“Me prende, DeleGata!” - performatividades de gênero na construção da beleza como uma arma estética e discursiva de poder entre delegadas da Polícia Civil

Daniele Andrade da Silva Anna Paula Uziel Sobre os autores

Resumo

O presente artigo aborda as construções performáticas de gênero de delegadas de polícia atuantes no estado do Rio de Janeiro. A partir da utilização da Cartografia como método de pesquisa, acompanhamos percursos, conexões e processos de construção de feminilidades, acionadas e performadas por nossas entrevistadas para constituírem um local de respeito e destaque dentro e fora da Instituição, usando a beleza como ferramenta estética e discursiva de poder, a partir da classe performática DeleGata. Foram realizadas entrevistas de manejo cartográfico com nove delegadas lotadas no estado do Rio de Janeiro, com idades entre 30 e 59 anos. Embora a polícia valorize historicamente ideários reconhecidos como masculinos, como força e virilidade, as performatividades de gênero operadas pelas delegadas permitem uma feminilização da polícia. A figura/enunciação da DeleGata, que constrói uma imagem da mulher delegada, fazendo supor uma unidade, significa a produção de sujeitos políticos, assim como ideias e valores que atingem um padrão comunicativo e performático, visibilizando certa mulher que ornamenta - com sua beleza - e que surpreende - com sua inteligência - ao mesmo tempo. Assim, a DeleGata coloca em ação extremos aparentemente antagônicos: beleza-inteligência, sensualidade-poder, feminilidade-força e produzem um regime social e simbólico de produção de corpos e feminilidades.

Palavras-chave:
Delegada; Feminilidades; Polícia; Gênero; Beleza

Introdução

O espaço policial, historicamente construído como masculino, afigura-se como palco de diferentes produções narrativas que objetivam despotencializar mulheres, incluindo as que exercem cargos de poder, como as delegadas. Embora, pela função de seu ofício, já cheguem à instituição como chefes, será na prática que precisarão construir uma imagem de confiabilidade e capacidade de gestão, sem fugir às prescrições de gênero: precisam provar sua capacidade profissional, mas sem perderem a beleza de ornar, em um contexto em que a estética ora entre como fundo para desvalorizar a capacidade feminina na polícia, ora - reapropriada -, atue como potência de ação. Para além de espaços dicotômicos, a construção da beleza age como produtora de valor, orientando certa circulação de corpos numa hierarquia estética existente11 Jarrín A. A Biopolítica da beleza. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora Unifesp, Editora Fiocruz; 2023..

Enquanto dispositivo, uma vez que permite analisar determinadas relações heterogêneas de poder-saber22 Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1984., o gênero ajuda a colocar em análise a sacralidade que a figura feminina parece acionar no espaço policial, como se o fato de ser mulher corrigisse todo e qualquer desvio da policial, potencial ou real, inserindo a análise nas práticas culturais discursivas e não discursivas que produzem efeitos de verdade em objetos e sujeitos. Da mesma maneira, nos permite discutir os usos performáticos do gênero para negociar as relações dentro da polícia.

A performatividade nos traz o caráter constitutivo de gênero como gestos, atos, representações ordinariamente construídas33 Butler J. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2017., desestabilizando, assim, a pretensa essencialidade/naturalidade do gênero, com isso, explorando o seu caráter performativo, como várias formas como o corpo mostra e produz sua significação cultural. Se homens delegados não precisam provar suas habilidades, pautados nas especificidades de seu gênero, às delegadas caberá o desafio de provar sua capacidade, independentemente de qualquer suspeita que seu gênero possa trazer sobre ser aquele o seu lugar. Neste cenário, dois recursos são especialmente acionados: o apagamento do gênero e sua essencialização positiva44 Silveira MNB. Delegadas de polícia: profissionalismo e gênero. Soc Cult 2011; 14(1):151-162., em um recurso que consiste em acionar os atributos reconhecidos como femininos a seu favor, ou seja, essencializar o gênero como se tomasse para si os atributos naturalizados que se referem ao feminino a fim de alcançar algum intento: estando dentro das delegacias elas precisam ser tão boas quanto eles, buscando operar o apagamento de toda diferença marcada pelo gênero. Todavia, tais diferenças marcadas entre homens e mulheres faz parte de um conjunto de temas centrais percebidos em distintas sociedades, que se organizam e se pensam a partir destas relações55 Rohden F. Uma Ciência da Diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2001., que, longe de ser dadas, são construídas e móveis, em distintos graus, e em variadas sociedades.

Esse apagamento, todavia, na polícia, se refere ao prescrito ao gênero feminino em benefício da valorização dos atributos colados ao masculino, ou a masculinização do ideário e da prática profissional. Essa invisibilidade também é encontrada naquilo que há de semelhante nos comportamentos entre os gêneros66 Pereira MM. Jogos com fronteiras: a construção de diferenças e desigualdades entre rapazes e raparigas. In: Pereira MM. Fazendo Gênero no Recreio: A negociação do género em espaço. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais; 2012. p. 95-120.. As delegadas atuam em jogos de forças, ora subvertendo a ordem do gênero, ora cristalizando velhas prescrições, o que produz um regime social e simbólico de produção de corpos e feminilidades para a instituição policial que, ao ser publicizado midiaticamente, fornece modelos acionados na produção estética de corpos e feminilidades no meio social77 Silva DA. Luz, Câmera, Ação: Notas Sobre as Atuações Performáticas da Mulher Policial Sob o Olhar dos Meios de Comunicação. PSIUNISC 2020; 4(1):67-82.. Deste modo, visibilizamos aqui o processo de produção e corporificação da DeleGata objetivando fornecer subsídios para os campos da saúde e afins, que têm na naturalização do ideal generificado da beleza - de muitos modos representados pelas DeleGatas - a base de práticas de cuidado e modelação do corpo, especialmente aquelas mais diretamente relacionadas às modificações corporais e cirurgias plásticas.

