Itinerários terapêuticos de mulheres quilombolas do norte de Minas Gerais, Brasil

Pâmela Scarlatt Durães Oliveira Sérgio Vinícius Cardoso de Miranda Patrícia de Sousa Fernandes Queiroz Bruna Amorim Santos João Felício Rodrigues Neto Cristina Andrade Sampaio Sobre os autores

Resumo

Os quilombolas são grupos étnico-raciais de ancestralidade negra e tiveram seus territórios consolidados no Brasil em regiões com acesso difícil e distante dos grandes centros. O objetivo desse estudo é conhecer o itinerário terapêutico (IT) adotado por mulheres quilombolas em comunidades tradicionais localizadas no norte do estado de Minas Gerais. Trata-se de um estudo com abordagem qualitativa com o modelo teórico utilizando o sistema de cuidados à saúde de Arthur Kleinman. O estudo se deu em 23 comunidades quilombolas do norte de Minas Gerais. Foram entrevistadas 40 mulheres quilombolas, com idades entre 25 e 89 anos. A análise dos dados foi realizada seguindo os IT. Emergiram unidades de análise que foram agrupadas em três categorias: as mulheres quilombolas e o significado da saúde e do cuidado; o sistema de cuidado profissional nas comunidades quilombolas; e itinerário de cuidados nas situações vivenciadas pelas mulheres. O itinerário terapêutico das comunidades se mostra relacionado principalmente às ações de medicina popular. Foi possível observar ainda que existem fragilidades em relação à atenção à saúde devido a fatores como dificuldade de acesso aos serviços institucionalizados.

Palavras-chave:
Grupos étnicos; Saúde da mulher; Serviços de saúde materno-infantil; Assistência integral à saúde

Introdução

O itinerário terapêutico (IT) é a busca de cuidados terapêuticos com o propósito de descrever e analisar práticas individuais e socioculturais relacionadas aos caminhos percorridos pelos indivíduos na busca pela solução de seus problemas de saúde11 Siqueira SMC, Jesus VS, Camargo CL. Itinerário terapêutico em situações de urgência e emergência pediátrica em uma comunidade quilombola. Cien Saude Colet 2016; 21(1):179-189..

A cultura é um dos determinantes do IT. A literatura descreve a existência de um sistema cultural, denominado de sistema de cuidados à saúde, do qual fazem parte três subsistemas inter-relacionados: popular, folk (sistema informal) e profissional (sistema formal)22 Kleinman A. Concepts and a model for the comparison of medical systems as cultural systems. Soc Sci Med 1976; 12(1):85-93..

Por meio do estudo desses subsistemas, é possível identificar aspectos que contribuem para a interpretação da doença e permitem o desenvolvimento de mecanismos de cura distintos que são desenvolvidos de acordo com o contexto cultural de cada indivíduo e grupo. O IT é uma ótima forma para se conhecer e estudar as práticas e estratégias de grupos na busca pela resolução de seus problemas de saúde, principalmente indivíduos em situações mais vulneráveis, entre os quais se destacam as quilombolas33 Pimenta MM, Oliveira RCA Contribuição da sociologia para o ensino em saúde. ver Linhas 2020. 21(45):260-284.,44 Zuim RCB, Trajman A. Itinerário terapêutico de doentes com tuberculose vivendo em situação de rua no Rio de Janeiro. Physis 2018; 28(2):e280205..

Os quilombolas são grupos étnico-raciais de ancestralidade negra que tiveram seus territórios consolidados no Brasil em regiões periféricas, onde a precariedade de acessos a serviços de saúde é uma das consequências do isolamento geográfico. A literatura é incipiente nessa temática, sobretudo relacionada à saúde das mulheres55 Salatino ACC, Rosa SHD, Oliveira AS, organizadores. Relações étnico-raciais: saberes e visibilidades necessárias. São Paulo: Pimenta Cultural; 2021..

O objetivo deste estudo é conhecer o itinerário terapêutico adotado por mulheres quilombolas em comunidades tradicionais localizadas no norte do estado de Minas Gerais.

Método

Este artigo é parte da pesquisa multiprofissional intitulada “Situação de saúde e trabalho de famílias quilombolas rurais”.

Trata-se de um estudo com abordagem qualitativa, que teve como suporte teórico o modelo de sistema de cuidados à saúde de Arthur Kleinman22 Kleinman A. Concepts and a model for the comparison of medical systems as cultural systems. Soc Sci Med 1976; 12(1):85-93., que concebe que a saúde, a doença e os aspectos relacionados ao cuidado estão articulados como um sistema cultural que envolve o simbólico (constituído por valores, significados e normas de comportamento), o religioso e o familiar, sendo assim necessária a interação de três subsistemas: o popular, o informal (folk) e profissional (formal).

