O papel dos agentes comunitários de saúde no enfrentamento à pandemia de COVID-19: o caso de Peruíbe, São Paulo, Brasil

Cláudia Malinverni Jacqueline I. M. Brigagão Mariana De Gea Gervasio Fabiana Santos Lucena Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste estudo foi identificar o papel dos/as agentes comunitários de saúde na implementação das ações de atenção primaria na pandemia da COVID-19 no município de Peruíbe, São Paulo. Trata-se de um estudo de caso qualitativo, orientado pela perspectiva teórica proposta por Lipsky, segundo a qual os burocratas de nível de rua (BNR) têm um papel central na implementação das políticas públicas. A ferramenta de pesquisa foi a entrevista semiestruturada, realizada com quatro BNR (dois agentes comunitários de saúde, um médico e uma enfermeira) e quatro gestores da saúde local. A análise dos discursos possibilitou identificar três dimensões da ação municipal no combate à crise sanitária: a organização do sistema de saúde; as atividades das/dos ACS; e a retomada da rotina da APS. Concluímos que os agentes comunitários tiveram um papel ativo nas diversas ações desenvolvidas localmente para o enfrentamento da COVID-19.

Palavras-chave:
Agentes Comunitários de Saúde; Atenção Primária à Saúde; COVID-19; Recursos Humanos em Saúde; Pandemia

Introdução

As incertezas trazidas pela emergência da pandemia de COVID-19, em março de 2020, levaram os municípios brasileiros a desenvolver ações de diversas ordens, em diferentes momentos. No início, foi preciso organizar novos fluxos para cuidar dos infectados pelo vírus SARS-CoV-2; estabelecer medidas de distanciamento social ampliado (ou lockdown); implantar metodologias de rastreamento de casos, ações e campanhas de prevenção; implementar testes rápidos. Ao longo de dois anos, gestores e profissionais de saúde tiveram de reorganizar também as linhas de cuidado da atenção primaria à saúde (APS), sem abandonar a assistência à COVID-19 leve, assumindo a vacinação e a atenção às pessoas com a forma longa da doença.

Não foi uma tarefa fácil, sobretudo porque no Brasil os municípios são muito diversos em todos os sentidos. Além disso, houve grandes divergências entre os governos estaduais e o federal, o que redundou numa gestão sanitária caótica11 Ventura DFL, Perrone-Moisés C, Martin-Chenut K. Pandemia e crimes contra a humanidade: o "caráter desumano" da gestão da catástrofe sanitária no Brasil. Rev Direito Praxis 2021; 12(3):2206-2257.. Nesse contexto, ganham relevância estudos sobre as ações de saúde nos níveis locais da gestão pública durante a crise sanitária.

A atenção primária é a principal porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS), tendo a Estratégia de Saúde da Família (ESF) como orientadora das ações. A APS foi considerada fundamental no enfrentamento à COVID-19, porque como a maioria dos casos foi leve eles podiam ser acompanhados nesse nível de atenção22 Silva BRG, Corrêa APV, Uehara SCSA. Primary health care organization in the Covid-19 pandemic: scoping review. Rev Saude Publica 2022; 56:94..

Em São Paulo, a implantação da ESF, ainda como Programa Saúde da Família, teve início em 1996, em algumas regiões da capital e do interior. Em 1999, com base em indicadores socioeconômicos, a Secretaria de Estado da Saúde estendeu o modelo para o Vale do Paraíba e Litoral Norte, Vale do Ribeira e Itapeva/Itararé, Oeste Paulista e Pontal do Paranapanema, bem como para assentamentos e comunidades quilombolas. Apesar do apoio técnico e financeiro, em 2002 apenas 5,6 milhões de pessoas (à época, em torno de 20% da população paulista) tinham cobertura de equipes de saúde família (eSF)33 Guedes JS, Santos RMB, Di Lorenzo RAV. A implantação do Programa de Saúde da Família (PSF) no Estado de São Paulo (1995-2002). Saude Soc 2011; 20:875-883.. Duas décadas depois, essa cobertura a chegou a 21,9 milhões de pessoas (cerca de 47,8% dos habitantes do estado)44 Giovanella L, Bousquat A, Schenkman S, Almeida PF, Sardinha LMV, Vieira MLFP. Cobertura da Estratégia Saúde da Família no Brasil: o que nos mostram as Pesquisas Nacionais de Saúde 2013 e 2019. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl. 1):2543-2556.. Tal performance, além das dificuldades inerentes a processos de mudanças organizacionais, também reflete a coexistência de diferentes modelos de atenção básica no estado.

Fundamental à ESF, o agente comunitário atua na promoção e prevenção construindo o acolhimento com base em ações e palavras receptivas e afetuosas, estabelecendo com a população vínculos de confiança, compromisso e amizade. A identificação de problemas de saúde e intrafamiliares se dá pela escuta ativa e pelo diálogo, valores afetivos e respeito à vida do outro, pautados no interesse coletivo e na lógica dos territórios onde trabalham e, muitas vezes, moram55 Carli RD, Costa MC, Silva EB, Resta DG, Colomé ICS. Welcoming and bonding in the conceptions and practices of community health workers. Texto Contexto Enferm 2014; 23(3):626-632.. Uma das ferramentas de trabalho das(os) ACS, é a visita domiciliar, realizada rotineiramente e organizada de modo a atender às demandas populacionais e territoriais44 Giovanella L, Bousquat A, Schenkman S, Almeida PF, Sardinha LMV, Vieira MLFP. Cobertura da Estratégia Saúde da Família no Brasil: o que nos mostram as Pesquisas Nacionais de Saúde 2013 e 2019. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl. 1):2543-2556.. Na pandemia, uma ação de controle impactou particularmente o trabalho dos agentes comunitários, o distanciamento social, que comprometeu essas visitas domiciliares. Por isso, elas foram suspensas e, posteriormente, retomadas no formato peridomiciliar. Nesse período as equipes de saúde tiveram de se reinventar e extrapolar suas atividades, adaptando-as às diferentes fases pandêmicas.

