O cuidado constitui o ser humano

Maria Cecília de Souza Minayo Sobre o autor
Camarano, Ana Amélia; Pinheiro, Luana. Cuidar, Verbo Transitivo caminhos para a provisão de cuidados no Brasil

Cuidar, verbo transitivo acaba de ser lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), tendo sido organizado por Ana Amélia Camarano e Luana Pinheiro. O livro foi escrito por 21 autores e contém 545 páginas em 11 densos capítulos.

A obra define o ato de cuidar como imprescindível à sobrevivência e fazendo parte da experiência individual, uma vez que todos cuidam ou são cuidados em algum momento da existência. Por isso, segue o que diz Heidegger11 Heidegger M. O ser e o tempo. Coleção Pensadores. São Paulo: Editora Abril; 1980., que o ser humano se constitui cuidando do outro. No entanto, no curso da vida, nem todos precisam igualmente de cuidados, sendo que nas famílias, crianças, pessoas com algum tipo de deficiência física ou mental e os idosos são os que mais demandam atenção. Aliás, o cuidado familiar está previsto na Constituição, lembram as autoras. No entanto a Constituição convoca também a sociedade, a iniciativa privada e o Estado a entrarem nessa faina que consome tempo e horas, principalmente das mulheres, sobre quem, culturalmente, cabe o ônus e o bônus de atender, acolher e ser o braço auxiliar dos que precisam da ajuda de terceiros.

Os autores chamam atenção para o fato de que cuidar custa tempo, dinheiro, gera perda de oportunidades no mercado de trabalho, acarreta desgaste na saúde física e emocional, bem como vários outros tipos de desgastes pessoais a quem se dedica, frequentemente 24 horas por dia, sete dias da semana, meses e anos a fio. Os capítulos do livro deixam claro que, embora o cuidado sempre tenha sido crucial na vida humana, quem o exerce tem permanecido a maior parte do tempo invisível e desvalorizado, e esse trabalho não tem gerado direitos sociais. A maioria dos cuidadores é mulher, negra e não remunerada. Além de não ser justa, essa situação é insustentável no curto e médio prazo devido às mudanças na família, à participação das mulheres no mercado de trabalho, ao envelhecimento populacional e ao reconhecimento de que o trabalho não pago de cuidados é um dos maiores fatores das desigualdades de gênero.

A obra está em compasso com o relatório “Tempo de cuidar”, elaborado pela Oxfam e apresentado no Fórum Econômico Mundial de Davos - o “clube dos homens” mais ricos do mundo - em 202022 Oxfam. Relatório sobre nós e a desigualdade "tempo de cuidar" [Internet]. 2020. [acessado 2020 jan 31]. Disponível em: https://oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-davos/tempo-de-cuidar
https://oxfam.org.br/justica-social-e-ec...
. Nele a instituição escancarou o cuidado informal como uma questão de exploração do trabalho feminino não pago. Eis um pequeno resumo do que foi dito: em 2019, 2.153 bilionários do mundo detinham mais riqueza do que 65% da população global, ou seja, que 4,6 bilhões de pessoas de um total de mais de 7 bilhões. Uma das razões do aprofundamento desse fosso é o sistema mundial sexista, que valoriza a riqueza de poucos privilegiados em detrimento de bilhões de horas não pagas, dedicadas particularmente por mulheres do mundo inteiro ao cuidado de pessoas, na invisibilidade dos lares. A Oxfam ressalta que mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas todos os dias ao cuidado não remunerado, uma contribuição de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano à economia global. E conclama os governos ao redor do planeta a construírem uma economia humana, que valorize o que realmente importa, em vez de promover uma busca interminável de lucro e riqueza. Investir em sistemas nacionais de cuidado para equacionar a questão da responsabilidade desproporcional assumida pelo trabalho de mulheres e meninas, adotar um sistema de tributação progressiva, com taxas sobre riquezas. Legislar em favor de quem cuida é um passo possível e crucial a ser dado para uma mudança social fundamental no Brasil e no mundo.