O cenário do estudo foi o estado de Minas Gerais, sendo que, até o ano de 2019, existiam 310 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares, distribuídas por mais de 155 municípios66 Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES). Comunidades quilombolas em Minas Gerais [Internet]. 2014 [acessado 2014 ago 8]. Disponível em: https://www.cedefes.org.br/cd-de-dados-comunidades-quilombolas-de-minas-gerais/
https://www.cedefes.org.br/cd-de-dados-c...
. A região norte de Minas Gerais concentra o maior número de territórios quilombolas do estado, com 79 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares e distribuídas por 28 municípios77 Fundação Cultural Palmares (FCP). Quadro geral de comunidades remanescentes de quilombos (CRQs) [Internet]. 2019. [acessado 2019 jan 4]. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/wp content/uploads/2015/07/Tabela-de-crq-completa-quadro-geral-3.pdf
http://www.palmares.gov.br/wp content/up...
.

Foram visitadas oito microrregiões, 16 municípios e 23 comunidades quilombolas. A coleta de dados foi realizada entre agosto de 2019 e fevereiro de 2020. Foram entrevistadas 40 mulheres com idade entre 18 e 89 anos.

A produção de dados foi possibilitada por meio de encontros no próprio território, por meio da técnica de snowball88 Breno OF, Nascimento EF, Pedrosa JIS, Monte LMI. Vivências de travestis no acesso ao SUS. Physis 2017; 27(4):1023-1038., que consiste em solicitar a cada participante da pesquisa uma indicação para uma próxima participante até alcançar o objetivo da pesquisa, e assim foi se construindo um emaranhado de sentidos e vivências. Participaram das entrevistas mulheres de todas as comunidades, no intuito de conhecer melhor as especificidades de cada local.

Os instrumentos de coleta de dados foram: 1) aplicação de formulário construído com base no questionário da Pesquisa Nacional de Saúde, que possibilitou a caracterização do perfil das participantes; 2) entrevista semiestruturada com duração aproximada de 40 minutos, que teve como instrumento um roteiro composto por cinco questões norteadoras que versavam sobre as vivências e experiências da mulher a respeito de questões relacionadas ao acesso aos serviços e cuidados em saúde, bem como seu trajeto pelos aparelhos sociais, permitindo traçar o itinerário terapêutico, com todas as falas gravadas com gravador eletrônico; 3) cadernos de campo; 4) observação participante; 5) fotografias evidenciando o modo de vida e de cuidar nas comunidades, que na fase de escrita deste artigo funcionaram como instrumentos memorialísticos por ajudarem a recordar e associar os dados e imagens com a realidade vivenciada.

A análise dos dados foi realizada seguindo os ITs. Emergiram unidades de análise que foram agrupadas em três categorias: as mulheres quilombolas e o significado da saúde e do cuidado; o sistema de cuidado profissional nas comunidades quilombolas; e itinerário de cuidados nas situações vivenciadas pelas mulheres. Esta foi dividida em três subcategorias: o itinerário de cuidados das mulheres em situação de adoecimento agudo e crônico; o itinerário de cuidados das mulheres em situação de urgência e emergência; e o itinerário de cuidados das mulheres na gestação, parto e puerpério.

Foi realizada a validação das categorias elencadas por três pesquisadores de metodologias qualitativas, estudantes de mestrado e doutorado, sendo dois enfermeiros e uma psicóloga. Cada avaliador teve acesso à planilha de análise dos dados confeccionada pelos autores e ao arquivo com o conteúdo das falas das mulheres, sem identificação, e assim promoveu-se uma nova etapa de análise dos dados após essa validação externa.

As mulheres que concordaram em participar da pesquisa assinaram o termo de consentimento livre esclarecido. O anonimato das participantes foi garantido por meio do uso de nomes fictícios. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros, conforme o parecer nº 2.821.454.

Resultados e discussão

As mulheres quilombolas e o significado da saúde e do cuidado

Participaram do estudo 40 mulheres com idade entre 18 e 89 anos; 13 dessas com idade igual ou acima de 60 anos. Esse dado demonstra uma mudança da experiência vivenciada durante certas situações, como a gestação das mulheres, visto que a geração mais jovem pode ter tido acesso a recursos de tecnologia em saúde, como a ultrassonografia e exames laboratoriais.

