Covibesity e o peso das normas. Uma epidemia cultural

Chiara Pussetti Sobre o autor

Resumo

A forma como moldamos e apresentamos socialmente o nosso corpo tem uma extraordinária importância social: a aparência é o nosso primeiro cartão de visita a partir do qual as pessoas nos enquadram e julgam. Esta avaliação acaba por condicionar o nosso quotidiano, desde às nossas oportunidades sociais até às profissionais. Um dos critérios mais importantes para determinar se uma pessoa é saudável e bonita - em Portugal, assim como em muitos outros contextos - é a magreza. Numa sociedade em que a magreza e a perfeição física são ideais a perseguir, este artigo explora através de metodologias qualitativas o impacto do discurso ligado ao problema da obesidade causado pela pandemia de COVID-19 na multiplicação e exacerbação de conflitos relacionados com o corpo em mulheres portuguesas entre os 18 e os 65 anos.

Palavras-chave:
Corpo; Pandemia; Género; Obesidade

Introdução

A pandemia de COVID-19 alterou todos os aspectos da vida de uma forma sem precedentes, confrontando-nos com aquilo a que Ulrich Beck chamou de metamorfose do mundo11 Beck U. The Metamorphosis of the World: How Climate Change is Transforming Our Concept of the World. Malden, Mass.: Polity Press; 2017.: uma mudança radical da vida, que nos levou a reavaliar as nossas prioridades, os nossos planos para o futuro e a reconfigurar as nossas aspirações. A vivência da pandemia alterou a autopercepção e a vivência do nosso corpo, redefinindo as rotinas quotidianas - da alimentação às práticas de higiene, beleza e autocuidado.

Este artigo explora, através de metodologias qualitativas, o impacto da construção ideológica da “epidemia de obesidade” em Portugal na pandemia de COVID-19 na gestão do peso corporal em mulheres portuguesas de classe média entre os 18 e os 65 anos e na procura de soluções de emagrecimento rápido para regressar à “vida normal” na melhor forma possível.

Durante o texto não usarei como sinónimos termos como “gordura”, “sobrepeso”, “excesso de peso” e “obesidade”. Considerarei a primeira noção como neutra (enquanto não ligada a um juízo de valor baseado na definição de uma norma), a segunda e a terceira como conceitos “émicos” porquanto altamente normativos, a quarta como um conceito “ético”, isto é distante da experiência das pessoas enquanto próprio do léxico médico.

A pesquisa foi desenvolvida no âmbito do projeto EXCEL (Em Busca da Excelência. Biotecnologias, Aprimoramento e Capital Corporal em Portugal) que coordenei no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa entre outubro de 2018 e setembro de 202222 Financiamento: Fundação para a Ciência e a Tecnologia PTDC/SOC--ANT/30572/2017 [Internet]. Disponível em: http://excelproject.squarespace.com.
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. Neste projeto interpretamos a aparência física como uma forma de capital - erótico, físico, estético e em particular como um capital prevalentemente feminino.

O capital estético pode ser entendido como uma combinação de diferentes recursos relacionados com a aparência (por exemplo, beleza facial, forma e tamanho do corpo, cor da pele e dos olhos, estilo de cabelo etc.) e tem as mesmas qualidades das outras formas de capital. A beleza é ao mesmo tempo um valor social, uma aspiração individual e uma obrigação moral. Vários teóricos da cultura de consumo argumentam que as pessoas investem tempo, dinheiro e energia no melhoramento da aparência mesmo durante as crises33 Elias A, Gill R, Scharff C. Aesthetic labour: rethinking beauty politics in neoliberalism. London: Palgrave Macmillan; 2017..

A pesquisa começou com a constatação que nos anos imediatamente a seguir à crise económica de 2008 paradoxalmente aumentou em Portugal o consumo de produtos cosméticos e procedimentos estéticos. Um fenômeno definido por Leonard Lauder (herdeiro da cosmetologista norte-americana Estée Lauder) como “efeito batom”, amplamente documentado por economistas44 Tajtáková M, Žák S, Filo P. The Lipstick Effect and Outdoor Cultural Consumption in Slovakia in Times of Crisis. J Economics/Ekonomický časopis 2019; 67(6):607-628. e psicólogos sociais55 Netchaeva E, Mckenzie R. Strategically Stunning: The Professional Motivations Behind the Lipstick Effect. Psychol Sci 2016; 8(27):1157-1168.. As motivações são múltiplas e bastante intuitivas: melhorar a aparência eleva os níveis de autoestima e autoconfiança, constitui um ato de resistência e de não desistência, dá ao consumidor conforto e sensação de controlo e poder. É por isso que o setor da estética não só resiste às crises económicas, mas que aumenta os lucros.

Estava a trabalhar sobre os efeitos da recessão económica na indústria da estética em Portugal, quando de repente entramos numa outra crise - desta vez planetária: a pandemia de COVID-19. A pandemia levou-nos a fazer um balanço das nossas prioridades: percebemos que a vida pode ser curta e tomamos decisões com o espectro da morte à nossa frente. Todavia, como demonstram os dados que apresentei em outros trabalhos sobre consumos de produtos e procedimentos de beleza durante a pandemia, os sectores da medicina estética e da cirurgia plástica registaram resultados muito positivos: o mercado de produtos e serviços para emagrecer cresceu exponencialmente a partir do segundo semestre de 2020.

