Trabalhadoras migrantes latino-americanas e violências: rumo a uma visão interseccional?

Cristiane Batista Andrade Sobre o autor

Resumo

A história da sociedade latino-americana é influenciada pela colonização que subjugou, sobretudo, as mulheres não brancas às violências de gênero, ao racismo e ao sexismo. Este artigo tem por finalidade discutir o trabalho de migrantes latino-americanas a partir da abordagem interseccional, para se pensar nas realidades históricas e sociais de mulheres latinas, que se deslocam para a procura de emprego ou para escapar das violências sofridas no meio social. Mediante as contribuições da socióloga Patrícia Collins, são discutidos o conceito de interseccionalidade e os temas pertinentes às análises interseccionais (relacionalidade, relações de poder, desigualdade social, contexto social, a complexidade e justiça social). A interseccionalidade como teoria social crítica em construção aprofunda as análises das opressões vividas pelas trabalhadoras migrantes, como a xenofobia, o racismo, as inclinações ao trabalho escravizado e/ou à exploração sexual, as condições de trabalho precarizadas etc. Pensar nas violências sofridas pelas trabalhadoras latino-americanas sob a perspectiva interseccional é escutá-las, compreender suas resistências, visibilizar as ações coletivas e garantir que políticas públicas sejam implementadas, considerando as experiências e as perspectivas dessas trabalhadoras.

Palavras-chave:
Teoria interseccional; Migração laboral; Xenofobia; Racismo; Sexismo

Introdução

A ideia do debate que proponho surgiu da leitura de um artigo de Patrícia Hill Collins, intitulado “Em direção a uma nova visão: raça, classe e gênero como categorias de análise e conexão”11 Collins PH. Em direção a uma nova visão: raça, classe e gênero como categorias de análise e conexão. In: Moreno R, organizador. Reflexões e práticas de transformação feminista. São Paulo: Coleção Cadernos Sempreviva.; 2015. p. 13-42., e do recente livro publicado pela autora, Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica22 Collins PH. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo; 2022.. Por me sentir afetada a partir de seus títulos, associado ao fato de que, nos últimos tempos, tenho estudado e pesquisado o trabalho de migrantes latino-americanas, considerei as seguintes questões para este diálogo acadêmico: como as opressões de gênero, raça e classe social se interseccionam na vida de trabalhadoras migrantes latino-americanas? De que maneira a interseccionalidade proporciona subsídios para a compreensão das violências sofridas por elas?

Patrícia Collins, autora em quem me apoio para a construção deste texto, é uma mulher negra, estadunidense, que há mais de quatro décadas vem se debruçando sobre o feminismo negro e a interseccionalidade. Por intermédio de seus livros lançados em português no Brasil, cada vez mais se tem acesso às suas produções científicas. Em recente publicação22 Collins PH. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo; 2022., traz avanços para o uso da interseccionalidade para além de junções categóricas de classe social, raça, etnia, sexualidade, entre outras, afirmando que ela é “uma teoria social crítica em construção”22 Collins PH. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo; 2022. (p. 39).

O uso da interseccionalidade como ferramenta que proporciona análises complexas das relações sociais tem sido um desafio, pois requer analisar os privilégios de grupos e as opressões simultaneamente. Portanto, as suas investigações são pautadas em uma teoria social crítica para “resistir às desigualdades sociais provocadas pelo racismo, sexismo, colonialismo, capitalismo e sistemas de poder semelhantes”22 Collins PH. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo; 2022. (p. 46). Por conseguinte, é capaz de fornecer elementos analíticos que podem subsidiar projetos de justiça social e de construção do conhecimento de maneira mais democrática22 Collins PH. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo; 2022..

Se considerarmos as trabalhadoras que deixam seus países em busca de melhores condições de vida e de trabalho por diferentes motivações, é necessária a garantia do cuidado em saúde a partir de políticas públicas em qualquer país para onde se destinem. Em outras palavras, descortinar as opressões das relações de poder na sociedade capitalista enfrentadas por essas trabalhadoras migrantes e tecer críticas macrossociais para a justiça social nada mais é do que fornecer subsídios para o intenso e extenso debate para a garantia de condições de trabalho adequadas e livre de violências e para a preservação da saúde.