Doze dessas mulheres concluíram o ensino médio, demonstrando baixa escolaridade. A falta de adesão ao ensino escolar se justifica pelo fato de as comunidades não terem uma escola de ensino médio em seu território e pela dificuldade de se transpor a distância para se chegar às cidades vizinhas. Metade das entrevistadas referiu ter se tornado mãe com menos de 18 anos, e que precisou dedicar seu tempo ao cuidado com a casa e as crianças em vez de estudar. A baixa escolaridade pode influenciar o tipo de ocupação das mulheres, e consequentemente a renda familiar, sendo que estudos demonstram que muitos quilombolas têm baixa escolaridade99 Fernandes SL, Santos AO. Itinerários terapêuticos e formas de cuidado em um quilombo do agreste alagoano. Psicol Cienc Prof 2019; 39(esp.):38-52..

Das entrevistadas, 27 eram casadas/tinham união estável e atuavam como donas de casa. Várias são as estratégias de resistência. É de se considerar que a diáspora africana, com a criação e recriação de identidades culturais dessas mulheres, influenciou no papel que ocupam na sociedade quilombola atual. Nos sistemas africanos, as mulheres e homens eram provedores, o homem caçava e elas geriam a agricultura e os cuidados domésticos. Essas mulheres passaram de provedoras a escravas, subalternizadas, inferiorizadas principalmente pelo seu fenótipo, aliado à tentativa de extirpar sua força e poder matriarcal1010 Pinheiro R, Gerhardt TE, Ruiz ENF, Silva Junior AGS. Itinerários terapêuticos: integralidade no cuidado, avaliação e formação em saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, Abrasco; 2016.. No quilombo, essas mulheres tiveram a oportunidade de voltar aos seus papéis de origem.

Apesar de 30 entrevistadas receberem benefício social, algumas têm apenas este como meio de renda. A baixa renda, associada à baixa escolaridade, enquadra esse grupo minoritário na situação de vulnerável. A falta de recursos financeiros influencia a saúde dessas populações, pois cerceia o acesso a outras dimensões da vida, além de limitar o consumo, a produção e o cultivo da terra, que é uma característica imprescindível aos quilombolas99 Fernandes SL, Santos AO. Itinerários terapêuticos e formas de cuidado em um quilombo do agreste alagoano. Psicol Cienc Prof 2019; 39(esp.):38-52..

Sendo assim, a saúde e a doença das populações quilombolas devem ser entendidas como um fenômeno biológico, individual, social e cultural, o que implica compreender como essas mulheres, na sua diversidade, pensam e vivem o que é o corpo e o cuidado. A procura de cuidados terapêuticos por parte do indivíduo ou da família se origina de situações diversas, sendo a morbidade um fenômeno objetivo e subjetivo, não existindo uma demarcação nítida entre as variações da saúde e da doença. Um indivíduo pode sentir-se mais doente, abandonar mais precocemente suas atividades cotidianas, ausentar-se do trabalho por mais tempo, sentir-se mais incomodado do que outro com os mesmos sintomas objetivos99 Fernandes SL, Santos AO. Itinerários terapêuticos e formas de cuidado em um quilombo do agreste alagoano. Psicol Cienc Prof 2019; 39(esp.):38-52.,1111 Santos RB. Mulher e poder: a perspectiva de alunas(os) e professoras(es) do colégio modelo Luís Eduardo Magalhães-Salvador. Rev Forum Ident 2013; 12(6):36-53..

Lenta ou bruscamente transita-se da “normalidade” ao “patológico”, desencadeando um processo complexo quanto à escolha do tipo de recurso a adotar, influenciado não só por fatores objetivos, mas pelas representações que interferem nos significados da saúde e da doença, na opção por determinado recurso e nos itinerários em busca de cuidados terapêuticos1212 Teixeira IMC, Oliveira MW. Práticas de cuidado à saúde de mulheres camponesas. Interface (Botucatu) 2014; 18(2):1341-1354..

Esse cuidado antecede os momentos de adoecimento e não se restringe à trajetória assistencial, sendo a promoção da saúde e a prevenção das doenças outros elementos marcantes nas falas das mulheres.

A alimentação, a gente tem todo aquele cuidado, evitar gordura e doce, agrotóxicos. Comer natural. As caminhada a gente faz indo pra roça que é longe lá na beira do rio (Iris).

As benzeção é bom demais, eu acredito muito... É a fé da gente que cura e traz alegria (Joana).