Ser DeleGata dialoga com certa construção que marca a beleza a partir de jogos performáticos que trazem à cena a ideia ora de poder, ora de status, sendo beleza a linha que costura tais cenários. A ideia de beleza pode, ainda, marcar a construção do novo papel social dessas mulheres. Estar neste lugar confere visibilidade, estar fora deste lugar, ao contrário, sugere apagamento. Aqui, a beleza assume status de poder, acesso a diversos espaços sociais de reconhecimento. A apropriação pelas DeleGatas desse lugar confere reconhecimento social, destaque, prestígio e bem-estar, atribuindo valor social ao corpo, construindo condições de possibilidade de dignidade humana e felicidade11 Jarrín A. A Biopolítica da beleza. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora Unifesp, Editora Fiocruz; 2023..

Método

Este artigo baseia-se em uma tese de doutorado que, através do método cartográfico de pesquisa acompanhou os diferentes matizes de feminilidades que são construídas, vividas e acionadas pelas nossas personagens delegadas de polícia. Aplicada como método, a cartografia propõe uma reversão metodológica, apostando na experimentação do pensamento, não como método a ser aplicado, mas experimentado e assumido como atitude. Nesta perspectiva, objeto, sujeito e conhecimentos são percebidos como efeitos coemergentes do processo de pesquisar88 Kastrup V, Barros RB. Movimentos-funções do dispositivo na prática da cartografia. In: Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2015. p. 76-91.

9 Passos E, Eirado A. Cartografia como dissolução do ponto de vista do observador. In: Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2015. p. 109-130.
-1010 Zambenedetti G, Silva RAN. Cartografia e genealogia: aproximações possíveis para a pesquisa em psicologia social. Psicol Soc 2011; 23:454-463.. O método formulado por Deleuze e Guattari visa acompanhar um processo de produção de subjetividades e não simplesmente representar um objeto, assim, o próprio método vai se constituindo no acompanhamento dos movimentos das subjetividades e dos territórios88 Kastrup V, Barros RB. Movimentos-funções do dispositivo na prática da cartografia. In: Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2015. p. 76-91..

A pesquisa cartográfica acompanha como os desejos são aprisionados e direcionados à produção de alguns regimes de verdade que, a partir do efeito macropolítico, servirão de lente para onde grande parte dos olhares passarão, mas indo além, ao verificar como esses regimes são alterados e subvertidos, dando espaço a novas formas e novos regimes, olhares desterritorializados, a partir do efeito micropolítico. Fluxos que vão se alterando e que não podem ser percebidos a partir de visões maniqueístas. Assim, não se trata aqui de avaliarmos - pois sequer seria esta a nossa intenção -, quais as maneiras mais adequadas ou incorretas dessas mulheres performarem suas feminilidades.

Nossa pesquisa se pauta na produção conjunta com essas mulheres, com aquilo que os nossos encontros produzem, afetando a todas. Cartografando os movimentos e não tentando produzir padrões ou verdades, pois desacreditamos deste caminho. Sem desconsiderar, obviamente, os efeitos da ordem biopolítica de ser belo (respaldada por um poderoso discurso científico), mas trazendo à baila a corporalização não como algo passivo, mas fluido, ora subvertendo, ora reforçando estereótipos/assimetrias de gênero. Para ajudar a pensar o campo, é interessante considerar que as performances de beleza sejam entendidas como uma forma de trabalho afetivo onde produto e ato de produção não podem ser descolados. Assim, a beleza enquanto prática de autogestão também implica numa forma de trabalho que molda a subjetividade do produtor, mas também gera valor no corpo, a partir do próprio corpo11 Jarrín A. A Biopolítica da beleza. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora Unifesp, Editora Fiocruz; 2023..

Para ajudar neste percurso pelo campo e pela escrita que busca apresentar o processo de construção da categoria êmica DeleGata, faz-se mister inserir a produção discursiva a partir de seu contexto, como algo para além de uma verdade fechada em si, considerando-se os conjuntos de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de sua produção, estendendo as forças que compõem/produzem/autorizam seus sentidos. Para Foucault, o discurso é uma dimensão de produção da realidade social, sendo uma prática socio-histórica1111 Pêcheux M. Análise automática do discurso. In: Gadet F, Hak T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp; 1993. p. 61-145.,1212 Foucault M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola; 2012..

Para chegarmos às entrevistadas, tivemos um contato inicial com uma delegada identificada como uma DeleGata, utilizamos, a partir daí, a estratégia bola de neve para contato com potenciais entrevistadas. Foram realizadas entrevistas de manejo cartográfico com nove delegadas, com idades entre 30 e 59 anos. Chama a atenção que apenas uma delas é mãe. Todos os nomes são fictícios e as entrevistas foram realizadas após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob o CAEE 97551018.0.0000.5282.

