Um Lótus ou um Dragão? - a orientalização e fetichização dos corpos das mulheres Asiáticas

Isabel Pires Sobre o autor

Resumo

Este artigo provém das entrevistas realizadas com mulheres Chinesas residentes em Lisboa, com idades compreendidas entre os 18 e os 34 anos, no decorrer da primeira fase do trabalho de campo (2021/2022). Resultante do meu projeto de Doutoramento em Antropologia aqui busco compreender como mulheres asiáticas são observadas na experiência do quotidiano enquanto organismos fetichizados e como seguem (re)construindo as suas identidades. Percorrendo essencialmente representações visuais da “yellow fever” (o cinema de Hollywood em filmes como “O Mundo de Suzie Wong”, “Madame Butterfly”, “Miss Saigon” e “Year of the Dragon” e a pornografia inter-racial) procuro explorar como a “raça”, a “fetichização sexual” e as imagens estereotipadas exaustivamente disseminadas, afetam a vida das minhas interlocutoras.

Palavras-chave:
Mulheres asiáticas; Etnografia; Fetichização sexual; Representações visuais; Estereótipo

Introdução

Iniciada em 2020, a minha pesquisa de Doutoramento em Antropologia parte da perceção do aumento exponencial de um mercado cosmético em Lisboa, Portugal, dirigido fundamentalmente para uma comunidade “étnica transnacional”. Dentro da sua vasta abrangência - que engloba populações dos continentes Africano e Sul Americano (com especial incidência na população brasileira), do subcontinente Indiano e Ásia de Leste - circunscrevo-me à população Chinesa feminina, que desde os anos 1990 se tem estabelecido dentro das dez populações estrangeiras mais representativas do país11 Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Relatório de 2021 [Internet]. [acessado 2022 mar 13]. Disponível em: https://www.sef.pt/pt/Documents/RIFA2021%20vfin2.pdf.
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Utilizando metodologias qualitativas, proponho realizar um estudo etnográfico focado nas práticas de construção de uma “beleza ideal”, no imaginário estético que o circunda e de que forma estes se articulam com os ideais hegemónicos e “eurocentrados” de sucesso e beleza que circulam de forma global.

Na primeira etapa do trabalho de campo (2021/2022) realizei diversas entrevistas com mulheres Chinesas (auto-identificação) residentes em Lisboa, com idades compreendidas entre os 18 e os 34 anos, com diferentes trajetórias de vida, nascidas em diversos países (Portugal, Espanha, França, China, EUA), possuindo profissões e escolaridades distintas e perfis sociais também amplos. De dentro dessas narrativas, as aqui apresentadas foram selecionadas porque sobressaiam em um argumento comum: a angústia provocada pela confrontação diária com os seus corpos lidos pelos outros como “exóticos” e as suas imagens estereotipadas e altamente sexualizadas, definidas numa presunção de disponibilidade ou compatibilidade sexual heteronormativa com parceiros brancos.

Concordando que há diversas formas de se produzir a exclusão, racialização e fetichização de corpos femininos, “yellow fever” tem aparecido regularmente nas notícias, jornais, música, televisão, literatura, etc.22 Zheng R. Why Yellow Fever Isn't Flattering: A Case Against Racial Fetishes. Jou Amer Philos Asso 2016; 2(3):400-419..

Neste artigo foco-me em duas áreas: no largo espectro de influência dos filmes produzidos em Hollywood, fundamentalmente por sugestão de uma das interlocutoras, e, em menor profundidade, na pornografia inter-racial.

Cruzando estes dados com memórias biográficas trazidas no decorrer das entrevistas, procuro igualmente perceber qual o impacto destas experiências nas suas vidas quotidianas.

Frequentemente oculto sobre a forma de “preferências individuais” e negligenciado nas discussões raciais, defendo que a “yellow fever” é censurável devido aos encargos psicológicos desproporcionados que impõe às mulheres asiáticas, num sistema pernicioso de significados raciais.

Consciente que esta discussão é ainda muito insipiente, conforme salienta De Moraes33 De Moraes CI. Mulheres de Desconforto: o consumo da imagem da mulher amarela [Internet]. Medium; 2019 [acessado 2022 mar 13]. Disponível em: https://medium.com/@cecilia.moraes/mulheres-de-desconforto-o-consumo-da-imagem-da-mulher-amarela-aa84457e3063.
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, o primeiro obstáculo é, precisamente, o reconhecimento destas mulheres enquanto seres racializados e cujas vivências, conquanto não comparáveis às das mulheres negras, carregam em si um problema de discriminação racial, por vezes em formas mais dissimuladas e menos institucionalizadas33 De Moraes CI. Mulheres de Desconforto: o consumo da imagem da mulher amarela [Internet]. Medium; 2019 [acessado 2022 mar 13]. Disponível em: https://medium.com/@cecilia.moraes/mulheres-de-desconforto-o-consumo-da-imagem-da-mulher-amarela-aa84457e3063.
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Com esta produção de fundo etnográfico espero contribuir para a visibilização e consciencialização do assunto, simultaneamente apelando a medidas de decisão pública. Ao expor os prejuízos em saúde que estas mulheres encaram, manifesta-se também a importância de uma luta antirracista ao qual mais corpos marginalizados e invisibilizados se juntam.

A construção dos corpos femininos Asiáticos pelo cinema de Hollywood

Jia, 24 anos, nascida na China, estudante de mestrado e residindo em Lisboa desde 2019, entre risos e incredulidade, confidenciou-me: “Quando me mudei para aqui, conheci um rapaz no Instituto Confúcio. Ele queria falar comigo para praticar o seu chinês, que estava a aprender. Então saímos uma vez. Fomos uma tarde passear, comer um gelado ao MacDonald’s. Quando acabou de comer o gelado...estávamos de tarde, num parque público, daqueles com árvores e mesas de picnic...perguntou-me se eu ia fazer sexo com ele. Eu fiquei chocada. Era só um gelado, e do MacDonald’s [risos]. Disse-lhe logo que não”.