Os hábitos de vida diários, como a alimentação, manter-se ativa, a religiosidade, interferem no equilíbrio da saúde das mulheres. Os cuidados com alimentação e prática de atividade física, vistos como importantes na cultura, por sua vez, envolvem desde a alimentação diversificada, o uso de plantas medicinais, verduras e frutas caracterizadas como benéficas na alimentação, a redução de açúcar, sódio e gordura, até a preferência por alimentos de tradição familiar, associados às caminhadas para cuidar de suas próprias hortas e roças1313 Lima ARA, Heck RM, Vasconcelos MKP, Barbieri RL. Ações de mulheres agricultoras no cuidado familiar: uso de plantas medicinais no sul do Brasil. Texto Contexto Enferm 2014; 23(2):365-372.,1414 Zilmer JGV, Schwartz E, Muniz RM. O olhar da enfermagem sobre as práticas de cuidado de famílias rurais à pessoa com câncer. Rev Esc Enferm 2012; 46(6):1371-1378..

A fé também cumpre importante papel na superação das dificuldades vivenciadas diante do cuidado, bem como na potencialização da terapêutica, sendo que crenças, ritos religiosos, devoção a santos e rezas são importantes na melhoria da saúde de modo geral, na prevenção e tratamento de doenças e condições para a mulher quilombola1515 Rückert B, Cunha DM, Modena CM. Saberes e práticas de cuidado em saúde da população do campo: revisão integrativa da literatura. Interface (Botucatu) 2018; 22(66):903-914.,1616 Araújo MJS, Souza AFS, Castro AK, Silva EC. Representatividades quilombolas do grupo Dandara da comunidade Sussuarana de Piripiri, Piauí, Brasil. Res Soc Develop 2020; 9(7):e515974376-e515974376..

Outro elemento que emergiu das falas foi que a maioria atribui o significado de saúde a conseguir desempenhar as atividades de sua responsabilidade dentro do contexto familiar e da comunidade.

A saúde é o mais importante na vida, pra gente trabalhar, cuidar da família e da casa, da horta e dos bichos, ir nas coisas da comunidade (Tereza).

Ficar doente é a pior coisa que tem, meus serviço fica tudo feito pelas metade, eu trabalho mas não é do mesmo jeito (Lúcia).

As parenta que ajuda na hora da doença fazendo alguma coisa pra dar de comer os menino (Lúcia).

As mulheres acumulam jornadas diárias de trabalho, pois são responsáveis pelos afazeres domésticos, os cuidados com os familiares, os animais de pequeno porte e são responsáveis também pela organização e execução de ações relacionadas aos aspectos políticos e religiosos. A saúde significa estar bem e conseguir ser produtiva em sua comunidade, e a doença constitui um desarranjo que a limita de alcançar seus objetivos diários e o cuidado com os entes queridos1717 Prates LA, Possati AB, Timm MS, Cremonese L, Oliveira G, Ressel LB. Significados atribuídos por mulheres quilombolas ao cuidado à saúde. Rev Pesq Cuidado Fundamental 2018; 10(3):847-855..

No que diz respeito ao subsistema familiar, uma referência primária é a rede de parentesco1818 Gerhardt TE, Ruiz EFN. Itinerários terapêuticos: dispositivo revelador da cultura do cuidado e do cuidado na e da cultura. In: Pinheiro R, Gerhardt TE, Silva Júnior AG, Di Leo PF, Ponce M, Venturiello MP, organizadores. Cultura do cuidado e o cuidado na cultura: dilemas, desafios e avanços para efetivação da integralidade em saúde no Mercosul. Rio de Janeiro: Cepesc Editora, 2015. p. 255-270.. Mães e avós se associam ao papel de cuidadoras da família e de si próprias, além de provedoras nas roças e na extração de insumos da natureza e de pequenos animais, assim como originalmente na matriz e cultura afro-diaspórica. Na época da escravidão, essas mulheres ocupavam papéis de damas de companhia, amas-de-leite, mulatas, cozinheiras, lavadeiras, ganhadeiras, entre outros, que as resumiam a um corpo negro prestando cuidado ao outro que era mais importante, nesse caso, eram os seus senhores1111 Santos RB. Mulher e poder: a perspectiva de alunas(os) e professoras(es) do colégio modelo Luís Eduardo Magalhães-Salvador. Rev Forum Ident 2013; 12(6):36-53.,1919 Nascimento SL. Pretas memórias: as mulheres diaspóricas negras e seus cachimbos [TCC]. Laranjeiras: Universidade Federal de Sergipe; 2020.. A maioria não podia ter para si uma família e se dedicar aos cuidados daquilo que achavam ser importante para si, e com a nova vida que poderia ser conquistada através da fuga para um quilombo, isso tornou-se possível, sendo visto como mais um dos motivos que fortaleciam a luta pelo direito à liberdade e à posse de terra.

