein A. Ocupações e o novo mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021..

No caso do trabalho formal, segundo a RAIS, em 2019, a população ocupada contratada pelas normas da CLT representava 79,3%, e em regime estatutário 18,0%. No caso da população ocupada no CEIS, 73,6% estavam em regime CLT e 22,9% estatutário. Dentre eles, dos ocupados nos serviços e atendimento, 65,2% estavam em regime CLT e 31,5% estatutário1111 Krein A, Santos AL, Gimenez DM, Cajueiro JPM, Manzano M. Relatório Metodológico: mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021.,1313 Gimenez DM, Cajueiro JPM, Krein A. Ocupações e o novo mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021..

No caso da sexta característica, trata-se da importância do setor público na geração de emprego no CEIS, principalmente no setor de serviços de saúde e nos cuidados. Para o caso da população ocupada, 19,9% estão no setor público (RAIS, 2019). No caso do CEIS, 27,6% estão no setor público, sendo que nos serviços e atendimento o total chega a 37,8%1111 Krein A, Santos AL, Gimenez DM, Cajueiro JPM, Manzano M. Relatório Metodológico: mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021.,1313 Gimenez DM, Cajueiro JPM, Krein A. Ocupações e o novo mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021..

A sétima característica revela a capacidade de criação de novas modalidades ou tipos de ocupação, decorrente das mudanças no perfil sociodemográfico da população (envelhecimento da população e crescimento da categoria de cuidadores domiciliares de idosos), na política pública de cobertura (expansão das Equipes de Saúde da Família) e na incorporação tecnológica. Este último aspecto envolve dois movimentos: por um lado, novos profissionais, com formações não típicas da saúde e extremamente relevantes para a incorporação das novas tecnologias, são absorvidos pelo CEIS, como engenheiros, físicos, matemáticos, dentre outros; por outro lado, aos profissionais da saúde passam a ser exigidas novas habilidades. No primeiro caso, observou-se a presença crescente de ocupações não específicas da saúde e com forte vínculo com as tecnologias 4.0 - por exemplo, em 2018, segundo dados da RAIS, mais de 80% dos Físicos (nucleares e reatores), mais de 70% dos Físicos (matéria condensada), e, em outras medidas, Estatísticos, Tecnólogos, Engenheiros estão sendo absorvidos em atividades do CEIS 4.0. No segundo caso, o estudo realizado procurou captar a incidência das tecnologias sobre a qualificação ocupacional através do estudo das tarefas realizadas pelos ocupados no CEIS e a sua vinculação com o seu conteúdo tecnológico1111 Krein A, Santos AL, Gimenez DM, Cajueiro JPM, Manzano M. Relatório Metodológico: mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021.,1313 Gimenez DM, Cajueiro JPM, Krein A. Ocupações e o novo mercado de trabalho no CEIS. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2021..

A centralidade dos serviços de atenção à saúde no contexto da 4ª revolução tecnológica

A 4ª revolução industrial e tecnológica já produz impactos importantes no mercado de trabalho em saúde. Os dados da pesquisa mostram que 60% das ocupações foram ou poderão ser altamente afetadas, quando se analisam as tarefas que são executadas pelos profissionais de saúde. As ocupações com maior potencial de incidência das tecnologias 4.0 foram as ocupações dos segmentos de produção e manutenção, serviços e atendimento e pesquisa e ensino, cuja variação observada foi de +119,1%. Este resultado sugere uma tendência de mudança no mercado de trabalho brasileiro a partir da incidência de tecnologias 4.0 em setores vinculados ao CEIS, com elevada capacidade de geração de empregos, inclusive em momentos de crise econômica1212 Gimenez DM, Cajueiro JPM, Oliveira GRR, Krein A. Ocupações e a dinâmica regional do mercado de trabalho no CEIS 4.0. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2022..

Neste contexto de transformação, o setor de serviços ganha destaque tanto por sua escala como pelos seus elementos dinâmicos. Trata-se de um universo de 2,8 milhões de ocupações em 2019 que cresceu quase 20% (mais de 390 mil ocupados) em comparação à 2012, segundo dados da RAIS. É o maior empregador do CEIS e, além de apresentar elevada taxa de crescimento, foi o que apresentou no estudo a maior incidência, ou, pelo menos, o maior potencial de incidência, das tecnologias 4.0 sobre as ocupações1212 Gimenez DM, Cajueiro JPM, Oliveira GRR, Krein A. Ocupações e a dinâmica regional do mercado de trabalho no CEIS 4.0. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2022..