Tentando disfarçar a perturbação que esta revelação me despertou, no seguimento do trabalho de terreno outras falas se juntaram às de Jia. “Namorei com um português. Depois descobri que estava comigo só por curiosidade. Não gostava de mim, queria conhecer uma Asiática. Já tinha namorado com uma russa” (Fen, 29 anos, nascida na China, em Portugal desde 2018). “Uma vez no Halloween [...] um grupo de rapazes muito jovens, estavam bêbados, começaram a aproximar-se de mim e, como eu estava com um disfarce com uma mini saia, tentaram levantá-la. Era uma brincadeira, eles riam-se muito, mas eu fiquei assustada. Diziam que era para ver se... tu sabes, dizem que as chinesas têm...em bico... (Jian-Li, 34 anos, nascida na China, em Portugal desde 2005). “Recebo muitas mensagens nas redes sociais. É horrível, já nem tenho vontade de abrir o meu perfil. Querem-me conhecer só por eu ser chinesa...” (Liu, 30 anos, nascida em Portugal).

Estabelecendo uma relação de maior proximidade com Liu, fruto de uma convivência constante, pergunto-lhe porque tantas mulheres Chinesas têm experiências semelhantes à sua. Liu oferece-me uma análise pessoal: “[os homens] têm uma ideia muito errada das mulheres asiáticas. Acham que somos muito fáceis [...] Deve ser dos filmes que vêm. Há sempre uma oriental submissa, alguém muito sexy, claro, que fazem tudo o que eles querem”.

Sugerindo-me ver os filmes e perceber como as mulheres asiáticas são retratadas, a interpretação de Liu acompanha a teoria académica já produzida neste espetro.

A representação cinematográfica de personagens Asiáticas femininas nos principais meios de entretenimento ocidentais, e que são disseminados globalmente, é reveladora de uma longa e complexa genealogia que envolve não apenas narrativas orientalistas como permite simultaneamente a manutenção de uma psique ocidental, fortemente enraizada num cânone patriarcal.

As imagéticas que perpassam estes estereótipos tomam a forma de arquétipos: a Dragon Lady e a Flower Lotus44 Tajima R. Lotus blossoms don't bleed: Images of Asian women. In: Asian Women United of California. Making Waves: An Anthology of Writings by and about Asian American Women. Boston: Beacon; 1989. s/p.

5 Yung J. Unbound Voices: A Documentary History of Chinese Women in San Francisco. Berkeley: University of California Press; 1999.

6 Shimizu CP. The Hypersexuality of Race: Performing Asian/American Women on Screen and Scene. Durham: Duke University Press; 2007.
-77 Hwang MC, Parreñas RS. The gendered racialization of asian women as villainous temptresses. Gend Soci2021; 35(4):567-576.. Se a primeira representa o desvio sedutor e perigoso, a mulher-tentação, a segunda é o apanágio da docilidade e obediência.

Não exclusivo um paradigma ocidental, na China a produção visual enfrenta desafios semelhantes. Dai Jinhua, em Cinema and Desire: feminist Marxism and cultural politics in the work of Dai Jinhua (2002), endereça esta questão, observando o posicionamento e a representação das mulheres dentro desta produção cultural, salientando também o que apelida de processos de “self-orientalization88 Jinhua D. Cinema and Desire: Feminist Marxist and cultural politics in the work of Dai Jinhua. Londres, Nova York: Verso Books; 2002.. Todavia, tendo em consideração que Portugal ocupa um mercado muito periférico respeitante à filmografia asiática, o consumo audiovisual é maioritariamente o produzido pelos grandes blockbusters norte-americanos99 Sousa JA. Cine.Pt - Uma Estratégia De Promoção Do Cinema Português [tese]. Lisboa: Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicação da Universidade Europeia; 2019. sendo esses que passamos a explorar.

E então nestas telas cinematográficas que assistimos plasmadas mulheres Asiáticas que aparentam não possuir poder sobre as suas próprias vidas e relações. Filmes como O Mundo de Suzie Wong (1960), Madame Butterfly ou Miss Saigon, Year of the Dragon (1985); Come See the Paradise (1990), e A Thousand Pieces of Gold (1991), Charlie’s Angels (2000; 2003) são alguns exemplos.

O Mundo de Suzie Wong (dir. Richard Quine, 1960) é particularmente conveniente ao argumento aqui desenvolvido: um homem norte-americano (interpretado pelo ator William Holden) viaja até Hong Kong para se dedicar à pintura. Durante o percurso, conhece uma jovem chinesa (interpretada pela atriz Nancy Kwan) pela qual se apaixona. Apenas mais tarde, no decorrer da trama, descobre que a jovem é na realidade uma prostituta, chamada Suzie Wong, e não a herdeira milionária (e virgem) que inicialmente proferiu ser. Fascinado por ela, torna-a objeto das suas pinturas, mantendo uma relação não oficial de extremo erotismo. A forma como a narrativa se desenvolve é reveladora da prolífica mercantilização dos corpos Asiáticos: Suzie Wong enquanto mulher contém a asianess que o norte-americano procurava. A sua distintiva característica étnica torna-se também mercadoria fetichisada, por quanto as pinturas só conseguem ser vendidas em Londres, um mercado faminto pelo ‘”exótico”1010 Wilcox CM. Constructing Asian/American women on screen [tese]. Georgia: Georgia State University; 2010..