O livro se organiza em torno de quatro questões: a corresponsabilidade do Estado e da sociedade por meio de uma política específica de cuidados; a necessidade de tornar o cuidado, sobretudo de pessoas idosas, uma atividade profissional; e não menos importante, o “cuidar de quem cuida” de diversas formas, de modo a reconhecer o trabalho informal, valorizá-lo com algum tipo de compensação financeira e apoiá-lo com períodos de descanso necessários à reposição das forças físicas e mentais dos cuidadores. Além disso, é necessário criar um fundo que possa financiar as diversas iniciativas para tornar a vida das pessoas com deficiência, crianças e idosas mais leve e saudável.

No capítulo 1, Natália Fontoura analisa o cuidado como um trabalho. E ressalta a necessidade de “desnaturalizar” a concepção de que as atividades de cuidado realizadas por mulheres são feitas por instinto, amor e gratidão, sem valorizar essa atividade e as pessoas que a exercem. Mas é preciso também mudar as políticas públicas. Apesar de o cuidado ter ganhado proeminência nos últimos anos nos discursos internacionais sobre desenvolvimento, a autora destaca a necessidade de efetivação de políticas de corresponsabilidade entre Estado, sociedade civil e setor privado.

O capítulo 2, escrito por Fernanda Lira Goes, Francisco Moraes da Costa Marques, Thamires da Silva Ribeiro e Carolina de Freitas Pereira, com uma análise sobre cuidados no país, aprofunda a perspectiva da inequidade racial. Por meio de informações sobre o uso do tempo, estimam que as pessoas que cuidam são majoritariamente negras e pardas, e as cuidadas, brancas, tanto no trabalho remunerado quanto no não remunerado. Assinalam que há um lento e incompleto reconhecimento dos direitos trabalhistas das profissões mais diretamente ligadas ao cuidado. Esse é o caso das profissões de babá, cozinheira e entregador por aplicativo. Nos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional sobre política de cuidados, os autores ressaltam que a questão racial aparece de forma pontual e reforça o regime familista e maternalista do cuidado.

O capítulo 3, de autoria de Ana Amélia Camarano e Daniele Fernandes, aponta uma dificuldade na manutenção do contrato social tradicional, que atribui às mulheres da família a responsabilidade pelas atividades de cuidado. A maior instabilidade das relações afetivas, os divórcios, os recasamentos e a revolução reprodutiva enfraquecem a capacidade das famílias nucleares de prover apoio a seus dependentes. Quando a reprodução foi separada do casamento, do sexo, da idade e do próprio ato sexual, ela passou a desafiar as definições tradicionais de direitos e responsabilidades de pais e filhos e a noção de parentesco. As autoras chamam atenção para os vários aspectos que envolvem a manutenção do contrato familiar, num momento em que tempo e dinheiro gastos com cuidados ocorrem num contexto em que as mulheres passam de recurso invisível a recurso escasso.

A organização social do cuidado no Brasil é discutida por Enid Rocha e Valéria Rezende no capítulo 4. As autoras destacam a posição dos jovens nessa organização como sujeitos demandantes e ofertantes de cuidados, na fase de transição para a vida adulta. De um lado, requerem o apoio da família e da sociedade para serem bem-sucedidos. Muitos não estudam nem trabalham, agravando a desigualdade sempre marcada por classe, gênero, raça/etnia. Mulheres que têm filhos nessa idade permanecem em casa, ou têm um aumento na carga de trabalho destinada aos cuidados com filhos e irmãos e ficam fora do mercado formal de trabalho.

No capítulo 5, Ranna Mirthes Sousa Correa analisa a relevância da participação do Estado na organização social do cuidado à infância e na política de creche, ressaltando que existe uma consciência sobre a necessidade de proteger as crianças, mas sem obrigatoriedade de atender as de zero a três anos. Quando a atividade do cuidado é mercantilizada, são as mulheres dos grupos sociais menos privilegiados que assumem a função, tanto como cuidadoras quanto como babás ou empregadas domésticas. Esses são serviços oferecidos nos domicílios e constituem a porta de entrada das mulheres no mercado de trabalho remunerado.