Se no cenário distópico dos primeiros meses da pandemia a principal preocupação foi garantir a sobrevivência, logo no final do primeiro confinamento tornou-se prioritária a resolução das alterações físicas causadas pelo impacto do distanciamento social. A questão do ganho de peso tornou-se uma preocupação social comum, amplificada pelo discurso alarmante proferido pelos mais diferentes mídias sociais sobre a relação entre pandemia e epidemia de obesidade como emergência de saúde pública. Para indicar o fenómeno do aumento de peso durante a pandemia de COVID-19 foi criado um termo específico: “covibesity66 Khan MA, Moverley Smith JE. Covibesity, a new pandemic. Obes Med 2020; 19:100282.2.. O conceito, que se refere à ameaça de uma epidemia de obesidade consequente ao confinamento, ganhou rapidamente grande visibilidade nos diferentes meios de comunicação social.

Estas mensagens enfatizavam a correlação entre confinamentos, aumento de peso e maior do risco de mortalidade por COVID-19. Nos principais jornais quotidianos portugueses (Público, Diário de Notícias, Expresso, Jornal de Notícias, Correio da Manhã, Observador, entre outros) foram publicadas notícias alarmantes sobre a equação obesidade/COVID-1977 Roriz M. Sindemia de obesidade e COVID-19: uma sobreposição pandémica e o reforço das desigualdades de saúde, e-cadernos CES [Internet]. 2023. Disponível em: http://journals.openedition.org/eces/8294.
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. Foram apresentados estudos que afirmavam por um lado que a pandemia de COVID-19 agravou ao problema da obesidade em Portugal e, pelo outro, que as pessoas com excesso de peso corriam riscos mais elevados de internamento hospitalar e morte. Foi alertada a população acerca dos riscos associados ao ganho de peso, alegando que nas pessoas com Índice de Massa Corporal (IMC) acima de 30 o risco de acabar numa cama de hospital aumentava em 113%, tendo os obesos maiores necessidades de cuidados intensivos (74%) e maior risco de morte (48%). Com preocupação lemos nos jornais que em pessoas com excesso de peso as vacinas podiam não ser eficazes e que o 88% dos óbitos pelo vírus ocorreram em países onde mais da metade da população tem excesso de peso. Criou-se um estado de alarme, definido “pânico gordo”88 Kirkland A. Conclusion: What next?. In: Metzl J, Kirkland A, editors. Against health: How health became the new morality. New York: New York University Press; 2010. p. 195-204., em que os indivíduos com excesso de peso se tornaram alvo de vergonha e culpa não só por não conseguirem manter o peso ideal, mas também por serem potencialmente prejudiciais à saúde coletiva num momento em que Portugal enfrentava uma fase de imensa pressão no Serviço Nacional de Saúde.

Como reação a este “pânico gordo” foram lançadas campanhas de saúde pública para indicar às pessoas melhores opções alimentares mais saudáveis e estilos de vida mais ativos. Em outubro de 2020 a Direção-Geral da Saúde lançou o Programa nacional para a promoção da alimentação saudável (PNPAS) que apresentou medidas de educação alimentar e de combate ao sedentarismo (programa REACT-COVID-19). Sociedades científicas como a Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade, a Sociedade Portuguesa de Endocrinologia Diabetes e Metabolismo (SPEDM) e a Associação dos Obesos e Ex-Obesos de Portugal (ADEXO) solicitaram ao Estado medidas “urgentes” para travar o excesso de peso devido à pandemia, exigindo, por exemplo, a criação de um programa de consultas de emagrecimento nos cuidados de saúde primários e a comparticipação dos medicamentos para emagrecimento e tratamento da obesidade. Em 2021 foram reforçadas medidas governamentais de promoção da alimentação saudável e atividade física, considerando que 26,4% dos portugueses aumentaram de peso durante a pandemia (Resolução da Assembleia da República n.º 195/2021). Em todos estes programas governamentais e campanhas de saúde pública, o corpo “gordo” é considerado um corpo “doente” ou pelo menos predisposto ao desenvolvimento ou ao agravamento de doenças preexistentes.

O diagnóstico médico funciona como instrumento de controle social: define, cria e legitima, estabelecendo os limites entre o que é normal e o que é patológico. Como a obesidade é amplamente desaprovada socialmente, as pessoas gordas são o principal grupo-alvo dos profissionais do marketing de soluções instantâneas que prometem emagrecimento fácil, rápido e sem esforço. E é responsabilidade do indivíduo escolher da forma certa nesta panóplia de possibilidades as melhores soluções.