Diante do desafio de se pensar a interseccionalidade como estratégia teórica, metodológica e política11 Collins PH. Em direção a uma nova visão: raça, classe e gênero como categorias de análise e conexão. In: Moreno R, organizador. Reflexões e práticas de transformação feminista. São Paulo: Coleção Cadernos Sempreviva.; 2015. p. 13-42.,22 Collins PH. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo; 2022., este texto tem por finalidade discutir o trabalho de migrantes latino-americanas por meio da abordagem interseccional para se pensar as realidades históricas e sociais de mulheres latinas que se deslocam à procura de emprego ou para escapar das violências sofridas no meio social.

Para o desenvolvimento deste texto, discorro sobre o que é a interseccionalidade; o contexto social, as opressões e a interseccionalidade no trabalho de migrantes; a interseccionalidade e a complexidade das violências entre trabalhadoras migrantes; e justiça social, diálogo e escuta.

Afinal, o que é a interseccionalidade?

Adianto que o uso da interseccionalidade é complexo, nas palavras de Collins22 Collins PH. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo; 2022., e seria impossível analisá-la em um único artigo científico. Para isso, trago, de maneira breve e sucinta, o que é a interseccionalidade e alguns temas de análise baseados em Collins e Bilge33 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo Editorial; 2021., que são: relacionalidade, relações de poder, desigualdade social, contexto social, complexidade e justiça social, com vistas a subsidiar as abordagens interseccionais. Tais constructos são pertinentes, se inter-relacionam e estão sintetizados no Quadro 1.

Quadro 1
Síntese dos temas centrais para as análises interseccionais2,3.

Em vista dessa síntese apresentada no Quadro 1, o que se percebe é que a interseccionalidade requer a dinâmica da historicidade, em que as opressões são articuladas com o contexto e as desigualdades sociais de maneira crítica e complexa, para que a justiça social seja efetivada22 Collins PH. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo; 2022.,33 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo Editorial; 2021..

Assim, o seu uso na tríade migração de mulheres latinas, trabalho e violências permite que as complexidades de vida das trabalhadoras sejam compreendidas a partir de uma sociedade que é, ainda em dias atuais, influenciada pelo processo histórico de colonização. A depender do contexto social e das opressões das intersecções de gênero, raça e classe, as adversidades no processo de migração serão ainda mais intensificadas. Isso significa que são as trabalhadoras pobres, negras e indígenas que realizarão o trabalho precarizado44 Andrade CB, Santos DL, Bitercourt SM, Vedovato TG. Migrações, trabalho de cuidado e saúde de cuidadoras: revisão integrativa. Rev Bras Saude Ocup 2022; 47:e10.,55 Mora C, Undurraga EA. Racialisation of immigrants at work: labour mobility and segmentation of Peruvian migrants in Chile. Bull Lat Am Res 2013; 32(3):294-310., sustentando o desenvolvimento e a exploração do capitalismo no Sul Global66 Gonzalez L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar; 2020., como veremos a seguir.

Contexto social, opressões e interseccionalidade no trabalho de migrantes

Os estudos interseccionais consideram que pessoas têm identidades e experiências históricas e sociais que se entrecruzam nas relações de poder. Ao analisar as diversas opressões, o desafio é não as hierarquizar, ainda que algumas possam se sobressair, a depender de privilégios estabelecidos11 Collins PH. Em direção a uma nova visão: raça, classe e gênero como categorias de análise e conexão. In: Moreno R, organizador. Reflexões e práticas de transformação feminista. São Paulo: Coleção Cadernos Sempreviva.; 2015. p. 13-42.. Dessa maneira, o ponto crucial que tomo para discutir o trabalho de migrantes latino-americanas é que a interseccionalidade, como teoria crítica social em permanente construção, está estritamente relacionada às análises do racismo, do sexismo, do patriarcado e do colonialismo na sociedade capitalista22 Collins PH. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo; 2022..