Performatividades: matizes de gênero

A construção no imaginário social do homem “machão” como figura ideal de força e respeito policial parece não abrir espaço para a vaidade, ainda muito marcada como um atributo feminino. Por esta razão, é interessante problematizarmos que o estabelecimento de convenções estéticas permite certa feminilização das polícias. Embora deixe de fora variações de feminilidades, a construção da DeleGata - nome atribuído especialmente pela imprensa a mulheres delegadas reconhecidas como belas, mas que foi assumido por aquelas que assim se identificavam - pode significar a produção de sujeitos políticos, assim como ideias e valores1313 Silva Junior AL. "Em desfile nossa terra, nossa gente": a construção de corporalidades e belezas em concursos femininos diversos. In: Anais do Seminário Internacional Fazendo Gênero 10. 2013. p. 1.12., que atinge um padrão comunicativo e performático, visibilizando certa mulher que ornamenta - com sua beleza - e que surpreende - com sua inteligência - ao mesmo tempo. Assim, a DeleGata coloca em ação extremos aparentemente antagônicos: beleza-inteligência, sensualidade-poder, feminilidade-força.

Cabe destacar que a beleza não é uma categoria politicamente neutra, mas uma forma de biopoder que instrumentaliza/categoriza alguns corpos como elegíveis, a despeito de outros, produzindo formas de governamentabilidade sobre corpos e práticas sociais. Assim, alguns corpos serão eleitos como mais desejáveis que outros, assumindo posição de destaque na hierarquia estética existente. Foucault descreve o processo de investimento político no corpo pelos mecanismos de exercício de poder. Incidindo sobre a vida, o biopoder perpassava o corpo, ao mesmo tempo que lançava regras normativas sobre a vida da espécie e os fenômenos da população. Para o autor, as relações de poder são estratégicas e contingentes ao domínio de onde se exercem1313 Silva Junior AL. "Em desfile nossa terra, nossa gente": a construção de corporalidades e belezas em concursos femininos diversos. In: Anais do Seminário Internacional Fazendo Gênero 10. 2013. p. 1.12.,1414 Ortega F, Zorzanelli R. Corpo em evidência: a ciência e a redefinição do humano. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira; 2010..

Para Butler33 Butler J. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2017., o “sujeito” é um construto performativo. Desta forma, a identidade de gênero seria uma sequência de atos, mas sem a existência de um ator (performer) preexistente que pratica esses atos. Cabe destacar, todavia, que as nossas performances de gênero só podem acontecer dentro de uma cena discursiva plena de sujeições que limitaria aquilo que reconhece como inteligível, o que nos insere na interessante construção performada pelas DeleGatas, que precisam reconhecer as regras e limites a elas impostas, como veremos mais adiante.

Ao misturarem força e sensibilidade, como assim são convocadas, as delegadas reconstroem constantemente interessantes maneiras de ser mulher. Elas atuam entre as prescrições de gênero, ressaltando, subvertendo, fixando, transformando essas verdades sobre si e sobre sua profissão. A beleza como atributo feminino largamente usado para despotencializar a mulher, parece ganhar novos usos estratégicos aqui:

Ser bonita ajuda, sim... as pessoas são, como disse, mais receptivas... E, assim, eu não sei se alguém já fez alguma coisa pra mim porque eu era bonita [risos].

Entrevistadora: Você já percebeu alguma colega sua fazendo esse tipo de negociação? Talvez mesmo de uma forma mais sutil...

Já, já... não sei se de propósito e tal, mas já, já. E os homens quase sempre caem, todos [risos] (Paolla, 30 anos).

Encarnada como capital afetivo11 Jarrín A. A Biopolítica da beleza. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora Unifesp, Editora Fiocruz; 2023., a beleza encontrada na performance DeleGata circula por distintos espaços sociais, sendo, ela própria, um campo de relações sociais onde alguns corpos acumulam mais valores que outros. A DeleGata parece estar inserida em certa espécie de topografia da beleza do meio que se insere. Não são apenas reprodutoras de regras e práticas de embelezamento, mas atuam construindo e reconstruindo este espaço, onde seus corpos são objetos relacionais numa economia afetiva da beleza. Inseridas em locais marcadamente misóginos e assimétricos, onde as regras de reconhecimento e ascensão social não são objetivas quando se trata de mulheres, as policiais precisam operar diferentes lógicas performáticas e discursivas em que a corporificação de certa beleza erigida parece ser conferida como mais uma forma de poder, ao menos as que assim são reconhecidas.

Unânime ou não, o reconhecimento da DeleGata pode simbolizar a produção da imagem que parte do grupo faz de si e certamente alcança fortemente o público externo. Pode significar o reconhecimento social daquelas sujeitas que não precisam abrir mão de sua feminilidade para serem reconhecidas como policiais, ainda que esse reconhecimento passe pela associação à dada figura estereotipada do feminino. O exagero desses traços, dos saltos, batons e afins pode indicar a construção de um espaço próprio que, com críticas ou não, vai se construindo. Afinal, é somente por existirem que estas figuras podem ser vistas.