Aqui as mulher cuida de todo mundo e tem vez que da gente mesma, quando dá tempo (Lúcia).

Esse relato acima é importante, visto que a mulher quilombola pode descuidar de si mesma, mesmo sabendo da importância de estar bem para dar continuidade a seus afazeres. O cuidado sobre o outro acaba se sobressaindo, sendo esse gesto visto como fundamental para a qualidade de vida e bem-estar do eixo familiar e da comunidade2020 Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, Fausto MCR. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(11):e00255020..

A íntima relação entre trabalho e saúde é elencada pelas falas nessa categoria ao relacionarem as doenças sérias com as condições que impedem a realização das atividades cotidianas, sendo a incapacidade para o trabalho o principal disparador pela busca pelo sistema de cuidado profissional, discutido no tópico a seguir.

O sistema de cuidado profissional nas comunidades quilombolas

As Redes de Atenção à Saúde são arranjos organizativos de unidades funcionais e ações de saúde de diferentes densidades tecnológicas que, integradas por meio de sistemas logísticos, de apoio e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado nos municípios. Essas redes regionalizadas deveriam garantir respostas às necessidades de saúde dos usuários, uma vez que podem ser consideradas a essência da organização e do funcionamento do sistema de saúde. Para tanto, devem suprimir barreiras aos itinerários regionais e facilitar o acesso, com oferta suficiente de serviços e racionalidade nos gastos2020 Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, Fausto MCR. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(11):e00255020.,2121 A, Gerhardt TE. Doenças crônicas, problemas crônicos: encontros e desencontros com os serviços de saúde em itinerários terapêuticos de homens rurais. Saude Soc 2014; 23:664-676..

Os serviços ofertados nessas redes podem ser divididos em níveis de complexidade, sendo que, no nível primário, estão os serviços de atenção primária à saúde (APS), com seus centros de saúde, postos de saúde e Unidades de Saúde da Família. No nível secundário estão os Centros de Referência, ambulatórios e hospitais gerais, e no nível terciário, os hospitais e ambulatórios especializados, que prestam serviços de alta complexidade.

Todos os municípios apresentavam ambulatórios e hospitais gerais de pequeno porte nas redes de saúde na zona urbana, bem como serviços de APS. A zona rural contava com “pontos de apoio”, espaços simplificados que permitiam o atendimento às populações remotas. Algumas comunidades rurais não têm posto de apoio em seu território, e os cuidados prestados são efetuados por profissionais da saúde advindos da cidade referência, conforme cronogramas pré-definidos pelo gestor de saúde. Nessas comunidades, os moradores precisam se deslocar alguns quilômetros até o local vizinho para conseguir atendimentos em saúde.

Quando passa mal de verdade, o único lugar que tem aqui pra acudir é o postinho (Vitória).

As comunidades que contam com oferta de serviços de saúde os concentram nas unidades de Estratégia Saúde da Família (ESF), denominadas “postinhos” pelos moradores, que ofertam serviços de consulta médica e enfermagem, distribuição de remédios e exame de prevenção de câncer de colo de útero (PCCU) em mulheres, e algumas poucas equipes têm odontólogo. A infraestrutura das ESFs é considerada inadequada, pois os locais carecem de materiais e insumos básicos para a realização de alguns procedimentos de saúde.

Aqui é difícil ter médico, vem aí na associação a cada dois meses e sempre um diferente, muda direto (Carla).

As mulheres relatam que há alta rotatividade de profissionais de saúde nessas ESFs, sendo este um problema para as moradoras, pois influencia nos tratamentos contínuos e no atendimento da população. A distância e as vias não asfaltadas são os motivos mais destacados para explicar a troca frequente de profissionais de nível superior.

Ainda bem que tem a agente da saúde que é minha vizinha e às vezes consegue trazer a técnica pra medir a minha pressão (Sebastiana).

A ESF é a principal porta de entrada para o sistema de cuidado profissional nas comunidades quilombolas, sendo que o trabalho dela se concentra, na maior parte, no serviço de visitas domiciliares e acompanhamento mensal dos agentes comunitários de saúde (ACS). Nessas visitas, o ACS dá orientações de prevenção aos agravos e doenças, e oferta a marcação de consultas agendadas para as mulheres, como a de coleta de PCCU, acompanhamento aos hipertensos e diabéticos, convite para os raros grupos educativos que informaram já ter participado na unidade. Algumas vezes, as mulheres relatam que já tiveram a pressão arterial aferida pelos técnicos de enfermagem da ESF durante visitas domiciliares.