Neste diálogo, a historicidade do capitalismo é central, pois as sociedades influenciadas pelo processo de escravização ainda permanecem racistas, classistas e patriarcais11 Collins PH. Em direção a uma nova visão: raça, classe e gênero como categorias de análise e conexão. In: Moreno R, organizador. Reflexões e práticas de transformação feminista. São Paulo: Coleção Cadernos Sempreviva.; 2015. p. 13-42.. Se a história latino-americana sofre com as violências coloniais que subjugaram os povos africanos e indígenas à dominação do saber, do poder, do ser77 Quijano A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. Clacso 2005; 27:117-142. e das relações de gênero88 Lugones M. Colonialidade e gênero. In: Hollanda HB, Varejão A, organizadores. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020. p. 53-83., é evidente que as trabalhadoras latino-americanas ainda sofrem com as opressões do do racismo, do sexismo, do patriarcado e da pobreza.

As repercussões da colonialidade ainda são persistentes, principalmente pela história viva do racismo e das violências de gênero experienciadas pelas mulheres. Essa abordagem é aprofundada por Rita Segato99 Segato RL. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de Sueños; 2016., que analisa o patriarcado de alta intensidade advindo da colonialidade, pelo qual os poderes masculinos se expressam nas diversas violências (letais ou não) nos corpos femininos e feminizados.

Também é central a perspectiva racial analisada por Lélia Gonzalez66 Gonzalez L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar; 2020., intelectual negra brasileira que evidencia a divisão sexual e racial do trabalho, com mulheres negras em postos de trabalho com menor valoração social, com baixos salários e destituídas de direitos trabalhistas. Elas são, para o modo de produção capitalista, os “burros de carga”1010 Gonzaléz L. Por um feminismo afro-latino-americano. In: Hollanda HB, organizador. Pensamento feminista hoje: perspectivas decolonais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020. p. 38-51. (p. 49), o que afirma a superexploração do capitalismo nas vidas das mulheres negras latino-americanas1010 Gonzaléz L. Por um feminismo afro-latino-americano. In: Hollanda HB, organizador. Pensamento feminista hoje: perspectivas decolonais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020. p. 38-51..

A divisão racial no trabalho é exposta de maneira aprofundada por estudo sobre trabalhadoras migrantes peruanas de ancestralidade indígena no Chile. Elas são contratadas nas atividades de cuidado pelo fato de serem consideradas disponíveis e leais, mas ao mesmo tempo são estigmatizadas como “retrógradas”. Esse fato apresenta a segregação no mercado e a precariedade das condições de trabalho, com baixa remuneração e violências raciais contra as migrantes peruanas55 Mora C, Undurraga EA. Racialisation of immigrants at work: labour mobility and segmentation of Peruvian migrants in Chile. Bull Lat Am Res 2013; 32(3):294-310..

Esse aspecto, sob o ponto de vista histórico, afirma a racialização do mundo do trabalho66 Gonzalez L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar; 2020.,88 Lugones M. Colonialidade e gênero. In: Hollanda HB, Varejão A, organizadores. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020. p. 53-83., em que os postos precarizados e menos valorizados são destinados às mulheres negras e indígenas, já que enfrentaram as mais variadas formas de atividades informais, permeadas pelas violências raciais66 Gonzalez L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar; 2020.. Associadas a isso, as diferenças socioculturais e as percepções do racismo são temas de pesquisa interseccional, que, a partir das entrevistas com mulheres refugiadas africanas no Brasil, expressa as violências raciais pelas quais o “processo exitoso da colonização”1111 Santos LA, Mattos AR. "A colonização foi muito perfeita aqui": reflexões de refugiadas africanas no Brasil. Arq Bras Psicol Rio J 2020; 72(esp.):170-184. as fazem sentir o racismo em seus cotidianos e, como consequência, os sofrimentos psíquicos1111 Santos LA, Mattos AR. "A colonização foi muito perfeita aqui": reflexões de refugiadas africanas no Brasil. Arq Bras Psicol Rio J 2020; 72(esp.):170-184. (p. 175).