Tal movimento se manifestou em diversas das suas ocupações, sejam elas as típicas do segmento, ou aquelas que não são típicas da saúde e que já foram absorvidas, incluindo aquelas que mais se aproximam, em termos de formação, habilidades e competências, dos profissionais do futuro. Dentre aquelas com maior potencial de incidência das novas tecnologias, a maior parte das ocupações (50%) e do número de ocupados (70%) está vinculada ao setor de serviços e atendimento, em 2019, cujo crescimento foi de 270,6%, em relação a 2012, acima do crescimento geral deste conjunto de ocupados (+119,1%)1212 Gimenez DM, Cajueiro JPM, Oliveira GRR, Krein A. Ocupações e a dinâmica regional do mercado de trabalho no CEIS 4.0. Rio de Janeiro: CEE/Fiocruz; 2022.. A Tabela 1 apresenta a alocação setorial, o número de ocupados, sua participação e variação entre 2012-2019, para as ocupações com elevado nível de incidência tecnológica.

Tabela 1
Ocupações no CEIS com maior potencial de incidência tecnológica 4.0.

O setor de serviços de saúde revela a sua importância para o CEIS, a partir da constatação tanto do seu tamanho, complexidade e diversidade, quanto de sua dinâmica e transbordamento para outros setores, sendo o motor central de geração de empregos e de incorporação de tecnologia no CEIS, com forte alinhamento às tecnologias 4.0.

A importância dos profissionais de saúde no contexto das transformações tecnológicas e da pandemia

Diante das profundas transformações em curso, com a passagem para o que vem sendo chamado de “sociedade digital”99 Pochmann M. O Neocolonialismo à espreita: Mudanças estruturais na sociedade brasileira. São Paulo: Edições Sesc; 2022., a lógica industrial se radicaliza, atingindo os serviços de atendimento em saúde cada vez mais impactados por novas tecnologias. O crescimento do setor de serviços digitalizados estão relacionados a uma base industrial e tecnológica cada vez mais robusta, refletindo um processo de “hiperindustrialização”, que pode intensificar as assimetrias globais e nacionais88 Belluzzo LG, Galípolo G. A escassez na abundância capitalista. São Paulo: Contracorrente/FACAMP; 2019..

A base industrial é fundamental para imprimir uma dinâmica favorável de empregos em todo o CEIS, incorporando as novas tecnologias na produção e desenvolvendo novos bens e serviços. O importante não é apenas incorporar as tecnologias no sentido de se tornar um consumidor-usuário, mas, sim, no sentido de atuar progressivamente como um desenvolvedor, o que requer a integração das atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação, no âmbito das empresas, universidades e laboratórios, públicos e privados.

No contexto da pandemia de COVID-19 a incorporação das tecnologias 4.0 e a qualificação dos profissionais foram decisivas para o enfrentamento da doença, seja do ponto de vista do atendimento médico, em um primeiro momento, seja na prevenção, em etapa posterior, quando as vacinas chegaram ao mercado e foram incorporadas aos sistemas de saúde.

Algumas das situações em que essa questão se evidenciou dizem respeito à atuação i) dos pesquisadores, de diferentes formações e que atuam em laboratórios de última geração tecnológica, na descoberta do genoma do vírus e no desenvolvimento ou na incorporação tecnológica das vacinas (via formalização de uma Encomenda Tecnológica) - ambas ações se desdobrando em tempo recorde; ii) dos epidemiologistas e sua equipe, incluindo as habilidades e as ferramentas tecnológicas, no acompanhamento dos casos e na identificação do perfil de mortalidade e na identificação das comorbidades; iii) dos profissionais da saúde realizando diferentes redirecionamentos de tratamentos e medicamentos já existentes para a descoberta do mais eficiente e eficaz tratamento; iv) das indústrias desenvolvendo os equipamentos médicos e de proteção individual, as vacinas, os medicamentos, os insumos, sejam eles com tecnologia consolidada, ou com novas tecnologias; dentre outras. Neste sentido, o SUS e as fundações, os institutos e os laboratórios públicos foram referências, nacionais e internacionais, evidenciando a capacidade e o potencial do CEIS brasileiro. Contudo, na pandemia, também ficaram expostas as suas limitações11 Gimenez DM, Cajueiro JPM. Ocupações e o novo mercado de trabalho no CEIS no contexto da pandemia Covid-19. Cad Desenvolv 2021; 16(28):221-238.,77 Gadelha CAG, Kamia FD, Moreira JDD, Montenegro KBM, Safatle LP, Nascimento MAC. Dinâmica global, impasses do SUS e o CEIS como saída estruturante da crise. Cad Desenvolv 2021; 16(28):281-302..