Clássicos como Madame Butterfly e Miss Saigon, nas quais a personagem feminina asiática no ato final comete suicídio, por não se poder mais relacionar com o homem branco que ama, popularizam a ideia do trágico amante. O papel da mulher Asiática nos meios de comunicação ocidentais não parece ser mais do que “satisfazer os desejos dos homens brancos” e, quando os seus amantes desaparecem, elas desaparecem também1111 Shim D. From Yellow Peril Through Model Minority to Renewed Yellow Peril. J Commu Inquiry 1998; 22(4):385-409..

Todavia, ao se relacionar com estas mulheres, tal a personagem masculina de O Mundo de Suzie Wong faz, o homem transpõe o seu círculo social convencional e entra no reino do “exótico” e, consequentemente, excitante: uma aventura e romance sem consequências1212 Marchetti G. Romance and the "Yellow Peril": Race, Sex and Discursive Strategies in Hollywood Fiction. Berkeley: University of California Press; 1993.,1313 Farrer J. From "passports" to "joint ventures": Intermarriage between Chinese nationals and Western expatriates residing in Shanghai. Asian Stu Rev 2008; 32(1):7-29..

Esta fantasia parece persistir em alguns imaginários masculinos. Tomemos como referência a fala de Anne, uma das minhas interlocutoras, “Estava num bar com uns amigos e chega um amigo de um deles que mal olha para mim me diz, ‘eu sou louco por mulheres asiáticas’. Ele nem sabia o meu nome. Mas passou a noite a querer ficar comigo, dizia-me que para ele uma mulher asiática, qualquer uma, é que era ‘uma mulher a sério’. Que as asiáticas eram especiais, o faziam sentir ‘mais homem’” (Anne, 27 anos, nascida em Portugal).

Tornando a mulher Asiática uma parceira “natural” ou adequada para o homem branco, Laura Hyun-Yi Kang em The Desiring of Asian Female Bodies (1993), sustenta que este imaginário permite que “o conflito racial e a dominação sexual [sejam] reconstruídos como diferença complementar”1414 Kang LH. The Desiring of Asian Female Bodies: Interracial Romance and Cinematic Subjection. Visual Anthro Rev 1993; 9(1):5-21.. Esta “complementaridade” é, então, utilizada para aliviar as tensões sobre as diferenças raciais e os desafios do patriarcado, fazendo com que tudo se ajuste à cosmovisão masculina branca estabelecida. Para o homem que tentava seduzir Anne, é precisamente a mulher asiática que o “faz sentir-se homem”, uma mensagem trazida por peliculas onde a identidade masculina branca é articulada através da presença do corpo feminino Asiático.

Em simultâneo, as personagens femininas asiáticas são igualmente construídas em torno da relação com o herói masculino, sugerindo a sua incapacidade de agência no processo de auto-criação e identidade. “Até na ficção da Marvel” - comentou comigo Paulo (33 anos, nascido em Lisboa de pais chineses), um amigo que colabora comigo em algumas matérias - “A personagem principal dos Eternals, superpoderosa, é a Gemma Chan. E o que vês dela no filme? Que teve um relacionamento com o protagonista! É este o ponto máximo dela”.

Muitas vezes encapsuladas em papéis secundários, ou principais, mas com menor densidade, aprofundamento ou apenas figurativas, parece-se enfatizar o papel secundário da pessoa Asiática no que deveria ser a sua própria narrativa.

A projetação que a atriz ganha através da difusão e popularização destes filmes, contrasta com o apagamento e permutabilidade étnica que frequentemente acompanha as personagens Asiáticas nestas películas. Kang1414 Kang LH. The Desiring of Asian Female Bodies: Interracial Romance and Cinematic Subjection. Visual Anthro Rev 1993; 9(1):5-21. salienta a facilidade com que, na cultura popular, se substitui grupos Asiáticos uns pelos outros. “Estas distorções cinematográficas de [etnia-idade]”, continua, “foram naturalizadas pelas representações dos Asiáticos como sendo em grande parte inter-mudáveis - uma articulação cinematográfica da antiga ‘All Orientals Look Alike’”1414 Kang LH. The Desiring of Asian Female Bodies: Interracial Romance and Cinematic Subjection. Visual Anthro Rev 1993; 9(1):5-21.(p.8-9). Presumindo que os indivíduos Asiáticos formam um grupo homogéneo, pertencentes a uma “cultura oriental monolítica”1515 Machida M. Seeing 'Yellow': Asians and the American Mirror. Ikon 1991; 12/13:65-68., a fala de Anne corrobora esta ideia: no discurso do homem que a tenta conquistar, “qualquer uma” representa “todas” as mulheres Asiáticas e nenhuma mulher em particular.

A escolha do mesmo tipo físico de mulher ou a inclusão do Pidgin English, realizada com base em silêncios ou risinhos1616 Tajima R. Lotus blossoms don't bleed: Images of Asian women. In: Asian Women United of California. Making Waves: An Anthology of Writings by and about Asian American Women. Boston: Beacon; 1989. s/p. serve também para universalizar a experiência falada dos Asiáticos. Os meios de comunicação populares ajudam neste processo de universalização, disseminando a ideia de que os Asiáticos são todos iguais ou muito semelhantes: na cultura, na fala, no olhar.

Jani Zhao (30 anos, nascida em Portugal de pais Chineses), atriz portuguesa de ascendência Chinesa e com uma carreira longa no cinema, teatro e televisão, assume com inquietação ser ainda a “única dentro da área”, e que isso revela o “enorme preconceito que se ainda se vive.