Neste artigo, a partir do estudo de caso de Peruíbe-SP nosso objetivo foi apresentar e discutir o papel desempenhado pelo ACS no cuidado oferecido pela APS durante a pandemia da COVID-19.

Apontamentos teórico-metodológicos

Neste estudo, o local do serviço e os burocratas têm papel central nos processos de implementação das políticas públicas. Nessas perspectivas, a interação entre os agentes públicos que estão na ponta dos serviços e a população, bem como as características do lugar, as distâncias entre esses serviços e as moradias e/ou trabalho e as necessidades de saúde da população, entre outros aspectos, formatam no cotidiano as ações governamentais. Segundo Spink e Burgos66 Spink P, Burgos F. Os limites da abordagem de implementação: vulnerabilidade urbana a partir do outro lado da rua. In: Lotta G, organizadora. Teoria e análises sobre implantação de políticas públicas no Brasil. Brasília: Enap; 2019. p. 99-125., “governos podem desenvolver programas sobre uma gama grande de assuntos para melhorar o geral, mas os resultados sempre acontecem em lugares; as ideias e ações serão sempre aplicadas por alguém em algum lugar66 Spink P, Burgos F. Os limites da abordagem de implementação: vulnerabilidade urbana a partir do outro lado da rua. In: Lotta G, organizadora. Teoria e análises sobre implantação de políticas públicas no Brasil. Brasília: Enap; 2019. p. 99-125.(p.108; grifos nossos).

Nos aproximamos também das teorizações de Lipsky77 Lipsky M. Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços público [Internet]. Brasília: Enap; 2019 [acessado 2023 abr 12]. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/4158., que denomina as(os) profissionais da linha de frente dos serviços públicos de burocratas de nível de rua (BNR). Para o autor, ao interpretarem as diretrizes esses agentes também avaliam e utilizam a discricionaridade para dar forma aos serviços prestados à população. Lotta e Costa88 Lotta G, Costa MIS. Uso de categorizações políticas e sociais na implementação de políticas: contribuições teóricas e analíticas. Rev Sociol Polit 2020; 28:e004. ressaltam que no cotidiano o BNR atua como elo de conexão entre usuários e Estado.

Na crise sanitária, os BNR foram reconhecidos como essencial. Lotta et al.99 Lotta G, Nunes J, Fernandez M, Garcia Correa M. The impact of the COVID-19 pandemic in the frontline health workforce: Perceptions of vulnerability of Brazil's community health workers. Health Policy OPEN 2022; 3:100065. observam que os ACS ampliaram a possibilidade de resposta aos desafios pandêmicos, já que atuaram no monitoramento dos sintomas, na coleta de dados epidemiológicos e no encaminhamento dos casos aos serviços especializados. Corroborando, Ballard et al.1010 Ballard M, Johnson A, Mwanza I, Ngwira H, Schechter J, Odera M, Mbewe DN, Moenga R, Muyingo P, Jalloh R, Wabwire J, Gichaga A, Choudhury N, Maru D, Keronyai P, Westgate C, Sapkota S, Olsen HE, Muther K, Rapp S, Raghavan M, Lipman-White K, French M, Napier H, Nepomnyashchiy L. Community Health Workers in Pandemics: Evidence and Investment Implications. Glob Health Sci Pract 2022; 10(2):e2100648., discutindo o papel dos agentes comunitários na COVID-19, lembram que há anos eles desempenham papel fundamental na prevenção, detecção e enfrentamento de epidemias em sistemas de saúde de muitos países, tendo sido fundamentais nas respostas locais a esses eventos. De acordo com Peretz et al.1111 Peretz PJ, Islam N, Matiz LA. Community Health Workers and COVID-19 - Addressing Social Determinants of Health in Times of Crisis and Beyond. N Engl J Med Overseas Ed 2020; 383(19):e108., no New York Presbyterian Hospital e na Grossman School of Medicine, por exemplo, eles atuaram na pandemia como intermediários culturais entre a comunidade e os sistemas de saúde, mitigando o medo, corrigindo a desinformação junto aos mais vulneráveis, identificando e encaminhando questões relacionadas aos determinantes sociais que impactavam a prevenção e os tratamentos contra a COVID-19. Desse modo, fica evidente que em muitos países os ACS foram parte da resposta da saúde pública à pandemia.

Assumir que a implementação da ação pública não é um processo mecanizado e ter nos BNR uma figura central não significa dizer que as políticas públicas, as leis e os programas não têm importância. Ao contrário, ressaltam Lima e D’Ascenzi1212 Lima LL, D'Ascenzi L. Implementação de políticas públicas: perspectivas analíticas. Rev Sociol Polit. 2013; 21:101-110., esses documentos também afetam a implementação das ações porque são o arcabouço jurídico-institucional que define as arenas de atuação, as ferramentas, o papel dos diversos atores e o modo como se dá a alocação e distribuição dos recursos. Por isso recorremos a alguns documentos para compreender as diretrizes que pautaram as ações dos ACS em Peruíbe.