Para corpos femininos, a autoestima é associada a aparência de seu corpo, não estar aqui, ao contrário, pode causar sofrimento. Mas, se respostas estanques não parecem responder ao problema, talvez esteja na interseção a resposta inventiva para esse campo, onde, ao operarem inscrições de beleza em seus corpos, delegadas encontrem alternativas não apenas de reprodução de estereótipos e prescrições de gênero, mas lógicas inventivas de reconstrução, reapropriação e operação da beleza enquanto capital simbólico e real11 Jarrín A. A Biopolítica da beleza. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora Unifesp, Editora Fiocruz; 2023.,1515 Bourdieu P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense; 2004..

Nesse sentido, essa beleza que a DeleGata carrega pode não estar associada apenas a atributos meramente estéticos ou plásticos, “mas sim a uma série de valores encarnados como estética naquele corpo e feminilidade”1313 Silva Junior AL. "Em desfile nossa terra, nossa gente": a construção de corporalidades e belezas em concursos femininos diversos. In: Anais do Seminário Internacional Fazendo Gênero 10. 2013. p. 1.12.(p.8). Assim, a DeleGata poderia reverter o apagamento da expressão da feminilidade, tão presente nas carreiras policiais, especialmente quando as mulheres começaram a ingressar em tais espaços, apelando para um certo exagero:

Eu percebo um movimento de trazer uma maior feminilidade pra polícia. Trazer mais a marca, ainda que caricatural do feminino (Heloísa, 41 anos).

Se o processo reconhecido como “masculinização” buscava apagar a diferença que inferiorizava mulheres policiais, um ponto alto da feminilização evocada pelas DeleGatas seria justamente visibilizar as mulheres na polícia, ainda que através de atributos estéticos que atendam a certo padrão hegemônico de beleza, ou, de uma beleza que se aproxime do ideal da beleza branca tida como nobilizada, pois, longe de ser coincidência, a DeleGata que estampa as capas de jornais segue certos padrões estéticos como corpos magros, cabelos longos e lisos e pele branca ou moderadamente bronzeada pelo sol.

Jarrín11 Jarrín A. A Biopolítica da beleza. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora Unifesp, Editora Fiocruz; 2023. propõe que as performances de beleza sejam entendidas como uma forma de trabalho afetivo no qual produto e ato de produção não podem ser descolados. Assim, a beleza enquanto prática de autogestão também implica numa forma de trabalho que molda a subjetividade do produtor, mas também gera valor no corpo, a partir do próprio corpo. Ainda para o autor, a biopolítica parece produzir formas normativas de beleza, já o afeto atua em percepções normativas e não normativa de beleza. Todavia, faz-se mister tensionar as regras normativas que impactam nas construções de determinadas belezas, como quanto a sua validação social. A biopolítica, enquanto caráter normativo, não deve ser desconsiderada aqui, todavia, a proposta de reapropriação do normativo e daquilo que escapa a ele, mais uma vez, parece dar conta de certo espaço “entre”, onde se produziria a potência criativa dessas mulheres no que tange a corporalidade, na performance DeleGata, inclusive no contraditório.

Neste sentido, cabe pontuar que mesmo estampando revistas como DeleGatas, essa alcunha não parece agradar a todas, pois, para algumas, ressaltaria uma possível futilidade atrelada à beleza, coisa que não deveria colar à imagem da delegada, justamente por sua qualificação e posição de destaque:

Eu acho que esse termo, DeleGata, a gente tem que acabar com isso. Não tem DeleGata, delegada é delegada. E acabou. Eu não gosto quando me chamam de DeleGata, não gosto… (Francis,42 anos).

A fala acima é importante para colocarmos em análise essa imagem desqualificadora da beleza feminina e, principalmente, da sensualidade, que não combinariam com a imagem séria que a delegada precisa ostentar. Embora seja retroalimentada tanto pela mídia quanto pelas próprias delegadas, essa negociação entre a delegada que ofusca traços do que se identifica como feminilidade e se mostra discreta e a delegada que explora e exacerba uma determinada estética feminina que faz aparecer contornos e se mostra através da sedução parece difícil. Embora as regras regulatórias não sejam explícitas, aparentemente qualquer excesso poderá ser punido com rótulos desqualificadores. Porém, a imagem da DeleGata pode ser valorizada em alguns momentos, justamente por reunir poder e sensualidade, despertando interesse e curiosidade:

Eu sempre falo isso, que promotor pode mais que a gente, juiz pode mais que a gente, mas o glamour só a gente tem, né? (Nanda, 43 anos).

Mesmo gostando do glamour, Nanda também destaca o receio de que ele se sobreponha ao efetivo exercício do cargo e essa preocupação fica mais evidente no caso das mulheres. O cuidado para não meramente ornamentar a instituição ou, ainda, macular a sua imagem centenariamente masculina, parece importante para se fazer respeitar, especialmente quando se carrega o peso de ser mulher numa sociedade machista e mais, em uma instituição que se sustenta no sexismo e no machismo. A esse respeito, torna-se importante apontar que estudos com mulheres policiais referem a discriminação de gênero e o assédio como importantes fatores estressantes, tendo efeito direto em sua saúde física e mental1616 Bezerra CM, Minayo MCS, Constantino P. Estresse ocupacional em mulheres policiais. Cien Saude Colet 2013; 18(3):657-666.