O processo de migração permite o acesso ao mercado de trabalho, entretanto, a realidade aponta para a feminização laboral acentuada nas últimas décadas (as mulheres perfazem 51,6% do total de migrantes na América Latina), sem que as condições de trabalho lhes sejam asseguradas1212 Internacional Labour Organization (ILO). La migración laboral en América Latina y el Caribe. Diagnóstico, estrategia y líneas de trabajo de la OIT en la Región. Lima: ILO; 2016.. Isto é, são mantidas em situações irregulares, na economia informal e na prestação de serviços, desprotegidas com relação aos direitos sociais e trabalhistas, nem sempre vinculadas aos sindicatos e sofrendo as mais diversas precarizações do trabalho, como a ausência de regularidade no recebimento de salários1212 Internacional Labour Organization (ILO). La migración laboral en América Latina y el Caribe. Diagnóstico, estrategia y líneas de trabajo de la OIT en la Región. Lima: ILO; 2016.. Com isso, podemos afirmar que são as mulheres não brancas e as mais pobres que buscam melhores condições de vida e, portanto, reforçam a necessidade de seus deslocamentos44 Andrade CB, Santos DL, Bitercourt SM, Vedovato TG. Migrações, trabalho de cuidado e saúde de cuidadoras: revisão integrativa. Rev Bras Saude Ocup 2022; 47:e10..

Não sem razão, a complexidade e o contexto social de vida das trabalhadoras latino-americanas as colocam em situações de violências, sobretudo quando estão em vulnerabilidades relativas ao status de migração (indocumentadas ou refugiadas) e de vínculos empregatícios precarizados e informais: “Em instituições de acolhimento a refugiados é possível identificar a esmagadora maioria de mulheres negras e de países africanos que, frente ao cenário de escassas oportunidades de acesso ao mercado formal, acabam por ocupar postos subalternizados de trabalho”1111 Santos LA, Mattos AR. "A colonização foi muito perfeita aqui": reflexões de refugiadas africanas no Brasil. Arq Bras Psicol Rio J 2020; 72(esp.):170-184. (p. 176).

Sair do país de origem, por qualquer que seja o motivo, as coloca em percursos muitas vezes inesperados, como as dificuldades com a língua no país de destino, a não validação de documentos escolares e formativos (diplomas), vivências de xenofobia, entre outros percalços. No entanto, as mulheres reconhecem seus conhecimentos, intelectualidade, direitos e resistências1111 Santos LA, Mattos AR. "A colonização foi muito perfeita aqui": reflexões de refugiadas africanas no Brasil. Arq Bras Psicol Rio J 2020; 72(esp.):170-184.. Ao trazermos à tona a interseccionalidade, o status migratório é importante para considerar o contexto e as opressões entre as trabalhadoras, pois as experiências migratórias não são homogêneas. A nacionalidade e o status migratório podem ser fator de vulnerabilidades, como nos casos em que estar indocumentada propicia a entrada e a permanência em empregos precarizados, geralmente no trabalho de cuidado44 Andrade CB, Santos DL, Bitercourt SM, Vedovato TG. Migrações, trabalho de cuidado e saúde de cuidadoras: revisão integrativa. Rev Bras Saude Ocup 2022; 47:e10. ou sexualizado1313 Cabezas AL. Mulheres dominicanas invisíveis: discursos de tráfico de pessoas em Porto Rico. Cad Pagu 2016; 47:e16477..