As personagens iniciais da sua carreira incluíram uma jovem japonesa, “tinha um tamagotchi, era muito ligada à tecnologia...era a imagem que as pessoas tinham, estavam à espera de uma jovem japonesa. Muito contida, recatada, reservada, ligada às tecnologias, muito dócil e muito inocente...muito simpática”. Foi-lhe pedido que, ao falar, não dissesse corretamente os erres.

As personagens seguintes compreenderam uma jovem que fica presa na Tailândia, incriminada por tráfico de drogas, uma agente da Máfia operando em Portugal, e numa novela juvenil de grande protagonismo em Portugal, “a típica jovem chinesa. O meu papel era uma filha de imigrantes, que tinha uma loja de chineses. Pronto. E ela era também muito recatada, ingénua. Sempre a volta de um imaginário de uma cultura muito receosas, obediente...muito oprimida. Foi depois deste projeto que eu pensei ‘isto não é pra mim’. Foi muito bom, agradeço imenso, mas sou mais do que isto”.

Hoje com uma carreira internacional, Jani procura demonstrar que há mais para além do comum: “E principalmente fazer uma coisa que não te interessa, que demonstra uma mentalidade com a qual não concordas, não te identificas. E sobretudo porque tu lutas contra ela. Uma coisa é tu seres cúmplice, outra coisa é querer lutar contra essa mentalidade. Não podes estar no outro lado e achar que está tudo errado, é uma questão de coerência. É uma questão de princípios de valores, de humanidade. De alguma sensibilidade e da inteligência emocional. Para mim não faz sentido”.

Se O Mundo de Suzie Wong, Madame Butterfly ou Miss Saigon, são narrativas passadas em geografias orientais, The Year of the Dragon (1985), Come See the Paradise (1990), e A Thousand Pieces of Gold (1991) são exemplos de filmes com os Estados Unidos (EUA) como paisagem de fundo, mas que tendem a perpetuar estereótipos.

Kang1717 Kang LH. The Desiring of Asian Female Bodies: Interracial Romance and Cinematic Subjection. Visual Anthro Rev 1993; 9(1):5-21. analisa como são representadas mulheres Asiáticas nestes filmes, e como a tentativa de redução da diferença é complementar à sustentação das variações de poder. Usando como modelo o filme The Year of the Dragon (1985), a autora examina como a mulher, pela sua diferença sexual, representa uma ameaça para o inconsciente masculino. Tracy Tzu (a co-protagonista Asiática) provoca ansiedade exacerbada em Stanley White (o protagonista branco) devido à sua exibição de “país hostil, estrangeiro, uma guerra perdida, um mecanismo social manipulador, e um antagonismo de classe”1717 Kang LH. The Desiring of Asian Female Bodies: Interracial Romance and Cinematic Subjection. Visual Anthro Rev 1993; 9(1):5-21..

A representação cinematográfica das populações asiáticas é igualmente problemática porque utiliza o “distanciamento físico, social e psicológico”1818 Wang H. Portrayals of Chinese women's images in Hollywood mainstream films - An analysis of four representative films of different periods. China Med Res 2013; 9(1):75-79. como método de apresentação de um “Outro” mitológico, quase irreal ou pouco humano. Nessa representação, é comum verificarmos personagens asiáticas retratadas como gananciosas, sujas, trapaceiras, ou repugnantes1919 Marchetti G. Romance and the "Yellow Peril": Race, Sex and Discursive Strategies in Hollywood Fiction. Berkeley: University of California Press; 1993..

Fazendo um retrato histórico dos estereótipos no cinema, é possível uma compreensão das tendências da visão social dos cidadãos chineses em locais como os Estados Unidos, ao longo do século XX. Retratados como coolies, trabalhadores servis, proprietários de lavandarias ou restaurantes, eram vistos como “inassimiláveis” pelos eixos de diferença que operavam na restante população. Por décadas continuaram “as percepções culturalmente tendenciosas dos chineses como não-ocidentais em vestuário, língua, religião, costumes e hábitos alimentares [...] a determinaram que [eles] eram inferiores”2020 Wong EF. On Visual Media Racism: Asians in the American Motion Pictures. Denver: University of Denver; 1978..

Para além disso, a criação e exploração de um “perigo amarelo” (yellow peril) para a sociedade, um medo de “ameaçar, tomar o controlo, invadir, ou negativamente ‘asiatinisar’ a sociedade e a cultura”2121 Kim Y. Representation of people of Asian descent in mainstream mass media within the United States. Multi Edu Review 2013; 5(2):20-48. servem ao desenvolvimento de uma cultura de xenofobia. A ideia e o temor de que os indivíduos chineses estariam a tomar conta de “tudo” é ainda hoje uma constante.

Da “minoria sexual modelo”à “orientalização” como métodos de exclusão

As mulheres asiáticas, ao serem retratadas de forma compulsória como sedutoras e provocadoras, igualmente passivas e vulneráveis, conservam uma imagem de uma mulher muito “apetecivel”, ou, como Zheng2222 Zheng R. Why Yellow Fever Isn't Flattering: A Case Against Racial Fetishes. J Amer Philos Asso 2016; 2 (3):400-419. outorga, este “ideal na sua união de sex appeal com valores centrados na família e uma forte ética de trabalho” é muitas vezes o desejado pelos homens. Dito de outro modo, os arquétipos estabelecidos e exaustivamente replicados não pertencem a naturezas antagónicas, mas sim complementares, e que fornecem a base para a criação de uma categoria imaginária de “minoria de modelo sexual”. Esta “extensão” ao plano sexual da ideia de “minoria modelo” poderá funcionar como uma desculpa para alimentar a ideia de que a sua “passividade” é uma forma de permissão2323 Chou R. Asian American Sexual Politics: The Construction of Race, Gender and Sexuality. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, Inc; 2012..