17 Minayo MCS, Souza ER, Constantino P. Missão prevenir e proteger: condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008.
-1818 Luz ES. Estudo do Estresse Ocupacional em Mulheres Policiais Militares da Cidade do Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: Instituto Fernandes Filgueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2011.. Para além do custo emocional que o sexismo institucional pode trazer, Bezerra et al.1616 Bezerra CM, Minayo MCS, Constantino P. Estresse ocupacional em mulheres policiais. Cien Saude Colet 2013; 18(3):657-666. trazem a importante questão da dupla jornada feminina, pois ainda que possam assumir cargos historicamente erigidos como masculinos, ainda hoje as “mulheres continuam a assumir o trabalho doméstico e a se responsabilizar pelos cuidados da família”1616 Bezerra CM, Minayo MCS, Constantino P. Estresse ocupacional em mulheres policiais. Cien Saude Colet 2013; 18(3):657-666.(p.659).

Entretanto, a DeleGata pode ser vista como uma das possibilidades performáticas daquela mulher que cola na imagem idealizada de certa figura feminina. Ainda que a DeleGata não seja acionada em todas as vertentes da vida da delegada, ela é recorrentemente inventada e acionada em espaços públicos:

A gente se preocupa com a imagem sim [...] teve uma vez que eu participei de uma operação policial numa comunidade conflagrada pelo tráfico, teve muita imprensa e tal. Bem, aí eu iria dar uma entrevista para a imprensa e comentei com o meu superior hierárquico que iria me maquiar, pelo menos passar um batom [...]a gente vai ser vista por todo mundo, e aí surge aquela preocupação com a imagem, com a estética, com a beleza, sobretudo... a forma como a gente quer ser vista e ser lembrada (Catarina, 48 anos).

Catarina, ao ilustrar a maneira como se relaciona com a figura da DeleGata nos ajuda a pensar em como a aparência, a beleza e a qualidade de ser sexualmente atraente fazem parte de um sistema de relações culturais e sociais de poder, num processo que envolve a corporificação de posturas, normas e linguagens, que estão intimamente vinculadas a práticas e concepções hegemônicas sobre o feminino que “estabelecem ou reproduzem-se noções classificatórias particulares sobre o belo e o abjeto1919 Adelman M, Ruggi L. Corpo, Identidade e a Política da Beleza. Rev Genero 2007; 7(2):39-63.(p.42).

No cenário brasileiro ainda é bastante presente a ideia de uma corporalidade que valoriza a aparência e a sensualidade, especialmente das mulheres. Aldeman e Ruggi1919 Adelman M, Ruggi L. Corpo, Identidade e a Política da Beleza. Rev Genero 2007; 7(2):39-63. destacam que inúmeros discursos “masculinistas”, que vão desde as mídias até as artes, giram em torno de uma pretensa naturalização da beleza/sensualidade das mulheres brasileiras. Para além do senso comum, as autoras abordam a importância de se aprofundar os estudos históricos acerca do valor social e cultural que a beleza e o “corpo perfeito” possuem em nosso país.

Embora seja salutar considerarmos que noções machistas e patriarcais de feminilidade estejam em jogo para a compreensão desse processo, não podemos deixar de colocar em discussão o aparente prazer ou desprazer que as mulheres teriam com a busca por esse corpo idealizado. Assim, embora a busca pela beleza possa ser marcada por jogos de poder que inferiorizam ou objetificam as mulheres, tanto as que se enquadram quanto as que ficariam de fora dos padrões hegemônicos, as técnicas de embelezamento constituem importantes temáticas e práticas de intercâmbio reconhecidamente femininas, que podem atuar criando ou reforçando uma relação de pertencimento e reconhecimento de espaços femininos2020 Del Priore M. Corpo a corpo com a mulher: pequena história das transformações do corpo feminino no Brasil. São Paulo: Ed. SENAC; 2000.,2121 Wolf N. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco; 1992.. A DeleGata pode se reconhecer potente a partir dessas marcas afetivas atreladas àquilo que se constrói como belo. Aqui, poder e beleza se misturam, atravessando desejos que parecem simbolizar, em última instância, o estar potente, forte e reconhecida.

Assim, se Catarina se preocupa em manter a DeleGata viva em espaços onde a sua carreira seja reconhecida, ela também ajuda a visibilizar aquele espaço como local possível a mulheres. Como seu relato revela, a DeleGata representa a si e a instituição policial a qual ela pertence. Sendo um local masculino em sua criação e tradição, a polícia ganha novos contornos com a entrada de mulheres. Ainda que possa ser alvo de críticas, a DeleGata altera esse cenário, subvertendo a lógica meramente decorativa da beleza, pois, como Catarina diz em sua entrevista, ali se encontram a beleza dessa mulher e o poder que o seu cargo carrega. Este ponto também é corroborado por Nanda:

Olha, existe uma preocupação com a aparência, sim... Assim, eu me preocupo muito, sempre me preocupei. [...] Você é o espelho da polícia, você é a logomarca do chefe da polícia civil, do governador, né? Então eu acho que a imagem da polícia civil, quanto mais bonita, bonitos, todos, nós estivermos, a imagem sempre vai ser muito positiva (Nanda, 43 anos)

Belas e de salto alto, entre o limite da autoridade e do fetiche. Encarnar a beleza é uma obrigação para as mulheres, não para os homens, pois os homens fortes lutam pelas mulheres belas2121 Wolf N. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco; 1992.. Não se imagina colocar em questão a masculinidade do sujeito a partir de sua beleza ou feiura, homem feio não é alvo de chacota ou de descredibilidade, ao contrário, muitas vezes a virilidade está presente na cara marcadamente bruta e nos traços assimétricos do homem, sua masculinidade não entra em questão - a menos que não performatize força. Interessante perceber que a beleza, como um padrão historicamente pré-estabelecido, era uma marca apagada pelas mulheres que ingressavam nas forças policiais. Hoje, esse sentido parece ter sido reconfigurado, ora funcionando como forma de visibilização da mulher pelo exagero dos traços que marcam sua feminilidade - e todo o ganho que isso possa trazer -, ora colocando-as no delicado terreno da objetificação do feminino.