Seis municípios contavam com Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) onde estavam as comunidades quilombolas, além do Programa Academia da Saúde, com assistente social, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, farmacêutico, nutricionista e psicólogo, em articulação com o Programa Saúde na Escola (PSE) e Programa Bolsa Família, sendo que as mulheres relataram que o tempo de espera para acesso à consulta com esses profissionais é longo e que, muitas vezes, o agendamento não acontece, e ainda referem que, para irem às consultas, precisariam se deslocar até o município sede, e que não têm meios de transporte ou condições financeiras para fazê-lo.

Eu tive o tal do câncer, tinha que ir no ônibus da saúde pra cidade pra fazer os tratamento, o carro da associação levava eu até o ponto de pegar, ficava o dia todinho fora (Dolores).

Para tratamentos de alta complexidade, como alguns tipos de câncer, cirurgias e exames de imagem, as referências dos municípios são Montes Claros, maior cidade do norte de Minas Gerais, e Belo Horizonte. A maior parte da oferta especializada estava concentrada nos municípios sede das regiões. Serviços como hemodiálise, quimioterapia e radioterapia são realizados em Montes Claros, e os pacientes são levados em transportes da saúde, como ônibus dos municípios. Houve consenso quanto à restrição da oferta de serviços especializados, sendo uma das alternativas os Consórcios Intermunicipais de Saúde, financiados pelos municípios.

Ao recorrerem ao pagamento de consultas e exames especializados pela dificuldade de acesso ou para agilizar o tratamento, as mulheres contaram com recursos de familiares, ajuda de políticos (vereadores), amigos e empréstimo bancário. Além do auxílio financeiro, o sistema informal foi muito presente nas trajetórias assistenciais pelo sistema profissional para a indicação de profissionais, marcação de exames/consultas e para o acompanhamento das mulheres. Também foi identificado apoio de instituição de caridade (casa de apoio a pessoas com câncer) no município sede.

Itinerário de cuidados nas situações vivenciadas pelas mulheres

O itinerário de cuidados das mulheres em situação de adoecimento agudo e crônico

A análise dos IT de mulheres em situação de adoecimento crônico revelou dois padrões de busca de cuidado: um direcionado para o cuidado oferecido pelo sistema profissional e outro focado em uma busca plural de cuidado, contemplando os sistemas informal, popular e profissional em diferentes combinações e situações.

Para as doenças classificadas como sérias, as manifestações exigiram cuidado profissional; para os sintomas e condições tidos como simples, elas foram remediadas pelo sistema informal e popular. O cuidado oferecido pelo sistema informal é constituído por família, amigos, chás, entre outros, e o sistema popular, por benzedeiras, curandeiros, padres, pastores e outros líderes religiosos, sendo esse resultado semelhante ao de outros estudos1111 Santos RB. Mulher e poder: a perspectiva de alunas(os) e professoras(es) do colégio modelo Luís Eduardo Magalhães-Salvador. Rev Forum Ident 2013; 12(6):36-53.,2222 Rückert B, Cunha DM, Modena CM. Saberes e práticas de cuidado em saúde da população do campo: revisão integrativa da literatura. Interface (Botucatu) 2018; 22(66):903-914..

Outras pesquisas direcionadas para IT apontam também a existência da classificação de doenças em sérias ou simples como norteadoras das práticas de cuidado. Nesses itinerários, a primeira escolha de cuidado para condições simples foi o setor informal, por meio de automedicação; caso os sintomas não aliviassem, o setor profissional era acionado, seguido pelo setor popular. Já no caso de doenças consideradas sérias, a primeira escolha foi sempre o setor profissional, fato esse evidenciado pelas falas a seguir:

Quando eu vejo uma coisa grave que me incomoda, já vou logo atrás de consulta, já faço remédio (Carla).

Se a doença for simples, a gente mesmo faz um chá, uma benzeção ou toma um remedinho que já passa (Deia).

Além dos remédios caseiros, há uma ligação com as crenças em busca da cura, de modo que é preciso tomar o remédio e acreditar no seu efeito2222 Rückert B, Cunha DM, Modena CM. Saberes e práticas de cuidado em saúde da população do campo: revisão integrativa da literatura. Interface (Botucatu) 2018; 22(66):903-914.,2323 Silva NN, Favacho VBC, Boska GA, Andrade EC, Merces NP, Oliveira MAF. Acesso da população negra a serviços de saúde: revisão integrativa. Rev Bras Enferm 2020; 73(4):e20180834.. Essa dinâmica baseada na medicina popular foi identificada nas entrevistas, além da crença na cura das doenças agudas através do poder da religião e fé do sujeito. Outro elemento importante no caso das doenças agudas foi o acionamento da rede familiar de apoio, por meio das mulheres, vizinhas e amigas, conforme as falas a seguir:

As benzeção também é bom demais, eu acredito muito, sabe, minha vizinha que benze (Ana).