Numa lógica neoliberal é expectável que os indivíduos sejam considerados diretamente responsáveis para o controle e a monitorização do peso: a boa saúde depende do investimento e do compromisso pessoal num processo contínuo de autovigilância e autodisciplina. O discurso médico - que assenta na ligação entre responsabilidade, culpa e vergonha - funciona como uma ferramenta moralizante para regular comportamentos na base de um discurso que se baseia na possibilidade de “escolhas livres” e que sublinha como a obesidade está ligada a “custos” acrescidos para o indivíduo e a coletividade. Ao atribuir aos indivíduos a responsabilização pela sua saúde e pelo impacto socioeconómico da mesma, esquecendo as condicionantes socioeconómicas estruturais, este discurso promove simultaneamente a sua culpabilização. A pessoa gorda responderia por uma tripla acusação: falta de formosura, falta de retidão de espírito e falta de capacidade para gerenciar a própria saúde e em última análise a sua vida. Estes processos de culpabilização e desvalorização (definidos em inglês como fat-shaming) funcionam como ferramentas moralizadoras para regular e gerir aqueles que são considerados como menos disciplinados e responsáveis.

Objetivos, metodologia e estado da arte

O objetivo deste artigo não é debater a arbitrariedade do emprego da Tabela do IMC como ferramenta epidemiológica. Também não entendo aqui argumentar contra as “verdades” científicas que definem a obesidade como um problema de saúde global, ou considerar se efetivamente a pandemia teve um impacto na epidemia de obesidade. Já existe uma ampla literatura que enfrenta estas questões e critica os processos de patologização da gordura, desconstruindo o discurso médico-científico que considera o excesso de peso - isto é o desvio medido na base do que é considerado ter peso normal - como uma doença99 Murray S. Pathologizing "Fatness": Medical Authority and Popular Culture. Sociol Sport J 2008; 25(1):25-21..

Neste artigo considero o corpo como uma categoria discursiva criada, produzida e reproduzida na interação social e por meio de práticas sociais diversas e analiso a vivência da gordura como uma experiência inevitavelmente moldada por estes discursos, instituições e práticas. A estratégia de investigação utilizada neste estudo foi prevalentemente qualitativa, tendo sido realizadas observação participante, recolha de histórias de vida e entrevistas semiestruturadas com 38 mulheres de nacionalidade portuguesa, que consideram ter excesso de peso e se identificam como brancas, heterossexuais, de classe média, entre os 18 e os 65 anos, com nível de escolaridade secundário e superior, das quais 8 estudantes e 30 empregadas em categorias profissionais bastante valorizadas, residentes na cidade de Lisboa. Algumas das entrevistadas já pertenciam à minha rede de contatos pessoais; outras conheci no curso da pesquisa no ginásio, em salões de beleza e clínicas estéticas e de emagrecimento. Após a realização da entrevista, solicitou-se às mulheres que indicassem novos contatos através da técnica da bola de neve. Fiz também trabalho de terreno em quatro clínicas de emagrecimento e três centros de medicina estética em Lisboa que abriram as portas durante os confinamentos para responder ao acréscimo da procura. O critério predominante para estabelecer a dimensão da amostra foi a saturação, isto é, quando os dados obtidos passam a ter, tendo em conta os objetivos da investigação, certa redundância, enquanto não trazem nada de significativamente novo.

Devido aos confinamentos algumas entrevistas foram realizadas telefonicamente ou com recurso a videoconferência usando as plataformas digitais (Zoom, Teams, WhatsApp e Skype). Outros dados mais genéricos foram recolhidos participando da interação em grupos e fóruns online dedicados à beleza e ao emagrecimento. Com as mulheres que demonstraram maior disponibilidade de tempo tive diversos encontros presenciais durante todas as fases da pandemia assim como depois do regresso à vida definida como “normal”.

O peso ou o Índice de Massa Corporal (IMC) não foram critérios de seleção das entrevistadas, pois o que me interessava era a própria autopercepção como mulheres gordas. A interpretação pessoal/experiencial do peso corporal não corresponde necessariamente ao peso como dado numérico. A vivência de um corpo gordo não depende dos quilos nas balanças ou dos parâmetros da tabela do IMC, mas da relação com os outros. Entrevistei, portanto, também mulheres que segundo a classificação do IMC são consideradas normais, mas que julgam ser gordas e vivem em constante luta com o seu corpo. Todavia algumas entrevistadas fizeram questão de fornecer dados biométricos como altura e peso como “provas” de gordura “real”, para se distinguir daquelas que apenas “se sentem gordas”.

Se todas tinham um historial de dietas e todas tinham engordado durante a pandemia, reparei que para algumas entrevistadas era importante sublinhar quem tinha a legitimidade de falar da experiência de serem gordas e quem não, mostrando alguma irritação para com as mulheres que aos seus olhos não podiam ser consideradas “autenticamente” gordas. A sensação era que estas últimas não sofressem “realmente” o que uma pessoa gorda sofre por não ser alvo de atitudes gordofóbicas. As entrevistadas cujo tamanho corporal transgredia os limites da aceitabilidade social realçaram como as queixas das mulheres com corpos normativos sobre os quilos ganhos durante a pandemia tinha como efeito de fazê-las sentir ainda mais desviantes ou inadequadas, causando sofrimento.

A questão de “se” e “como” a pandemia teve impacto na gestão do peso corporal não foi presumida como certa, mas foi colocada como hipótese para ser analisada através de observação. As perguntas exploraram uma série de questões relacionadas com a vivência da corporeidade, em particular mudanças da alimentação, da prática da atividade física, percepção de alterações corporais devido aos longos períodos de isolamento em casa, alteração de prioridades e comportamentos durante os lockdowns e estratégias de regresso à vida social no pós-COVID-19.