Os avanços teóricos e metodológicos proporcionados por Collins22 Collins PH. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo; 2022. dizem respeito às interconexões das relações de opressões para além de um pensamento que coloque as categorias gênero, raça e classe social como estáticas e permanentes: “A interseccionalidade postula que os sistemas de poder coproduzem uns aos outros de modo que reproduzem tanto resultados materiais desiguais quanto experiências sociais distintas que caracterizam experiências das pessoas de acordo com as hierarquias sociais” (p. 71)22 Collins PH. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo; 2022..

Logo, diante do contexto social complexo das trabalhadoras migrantes, há a necessidade de políticas públicas de saúde de enfrentamento às violências, que são evidenciadas em seus deslocamentos para o desempenho de atividades laborais. A migração por motivações econômicas, isto é, para a obtenção de um emprego para o sustento familiar, é fato comumente encontrado entre as latino-americanas, pois são as mais pobres e as em situações de vulnerabilidades que se deslocam para a obtenção de melhores condições de vida. Em se tratando da dinâmica do cuidado intrafamiliar e por serem responsabilizadas pelo cuidado doméstico, elas ainda enfrentam os desafios de deixarem seus filhos aos cuidados de outras mulheres no país de origem, o que é motivo de expressão de sentimentos como medo, culpa, saudade e preocupação44 Andrade CB, Santos DL, Bitercourt SM, Vedovato TG. Migrações, trabalho de cuidado e saúde de cuidadoras: revisão integrativa. Rev Bras Saude Ocup 2022; 47:e10..

A interseccionalidade e a complexidade das violências entre as trabalhadoras migrantes

O uso da interseccionalidade permite que as violências sofridas pelas migrantes, em especial pelas não brancas, sejam analisadas e complexificadas criticamente. Como já exposto, sob o ponto de vista histórico da escravização, as mulheres negras enfrentam a pobreza, as opressões interseccionais, a segregação no mercado de trabalho e o desemprego em maior expressividade quando comparadas a homens e mulheres brancas. Dessa forma, em se tratando de migrantes, as que sofrem com as situações de violência doméstica, a depender do status de migração, têm receios das denúncias devido à probabilidade de deportação, além das barreiras culturais e da língua no país de destino1414 Crenshaw KW. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Rev 1991; 6:1241-1299..

Em seus percursos, as migrantes enfrentam as violências sexuais e o tráfico de pessoas para a exploração sexual1515 Bidaseca K. Fuga contra violencia sexual, potlatch y derechos humanos. Ensayo sobre la moneda y el exilio del mundo. Rev Soc 2016; 35-36:13-31., e sofrem com a xenofobia e o racismo44 Andrade CB, Santos DL, Bitercourt SM, Vedovato TG. Migrações, trabalho de cuidado e saúde de cuidadoras: revisão integrativa. Rev Bras Saude Ocup 2022; 47:e10.,1111 Santos LA, Mattos AR. "A colonização foi muito perfeita aqui": reflexões de refugiadas africanas no Brasil. Arq Bras Psicol Rio J 2020; 72(esp.):170-184.,1313 Cabezas AL. Mulheres dominicanas invisíveis: discursos de tráfico de pessoas em Porto Rico. Cad Pagu 2016; 47:e16477.,1616 Linardelli MF. Mujeres migrantes y violencia en Argentina: experiencias e implicancias en la salud/enfermedad/cuidado. Rev Katálysis 2021; 24(2):342-352., colocando-as em constantes riscos à saúde e à vida. Pesquisas comumente confirmam as violências de gênero, sendo aliás uma das motivações para seus deslocamentos1616 Linardelli MF. Mujeres migrantes y violencia en Argentina: experiencias e implicancias en la salud/enfermedad/cuidado. Rev Katálysis 2021; 24(2):342-352.,1717 Romero M. Experiences of gender violence in Bolivian migrant women residing in Tarapacá, Chile. Estud Front 2022; 23:e085.. Outro destaque é que as regiões fronteiriças que compõem o continente latino-americano são lugares de disputas e de violências com alto índice de feminicídio. Entre os anos de 2000 e 2015, houve 1.384 mortes de mulheres por agressões (nos 122 municípios brasileiros de fronteira), incluindo as indígenas1818 Meneghel SN, Danilevicz IM, Polidoro M, Plentz LM, Meneghetti BP. Femicide in borderline Brazilian municipalities. Cien Saude Colet 2022; 27(2):493-502..