Este artigo utiliza dados da etapa qualitativa da pesquisa “A política de Atenção Primária à Saúde no contexto da pandemia nos municípios paulistas”, do Instituto de Saúde (IS), órgão da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (parecer nº 4.842.154 do Comitê de Ética em Pesquisa do IS). Realizada ao longo do segundo semestre de 2022, entrevistou presencialmente 37 pessoas de seis municípios, selecionados do inquérito produzido na etapa quantitativa. As entrevistas, semiestruturadas, seguiram um roteiro norteador sobre a organização local da APS durante a crise sanitária. A participação foi voluntária, mediante assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido, e ampla autonomia dos participantes para responder às questões e introduzir outros temas. As entrevistas foram gravadas, transcritas e lidas integralmente.

A estratégia metodológica utilizada neste trabalho foi o estudo de caso de Peruíbe, o que nos possibilitou discutir o papel dos ACS no enfrentamento à COVID-19. Essa abordagem permite entender em profundidade a complexidade de determinadas situações, em razão do detalhamento e da contextualização do fenômeno1313 Yin RK. Pesquisa Estudo de Caso - Desenho e Métodos. 2ª ed. Porto Alegre: Bookman; 1994.. O município foi escolhido porque na análise das entrevistas identificamos esse tema na fala de diversos profissionais. Além disso, por se tratar de um balneário turístico, a gestão local cotidianamente lida com os desafios de uma população sazonal, tendo abrigado desde o início da pandemia um grande número de pessoas em trabalho remoto vindas de outras cidades, complexificando as ações da APS e implicando novos cadastramentos no SUS.

Na cidade foram realizadas oito entrevistas, quatro com burocratas de nível de rua: dois agentes comunitários (ACS1 e ACS2), um médico (P1) e uma enfermeira (P2), além de quatro gestores de diferentes níveis (G1, G2, G3, G4). Isso permitiu descrever as principais ações desenvolvidas na pandemia e identificar que o papel dos ACS, que emergiram transversalmente nos discursos das/dos participantes. Ou seja, apesar de não ter no roteiro original uma questão específica sobre esse tema, ele permeou as entrevistas, nos possibilitando circunscrever os repertórios interpretativos associados à atuação desses profissionais como objeto de análise, na perspectiva das práticas discursivas1414 Spink MJP, Medrado B. Produção de sentidos no cotidiano: uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In Spink MJP, organizador. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez; 1999. p. 41-62..

Neste artigo, focamos nas informações relativas ao modo como Peruíbe organizou a APS durante a pandemia, bem como nos repertórios empregados pelos participantes para descrever a atuação dos ACS. Repertórios interpretativos são dispositivos linguísticos formados por termos, descrições, lugares-comuns e figuras de linguagem que demarcam o rol de possibilidades na produção de sentidos, segundo a dinâmica, a variabilidade e a polissemia das relações sociais1414 Spink MJP, Medrado B. Produção de sentidos no cotidiano: uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In Spink MJP, organizador. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez; 1999. p. 41-62.. Sendo foco da análise, permitem, ainda, identificar a maneira como nos posicionamos e posicionamos nossos/as interlocutores/as, bem como perceber as versões de realidade produzidas por pessoas, grupos ou sociedade1515 Aragaki SS, Piani PP, Spink MJ. Uso de repertórios linguísticos em pesquisas. In: Spink MJP, Brigagão JIM, Nascimento VLV, Cordeiro MP. A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2014.. Complementarmente, utilizamos o diário de campo da entrevistadora e os textos advindos de documentos de domínio público (leis e decretos promulgados pela prefeitura e notícias publicadas pela imprensa).

As principais limitações estão o fato de o roteiro ter sido elaborado com vistas à organização da APS no município e não quanto à atuação de ACS na pandemia, bem como o número de participantes. Por isso acreditamos ser importante outras investigações sobre o papel dos agentes comunitários no combate à COVID-19, que nosso estudo demonstrou ter sido fundamental nas ações da atenção básica. Além disso, é importante investir em pesquisas qualitativas sobre a APS na crise sanitária.

Contexto sociopolítico

Peruíbe está localizado na Região Metropolitana da Baixada Santista, a 140 km da capital paulista. Com 326,216 km² e 68.344 habitantes, tem densidade demográfica de 209,51 habitantes/km² e Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) de 0,749, considerado alto1616 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Panorama Censo 2022 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2023 [acessado 2023 jul 13]. Disponível em: http://censo2022.ibge.br/panorama..