Apesar de a beleza funcionar como artifício na construção das subjetividades dessas mulheres e ser acionada como força para o empoderamento feminino, Wolf2121 Wolf N. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco; 1992. problematiza a beleza como obstáculo último para que as mulheres prósperas não se sintam tão livres assim, uma vez que quanto mais numerosos fossem os obstáculos legais e materiais vencidos pelas mulheres, maiores eram as exigências de belezas, com modelos cada vez mais rígidos, pesados e cruéis. Ainda para a autora, por mais bem-sucedida que seja a mulher, existe uma subvida secreta, na qual - imersa em conceitos de beleza - a obsessão pelo físico, o medo do envelhecimento e o pavor de perder o controle parecem retirar da mulher empoderada seu sentido pleno de liberdade. Na tese de Wolf2121 Wolf N. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco; 1992., estaríamos em meio a uma violenta reação ao feminismo, que emprega imagens da beleza feminina como uma arma política contra a evolução da mulher, o que ela denominou de mito da beleza, que funcionaria como arma de controle social, destruindo psicologicamente as mulheres a partir de suas ações de controle2121 Wolf N. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco; 1992.. Encarada desta forma, a beleza também seria um sistema político, que consiste no melhor conjunto de crenças para manter intacto o domínio masculino.

Para Adelman e Ruggi1919 Adelman M, Ruggi L. Corpo, Identidade e a Política da Beleza. Rev Genero 2007; 7(2):39-63. a beleza, a força física, a fragilidade e a qualidade de ser sexualmente atraente são atributos e valores que precisam ser compreendidos como parte de um sistema de relações sociais e culturais, e não como características individuais. Assim, a distribuição do capital corporal envolve um esquema complexo de posições sociais e expectativas normativas que constituem um elemento significativo das relações materiais e simbólicas de poder. Colocada dessa forma, a beleza não transita no local fatalista endereçado por Wolf2121 Wolf N. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco; 1992. em seu Mito da Beleza, pois, entendida como forma de poder, ela pode constituir múltiplas relações, que não apenas aprisionam, mas também empoderam, constroem valores e ressignificam relações.

Todavia, parece haver uma linha divisória entre o permitido ou não à DeleGata, à essa figura vaidosa. Ela precisa fazer negociações que permitam que sua imagem efetivamente ornamente a polícia, mas “sem exageros”. Definir tais exageros parece mais um dos tantos jogos simbólicos que operam nesse cenário:

Acho que tem que ter um decoro para se vestir. Terno e gravata para homens, principalmente em entrevistas, e para as mulheres terninhos ou tailleur, saia ou vestidos mais sociais, nada de decotes e etc e tal [...]. Esses simbolismos e a aparência são muito importantes (Paolla, 30 anos).

O decoro masculino parece passar apenas pela orientação quanto às roupas sociais, já para as mulheres há um cuidado especial com as partes do corpo que não podem ficar visíveis, como os seios e as pernas, por exemplo. A delegada Heloísa, 11 anos mais velha que Paolla e atuante há mais tempo na polícia, comenta sobre a maior visibilidade das mulheres a partir da figura da DeleGata, mas faz uma análise de quais discursos são produzidos a partir do acionamento da DeleGata. Para ela, embora a DeleGata sirva para dar mais visibilidade à mulher delegada, os casos “mais sérios” continuariam a ser representados por homens:

Sobre essa coisa das DeleGatas, chama atenção, a mídia gosta, aparece mais, mas ... olha, não sei, assim, mas acho que talvez isso faça muito sentido. Se você for pensar em chamar um delegado para compor uma mesa, para uma reunião... um delegado que irá falar sobre algum tema sério, que vai falar sobre um tema... geralmente é homem, né? Mas os casos de maior repercussão, geralmente são homens... [...]. Você tem muito mulher falando em casos de Maria da Penha, em casos que não mobiliza tanto, né? (Heloísa, 41 anos).

Todavia, a DeleGata é recorrentemente divulgada nos meios de comunicação. A imprensa, as novelas e os programas de TV vendem essa imagem com frequência. O próprio termo DeleGata parece ter surgido a partir da imprensa, como destaca uma de nossas entrevistadas:

Essa coisa da DeleGata surge com a Monique Vidal, né? Se você for pensar, aquela mulher da zona sul... porque ela é da zona sul, bonita, loira... o estereótipo da mulher bonita... nascida e criada em Copacabana. Ganhou notoriedade na época em que ela trabalhava na Barra, quando ela representou pela prisão dos pitboys, né? Que brigavam nas boates da Barra... tem toda a notoriedade que ela ganhou e... mas tem essa coisa de ela ser uma mulher bonita (Heloísa, 41 anos).