Contudo, a perceção das mulheres asiáticas como vilãs imorais pode conduzir à normalização do seu assédio sexual2424 Shimizu CP. The Hypersexuality of Race: Performing Asian/American Women on Screen and Scene. Durham: Duke University Press; 2007., e à sua discriminação no local de trabalho, constante policiamento e vigilância2525 Mukkamala S, Suyemoto KL. Racialized sexism/sexualized racism: A multimethod study of intersectional experiences of discrimination for Asian American women. Asian Ame J Psych 2018; 9(1):32-46.,2626 Shih E. How to protect massage workers [Internet]. New York Times; 2021 [acessado 2022 mar 13]. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/03/26/opinion/politics/atlanta-shooting-mas-sage-workers-protection.html.
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A sua marca de “minorias de modelo sexual”, juntamente com a desumanização com que recorrentemente estão sujeitas, serve de pano de fundo para situações como o ataque armado ocorrido em Atlanta (EUA), em 16 de março de 2021. O perpetrador - um homem branco de 21 anos descrito como “viciado em sexo” - determinado a “eliminar a sua tentação”, levou a cabo um massacre num centro de massagens, matando oito pessoas a tiro, seis das quais mulheres de ascendência asiática e trabalhadoras do local.

Este caso, apesar de não único na história dos EUA, é uma reprodução da forma descartável com que as mulheres asiáticas e os seus corpos são considerados e observados. O poder oficial, personificado pelo Capitão encarregue de falar com a impressa, demonstrou mais compaixão pelo assassino do que pelas vítimas: ao afirmar que o móbil do massacre não fora um fator racial, mas a “adição sexual” do jovem, descreveu-o como “estando a ter um dia realmente mau”2727 Baldoz R. The 'bad day' defense after the Atlanta shooting reinforced the idea of white victimhood [Internet]. Washington Post; 2021 [acessado 2022 mar 13]. Disponível em: https://www. washingtonpost.com/outlook/2021/03/26/bad-day-defense-after-atlanta-rein-forced-idea-white-victimhood/.
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. A suposição da opinião pública de que seriam trabalhadoras sexuais, por se tratar de serviços de massagem, perpetua a fetichização dos corpos das mulheres asiáticas e a sua racialização como corpos hipersexuais2828 Shimizu CP. The Hypersexuality of Race: Performing Asian/American Women on Screen and Scene. Durham: Duke University Press; 2007..

A correlação dos assassinatos de Atlanta com o trabalho sexual eterniza inadvertidamente o preconceito inconsciente de dar prioridade à perspetiva não das vítimas mas daqueles que as marginalizam. Segundo o sociólogo Rick Baldoz2929 Baldoz R. The 'bad day' defense after the Atlanta shooting reinforced the idea of white victimhood [Internet]. Washington Post; 2021 [acessado 2022 mar 13]. Disponível em: https://www. washingtonpost.com/outlook/2021/03/26/bad-day-defense-after-atlanta-rein-forced-idea-white-victimhood/.
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, igualar a morte seletiva de “trabalhadoras sexuais Asiáticas” em Atlanta a alguém que está a ter um dia mau reforça a ideia de vitimização (masculina) branca.

O conceito de Oriental, que Liu usou para descrever a configuração em que os homens brancos a colocam, toma conotação não apenas geográfica, mas também cultural e sexual, assumindo contornos de “exoticização” e de “diferença”. “Sou sempre a ‘oriental’ para os outros. Mesmo que tenha nascido aqui, feito faculdade, e só falando português. Nunca passo a barreira em que o meu corpo me põe [perante] ao olhar dos outros, especialmente dos homens”.

Continua: “[na escola] As pessoas estavam sempre a perguntar-me ‘és chinesa, de onde vens?’ o que me fez perceber que não me viam como de cá. Fez-me ter consciência de que era diferente das outras pessoas. No sétimo ano uma rapariga da minha turma disse-me que eu tinha a cara muito achatada e perguntou-me se eu tinha levado com alguma frigideira na cara. Aquilo magoou-me muito. Cresci sem nenhuma confiança. Na adolescência agravou-se, não queria ter cabelo liso, queria ser loira. O facto de ser chinesa levou-me a ser muito insatisfeita comigo própria. Não conseguia fazer parte de nenhum grupo de amigos, fez-me criar barreiras. Na faculdade atenuou um pouco, acho que por sermos mais crescidos. Mas ainda tenho muitas barreiras”.

Orientalização é, portanto, o processo pelas quais mulheres Asiáticas, das mais diversas origens da Ásia, são estereotipadas e objetificadas. “O Oriente foi quase uma invenção europeia”3030 Xing J. Asian America Through the Lens: History, Representations, and Identity. Filadélfia: Temple University Press; 1998., seguindo a crítica iniciada por Edward Said3131 Said E. Orientalismo: Representações Ocidentais do Oriente. Lisboa: Edições Cotovia; 2004 [1979]., que no seu magnum opus Orientalismo descreveu o “estilo ocidental para dominar, reestruturar, e ter autoridade sobre o Oriente”. Não obstante, notou a confluência de Orientalismo e Sexismo, onde as mulheres são representadas com sensualidade ilimitada, e a conquista sexual das mulheres se relaciona com a conquista do próprio território físico.

No filme The Year of the Dragon, a pergunta do herói masculino, “Porque é que quero tanto foder-te?”, à sua coprotagonista Asiática, revela como ele tem de a conquistar sexualmente para a colocar dentro dos termos da sua compreensibilidade e agência sexual3232 Kang LH. The Desiring of Asian Female Bodies: Interracial Romance and Cinematic Subjection. Visual Anthro Rev 1993; 9(1):5-21..