Se as violências do patriarcado, da xenofobia e do racismo são complexas, históricas e estão interconectadas, ainda são escassos os estudos sobre as suas influências na vida e na saúde das migrantes. Na maioria das vezes, elas enfrentam as discriminações, as violências estrutural e institucional e o assédio moral e sexual em todos os espaços sociais, inclusive o laboral. Estas violências influenciam as condições de saúde que se expressam em tristeza, raiva, medo, cansaço etc.44 Andrade CB, Santos DL, Bitercourt SM, Vedovato TG. Migrações, trabalho de cuidado e saúde de cuidadoras: revisão integrativa. Rev Bras Saude Ocup 2022; 47:e10.,1616 Linardelli MF. Mujeres migrantes y violencia en Argentina: experiencias e implicancias en la salud/enfermedad/cuidado. Rev Katálysis 2021; 24(2):342-352.

Nos casos de tráfico de mulheres latino-americanas para exploração sexual, o que pode ocorrer com as migrantes, as violências são exacerbadas. Isso quer dizer que a perspectiva da saúde está estreitamente relacionada às inúmeras vivências de violências físicas, psicológicas, morais e sexuais, além do feminicídio. Logo, não é incomum que sofram com as doenças emocionais/mentais, estejam propensas às infecções sexualmente transmissíveis (IST), tenham dificuldades de acesso ao sistema de saúde e ainda sofram com a violência institucional na área de saúde, face aos estigmas sociais de serem vistas como “traficadas”1919 Andrade CB, Bitercourt SM. Tráfico de mulheres latino-americanas para a exploração sexual: aspectos de violências e saúde sob a perspectiva decolonial. In: Jubilut LL, Garcez GS, Lopes RO, Fernandes AP, Silva JCJ, organizadores. Direitos humanos e vulnerabilidade e migrações forçadas. Boa Vista: Editora da UFRR; 2022. p. 1102-1125..

Trazer a interseccionalidade para este debate é desvelar as desigualdades que se entrecruzam na dinâmica entre as violências e os aspectos de saúde. Embora as violências sejam heterogêneas, são inegáveis seus efeitos na vida, portanto é necessária a discussão das abordagens históricas da colonialidade, associada ao racismo e a outras violências históricas, para o pensar e o fazer em saúde, sobretudo em termos de desenvolvimento de políticas públicas2020 Shannon G, Morgan R, Zeinali Z, Brady L, Couto MT, Devakumar D, Eder B, Karadag O, Mukherjee M, Peres MFT, Ryngelblum M, Sabharwal N, Schonfield A, Silwane P, Singh D, Van Ryneveld M, Vilakati S, Watego C, Whyle E, Muraya K. Intersectional insights into racism and health: not just a question of identity. Lancet 2022; 400(10368):2125-2136..

Trata-se também de expandir o ponto de vista do trabalho e sua historicidade na América Latina, pois o desenvolvimento do capitalismo foi e ainda está estreitamente associado ao racismo e à divisão racial do trabalho, que subjuga a população negra aos postos de menor valoração social e econômica, portanto precarizados66 Gonzalez L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar; 2020.,77 Quijano A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. Clacso 2005; 27:117-142.. Conforme a literatura afirma, as migrantes latino-americanas que executam o trabalho de cuidado têm jornadas exaustivas, associadas à situação de indocumentadas que as colocam na informalidade, sem acesso aos direitos trabalhistas e ao sistema de saúde no país de origem. Isso sugere dizer que as condições de trabalho trazem implicações à vida, como as dificuldades diante da ansiedade, da depressão, dos problemas osteomusculares, entre outros, corroborando a necessidade de se garantir o acesso ao sistema de saúde e de seguridade do trabalho nos processos de migração44 Andrade CB, Santos DL, Bitercourt SM, Vedovato TG. Migrações, trabalho de cuidado e saúde de cuidadoras: revisão integrativa. Rev Bras Saude Ocup 2022; 47:e10..