A incorporação das tecnologias 4.0 tem o potencial de afetar transversalmente as ocupações do complexo da saúde, mas impactarão sobretudo as ocupações relacionadas aos serviços e atendimento - de forma direta, alterando as tarefas dos ocupados, ou indireta, promovendo mudanças na rotina e nos bens e serviços derivados do trabalho dos ocupados nos setores industriais do CEIS. As tecnologias 4.0, portanto, tem o potencial de transformar substancialmente a própria forma de realização do atendimento e do cuidado em saúde.

No entanto, a tecnologia disponível não deve ser considerada isoladamente. É fundamental relacionar o progresso tecnológico com o fortalecimento das possibilidades e do alcance dos serviços de atenção, promoção e prevenção à saúde. Esses serviços envolvem alto custo e se tornam ainda mais dispendiosos na ausência de diagnóstico precoce, que não depende, necessariamente, de elevada tecnologia, mas pode ser fortalecido por ela.

Os profissionais de saúde vinculados ao segmento de serviços do CEIS devem ser ampliados, qualificados e renovados, no sentido de incorporar novos profissionais que antes não exerciam funções atreladas aos serviços de saúde. Tal movimento significa ampliar o escopo de profissionais envolvidos nas atividades de serviços e cuidados, desde o agente comunitário, o médico de família e o cuidador de idosos até físicos, matemáticos, estatísticos, engenheiros, de modo que, no seu conjunto, os trabalhadores exerçam tarefas, desenvolvam habilidades e utilizem ferramentas mais sofisticadas do ponto de vista do conteúdo tecnológico. Com isso os serviços de saúde poderão se tornar cada vez mais precisos.

A incorporação de novas tecnologias, simples e avançadas, podem ampliar o bem-estar e a qualidade de vida, sendo viáveis para a difusão no SUS, gerando, desde a atenção básica até a alta complexidade, muitas ocupações qualificadas. Por este motivo, torna-se vital a construção de políticas públicas que tenham capacidade de promover o fortalecimento do SUS, tendo como meta a geração de empregos de boa qualidade, alinhados às exigências impostas pelas mudanças tecnológicas em curso e ao acesso universal, integral e equânime.

Conclusão: inovação e cuidado para geração de empregos e bem-estar para toda a sociedade

O desenvolvimento para a geração de bons empregos e a montagem de um sistema de bem-estar social em um país continental exige uma base produtiva e tecnológica forte, densa e sofisticada para sua sustentação. A Saúde é plataforma das tecnologias do futuro, da fronteira do conhecimento, que, a pesquisa mostra, são base para geração de bons empregos. Os serviços de atendimento e cuidado em saúde, que dependem de uma base produtiva forte e estão cada vez mais impactados por novas tecnologias, ao mesmo tempo, são constituídos por atividades intensivas em mão-de-obra qualificada, exigindo maior atenção com os profissionais da saúde.

A incorporação de tecnologia voltada ao cuidado coletivo e humanizado tem potencial para gerar novas ocupações, exigindo novas habilidades para o uso de novas ferramentas, conformando um segmento de profissionais cada vez mais multidisciplinar e diversificado, exigindo novas políticas públicas que reconheçam a importância das novas tecnologias nas mãos dos profissionais de saúde ao lado de uma política de formação ocupacional em grande escala, que os capacitem a lidar com elas. Trata-se de promover uma simbiose entre o cuidado com quem cuida e o cuidado com as pessoas, gerando bons empregos e bem-estar para toda a sociedade.

O desenvolvimento do CEIS é uma grande frente para geração de bons empregos no curto prazo e dos empregos do futuro e pode ser a chave para o desenvolvimento do país, articulando o investimento e a incorporação de tecnologias no SUS à produção, ciência, renda e empregos no país. Visões restritas, que colocam em campos opostos a economia e o bem-estar, devem ser substituídas por uma visão sistêmica e estruturante que reconheça a Saúde como um espaço estratégico onde pode estar embutido simultaneamente outro modelo de sociedade e as possibilidades de o Brasil superar a trajetória de regressão econômica e social, com dinamismo econômico, geração de bons empregos e bem-estar.

Agradecimentos

Este trabalho contou com suporte financeiro do Projeto “Desafios para o SUS no contexto nacional e global de transformações sociais, econômicas e tecnológicas” e do CNPq, bolsa de produtividade de pesquisa de CAG Gadelha.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Out 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2022
  • Aceito
    01 Jun 2023
  • Publicado
    08 Jul 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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