Ana Amélia Camarano, Daniele Fernandes e Beatriz da Silva são as autoras do capítulo 6, e Krislane de Andrade Matias e Anna Bárbara Araújo, do capítulo 7. Ambos analisam as atividades dos cuidadores remunerados e das empregadas domésticas, respectivamente: caracterizadas por baixos salários, regulamentação precária e menos acesso a direitos, além de socialmente estigmatizadas. Essas atividades são majoritariamente realizadas por mulheres negras, embora tenha sido notado um ligeiro aumento no contingente de homens cuidadores. O leve crescimento da presença masculina se deve sobretudo ao envelhecimento da população e ao cuidado com idosos, que exige força física. As autoras lembram que muitas cuidadoras e cuidadores têm doenças crônicas, sofrem depressão e não têm tempo para si próprios.

O capítulo 8, elaborado por Ana Amélia Camarano e Daniele Fernandes, e o capítulo 9, de autoria de Carolina Pereira Tokarski, Ranna Mirthes Sousa Correa e Stephanie Natalie Burille, analisam as experiências de três países latino-americanos - Uruguai, Chile e México - em relação às políticas para idosos e crianças, respectivamente. Os autores ressaltam que só recentemente a questão do cuidado passou a fazer parte da agenda pública na América Latina, antes considerada atribuição exclusiva da família. A pandemia de COVID-19 e os impactos decorrentes das medidas de isolamento social para o seu enfrentamento aumentaram a visibilidade do conceito de “cuidado” como central para a vida humana. Mas em todos esses países as principais responsáveis pelo cuidado de crianças, idosos e pessoas portadoras de deficiência são as mulheres. A cobertura dos programas públicos de cuidados é bastante baixa, mesmo no Uruguai, que criou um Sistema Nacional de Cuidados Integrados. A proteção da maternidade e a oferta de serviços de atendimento a crianças pequenas são as primeiras políticas adotadas nesses países, bem como no Brasil, ao lado da garantia de renda a pessoas idosas, para evitar que cheguem ao estado de miserabilidade. O benefício monetário tem levado a uma percepção quase generalizada de que os idosos se encontram em melhores condições econômicas do que as crianças. No entanto, embora a oferta de serviços à pessoa idosa tenha crescido em todos os três países, eles são desigualmente distribuídos ante o crescimento da demanda e a complexidade das necessidades. Os recursos monetários e humanos destinados para tais programas são insuficientes nos referidos países, bem como os instrumentos para a regulamentação e avaliação dos serviços ofertados.

No que diz respeito à primeira infância, as autoras do capítulo 9 apontam que os desafios de uma política de cuidados são os mesmos para os três países: (1) assegurar a provisão integral e universal de cuidados para a primeira infância a partir da perspectiva do direito, considerando as desigualdades sociais; (2) a corresponsabilização do Estado, do mercado, da família e da comunidade; (3) a superação das diferenças de gênero na oferta do cuidado; (4) a promoção da autonomia de ambos os polos da relação de cuidado; e (5) a solidariedade no financiamento dos programas e a valorização do trabalho doméstico remunerado e não remunerado. Em relação ao cuidado das crianças recém-nascidas, as licenças maternidade, paternidade e parental estão mais bem reguladas no Uruguai e no Chile. No México, a provisão de tempo para os primeiros cuidados é a menor nos três países analisados. O último elemento considerado no capítulo 9 é o trabalho doméstico remunerado, ocupação importante para as mulheres dos três países, mas a formalização e o acesso a direitos são bastante diferentes entre eles. Apenas 3,4% das mulheres mexicanas estão formalizadas, enquanto no Uruguai o percentual chega a 70%.