Para Bordo2222 Bordo S. Twilight zones: cultural images from Plato to OJ. Berkley: University of Calofornia Press; 1999., as informações transmitidas pela publicidade não se baseiam em uma argumentação racional, mas em artifícios persuasivos que reforçam e recorrem a estereótipos culturalmente estabelecidos, como certos padrões estéticos, por exemplo. Assim, ao criar a figura da DeleGata, a imprensa recorre à estética da heroína, uma personagem que combate o crime, mas que não perde a beleza e a sensualidade. Embora esse processo seja reapropriado e reconstruído pelas próprias personagens - que não são figuras passivas -, ele ajuda a dar uma imagem mais atrativa àquela figura que altera o espaço histórico da polícia, reconhecido e reivindicado culturalmente como masculino (e altamente machista).

Assim, a DeleGata atende a um apelo sexista sobre o papel social da mulher, porém, ao se apropriarem desse local, essas mulheres ajudam a redesenhar a própria polícia e as imagens de si, pois agora, além de oferecerem suas belezas ornamentais para os olhos de expectadores, elas utilizam o poder social que a bela delegada possui, tornando-as protagonistas. Se a instituição policial as mantinha silenciadas, as DeleGatas agora podem falar. E as que não se enquadram nesse estereótipo da estética da heroína, seriam postas a margem?

Ao estudarem a construção das imagens femininas em estórias em quadrinhos, Melo e Ribeiro2323 Melo KC, Ribeiro MIC. Vilãs, Mocinhas ou Heroínas: linguagem do corpo feminino nos quadrinhos. Rev Lat-Am Geogr Genero 2015; 6(2):105-118. destacaram que as heroínas geralmente figuravam como mulheres jovens e belas, desenhadas em posições e trajes sensuais, que enfatizavam seus atributos físicos, numa comunicação geralmente dirigida ao público masculino. A feminilidade das personagens era representada quase que exclusivamente pelo apelo à sensualidade e atributos de seus corpos2323 Melo KC, Ribeiro MIC. Vilãs, Mocinhas ou Heroínas: linguagem do corpo feminino nos quadrinhos. Rev Lat-Am Geogr Genero 2015; 6(2):105-118.. Embora essa visão possa ser reducionista de um processo maior de relação entre os gêneros, ela nos ajuda a pensar alguns pontos, como a imagem midiática que a mulher policial possui. Destarte, decidir até onde roupas, apetrechos e adornos são sinônimo da feminilidade autorizada para a delegada ou se são, ao contrário, rechaçadas e consideradas vulgares pode representar uma linha tênue:

Eu acho que existem roupas e roupas... uma roupa muito curta não fica legal em ambiente de trabalho nenhum, né? Um decote muito curto, mas por um motivo mais de ser um ambiente social, não por ser um ambiente masculino, mas por ser o ambiente de um órgão público (Paolla, 30 anos).

Assim, os jogos discursivos que irão ajudar a compor a imagem da DeleGata vão se alterando conforme o contexto e, embora a instituição pareça reforçar essa imagem em alguns momentos, o reconhecimento da DeleGata aciona diretamente construções machistas que colocam as mulheres e a livre expressão de sua sexualidade como uma questão moral, que atravessa toda a sua vida, privada ou pública, desqualificando-as. Submetidas à discriminações de gênero e assédio na instituição policial e sofrendo tais impactos em sua produção de subjetividade e saúde1616 Bezerra CM, Minayo MCS, Constantino P. Estresse ocupacional em mulheres policiais. Cien Saude Colet 2013; 18(3):657-666.

17 Minayo MCS, Souza ER, Constantino P. Missão prevenir e proteger: condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008.
-1818 Luz ES. Estudo do Estresse Ocupacional em Mulheres Policiais Militares da Cidade do Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: Instituto Fernandes Filgueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2011., a DeleGata precisa se manter dentro de certos limites para se fazer respeitar: extrapolando a sensualidade, responderá pela falta de moral, extrapolando a feminilidade, será desqualificada quanto uma figura respeitável no espaço público.

Embora algumas se dissessem satisfeitas em serem reconhecidas como DeleGatas - pela valorização da beleza, prestígio e poder - nenhuma das entrevistadas se reconhecera como Barbie, a alcunha exagerada e estereotipada da DeleGata, mesmo quando abusavam do salto, da maquiagem, dos cabelos arrumados e do distintivo rosa. Para elas, era inevitável associar a figura da boneca norte-americana ao exagero, à futilidade que tanto se esforçavam a demonstrar que não possuíam. Elas diziam conhecer “Delegadas-Barbies”, criticavam essas personagens, mas nenhuma se reconhecera como tal.

Heloísa, que afirmava achar importante as delegadas poderem se maquiar, usarem salto alto e demais adornos, acredita que a “Delegada-Barbie” seja uma forma de afirmação da feminilidade, ainda que recorrendo ao que ela entende como “infantilizada”. No trecho a seguir, a delegada avalia se essa infantilização não seria uma tentativa de apagar a sexualidade feminina. Interessante pensarmos como a avaliação moral cabe nesse discurso, visto que não haveria espaço para a mulher sexualizada:

Eu acho que é uma forma mesmo de afirmar essa feminilidade, mas eu acho que não pode ser assim... porque quando você faz uma coisa Hello Kitty, celular, distintivo cor-de-rosa eu acho que você apaga um pouco essa questão da sexualidade [...] essa coisa assim mais infantilizada (Heloísa, 41 anos).