Entre outros serviços, a rede de saúde dispõe de 12 unidades de saúde da família e um polo de academia de saúde, além de hospital geral, onde funciona também a maternidade, Ambulatório Médico de Especialidades (AME) e dois Centros de Atenção Psicossocial (Caps), um deles infantil. Em consulta realizada em setembro de 2022, a cidade contava com 73 ACS1717 TabNet Win32 3.0. CNES - Recursos Humanos - Profissionais - Indivíduos - segundo CBO 2002 - São Paulo [Internet]. 2023 [acessado 2023 abr 28]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?cnes/cnv/prid02sp.def.
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e uma cobertura populacional da APS de 92,38%1818 e-Gestor AB [Internet]. [acessado 2023 abr 27]. Disponível em: https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relCoberturaAPSCadastro.xhtml;jsessionid=WjdknCzWGij7HIb6asaF5ztO.
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Desde a criação do SUS, as políticas de saúde são induzidas pelo governo federal, que formula e coordena as ações intergovernamentais nos âmbitos regional e local1919 Arretche M. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: FVG, Fiocruz; 2012.. Com a crise sanitária, porém, esse modelo foi rompido, pois muitos estados e municípios divergiram das propostas federais de enfrentamento à COVID-19, adotando políticas específicas. Diversos pontos de atrito entre os entes nacional e subnacionais quanto ao modo de condução da pandemia emergiram, destacadamente a resistência do ex-presidente da República às ações de distanciamento social, que deslegitimava incessantemente as evidências científicas com base em negacionismos e interesses políticos e econômicos. Seu pronunciamento à nação, em 26 de março de 2020, explicita essa divergência:

O sustento das famílias deve ser preservado. Devemos, sim, voltar à normalidade. Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, como proibição de transporte, fechamento de comércio e confinamento em massa. O [...] mundo tem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos. Então, por que fechar escolas? Raros são os casos fatais de pessoas sãs, com menos de 40 anos de idade. 90% de nós não teremos qualquer manifestação caso se contamine. Devemos, sim, é ter extrema preocupação em não transmitir o vírus para os outros, em especial aos nossos queridos pais e avós. Respeitando as orientações do Ministério da Saúde2020 Calil GG. A negação da pandemia: reflexões sobre a estratégia bolsonarista. Serv Soc Soc 2021; 140:30-47. (p.39; grifos nossos).

Nesse cenário, foi editada a Medida Provisória nº 923/2020, da Lei n° 13.979/2020, que concentrava na figura do presidente a identificação e regulação das atividades essenciais. Em seguida, em 15 de abril, essa medida foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADI nº 6.341, o que levou o Supremo Tribunal Federal, baseado nos princípios constitucionais, a estabelecer a competência concorrente do DF, estados e municípios no combate à pandemia, reconhecendo o poder dos gestores locais na adoção de políticas específicas para a crise2121 Supremo Tribunal Federal. STF reconhece competência concorrente de estados, DF, municípios e União no combate à COVID-19 [Internet]. 2020 [acessado 2023 abr 28]. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441447&ori=.
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Nos primeiros meses da pandemia o governo paulista publicou decretos quarentenários. Mas, em 28 de maio de 2020, instituiu o Plano São Paulo (Decreto nº 64.994)2222 São Paulo. Decreto no 64.994, de 28 de maio de 2020 [Internet]. [acessado 2023 abr 27]. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/leis/legislacao-do-estado/.
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, que previa a flexibilização do distanciamento ampliado por fases.

Peruíbe integra, junto com outros nove municípios, o Conselho de Desenvolvimento da Região Metropolitana da Baixada Santista (Condesb), onde os prefeitos tomavam decisões coletivas em relação ao controle regional da COVID-19. Em 23 de dezembro de 2020, o Condesb decidiu que a região continuaria na fase amarela, decisão que contrariou o Centro de Contingência do Coronavírus do Estado de São Paulo, que havia colocado todo território paulista na fase vermelha, entre 25 e 27 daquele mês e de 1 a 3 de janeiro de 20212323 G1. Prefeitos decidem manter litoral de SP na fase amarela e fechar as praias no Réveillon | Santos e Região [Internet]. [acessado 2023 abr 27]. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2020/12/23/prefeitos-decidem-manter-litoral-de-sp-na-fase-amarela-e-fechar-as-praias-no-reveillon.ghtml.
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. O argumento dos prefeitos era que não havia tempo hábil para tal medida, sendo mais importante bloquear as praias durante a virada do ano. Também pleitearam junto ao governo estadual barreiras sanitárias nas rodovias de acesso à Baixada, a fim de evitar o fluxo de turistas. Em 25 de janeiro de 2021, em decisão consensuada no Condesb, em razão do aumento de casos, internações e mortes por COVID-19, Peruíbe decidiu seguir integralmente o Plano São Paulo, que naquele momento recomendava “a fase laranja, com restrições da vermelha em dias úteis, após as 20h, e integralmente aos finais de semana”2424 Mais Peruibe. Fase Vermelha - Peruíbe terá praias com restrições em atendimento ao decreto estadual [Internet]. 2021 [acessado 2023 abr 27]. Disponível em: https://www.maisperuibe.com.br/2021/01/fase-vermelha-peruibe-tera-praias-fechadas-em-atendimento-ao-decreto-estadual/.
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. Não houve, portanto, uma adesão automática dos municípios ao plano estadual, mas sim uma avaliação conjunta sobre a situação local, as múltiplas dimensões envolvidas nas medidas e decisões autônomas nos diferentes momentos da pandemia.

A APS e a organização da saúde na pandemia

Para garantir a assistência à saúde e controlar o número de infectados pelo SARS-CoV-2, Peruíbe criou um novo fluxo de atendimento e encaminhamento dos casos suspeitos e confirmados, com nova metodologia de monitoramento e rastreio. Em relação aos cuidados diretos, nos primeiros meses da pandemia a principal porta de entrada para sintomáticos de síndrome gripal foi o AME, que triava os casos e, se necessário, os encaminhava para a UPA.