O capítulo 10 foi escrito por Nadya Araujo Guimarães e Luana Simões Pinheiro e mede o tamanho do setor de cuidados remunerado no Brasil. As autoras constroem uma tipologia das ocupações de cuidado, a partir de estudos baseados na realidade de países do hemisfério Norte e na literatura recente sobre o caso brasileiro. Com base nas informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2019, elas estimam que, em 2019, cerca de 24 milhões de trabalhadoras e trabalhadores estavam lotados no setor de cuidados, o que equivale a aproximadamente 25% do total da população ocupada no país. Sublinham que o setor apresenta expressivas desigualdades em função do local onde o trabalho é exercido (domicílio ou instituição) e do tipo de instituição (pública ou privada). Nos domicílios, encontra-se a maior parcela de mulheres empregadas, majoritariamente negras, assim como muitas iniquidades no que diz respeito a rendimentos, condições de trabalho, acesso a direitos e proteção social. Esse é um espaço em que a racialização das relações de trabalho deixa fortes marcas.

De autoria de Ana Luiza Neves de Holanda Barbosa, Joana Simões de Melo Costa e Maíra Penna Franca, o capítulo 11 aponta o outro lado da economia do cuidado, mensurando as oportunidades perdidas pelas mulheres que realizam o trabalho de cuidado de forma não remunerada na esfera familiar: muitas deixam de ter renda própria ou a têm de modo reduzido por não poderem dedicar um tempo maior à vida profissional. Segundo a PNAD Contínua de 2019, há uma evidente desigualdade expressa nas elevadas jornadas de trabalho reprodutivo e nas menores jornadas de trabalho remunerado. As mulheres trabalham mais horas não remuneradas em cuidados, mesmo quando apresentam maior custo de oportunidade do que seus cônjuges. As autoras apontam que as pessoas com menor custo de oportunidade para realizar o trabalho doméstico não remunerado são as que apresentam as características menos valorizadas no mercado de trabalho, isto é, têm baixa escolaridade, filhos pequenos e são negras. É relevante ressaltar que, não obstante, para essas pessoas, o custo de oportunidade do trabalho reprodutivo representa uma proporção elevada de sua renda domiciliar. Dessa forma, o custo de estar fora do mercado de trabalho para elas é relativamente mais elevado e tem implicações na pobreza de suas famílias.

Em resumo, o livro chama atenção especial para dois grupos populacionais: as crianças pequenas e as pessoas mais idosas que sofrem perda de autonomia e precisam de cuidados de terceiros em tempo integral. Os mecanismos institucionais hoje não os atingem de forma suficiente nem estão antenados com as rápidas mudanças demográficas. É claro que o Brasil precisa de uma política específica para a parcela da população idosa dependente que leve em conta também quem cuida33 Minayo MCS. O imperativo de cuidar da pessoa idosa dependente. Cien Saude Colet 2019; 24(1): 247-252.,44 Minayo MCS. Cuidar de quem cuida de idosos dependentes: por uma política necessária e urgente. Cien Saude Colet 2021; 26(1):7-15.. E urge melhorar todos os programas sociais e educativos que protejam as crianças e os jovens e liberem suas mães para que atuem e brilhem no mercado de trabalho.

Referências

  • 1
    Heidegger M. O ser e o tempo. Coleção Pensadores. São Paulo: Editora Abril; 1980.
  • 2
    Oxfam. Relatório sobre nós e a desigualdade "tempo de cuidar" [Internet]. 2020. [acessado 2020 jan 31]. Disponível em: https://oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-davos/tempo-de-cuidar
    » https://oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-davos/tempo-de-cuidar
  • 3
    Minayo MCS. O imperativo de cuidar da pessoa idosa dependente. Cien Saude Colet 2019; 24(1): 247-252.
  • 4
    Minayo MCS. Cuidar de quem cuida de idosos dependentes: por uma política necessária e urgente. Cien Saude Colet 2021; 26(1):7-15.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jan 2024
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