As diferenças de género na preocupação com o tamanho, a forma e a aparência do corpo têm sido o foco de cientistas sociais feministas (por exemplo, Bordo1010 Bordo S. Unbearable weight: Feminism, Western culture, and the body. Berkeley: University of California Press; 1993.). Embora hoje os homens cuidem mais da sua aparência, existe uma clara diferença entre homens e mulheres relativamente à quantidade de tempo, atenção e dinheiro que é legítimo dedicar ao trabalho de beleza.

De modo geral, mesmo em relação a controle do peso e emagrecimento, os homens são socializados para perceberem os seus corpos em termos de funcionalidade e as mulheres em termos de aparência o que dá a algumas práticas conotações masculinas (treinar, por exemplo) e a outras conotações femininas (recorrer à medicina estética, tomar fármacos ou fazer dieta). O recurso à farmacologia ou à medicina estética para eliminação de gordura pertence às práticas “passivas” femininas. Pelo contrário, práticas “ativas” que comportam um alto desempenho físico (como ciclismo, corrida ou ginásio) são consideradas como adequadas à masculinidade.

A literatura feminista e queer evidencia como, também pelo que diz respeito os limites normativos do volume e do peso corporal, as mulheres são mais discriminadas do que que homens e é por isso que as mulheres são mais vulneráveis ao desenvolvimento de distúrbios alimentares1111 Wolf N. The beauty myth: How images of beauty are used against women. New York: Vintage; 1990.. Por estas razões decidi conduzir trabalho de campo somente com mulheres.

O corpo gordo contrasta com a performance de género que na nossa sociedade a mulher tem que pôr em cena: uma figura elegante, agradável, discreta, delicada, que ocupa um espaço exíguo e não perturba demasiado. Poucas coisas continuam a ser tão assustadoras como uma mulher que se alimenta excessivamente, que segue impulsos e satisfaz os seus desejos, que persegue o princípio do prazer, que tem apetites vorazes, que se expande para além dos limites rígidos que a sociedade lhe impõe. Estamos constantemente bombardeadas por mensagens que reforçam a necessidade de “disciplinar” e “domar” o corpo feminino - as suas formas, o peso, o cheiro, os fluidos, os apetites, os contornos, as excrescências, a pele que o reveste - para o aproximar de um ideal de beleza e feminilidade, no qual na realidade poucas mulheres encaixam. Como afirma Bartky1212 Bartky S. Femininity and Domination. Studies in the phenomenology of oppression. New York: Routledge; 1990., a feminilidade é uma mise-en-scène que só se consegue através de práticas disciplinares de controle do tamanho, da forma, da superfície e dos movimentos do corpo e da exibição do corpo como elemento ornamental.

Apesar das tantas conquistas dos movimentos feministas acerca da positividade corporal nos últimos anos, os resultados do survey que realizamos em escala nacional no primeiro ano do projeto sobre preferências estéticas dos portugueses evidenciam que o ideal de elegância feminina em Portugal continua a ser o corpo esbeltos e longilíneo das manequins: magras, altas, jovens, cisgéneros, brancas e normativas nas suas funções1313 Pussetti C. Shaping the European Body The Cosmetic Construction of Whiteness. In: Pussetti C, Jarrín A, editors. Remaking the Human: Cosmetic technologies of body repair, reshape and replacement. Oxford, New York: Berghahn Books; 2021. p. 243-320.. A magreza é associada a saúde, beleza, inteligência, riqueza, autodisciplina. As pessoas gordas são pelo contrário percebidas como desleixadas, pobres, incultas e irresponsáveis. O tamanho do corpo torna-se um marcador imediato da classe social e do estatuto económico, assim como da virtude moral do indivíduo: os três corpos (individual, social e político) referidos em 1987 por Margaret Lock e Nancy Scheper-Hughes1414 Lock M, Scheper-Hughes N. The Mindful Body: A Prolegomenon to Future Work in Medical Anthropology. Med Anthropol Quarterly 1987; 1(1):6-41. estão na representação da obesidade fortemente interligados. A conexão entre aparência física, responsabilidade e valor moral é explorada por Samantha Murray em diversos trabalhos.

O peso das normas

As práticas de controle do peso corporal são extremamente presentes na vida das mulheres. Praticamente todas as mulheres que entrevistei durante os anos do projeto afirmaram ter feito na vida alguma dieta ou tratamento de emagrecimento.

No contexto social em que cresci (Itália do norte, cidade da moda, classe social médio alta), a gordura nunca foi formosura. Desde a primeira infância lembro da preocupação com a contenção dos volumes do corpo (da carne, mas também dos cabelos, dos pelos, das unhas), das peças de roupa que tinham que ser sóbrias e minimalistas, sem excessos, dentro dos limites do bom gosto e da elegância burguesa. Associada ao padrão do corpo magro eram veiculadas mensagens positivas de sucesso, controle, êxito profissional, sorte no amor, classe e elegância. Cresci acreditando que, com a magreza, teria conseguido alcançar todos estes objetivos.