O aparecimento da “Delegada-Barbie” coloca em questão outros elementos e algumas perguntas. Uma delas é qual linha divisória determina até onde a vaidade pode ir para que a DeleGata não cruze a perigosa fronteira da “Delegada-Barbie”? Se a DeleGata se permite ser bela e poderosa, seria a “Delegada-Barbie” uma aparente performance exagerada e infantilizada da DeleGata?

A DeleGata pode existir, mas a sua ascensão profissional pode vir carregada de suspeitas. A desqualificação, a partir da erotização e objetificação da mulher delegada é um recurso machista ainda bastante presente na polícia, assim, o seu corpo e a sua sexualidade são apontados como moeda de troca na inespecífica estratégia de indicações para progressões na carreira. Virtual ou não, esse imaginário aparece nos discursos das entrevistadas:

O mundo para uma pessoa bonita, homem ou mulher, é outro mundo [...] a verdade é essa. As pessoas têm mais receptividade, a aparência, infelizmente, conta muito, né? [...]Agora, tem o lado negativo da beleza também, porque as pessoas têm preconceito, né? [...] eu vi tantos comentários sobre mulheres que chegaram ao poder e que falam: “é porque deu pra alguém” [...] eu nunca precisei desse tipo de coisa para conquistar nada e eu tenho certeza que a maioria não teve nenhum tipo de favorecimento, agora, se o cara achou a mulher bonita e quer ajudar só porque ela é bonita, aí o problema é do homem bobão, né? [risos] (Paolla, 31 anos).

Enquanto capital afetivo, a beleza se acumula em determinados corpos e se afasta de outros, gerando certa hierarquia estética11 Jarrín A. A Biopolítica da beleza. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora Unifesp, Editora Fiocruz; 2023.. Para pertencer ao corpo político e social, a DeleGata (ou mesmo a Barbie) opera tais signos, ainda bastante associados à aparência física, como o campo parece sugerir. Como autoridade policial, a delegada precisa lidar com as funções destinadas à polícia. Monjardet2424 Monjardet D. O que faz a polícia: sociologia da força pública. São Paulo: EDUSP; 2012. nos lembra que o monopólio da força e da violência física legítima é feito pelo Estado, podendo a força pública executar tal monopólio. A simbologia dominante reconhece com mais facilidade homens como detentores de tal elemento. Nesse sentido, podemos refletir que o excesso de “feminilidade” e das prescrições de gênero que vêm alinhadas a isso poderia colocar sob suspeita essa mulher que busca por igualdade de direitos. Sendo delegada, portanto, policial, ela precisa possuir mais que um rostinho bonito, precisa ser forte, tal qual seus colegas do gênero masculino, aquilo que a “Delegada-Barbie” parece carecer.

Considerações finais

As tensões na área de atuação das mulheres policiais são bastante atravessadas por noções que se têm acerca de certa essencialização daquilo que seriam seus atributos de feminilidade. Mas, ao contrário de posturas passivas diante de tais questões, vimos que nossas entrevistadas operam de forma performática suas feminilidades. Caminhos marcados por movimentos contínuos de territorializações, linhas de fuga, desterritorializações e reterritorializações, as atuações femininas e as lutas pela conquista de espaço e reconhecimento estão inseridas num cenário difuso de avanços e retrocessos.

Essas construções discursivas ajudam a estabelecer barreiras a serem superadas por mulheres que ocupam postos de trabalho historicamente marcados por um ideário, ou certa noção, de masculinidade, como a polícia. Desnaturalizar esse local é fundamental para colocarmos em análise os processos em que as diferenças entre o masculino e o feminino são forjadas a partir de determinados mecanismos difusos de poder. Entretanto, em instituições que legitimam o uso da força, como a polícia, a dimensão simbólica da dominação masculina é marcadamente presente. Assim, a visão androcêntrica se impõe como ordem, como neutra, dispensando a necessidade de se enunciar em discursos que a legitime1515 Bourdieu P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense; 2004..

Embora as delegadas passem por certa “masculinização” para serem respeitadas por seus colegas e subordinados, isto está longe de significar que se masculinizem, ou seja, passem a abrir mão de estéticas femininas. Pelo contrário, lembremo-nos da imagem das DeleGatas: belas, femininas, poderosas e de salto alto. Ou ainda de um ethos que lhes é atribuído, já que performando a DeleGata, essa mulher ajuda a visibilizar a delegada que a instituição apagara. Sem renunciar ao seu poder de comando, ela performa a mulher bela e poderosa, que manda e seduz.

Assim, a DeleGata pode empoderar e emancipar a figura da delegada mulher, tradicionalmente apagada e sem lugar, ainda que reafirme certos padrões hegemônicos de beleza e possa reforçar a objetificação feminina. Acreditamos que essa figura borra categorias, brinca com as performatividades, mistura o impensável. Inclusive porque o que a DeleGata certamente destaca é que ela não precisará renunciar a sua feminilidade para se fazer respeitar, ao contrário, usando recursos estéticos e com o auxílio da mídia, seus atributos de poder e sedução poderão ser acentuados, mas sem exageros, pois eles não parecem caber a elas, ou custará seu respeito, tal qual a “Delegada-Barbie”.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Fev 2024

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2023
  • Aceito
    22 Dez 2023
  • Publicado
    24 Dez 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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