A avó sempre que vê a gente tossindo já faz um chá, um xarope de poejo pra melhorar (Clarissa).

Nos casos de doenças crônicas, as principais relatadas durante as entrevistas foram os problemas de coração, como chagas, hipertensão arterial sistêmica e diabetes. O controle dessas doenças é realizado através de medicamentos prescritos, em sua maioria, pelos profissionais das ESFs e por mudanças no estilo de vida, que vão desde alimentação balanceada até caminhadas pela comunidade. Exames raramente fazem parte do controle das doenças. A grande maioria das entrevistadas refere dificuldade de acesso ao sistema profissional nesses casos de acompanhamento, conforme as falas a seguir:

Quando vem a doença igual à pressão que descontrola é difícil demais pra consultar, aí acabo esperando sarar na casa mesmo (Rosa).

Não consigo as coisas pelo SUS, exame de controle. Pra nós do quilombo, tudo é mais difícil (Glória).

Na maioria dos casos, as mulheres precisam se deslocar para as cidades mais próximas para conseguir realizar exames e consultas com profissionais de saúde. Existem, ainda, outros fatores políticos e socioeconômicos que interferem em relação ao usufruto dos serviços de saúde, por exemplo a ausência de profissionais de saúde que atuem de forma periódica no território1919 Nascimento SL. Pretas memórias: as mulheres diaspóricas negras e seus cachimbos [TCC]. Laranjeiras: Universidade Federal de Sergipe; 2020.,2323 Silva NN, Favacho VBC, Boska GA, Andrade EC, Merces NP, Oliveira MAF. Acesso da população negra a serviços de saúde: revisão integrativa. Rev Bras Enferm 2020; 73(4):e20180834.,2424 Lima KD. Raça e violência obstétrica no Brasil [TCC]. Recife: Fundação Oswaldo Cruz; 2016..

Outro problema é que os profissionais que as assistem não consideram a forma e os instrumentos que comumente essas comunidades utilizam na sua prática do cuidar. O que é um descumprimento dos princípios que norteiam a proposta do Sistema Único de Saúde (SUS), como os da universalidade, integralidade e equidade, afetando a forma de essas pessoas usufruírem de seu direito à saúde2525 Viegas DP, Varga ID. Promoção à saúde da mulher negra no povoado Castelo, município de Alcântara, Maranhão, Brasil. Saude Soc 2016; 25(3):619-630..

Collins2626 Collins P. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. New York: Routledge; 1991. discute o conceito de matriz de dominação para refletir sobre a intersecção dos marcadores sociais, com a mesma pessoa podendo se encontrar em diferentes posições da sociedade, a depender de suas características. Assim, essa definição da identidade da mulher negra quilombola e seu espaço ocupado no mundo estaria assentada no entrecruzamento entre gênero, raça, classe e geração, sem um elemento se sobrepor ao outro1616 Araújo MJS, Souza AFS, Castro AK, Silva EC. Representatividades quilombolas do grupo Dandara da comunidade Sussuarana de Piripiri, Piauí, Brasil. Res Soc Develop 2020; 9(7):e515974376-e515974376.. Mais um ponto que reforça a situação de vulnerabilidade das comunidades quilombolas é o fato de que a oferta pública de saúde, além de se concentrar nas sedes dos municípios, ocorre de acordo com a demanda de profissionais e gestores, e não dos usuários2828 Nascimento ER. Proposições de cuidado cultural à enfermagem frente a aspectos da saúde reprodutiva de mulheres quilombolas. Rev Baiana Enferm 2019; 33:e33375..

Assim como em outros estudos, as mulheres apontaram como pontos decisivos para não buscarem ou não conseguirem acesso ao sistema profissional a demora no atendimento, a falta de fichas e o horário e dia de atendimento que não condizem com sua necessidade. Pontuaram que a existência de unidades básicas nas próprias comunidades rurais poderia contribuir efetivamente para a promoção da saúde da população que ali reside.