Os padrões de beleza que tinha internalizado como ideais, influenciados pela proximidade com o mundo da moda de Milão, condicionaram muito a minha preocupação com o controle do peso. Acredito que os projetos de pesquisa que desenvolvemos têm sempre algo a ver com a nossa história e as nossas preocupações pessoais. Neste artigo reporto excerto de entrevistas e de conversas com outras mulheres, mas a minha experiência do corpo também faz parte destas narrativas: com as minhas entrevistadas partilhei memórias e imaginários construídos pelo mesmo discurso hegemônico.

Daqui para frente portanto irei escrever com um estilo mais pessoal, emocional e ensaístico. Defendo a legitimidade (e a necessidade) do emprego de uma escrita mais pessoal, emocional e sensorial1515 Pussetti C, Mendes P, Martins H. Exercícios de Antropologia Narrativa. Lisboa: Edições Colibrí; 2023. nos relatos etnográficos há muitos anos, advogando metodologias artísticas e experimentais1616 Pussetti C. Art-Based Ethnography. Experimental Practices of Fieldwork. Special Issue of Visual Ethnography. Italy: Edizioni Museo Pasqualino; 2018..

Nos anos 1980 estava eu a atravessar aquela linha subtil - que pode ser extremamente pesada - entre a infância e a adolescência. Como a maioria das crianças da minha geração, passava muito tempo assistindo a desenhos animados e a anúncios publicitários destinados à minha faixa etária. Lembro em particular da publicidade de um chocolate da marca Kinder (Kinder Bueno), na qual um rapaz perguntava à sua amiga - uma jovem linda, alegre, sorridente e, sobretudo, magra - se esta queria lanchar e ela respondia chocada: “Estás louco? Queres-me gorda e cheia de borbulhas?”. A mensagem que era transmitida ao público não era só que o tal produto da Kinder era baixo em calorias, mas sim que a pior coisa que podia acontecer a uma menina era ser gorda e ter acne. Naqueles anos o mundo não era exatamente “politicamente correto” e nos desenhos animados, nos filmes e nas séries de televisão as pessoas mais fortes eram retratadas como desajeitadas, preguiçosas, indisciplinadas e ridículas.

No máximo podiam representar os amigos engraçados dos protagonistas, que pelo contrário eram sempre magros e bonitos: aquela categoria de seres humanos que os jovens em Lisboa definem como populares, em contraposição a nerds. Resumidamente, os nerds costumam ser os melhores alunos, são mais tímidos e ignorados no recreio, apresentam baixo desempenho no desporto, comem sem grande preocupação com a linha, não são considerados atraentes e bonitos e são mais gordos ou excessivamente magros e asténicos. Os populares são os que se vestem segundo a moda do momento; têm comportamentos considerados cool (como fumar erva ou beber álcool); têm sucesso no mercado das relações românticas; investem tempo no ginásio e comem contando as calorias. Ponto importante na nossa discussão: os populares são sempre magros e esforçam-se para corresponder aos modelos de beleza ideais.

De repente realizei que naqueles anos da publicidade do Kinder Bueno eu era uma adolescente nerd que queria desesperadamente se tornar popular: com quinze anos iniciei a fazer dietas, pular refeições, praticar muito exercício físico e em pouco anos aderi a práticas inadequadas de controle de peso, tais como fumo e vômito autoinduzido.

A maioria das mulheres de classe média e de ambiente urbano que entrevistei durante o projeto, assim como as amigas com as quais partilho a minha quotidianidade, têm histórias parecidas com a minha. Controlam constantemente o seu peso, passando de uma dieta à outra e tomando comprimidos para aumentar o metabolismo ou diminuir o apetite; compram produtos adelgaçantes e submetem-se a tratamentos estéticos mais ou menos invasivos para perder volume e reduzir as formas. Mesmo as mulheres que segundo o cálculo do IMC podem ser consideradas clinicamente magras trocam entre elas dicas e conselhos para não engordar, desinchar e perder quilos e volume. Sabem que quanto mais se aproximam do tamanho 36 (XS) símbolo do corpo perfeito da elite da moda, mais valor social terão.

As mulheres mais gordas acham que têm menos hipóteses do que as amigas magras no campo da sedução. Falam bastante do medo de não ser consideradas atraentes, reportam estratégias para esconder curvas e volumes - como usar vestidos monocromáticos, escuros, com linhas amplas, mangas compridas.

As que relatam ter sucesso no campo sexual, falam de gostos diferentes (ou dissidentes) e de “estimadores”, considerando-se fetichizadas justamente pelos corpos que transbordam e excedem as medidas consentidas da norma. Consideram que se fossem mais magras muitas coisas seriam mais simples e contam-me de comentários ordinários na intimidade que as ofendem. Se o receio de não ser consideradas atraentes é muito presente nos discursos recolhidos, todavia o sofrimento não está ligado somente a uma questão estética. As mulheres com tamanhos grandes relatam ter alguma dificuldade em encontrar roupa ou lingerie jovem e sexy. Nas principais lojas da cidade até pouco tempo era difícil encontrar roupa com tamanho superior ao 42 (tamanho português correspondente ao Large ou XL).