Assim, a interseccionalidade traz recursos teóricos e metodológicos que subsidiam a abordagem de uma saúde que dialoga com a perspectiva histórica, social, política, econômica, com vistas à promoção de equidade baseada em classe social, gênero, raça/etnia, território, nacionalidade2020 Shannon G, Morgan R, Zeinali Z, Brady L, Couto MT, Devakumar D, Eder B, Karadag O, Mukherjee M, Peres MFT, Ryngelblum M, Sabharwal N, Schonfield A, Silwane P, Singh D, Van Ryneveld M, Vilakati S, Watego C, Whyle E, Muraya K. Intersectional insights into racism and health: not just a question of identity. Lancet 2022; 400(10368):2125-2136. etc. Além disso, no caso das trabalhadoras migrantes, a interseccionalidade não apenas entrecruza as opressões como evidencia a necessidade de se considerar as especificidades de cada uma delas, em especial quando se articula o status migratório (migrante econômica ou refugiada) e a nacionalidade, e suas implicações nas experiências de vida e de saúde. Nas palavras de Collins e Bilge, a interseccionalidade é um caminho profícuo, pois, ao olharmos a nossa história, podemos seguir em frente, rumo à ética e à democracia33 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo Editorial; 2021..

Justiça social, diálogo e escuta

Ao nos apropriarmos da interseccionalidade, a discussão sobre justiça social é um dos aspectos mais complexos, pois requer uma práxis política e crítica33 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo Editorial; 2021.. Tomo aqui, entre outras discussões possíveis, a perspectiva dos saberes acadêmicos rumo à justiça social para se pensar as violências sofridas pelas trabalhadoras latino-americanas.

Em primeiro lugar, a perspectiva interseccional fornece subsídios para a compreensão das singularidades e as diversidades das mulheres, suas resistências e ações coletivas que desenvolvem diante das opressões em suas trajetórias de vida e trabalho. Em segundo, as proposições de políticas públicas de saúde e de trabalho requerem a escuta das vozes dessas migrantes. Embora o conhecimento acadêmico tente por vezes a aproximação com a realidade de grupos sociais vulnerabilizados, há de se concordar com Collins ao expressar que “Nossas biografias pessoais nos oferecem visões parciais”33 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo Editorial; 2021. (p. 36) da realidade em que estamos inseridas.

Por esse motivo, proporcionar que o diálogo acadêmico com as mulheres migrantes seja estabelecido é colaborar para a formação ética do conhecimento, ou seja, aquela que está estritamente relacionada à escuta e a demandas desse grupo social heterogêneo, com vistas à construção coletiva de pautas fundamentais para a garantia de seus direitos à saúde, ao trabalho e à não violência. Priorizar as construções coletivas de enfrentamento às opressões interseccionais para o conhecimento ético com a participação coletiva é fazer valer a justiça social, tal como propõem Collins e Bilge33 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo Editorial; 2021.. Do ponto de vista acadêmico, faz-se necessário o diálogo com os movimentos sociais para a construção do conhecimento, incentivando novas formas de pensar e fazer a emancipação humana e a garantia de direitos.

A interseccionalidade, ao complexificar os enfrentamentos das trabalhadoras diante das violências antes, durante e depois do processo de migração, proporciona a elaboração de pautas para a construção de políticas públicas para a garantia de saúde, trabalho e prevenção das violências. Outro ponto é que, com isso, a inserção de migrantes nos sistemas de saúde, em qualquer território, deve ser uma garantia de direitos humanos.

Referências

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  • Financiamento

    INOVA-Geração do Conhecimento, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da ENSP/Fiocruz.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2022
  • Aceito
    02 Abr 2023
  • Publicado
    04 Abr 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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