Colocando o Oriente como metaforicamente associado à feminilidade, e o Ocidente à equivalente masculina, esta dimensão de diferença perpassa a questão de género e torna-se representativa de uma relação de poder, de “dominação com vários níveis de complexa hegemonia”3333 Said E. Orientalismo: Representações Ocidentais do Oriente. Lisboa: Edições Cotovia; 2004 [1979]..

A história da colonização do Oriente pode ser considerada, então, uma alegoria da história da relação de géneros: “o Oriente, geograficamente distante, terra estrageira de práticas desonestas, é descoberta, descrita e dominada, tal como as mulheres”3434 Uchida A. The orientalization of Asian women in America. Women's Stud Inte Forum 1998; 21(2):161-174..

Os militares Europeus, ao pressupor que as primeiras mulheres que contactaram na Ásia eram trabalhadoras sexuais, partilharam fantasias coloniais de mulheres pálidas, frágeis e diminutas. Continuando a fazer circular estas imagens, garantem o seu parecer de propriedade e domínio sobre o Oriente3535 Wood D. Economic Development, Integration, and Morality in Asia and the Americas. Bingley: Emerald Group Publishing Limited; 2009. e reflete os interesses em manter e reforçar atitudes de opressão e de subordinação. Essas representações e os processos que são (re)criados na manutenção de estereótipos étnicos são muitas vezes usados como ferramenta legitima para justificar uma divisão laboral racial3636 Glenn EN. From servitude to service work: Historical continuities in the racial division of paid reproductive labor. Signs 1992; 18(1):1-43. ou presumir um corpo exclusivo para assistir e dar prazer3737 Uchida A. The orientalization of Asian women in America. Women's Stud Inte Forum 1998; 21(2):161-174.. Li (34 anos, nascida em Portugal de pais Chineses) teve uma experiência semelhante: “Eles [os homens] acham que podem tudo, dizer tudo. Podem olhar para mim descaradamente, podem tocar-me, assediar-me, e eu devo ficar calada. Estava na rua do Martim Moniz [zona de Lisboa onde se encontram a maior parte das suas atividades comerciais dos cidadãos Chineses] e um tipo começou a dizer, a gritar, ‘ohhh chinesa, és muita bonita, fazia-te isto e aquilo...’ e eu respondi-lhe firme, ‘sabes que o que estás a fazer é crime?!’. Ele não esperava que eu percebesse português, ficou logo sem jeito quando lhe falei na polícia, saiu dali a correr”.

Sexo e Pornografia: fabricar “Raça” e “fetichização”

“Raça”, classe, género, nacionalidade e sexualidade são sistemas interligados de poder, dominação e opressão, onde a igualdade racial e de género é mantida por práticas quotidianas. Para determinados indivíduos, a “raça” e o género começam antes do nascimento, e continuam ao longo de toda a vida. Os corpos femininos Asiáticos são imersos em mensagens e imagens etno-sexualizadas, tanto das suas relações familiares mais íntimas como do ambiente que os rodeia, onde os valores culturais são incorporados na maneira de “fazer género”3838 Candace W, Zimmerman DH. Doing Gender. Gen Soc 1987; 1(2):125-151.. As mulheres por mim entrevistadas lidam por vezes com valores no seio familiar que contrastam com os do mundo exterior (pares, professores, colegas de trabalho, os meios de comunicação social, etc.). Aprendem muito rapidamente que são diferentes dos “brancos”, e são feitas suposições sobre elas, os seus corpos e comportamentos, não só com base na etnicidade, mas também no género e na sexualidade.

A socióloga Joane Nagel3939 Nagel J. Race, Ethnicity, and Sexuality: Intimate Intersections, Forbidden Frontier. Nova York: Oxford University Press; 2003. adverte-nos que “o sexo é o subtexto sussurrado no discurso racial falado. O sexo é a mensagem por vezes silenciosa contida em calúnias raciais, estereótipos étnicos, imagens nacionais, e relações internacionais”. Nagel acrescenta também que existe um aspeto emocional na etnosexualidade: os medos sexuais e a aversão são endémicos ao terror e ao ódio racial.

Em A Hipersexualidade da Raça (2007), a cineasta e académica do cinema Celine Parreñas Shimizu demonstra como na imigração para os Estados Unidos as mulheres chinesas eram vistas, invariavelmente, como “prostitutas”, as mulheres japonesas como “noivas de guerra” e as mulheres filipinas como “noivas por correspondência”. Em suma, as mulheres não-brancas serviam, meramente, como objetos de prazer4040 Shimizu CP. The Hypersexuality of Race: Performing Asian/American Women on Screen and Scene. Durham: Duke University Press; 2007..

As discussões levantadas pela representação mediática dos casamentos de noivas por correspondência, com as intersecções entre fetichização dos corpos Asiáticos e as fantasias do colonialismo impostas pelos homens ocidentais, foram já retratadas na literatura académica4141 Pehar J. E-Brides: the mail-order bride industry and the internet. Canad Woman Stu 2003; 22(3-4):s.p.

42 So C. Asian Mail-Order Brides, the Threat of Global Capitalism, and the Rescue of the U.S. Nation-State. Feminist Studies 2006; 32(2):395-419.

43 Velasco G. Performing the Filipina "mail-order bride": Queer neoliberalism, affective labor, and homonationalism. Women Performance J Feminist Theory 2013; 23(3):350-372.
-4444 Yakushko O, Rajan I. Global Love for Sale: Divergence and Convergence of Human Trafficking with Mail Order Brides and International Arranged Marriage Phenomena. Wom Thera 2017; 40(1-2):190-206. onde parece existir uma ideia de que aos olhos de alguns homens, as mulheres Asiáticas preenchem o vazio que as mulheres ocidentais deixaram, ao atingir determinada independência económica. Esta ideia vai ao encontro da ideia de “minoria sexual modelo” que já abordamos anteriormente.