Num esforço para melhorar a comunicação e auxiliar a população na prevenção e combate à propagação da doença, a Secretaria Municipal de Saúde criou a Central de Atendimento COVID-19, integrada pela vigilância epidemiológica (VE) e trabalhadoras/es da rede básica de saúde. Funcionando de segunda a sexta-feira, das 8 às 17 horas, orientava os cidadãos sobre as principais dúvidas relacionadas à doença: como e quando deveriam procurar a UBS, a UPA ou permanecer em casa e observar os sintomas:

[...] acompanhamento dos casos suspeitos ou tirar dúvidas de algum paciente. A gente passava informação via telefone [...] eles ligavam para essa central e tiravam as dúvidas, ou aqueles casos de covid, a gente ficava monitorando, via telefone [...] saber como que o paciente estava evoluindo, se de repente ele ainda tivesse ruim, era orientado para estar procurando a UPA (ACS1).

Junto com a VE, também monitorava os casos notificados e suas famílias. A notificação desencadeava o processo de trabalho na central:

[...] a vigilância tinha a obrigação de fazer o primeiro contato telefônico com essa pessoa e, depois, enviar para os agentes de saúde correspondentes essas notificações. Então, do terceiro ao quatro dia de sintoma [...] a gente recebia as fichas dessa pessoa. Entrávamos em contato [...] e acompanhávamos - se o caso era um pouco mais sério, diariamente. E se nós identificávamos que a pessoa estava bem, a cada dois dias nós entrávamos em contato, com exceção do fim de semana (ACS2).

No início da crise muitas atividades de rotina da APS foram suspensas pela prefeitura. Mas em 18 de junho de 2020 o executivo municipal publicou o Decreto nº 4.9562525 Peruíbe. Decreto nº 4.956, de 18 de junho de 2020 [Internet]. [acessado 2023 abr 28]. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/sp/p/peruibe/decreto/2020/496/4956/decreto-n-4956-2020-dispoe-sobre-a-retomada-dos-servicos-na-administracao-publica-municipal.
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, normatizando a retomada dos serviços na APS e implementando um novo fluxo para os casos de COVID-19:

Nesta fase, as unidades de atenção básica devem ser reorganizadas no que diz respeito ao processo de trabalho e atendimento dos pacientes de sua área de abrangência, realizando atendimento de casos suspeitos de COVID-19 com sintomas leves e sem critérios de gravidade, bem como de pacientes de grupos prioritários e de acordo com critérios de vulnerabilidade2323 G1. Prefeitos decidem manter litoral de SP na fase amarela e fechar as praias no Réveillon | Santos e Região [Internet]. [acessado 2023 abr 27]. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2020/12/23/prefeitos-decidem-manter-litoral-de-sp-na-fase-amarela-e-fechar-as-praias-no-reveillon.ghtml.
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Ou seja, a APS criou dois fluxos de acesso às unidades, um para pessoas sintomáticas e outro para as que tinham outras demandas:

[...] num segundo momento, quando esses pacientes aumentaram e deu-se um volume enorme na UPA de atendimentos, de planos de ação para que a gente pudesse atender pacientes com sintomas leves dentro da própria unidade, e, depois, encaminhando de acordo com a urgência para a UPA (ACS1).

Essa estratégia está alinhada com o observado por diversos autores que, desde o início, entendiam a APS como espaço privilegiado de enfrentamento à COVID-19 argumentando ser fundamental utilizar seus recursos e conhecimentos do território, bem como os vínculos já estabelecidos com a população. Desse modo seria possível monitorar todos os casos e atender as pessoas com sintomas leves2626 Daumas RP, Silva GA, Tasca R, Leite IC, Brasil P, Greco DB, Grabois V, Campos GWS. O papel da atenção primária na rede de atenção à saúde no Brasil: limites e possibilidades no enfrentamento da COVID-19. Cad Saude Publica 2020; 36:e00104120.

27 Medina MG, Giovanella L, Bousquat A, Mendonça MHM, Aquino R. Atenção primária à saúde em tempos de COVID-19: o que fazer? Cad Saude Publica 2020; 36:e00149720.
-2828 Sarti TD, Lazarini WS, Fontenelle LF, Almeida APSC. Qual o papel da Atenção Primária à Saúde diante da pandemia provocada pela COVID-19? Epidemiol Serv Saude 2020; 29:e2020166.. Nesse sentido, para as(os) gestores, a atenção básica assumiu o protagonismo na pandemia, tendo as(os) ACS um papel fundamental nas ações:

Eu entendo que foi protagonista porque a gente manteve, sim, o controle. Busca ativa de pacientes com tuberculose [...] acompanhamento de puericultura, das gestantes também; o monitoramento da família em relação à [...] COVID, quando você tinha um caso suspeito. Então, esse agente de saúde também ficava em cima com orientações à família, em [...] isolamento dentro da casa, como deveria proceder em caso também de suspeita, [...] que fazer em caso de piora; ou se teria que encaminhar, direcionar. As visitas também; contato também com as famílias que têm os pacientes domiciliados, [...] o atendimento que deixou de ser mais frequente, mas se mantendo com algum canal, caso a gente não consiga retornar num tempo previsto. Então, se tivesse qualquer tipo de intercorrência no caminho, ele [ACS] era avisado, a equipe ia num intervalo menor do que aquele que a pandemia permitiu para fazer essas visitas (G2; grifos nossos).