A questão mais relatada é, todavia o constrangimento social provocado por olhares e palavras, a sensação de repulsa, o julgamento moral, a desqualificação, as piadas, o descrédito no olhar e nas palavras de pessoas próximas (familiares, amigos e colegas). Os corpos não conformes suportam patrulhamento e vigilância continua e recebem conselhos não solicitados e comentários cheios de “boas intenções” porém ofensivos. Quase todas as pessoas entrevistadas relatam situações embaraçosas de bullying (assédio moral) no círculo de amigos. A maior parte relata sofrer constantes microagressões também dentro do contexto familiar, conforme exemplifica os depoimentos abaixo:

É uma questão de repetição: se te dizem constantemente que deves fechar a boca e sofrer para ser bonita, acabas por interiorizar que é isso que deves fazer (Maria 41 anos, arquiteta).

Cada vez que pedia para repetir um prato, diziam logo que para mim não havia mais comida. Ainda me assustam a dizer que nunca irei casar, que irei ter problemas de saúde, que será difícil engravidar... (Sara 19 anos, estudante universitária).

Na escola as minhas amigas faziam controle reciproco da alimentação. Agora é o meu marido que faz piadas sobre as mulheres de Fernando Botero (Vanessa 32 anos, maquilhadora profissional).

A pandemia: exceções e excessos

A crise é um fenómeno extremamente complexo e multifatorial com consequências de ordem biológico, sanitário, económico, político, sociocultural e educacional. A vivência da crise põe em xeque a esperança no futuro, obriga a reorientar planos, aspirações e a redefinir regras e comportamentos. Durante os primeiros meses da pandemia tivemos que enfrentar um cenário distópicos: a cidade deserta, silenciosa, a declaração do estado de Emergência com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, o número impressionante de mortos. Numa sociedade em que geralmente pensa-se pouco na morte - se não para afasta-la e esconde-la - a possibilidade de falecer pelo vírus tornou-se muito real. Muitos de nós perderam amigos e familiares e sentimos como nunca o espetro da solidão, da separação da família, da impossibilidade das despedidas.

Com a pandemia mudaram as formas de viver a sociabilidade, de consumir, assim como a nossa autopercepção e vivência corpórea. Para muitas pessoas, em 2020 faltaram oportunidades positivas, sociais e presenciais de ver o reflexo da sua imagem no olhar dos outros. Nos primeiros meses de 2020 ninguém pensou na aparência nem se preocupou com a perspectiva de ganhar peso. Se nas primeiras semanas fizeram compras de emergência (bens de primeira necessidade e papel higiénico), rapidamente começaram a comprar comida de conforto (chocolate, batatas de pacote, enchidos e queijos, vinho e bebidas espirituosas). Fechados em casa, quase todas as mulheres entrevistadas envolveram-se em atividades antes nem imaginadas: confeccionaram pão, doces, biscoitos, tartes e massas caseiras, fizeram aperitivos e até jantares gourmet online com os amigos. Como não havia necessidade de sair de casa para se dirigir no local do trabalho, aumentou o consumo de bebidas alcoólicas e espirituosas durante o dia.

Estudos da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa e da Escola de Medicina da Universidade do Minho mostram que em 2020 o consumo médio de comida calórica, álcool e tabaco duplicou e o 26% dos portugueses aumentou de peso de forma significativa. As minhas entrevistadas falaram da necessidade de compensação, de mimos gastronómicos para tornar o confinamento forçado um pouco mais prazeroso. Pessoas que viviam casamentos que se sustentavam em rotinas feitas por empenhos profissionais fora de casa, tiveram de repente que conviver o dia inteiro no mesmo espaço com os parceiros: a comida tornou-se uma forma de comunicar, criar partilha e sentimento de comunidade. As mulheres que enfrentaram o confinamento sozinhas desorganizaram completamente os horários, fizeram noitadas a assistir televisão, com acompanhamento de aperitivos e bebidas gaseificadas:

Mandava vir pizzas familiares, bolos, o meu marido e eu não comíamos outra coisa. Era a nossa forma de comunicar e nos dar alegria lá em casa (Moana 39 anos, pesquisadora).

É claro que estando sempre em casa estamos menos preocupados com a nossa imagem... chegou a uma fase em que desisti das dietas e deixei-me ficar no sofá, nem saia de casa (Iolanda 54 anos, psicóloga social).

Num regime de excepcionalidade, as alterações dos hábitos quotidianos passaram despercebidas. Muitas das minhas entrevistadas referem que no regresso à “normalidade” - depois dos meses em casa de pijama - repararam que as calças jeans já não serviam.

Fui me pesar e com meu espanto dei-me conta que tinha engordado 8 quilos! Que horror! (Clara 42 anos, designer).

Não tive noção da mudança até ao momento de voltar a vestir a roupa mais formal... a primavera lá fora, o verão às portas e eu estava que nem um texugo! Fui logo correr para o Doutor XXX (Sónia 45 anos, empreendedora).

O segundo confinamento, entre novembro de 2021 e fevereiro de 2022, foi vivenciado de forma diferente, quase oposta. Ninguém ficou surpreso, de alguma forma todos estávamos à espera. A pandemia começou a ser considerada como uma “nova normalidade”: as precauções e o nível de guarda diminuíram e mesmo no lockdown as pessoas começaram a quebrar regras para se juntar socialmente sem muita reprovação moral. Entretanto, na primavera de 2021 começou a subministração da vacina com a promessa da imunidade de grupo. A vontade de vida ultrapassou o medo da morte. Depois de um ano de extrema privação social começamos a sonhar com um verão livre do vírus. Uma nova época de consumo, hedonismo, excessos, festas, liberdade, esperança e vitalidade, que foi definida pelos especialistas como os “loucos anos 20 do século XXI”.