Se, por um lado, os websites de noivas por correspondência atuam como veículo para solidificar os valores ocidentais americanos do poder imperialista e a romantização de uma nova era colonialista4545 Pehar J. E-Brides: the mail-order bride industry and the internet. Canad Woman Stu 2003; 22 (3-4):s.p., por outro lado, a indústria pornográfica atua igualmente como um disseminador destes comportamentos. Aqui, “raça” é a principal identidade para as mulheres Asiáticas na pornografia, onde a sua “racialização constitui a sua perversidade, pelo que as mulheres Asiáticas devem fazer ‘yellowface’ a fim de serem legíveis na pornografia”4646 Shimizu CP. Master-Slave Sex Acts: Mandingo and the Race/Sex Paradox. Wide Angle 1999; 21(4):42-61.. Dito de outro modo, a fim de despertar o desejo e a excitação sexual dos espectadores, estas mulheres devem jogar com os tropos da mulher asiática, que são simultaneamente criados e (re)inventados através da pornografia.

Analisando a tabela de categorias mais procuradas em 2022 no site pornográfico Pornhub, nos 6 primeiros lugares surgem “japoneses”; “asiáticos” e “hentai4747 Pornhub [Internet]. [acessado 2022 mar 13]. Disponível em: https://www.pornhub.com/insights/2022-year-in-review#top-seraches-pornstars.
https://www.pornhub.com/insights/2022-ye...
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Gossett e Byrne4848 Gossett JL, Byrne S. "CLICK HERE": A content analysis of internet rape sites. Gend Soc 2002; 16(5):689-709. num estudo de análise de websites pornográficos que retratam a violação ou tortura de mulheres, revelam que mais de metade comporta mulheres Asiáticas como vítimas e um terço demostra homens brancos como perpetradores. O ensaio revelou ainda uma forte correlação entre “raça” e pedofilia - como os títulos “Estudantes Japoneses” ou “Adolescentes Asiáticos” atestam.

Este “fascínio” dos homens ocidentais com os corpos “infantis” das mulheres Asiáticas funciona também para alimentar a visão romântica que alguns homens brancos constroem de si próprios, como os “salvadores”, “heróis” ou “protetores” destas mulheres4949 Prasso S. The Asian Mystique: Dragon Ladies, Geisha Girls, and Our Fantasies of the Exotic Orient. US: PublicAffairs; 2005.,5050 Tsang EY. Reciprocating Desires: The Pursuit of Desirable East Asian Femininity in China's Commercial Sex Industry. Devi Behav 2019; 41(8):917-935..

Um excerto da entrevista de Yi-Min (25 anos) é útil para pensarmos sobre como se embrincam questões de “raça” e de “sexualidade”: “Fui objetificada. Tenho consciência agora disso, quando olho para trás. O meu namorado [holandês] fez de mim só um corpo. Eu era o meu corpo. Foi muito complicado na altura, mas eu andava muita distraída para ver isso. Ele só me queria para sexo, a bem ver. Depois percebi que só tinha namorado com raparigas asiáticas. Outra chinesa, uma tailandesa. Não é estranho? É como se eu só namorasse, sei lá, com rapazes negros. Um, ok, acontece, mas todos, todos? Parece-me estranho. Agora já tenho mais atenção”. Fetichismo sexual é uma situação em que o alvo de afeto é um objeto inanimado ou uma parte específica de uma pessoa. Quando a sua preferência exclusiva, ou quase exclusiva, por contactos sexuais com outros pertencentes a um grupo racial específico, toma a forma de fetichismo racial5151 Zheng R. Why Yellow Fever Isn't Flattering: A Case Against Racial Fetishes. J Amer Philo Assoc 2016; 2(3):400-419.. Para mulheres Asiáticas, fora das fronteiras do estado-nação da China ou dentro dela em contactos afetivos com indivíduos provenientes de grupos étnicos diferentes do seu, aqui reside uma arena na qual o racismo e o sexismo se cruzam.

Discussão final: o impacto dos estereótipos na vida das mulheres

Se perante o olhar do outro, as mulheres asiáticas são homogeneizadas - os seus corpos, comportamentos esperáveis, falas, etc. - podemos considerar este processo de universalização igualmente como uma experiência de invisibilização. Contrariamente à ideia de “apenas” um tipo de “preferência pessoal”, baseado num gosto puramente estético e superficial5151 Zheng R. Why Yellow Fever Isn't Flattering: A Case Against Racial Fetishes. J Amer Philo Assoc 2016; 2(3):400-419., este tipo de comportamento possui raízes históricas mais profundas. Neste artigo, argumento que os dados recolhidos pelo trabalho de campo, através de partilha de histórias e emoções pelas minhas interlocutoras, possibilitam atestar que determinados homens não procuram uma pessoa particular, mas sim uma imagem estereotipada, sexualizada e fetishizada - construída e disseminada com base nos meios de comunicação populares, tanto filmes de Hollywood como pornografia.

As minhas interlocutoras relacionam experiências em que homens brancos se aproximam delas com suposições sobre a sua sexualidade, decorrentes de arquétipos de mulheres Asiáticas. Lendo um certo tipo de sexualidade no género feminino, tendem a ignoram as qualidades da mulher individual em favor de estereótipos sobre um grupo inteiro de pessoas.

A fetichização de uma mulher, de um grupo de pessoas ou de uma comunidade, é não somente prejudicial como diminui o reconhecimento da sua identidade de formas quer dissimuladas quer evidentes - tomemos o exemplo da atriz Jani Zhao e das personagens que interpretou no início da sua carreira.