É interessante observar o que aponta Lipsky77 Lipsky M. Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços público [Internet]. Brasília: Enap; 2019 [acessado 2023 abr 12]. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/4158.: “Por fim, os conflitos de objetivo e a ambiguidade decorrem das expectativas contraditórias que moldam o papel da burocracia de nível de rua”77 Lipsky M. Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços público [Internet]. Brasília: Enap; 2019 [acessado 2023 abr 12]. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/4158.(p.113). Assim, apesar do relato de gestores e outros profissionais indicarem que durante a pandemia não houve conflitos com a equipe em relação às funções dos ACS, é preciso ressaltar que nem sempre foi uma relação tranquila. No início da crise, alguns resistiram ao trabalho na linha de frente:

[...] pessoas que tinham medo de atender. Passamos algumas situações de recusa de busca ativa dos pacientes por parte de alguns agentes de saúde, por não querer atender, não entender que aquele é o trabalho dele [...] [que] de certa forma ele escolheu estar ali, né? Mas também não posso julgar, porque [...] o medo da morte existe, né? Medo de perder entes também é natural (ACS2).

Em Peruíbe, apesar dos esforços das equipes de saúde, houve muitas perdas para de usuários regularmente acompanhados pela APS, já que os casos de COVID-19 tiveram de ser priorizados e, muitas vezes, a população evitava os serviços de saúde com medo do contágio. Além disso, os espaços físicos das UBS não comportavam um grande número de pessoas, devido às orientações de distanciamento social. Outra dificuldade apontada foi o aumento do contingente de pessoas a serem atendidas no município, como dito, em função da população sazonal em trabalho remoto, sem aumento de financiamento, como relata G1:

[...] morador de São Paulo, São Bernardo, enfim, veio para cá na pandemia. Só que ele continua com seu prontuário, [...] com o vínculo lá no outro município. E quem que recebe por este cadastro? [...] é por onde ele está por mais tempo vinculado. Então Peruíbe pode estar dando uma assistência maior em relação a várias necessidades que tem apresentado aqui no município, mas o registro dele está indo para São Bernardo, São Paulo, onde ele nem está passando mais.

Assim, como quem faz os cadastros são as(os) ACS, houve aumento dessa carga de trabalho para eles durante a pandemia.

Quanto à rotina interna, os entrevistados relataram capacitações e reuniões constantes para alinhamento de todos os procedimentos e acesso das equipes a novos protocolos de atenção à COVID-19 baseados em evidências. Além disso, foram criados canais para disseminação de informações atualizadas, como novas diretrizes, novos protocolos de atendimento clínico e memorandos para otimizar a comunicação dentro das equipes:

[...] fazer uma vez na semana a reunião de equipe ou então a cada quinze dias [...] como a demanda de paciente [de rotina] estava menor, apesar do estresse todo [...] a gente acabou conversando [bastante] durante a semana mesmo (P1).

[...] informações de alteração que nós tínhamos, [...] alguns protocolos municipais, não só da parte de COVID, mas até mesmo [...] de atendimento a gestantes, à criança [...] reuniões on-line [...] [d]esse novo fluxo (P2).

[...] essas capacitações, [...] o planejamento científico, e isso é muito importante dizer, dou graças a Deus que nós participamos de uma equipe de trabalho, desde lá de cima até embaixo, muito científica e pouco política. Porque a gente sabe que a política, tanto de um lado como para o outro, esse fanatismo não é saudável, né? Sempre nessa questão de cascata, né? Hierárquica (ACS2).

Por ser uma doença nova, a COVID-19 gerou muita desinformação e negacionismos. Os BNR de Peruíbe, como P1, P2 e ACS2, reconheceram a importância do respaldo da ciência nas propostas da gestão e seu esforço para garantir a comunicação dentro das equipes, bem como a oferta de treinamentos, capacitações e diretrizes para as ações. Nesse sentido, aponta Lipsky77 Lipsky M. Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços público [Internet]. Brasília: Enap; 2019 [acessado 2023 abr 12]. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/4158.: “Os gestores, bem como as normas comunitárias e as profissionais, estruturam as escolhas políticas dos burocratas de nível de rua”(p.56). Para ele, isso não impede que os BNR exerçam a discricionariedade na sua área de atuação, “mesmo os funcionários públicos que não têm forte vinculação ao status profissional exercem um considerável poder discricionário”77 Lipsky M. Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços público [Internet]. Brasília: Enap; 2019 [acessado 2023 abr 12]. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/4158.(p.56).

Na próxima seção discutimos como a discricionaridade dos ACS, pautados nos saberes construídos na relação próxima que estabelecem com a população, foi importante no enfrentamento à crise sanitária em Peruíbe.

As atividades das(os) ACS na pandemia

As recomendações de distanciamento social levaram à criação de outras formas de atuação dos ACS e os envolveram no trabalho de contenção do espalhamento do vírus2929 Brasil. Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Recomendações para adequação das ações dos Agentes Comunitários de Saúde frente à atual situação epidemiológica referente ao COVID-19 [Internet]. Brasília; 2020 [acessado 2023 abr 28]. Disponível em: https://www.conasems.org.br/wp-content/uploads/2020/04/20200403_recomendacoes_ACS_COVID19_ver002_final_b.pdf.
https://www.conasems.org.br/wp-content/u...
. Apesar dos protocolos e diretrizes, as/os ACS estabelecem com a população uma relação complexa que demanda que eles tomem decisões e façam intervenções baseadas na discricionaridade no cotidiano do trabalho de promoção a saúde. Lipsky77 Lipsky M. Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços público [Internet]. Brasília: Enap; 2019 [acessado 2023 abr 12]. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/4158. afirma:

Os burocratas de nível de rua trabalham em situações que, muitas vezes, requerem respostas para as dimensões humanas das situações. Eles têm discricionariedade porque suas tarefas demandam legitimamente observação e julgamento sensíveis, que não são redutíveis a formatos programados77 Lipsky M. Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços público [Internet]. Brasília: Enap; 2019 [acessado 2023 abr 12]. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/4158.(p.59).