As minhas entrevistadas relataram que de repente o aspeto físico tornou-se uma preocupação importante: tinham que perder peso rapidamente e recuperar a boa forma física para um regresso “em grande estilo”, após um ano em que tão pouco controle tiveram sobre o destino. Durante o segundo confinamento, as minhas entrevistadas começaram a consultar sites e blogs de conselhos estéticos para procurar dicas sobre como remediar rapidamente aos danos da indisciplina do primeiro confinamento. De uma rápida panorâmica dos sites destinados às beauty routines pós-quarentena deduz-se que a mensagem principal foi: “o confinamento não é desculpa para o desleixo; temos que cuidar de nós e regressar à vida social com estilo”. A advertência é clara: a gordura é prejudicial à sua saúde física, mental e social. Temos que regressar à vida normal em boa forma física, para que não se pense que passamos meses no desleixo e no excesso.

As empresas de fármacos para perder peso, os aplicativos que vendem planos personalizado de dieta e fitness, assim como as clínicas de medicina estética, viveram no verão a seguir ao primeiro confinamento (entre março 2020 e maio 2020) e durante o segundo confinamento (entre novembro 2020 e janeiro 2021) um ótimo momento e as receitas da indústria do emagrecimento em 2021 duplicaram. As notícias definiram “efeito pandemia” o boom de intervenções de cirurgia plástica, medicina cosmética e de venda de produtos e procedimentos para emagrecer e falou-se do perigo de uma nova epidemia (desta vez de obesidade) e do excesso de peso como problema de saúde pública. As entrevistadas sustentaram ter recorrido a métodos, planos, tratamentos e fármacos destinados ao emagrecimento, para perder em pouco tempo os quilos que ganharam na pandemia. Nas conversas sublinharam que “não se trata somente uma questão de estética, mas de uma questão de saúde”, sugerindo uma hierarquia entre saúde e estética, como se a questão estética fosse algo de menor importância e o discurso da saúde legitimasse o investimento em tratamentos de emagrecimento. De repente, tinham adoptado o léxico das campanhas de saúde pública para validar o emprego de soluções de emagrecimento rápido, afirmando que “o emagrecimento vai muito além da estética, é questão de saúde, bem-estar e longevidade1717 Pussetti C. Life comes first, but lifestyle also matters: aesthetic responses to pandemic angst. Analise Soc 2023; 246(1):172-191..

Entre as entrevistadas, 8 submeteram-se a tratamentos de medicina cosmética bastante invasivos sem considerar os possíveis efeitos colaterais. Injetaram soluções e tomaram medicamentos dos quais desconhecem os componentes sem se preocupar com efeitos adversos, alergias ou outros perigos do uso. Seguindo as indicações de dois médicos que são referência do emagrecimento em Portugal, 4 mulheres tomaram fármacos para diabetes, laxantes e remédios antidepressivos com a finalidade de diminuir os ataques de fome ligados à ansiedade.

Do grupo da amostra, 2 mulheres adquiriram online chás tidos como milagrosos, comprimidos tailandeses (IBS, Mishki, LiDa são os medicamentos tailandeses mais populares que podem ser comprados on-line) e aceleradores do metabolismo. Todas fizeram dietas cetogênicas (dieta que consiste em uma redução drástica da quantidade de carboidratos na alimentação, dando preferência pelo consumo de carnes), paleo (a dieta paleolítica é um tipo de alimentação rica em alimentos naturais e saudáveis como frutas, vegetais, nozes e carnes magras) ou baseadas em proteínas (em Portugal existem muitas dietas “proteicas” com substituição de alimentação e as mais famosas são a LEV, a Mincidelice, a Yourketo, a MyProtein, a Nutricia), privilegiaram alimentos rotulados como “light”, passaram a substituir as refeições com batidos que prometem um emagrecimento rápido e consistente, praticaram jejuns intermitentes sem considerar eventuais prejuízos para a saúde em curto prazo. Das que fizeram dietas rígidas, 5 mulheres inventaram situações clínicas para não ter que assumir publicamente que estavam a fazer regimes alimentares para emagrecer por exemplo disseram ter descoberto intolerância ao glúten, aos lacticínios, aos frutos secos, ao açúcar e aos alimentos ricos em carboidratos, como pão, arroz, batata-doce e macarrão. Uma das mulheres fez uma lipossução e outra uma abdominoplastia; 4 inscreveram-se em ginásios e 1 optou por um centro muito caro que oferece treino personalizado por eletroestimulação muscular. Nas mulheres entre os 35 e os 50 anos houve um investimento importante em tratamentos de medicina estética: relataram entre os motivos separações, divórcios, valorização pessoal, autoestima, razões profissionais e relações com parceiros mais novos. Três mulheres que sempre foram muito magras decidiram mesmo assim perder os quilos que ganharam durante os confinamentos. Depois da dieta fizeram intervenções de medicina estética para dar mais volume ao peito, as bochechas e restaurar os volumes esteticamente apreciados e tornar o rosto mais jovial.