Stuart Hall5252 Hall S. Cultural identity and diaspora. In: Rutherford J. Identity, Community, Cultural Difference. London: Lawrence and Wishart; 1990. p. 222-237. reconhece a identidade como sendo um assunto que envolve tornar-se identidade e depois “ser ela”. A identidade dentro de determinada “raça” não é rígida e estática, mas material “fluido” e mutável, o que significa que a identidade está em constante mudança. Todavia, entendo que o hábito de criar rotulagens para as identidades é o que faz com que algumas se tornem diminutas para a sociedade envolvente. A invisibilidade por camadas de grupos que não são representativos no meio cultural branco, heterossexual e patriarcal onde nos inserimos, podem conduzir à sua perceção como “alvos” e permitindo que sejam vistos como objetos em vez de humanos, banalizando, justificando e até tornando aceitável comportamentos provocatórios ou abusivos.

Isto permite, igualmente, que corpos construídos como “outros” sejam explorados e utilizados como mercadorias para solidificar os valores colonialistas detidos através da história ocidental5353 Pehar J. E-Brides: the mail-order bride industry and the internet. Canad Woman Stu 2003; 22(3-4):s.p..

Os impactos psicológicos da sexualização das mulheres foram já extensivamente estudados, documentando-se como afeta negativamente diversos domínios da saúde: emocionais e cognitivas (baixa auto-estima e confiança, vergonha; ansiedade); saúde mental e física (constante monotorização; distúrbios alimentares, depressão); desenvolvimento sexual (auto-imagem sexual comprometida)5454 American Psychologist Association (APA). Sexualization of girls [Internet]. 2011 [acessado 2022 mar 13]. Disponivel em: https://www.apa.org/pi/women/programs/girls.
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No caso particular das mulheres asiáticas, ao anteriores assomam-se processos de racialização, que contém em si fetichismo sexual, assunção de aparência universal; atribuição de características como híper-feminilidade e submissão, invisibilização e invalidação pelos média.

Para autoras como Celine Parreña Shimizu5555 Shimizu CP. Master-Slave Sex Acts: Mandingo and the Race/Sex Paradox. Wide Angle 1999; 21(4):42-61.,5656 Shimizu CP. The Hypersexuality of Race: Performing Asian/American Women on Screen and Scene. Durham: Duke University Press; 2007. a mulher contemporânea Asiática pode ser vista como um “sujeito em luta dentro de circuitos de poder”. Assim sendo, onde está o local da sua luta e como é que isto afeta a produção da sua identidade?

Este artigo procurou dar uma visão mais aprofundada sobre a forma como as minorias raciais e de género, através da fetichização dos seus corpos, das imagens sexualizadas popularizadas e da constante objetificação a que são sujeitas, gerem e negoceiam as suas identidades dentro de estruturas que têm sido histórica e sistematicamente oprimidas, mal interpretadas ou deturpadas. Permite-nos pensar em como a sexualização e o fetichismo de certos corpos afetam a identidade e, num sentido mais amplo, a sua comunidade e “cultura”. Para as mulheres proveniente de populações migrantes as diferentes experiências e realidades conduzem a diferentes formas de navegação e negociação dos seus corpos. Teoricamente, enlaçando conceitos como fetichização e tocando espaços pertencentes a questões pós-colonial e raciais, procurou-se conexões com as perpetuações históricas e sociais de “raça”, género e sexualidade numa tentativa de compreensão em como estas identidades são construídas socialmente.

Se as produções cinematográficas de Hollywood, como vimos, generalizam determinada imagem de corpos femininos asiáticos, encorajando a sua visão de como “sempre disponíveis” e “naturalmente” compatíveis com os homens brancos, auxiliam também a vulgarizar o seu carácter fixo e imutável. A pornografia - que explora a noção de passividade e dominação - e mais concisamente a pornografia inter-racial, permite-nos perceber como o ato sexual provoca, conduz e edifica categorias que estruturam ideias de “raça”. Isto tem resultado numa condensação de todas as características num arquétipo feminino geral que transcende qualquer situação histórica específica, mas encarna todas as mulheres Asiáticas.

Aquando a revisão deste texto, Michelle Yeoh tornou-se a primeira atriz Asiática a ganhar um Óscar de melhor atriz principal pela Academia de Hollywood. No filme Everything Everywhere All at Once (2022), Yeoh representa uma mulher Chinesa que se muda para os EUA à procura de uma vida melhor, acabando por se transformar na proprietária de uma lavandaria. Jogando com clichés e estereótipos, posteriormente avança para um mundo meta-verso.

Importa apenas salientar dois aspetos como remate conclusivo: Yeoh foi a primeira mulher Asiática a arrecadar esta distinção - numa cerimónia que desde 1929 premeia o cinema norte americano - e a segunda mulher não branca a recebê-lo. No entanto, apesar de centenas de filmes terem personagens Asiáticos, Yeoh foi também a primeira atriz autoidentificada como Asiática a receber uma nomeação para melhor atriz: Merle Oberon, nomeada em 1936, escondeu as suas origens indianas5757 Lawrance A. 'She had to hide': the secret history of the first Asian woman nominated for a best actress Oscar [Internet]. The Guardian; 2023 [acessado 2023 mar 13]. Disponível em: https://www.theguardian.com/film/2023/mar/06/merle-oberon-oscars-best-actress
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para não ter de lidar com preconceitos raciais que estariam, à época, ainda mais arreigados em Hollywood.

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  • Financiamento

    Ministério da Educação e Ciência - Fundação para a Ciência e a Tecnologia - Bolsa Doutoramento n. 2020.09.02.BD.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Fev 2024

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2023
  • Aceito
    28 Ago 2023
  • Publicado
    30 Ago 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br