Em Peruíbe foi possível identificar que as(os) ACS mantiveram, durante a pandemia, algumas atividades de rotina, como o cadastramento de novos moradores. Mas várias alterações na rotina levaram essas(es) trabalhadoras(es) a atuar em ações de orientação para reduzir a contaminação, monitorar os casos de COVID-19 e observar sinais de agravamento de outras doenças, uma vez que lidam rotineiramente com doentes crônicos, como portadores de diabetes e hipertensão, além de gestantes e idosos. Isso lhes possibilita um conhecimento dos agravos relativos a essas doenças. Além disso, as(os) ACCS utilizaram a escuta ativa para desenvolver ações terapêuticas nas ligações telefônicas e nas visitas peridomiciliares.

O monitoramento telefônico foi muito importante para garantir que as pessoas diagnosticadas com COVID-19 pudessem esclarecer as dúvidas e fossem orientadas a procurar os serviços de saúde em caso de agravamento dos sintomas. Nesse sentido, é importante ressaltar que é difícil mensurar as ações dos ACS porque, como afirma Lipsky77 Lipsky M. Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços público [Internet]. Brasília: Enap; 2019 [acessado 2023 abr 12]. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/4158., o desempenho do BNR frequentemente impede uma avaliação eficaz, pois esta depende de muitas variáveis: “Não é apenas o fato de que os seres humanos são complexos e que uma métrica de respostas corretas é inadequada. De forma igualmente relevante, raramente há alguma maneira de determinar o que teria acontecido aos clientes na ausência da intervenção”77 Lipsky M. Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços público [Internet]. Brasília: Enap; 2019 [acessado 2023 abr 12]. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/4158.(p.118). Uma fala expressa essa complexidade:

[...] às vezes é difícil você falar de monitoramento de covid porque você não tem como mensurar o quanto isso preveniu mortes,? Às vezes aquela pessoa que estava com sintoma e a gente mandou ir para o UPA, ela pode estar viva por causa disso, ou às vezes ela não fosse [mesmo] morrer (ACS2; grifos nossos).

Mas é certo que os vínculos de confiança estabelecidos no acompanhamento regular da população antes pandemia favoreceu o rastreio e monitoramento dos casos de COVID-19:

[...] lembro particularmente de uma gestante que eu já acompanhava antes [...] durante o período da pandemia a gente ligava todo dia para ela. Ela teve covid e foi uma pessoa que o contato telefônico, por exemplo, foi necessário e [...] benéfico. Porque, uma vez ligando para essa paciente, ela falou que estava sentindo um certo cansaço em repouso, né? Um sintoma de uma certa dificuldade de respirar, mesmo não fazendo exercício físico, deitada. E nós alertamos a procurar o UPA, e ela já estava com parte do pulmão comprometido, né? O tratamento foi feito (ACS2).

Na rotina diária das/os ACS a escuta atenta, a observação participante e a criação de vínculos são ferramentas de trabalho que possibilitam ações terapêuticas de cuidado no momento das interações:

A gente ligava no dia seguinte e o parente falava: “Ele foi entubado”. Do mesmo jeito que a gente passou algumas semanas que a gente atendia uns vinte pacientes por dia, era bem feita a divisão. Então [...] podíamos atender essa quantidade, que era bom para dar atenção. E a gente perdeu cinco pacientes num dia, de descobrir, ligar. Outro trabalho que a gente também não sabe, que foi o consolo via telefone, de saber que teve alguém acompanhando o ente perdido, né? Foi um trabalho muito relevante que a gente fez durante essa pandemia, e marcante (ACS1; grifos nossos).

[...] teve um paciente que eu liguei para ele todos os dias. E a gente conversava por mais de 40 minutos porque ele tinha um quadro de depressão. E quando no fim [...] do seu tratamento, que ele pôde receber alta do monitoramento COVID, que estava tudo bem, nós viemos a nos encontrar por... por iniciativa dele. Porque durante três vezes, ele tendo armamento em casa, trabalhando na segurança pública, ele queria atentar contra a própria vida. E o que sustentou foram [ess]as ligações (ACS2).

Nessas falas fica evidente a discricionaridade dos BNR77 Lipsky M. Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços público [Internet]. Brasília: Enap; 2019 [acessado 2023 abr 12]. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/4158.,88 Lotta G, Costa MIS. Uso de categorizações políticas e sociais na implementação de políticas: contribuições teóricas e analíticas. Rev Sociol Polit 2020; 28:e004. que lhes permite decidir priorizar determinados pacientes e dedicar mais tempo àqueles que necessitam de maior atenção. Outra dimensão evidenciada é a capacidade de conexão das(os) ACS com a comunidade, o que também foi ressaltado por Peretz et al.1111 Peretz PJ, Islam N, Matiz LA. Community Health Workers and COVID-19 - Addressing Social Determinants of Health in Times of Crisis and Beyond. N Engl J Med Overseas Ed 2020; 383(19):e108.:

Os agentes comunitários de saúde aproveitaram sua conexão cultural e compartilharam experiências de vida para oferecer conselhos práticos, orientação e apoio na navegação pelo sistema de saúde para enfrentar cada desafio. Seus esforços incluíram a facilitação da entrega de medicamentos, o contato telefônico com idosos socialmente isolados e o oferecimento de um ouvido atento e empatia reflexiva1111 Peretz PJ, Islam N, Matiz LA. Community Health Workers and COVID-19 - Addressing Social Determinants of Health in Times of Crisis and Beyond. N Engl J Med Overseas Ed 2020; 383(19):e108.(p.3; tradução nossa).