Questionadas sobre os riscos para a saúde, focaram nos benefícios do emagrecimento, repetindo os slogans das publicidades e o discurso dos médicos que minimizavam os possíveis efeitos colaterais dos manipulados. sublinhando que o risco da obesidade é bem pior. Toda queriam recuperar o tempo perdido e viver o regresso à “vida normal” ao máximo e na melhor forma:

O verão lá fora e olhei me no espelho uiiii... Fui à Clínica XXX fazer injeções de fosfatidilcolina, na barriga, nos braços e nas coxias. É que o tempo é pouco e não vou lá só com exercício e dieta (Íris 56 anos, jornalista).

Precisava de perder o peso que ganhei na pandemia, portanto tomei os comprimidos do Dr. XXX, indicados pela obesidade. Fiz o cálculo do IMC e vi que estava quase na obesidade de primeiro grau! Assustei! (Maria Manuel 51 anos, professora).

Aproveitei do confinamento para fazer uma lipoaspiração. Não ia regressar à vida normal com estas coxias (Luana 47 anos, cantora).

Investimos mais do que três mil euros na dieta XXX, mas foi para perder peso de forma rápida, no fundo é uma escolha de saúde (Bárbara 21 anos, estudante universitária).

O meu Personal Trainer disse-me que estava no grau de obesidade 1 e que corria riscos severos de saúde. Vendeu-me comprimidos para perder peso e inibir o apetite e algo com testosterona (Luisa 44 anos, gestora de ciência e tecnologia).

A observação participante, o tempo passado em conjunto e as longas horas de conversas informais com as mulheres que fazem parte desta amostra, indicam que para todas a magreza é uma característica idealizada e desejada. O primeiro confinamento constituiu um real estado de exceção e, portanto, teria legitimado comportamentos excecionais. No momento em que foi claro que a pandemia não significava morte certa, os valores, os modelos e os discursos do paradigma dominante voltaram a imperar com toda a força. As práticas biopedagógicas divulgadas para reduzir os riscos de obesidade durante a pandemia acabaram por influenciar as mulheres sobre a percepção e gestão dos seus corpos. Quase todas foram calcular o seu IMC para descobrir que pertenciam a grupos de risco por sobrepeso ou obesidade.

Embora estas mensagens tenha o intuito de melhorar a saúde dos cidadãos e que a obesidade mórbida seja realmente uma condição de difícil gestão e ligada a inúmeros problemas de saúde e de inclusão social, é importante considerar que serviram para aumentar os lucros das farmacêuticas da indústria estética e dietética assim como dos médicos que gerem clínicas de emagrecimento e ao mesmo tempo contribuem á definição das estratégias nacionais para a luta contra a obesidade. Também é importante considerar que as indicações para uma alimentação saudável e para a prática do exercício físico diários supõem que todos tenham dinheiro e tempo para gastar, simplificando uma questão muito mais complexa baseada em desigualdades sistémicas. Entrevistei somente mulheres de classe média com possibilidades económicas que possibilitaram uma série de opções. Sabemos que a indústria de perda de peso disponibiliza no mercado uma panóplia de soluções que prometem resultados rápidos e que os nutricionistas indicam aumentar o consumo de proteínas magras, verduras biológicas, chia, aveia e linhaça, eliminando farinhas e alimentos processados.

Todavia nem todos os consumidores têm a mesma escolha no que diz respeito aos alimentos que podem consumir e/ou aos exercícios que podem praticar. A capacidade de compra assim como a liberdade de escolha é determinada pela posição estrutural que ocupamos. Desta forma, os discursos que consideram o aumento de peso como resultado das escolhas de consumo e hábitos alimentares errados ou como espelho da falta de autodisciplina esquivam-se a analisar as condições sociais que determinam a real possibilidade de escolher entre diversas alternativas possíveis. São discursos altamente discriminantes na sua natureza, enquanto reproduzem e reforçam diferenças sociais e econômicas preexistentes. O risco de obesidade não depende da má vontade, da preguiça ou de algum tipo de distúrbio comportamental. Se tivesse entrevistado mulheres pobres, não portuguesas, com trabalhos cansativos, socialmente excluídas e com horário e ritmos de trabalho altamente exigentes, no contexto de pobreza das periferias de Lisboa, as experiências da pandemia, as preocupações para com o peso e as escolhas possíveis teriam sido diferentes. A pandemia por muitas pessoas significou desemprego, pobreza ou até restrições de tempo devidos a horários de trabalho muito exigentes. O rendimento que recebemos assim como o emprego que temos condicionam a possibilidade de comprar e preparar refeições saudáveis, de efetuar tratamentos estéticos, de frequentar um ginásio ou até de praticar atividade física ao ar livre. Reconhecer a multidimensionalidade e a interseccionalidade da obesidade com outras dimensões quais idade, situação familiar, classe socioeconómica, profissão, habitação, educação e outros aspectos identitárias e ambientais é fundamental para evitar a patologização e culpabilização de pessoas que já são alvo de discriminação e exclusão social.

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  • Financiamento

    Ministério da Educação e Ciência - Fundação para a Ciência e a Tecnologia - PTDC/SOC-ANT/30572/2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Fev 2024

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2023
  • Aceito
    10 Nov 2023
  • Publicado
    12 Nov 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br