Retomando a rotina da APS

As visitas domiciliares de rotina ficaram suspensas nos três primeiros meses da pandemia, restritas a casos específicos e busca ativa de notificados de COVID-19. Como já dissemos, o Decreto nº 4.956/20202525 Peruíbe. Decreto nº 4.956, de 18 de junho de 2020 [Internet]. [acessado 2023 abr 28]. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/sp/p/peruibe/decreto/2020/496/4956/decreto-n-4956-2020-dispoe-sobre-a-retomada-dos-servicos-na-administracao-publica-municipal.
https://leismunicipais.com.br/a/sp/p/per...
orientou a retomada das visitas em ambiente peridomiciliar, a fim de garantir a segurança da população e de profissionais de saúde. A análise permitiu observar um processo paulatino de adaptação do atendimento da APS à medida que se interpunham as diferentes fases da pandemia. Por exemplo, os grupos de promoção da saúde, uma das atividades coletivas regulares das quais as(os) ACS participam e/ou coordenam, foram suspensos no início da crise para evitar aglomerações. Em alguns territórios, porém, elas foram rapidamente resgatadas, logo que as medidas de distanciamento foram flexibilizadas:

Houve assim, tirando os momentos de lockdown, em que realmente era totalmente restrita a saída da pessoa do seu domicílio, quando foram diminuindo as exigências, os grupos de caminhada continuaram, né? (ACS1).

A fala do ACS1 demonstra que, apesar da promoção da saúde, que acontece nas visitas domiciliares, ter sido historicamente central no trabalho de agentes comunitários, uma vez que auxilia as equipes a realizar um cuidado integral, é preciso ir além dessa dimensão:

[...] lembrei de uma paciente, agora, que eu cadastrei faz pouco tempo, [...] afetada pela pandemia. Ela perdeu duas filhas gêmeas, um dia após o outro, perdeu o marido. E a gente acompanha, tem acompanhado. Faz cinco meses que eu fiz o cadastro dela, identifiquei essa situação. Estava num quadro depressivo, diabética - que antigamente usava medicamento via oral, por causa do quadro depressivo teve um sintoma latente de compulsão alimentar, a diabete dela subiu de nível para a necessidade da insulina. Só que ela não sabia. Foi conversando com ela, sabendo desse histórico [...] dessa compulsão que ela adquiriu durante esse período, que eu levei o caso para a enfermeira (ACS1).

É fundamental que gestores dos diferentes níveis reconheçam que a importância desses profissionais vai além da promoção da saúde. Eles devem ser reconhecidos como aliados na luta contra o desmantelamento da ESF, explicitado na Política Nacional de Atenção Básica 2017. Isso porque há nessa política uma profunda transformação no papel das/dos ACS, já que retirou a exigência de número mínimo de agentes nas equipes de saúde da família e preconiza àqueles que foram mantidas atribuições de enfermagem, reforçando uma racionalidade biomédica e um rompimento com o modelo da promoção da saúde3030 Morosini MV, Fonseca AF. Os agentes comunitários na Atenção Primária à Saúde no Brasil: inventário de conquistas e desafios. Saude Debate 2018; 42:261-274..

Considerações finais

As decisões político-administrativas foram muito importantes para o controle da pandemia no Brasil e pautaram as diretrizes nos diferentes níveis de gestão do Sistema Único de Saúde. Mas é preciso reconhecer que os burocratas do nível de rua foram os responsáveis por concretizar as ações no cotidiano dos serviços de saúde. A pesquisa demonstrou que as(os) agentes comunitários foram fundamentais nas atividades desenvolvidas pela atenção primária no enfrentamento da crise provocada pela COVID-19. No município de Peruíbe esses profissionais participaram ativamente das ações de prevenção, rastreamento, monitoramento e cuidado ofertado à população.

No trabalho de linha de frente na saúde, especialmente em momentos mais agudos de crises, os BNR tomam decisões e fazem escolhas que impactam a população. Daí a importância de garantir capacitações e treinamentos para que essas escolhas sejam pautadas por evidências científicas e ajudem a ampliar o alcance das equipes multiprofissionais.

O conhecimento dos ACS do território e sua capacidade de conexão com a comunidade facilitaram muito as diversas atividades de promoção à saúde que elas e eles adotaram tanto durante a pandemia quanto no período pós-pandêmico. A pesquisa demonstrou que há ACS que conseguem exercer seu papel com empatia reflexiva e escuta atenta de demandas, o que possibilita informar as equipes de saúde e prestar um cuidado integral à população. Nesse sentido, observando a experiência de Peruíbe, podemos dizer que esses profissionais são fundamentais na APS não apenas no dia a dia dos serviços e controle de crises sanitárias. Eles são fundamentais para a retomada de uma política nacional de atenção básica alinhada com os princípios fundamentais e organizativos do SUS.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2023
  • Aceito
    21 Ago 2023
  • Publicado
    23 Ago 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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