O itinerário de cuidados das mulheres em situação de urgência e emergência

São consideradas situações de urgência aquelas em que há um processo agudo clínico ou cirúrgico sem risco de vida iminente, e de emergência, aquelas em que há um risco iminente de vida2929 Celeste LEN, Maia MR, Andrade VA. Capacitação dos profissionais de enfermagem frente às situações de urgência e emergência na atenção primária a saúde: revisão integrativa. Res Soc Develop 2021; 10(12):e443101220521-e443101220521.. Nos quilombos, as mulheres relatam que a APS é responsável pelo acolhimento de todos os usuários e suas necessidades, inclusive as urgências e emergências, tendo a mesma relevância e responsabilidade durante a prestação de serviço. Os profissionais devem ofertar os primeiros atendimentos de forma adequada e resolutiva ao paciente grave, pois seu desempenho interfere de forma significativa sobre o prognóstico do paciente3030 Hermida PMV, Nascimento ERP, Belaver GM, Danczuk RFT, Alves DLF, Jung W. Percepção de equipes de saúde da família sobre a atenção básica na rede de urgência. Rev Enferm UFPE 2016; 10(4):1170-1178..

É desse elemento da rede de assistência que costumam partir todos os outros componentes, como o acionamento do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), a atenção especializada e as internações, entre outros, tentando assegurar a integralidade da atenção3131 Farias DC, Celino SDM, Peixoto JBS, Barbosa ML, Costa GMC. Acolhimento e resolubilidade das urgências na Estratégia Saúde da Família. Rev Bras Educ Med 2015; 39(1):79-87..

É válido ressaltar que a maioria das comunidades quilombolas fica em locais isolados e de difícil acesso inclusive para as ambulâncias do SAMU, e que a maior parte dos locais não conta com o serviço à disposição, sendo que a população precisa buscar o serviço de saúde mais próximo com meios de condução próprios ou da comunidade em que residem.

O IT nos casos de doenças graves nas comunidades em estudo teve como ponto de partida os cuidados oferecidos no sistema familiar, traduzidos na assistência fornecida, como a prestação de cuidados, executados em sua grande maioria por mulheres, pois são elas que lutam com as atividades da vida diária, lidam com a dor e com a existência de problemas de saúde, inclusive os mais complexos3232 Younes S, Rizzotto MLF, Araujo ACF. Itinerário terapêutico de pacientes com obesidade atendidos em serviço de alta complexidade de um hospital universitário. Saude Debate 2017; 41(115):1046-1060..

Evidenciou-se a necessidade da ajuda de familiares e vizinhos ao se deparar com situações graves de saúde. Levando em consideração a dificuldade de acesso e de transporte até um serviço de média/alta complexidade, emergiram relatos de que pessoas próximas eram a referência mais viável para tentar solucionar o problema no primeiro momento, conforme as falas apresentadas a seguir.

Aqui nós não temos carro, então quando passa mal, é a Associação que acode com o carro. (Marisa).

Meu marido me jogou na garupa da bicicleta e fomos pra cidade pra eu ganhar o menino (Dolores).

Autores3333 Batista MJ, Vasconcelos P, Miranda R, Amaral T, Geraldes J, Fernandes AP. Presença de familiares durante situações de emergência: a opinião dos enfermeiros do serviço de urgência de adultos. Rev Enf Ref 2017; 4(13):83-92. debatem a importância do elo familiar, apontando, em seus estudos, o peso da presença da família em situações de adoecimento e como ela pode ajudar no prognóstico do indivíduo. As falas demonstram uma dificuldade de acesso que elas têm de ir direto à cidade em casos mais complexos, e de como existe uma pessoalização e responsabilização de sujeitos e sua família quanto ao cuidado em saúde. Nessas comunidades, a falta de infraestrutura e os determinantes sociais de saúde evidenciam que o papel do Estado na garantia do direito é frágil, sendo que ele, através de políticas públicas eficientes e específicas para as populações negras rurais, precisa considerar e assegurar o direito delas de ter acesso à saúde e a serviços, conforme os princípios do SUS2323 Silva NN, Favacho VBC, Boska GA, Andrade EC, Merces NP, Oliveira MAF. Acesso da população negra a serviços de saúde: revisão integrativa. Rev Bras Enferm 2020; 73(4):e20180834.,2424 Lima KD. Raça e violência obstétrica no Brasil [TCC]. Recife: Fundação Oswaldo Cruz; 2016..

O itinerário de cuidados das mulheres na gestação, parto e puerpério

Nessa categoria, destaca-se primeiramente como o conhecimento ancestral quilombola auxilia o processo de cuidado dessas mulheres nos períodos da gestação, parto e puerpério. A promoção, prevenção e tratamento perpassam crenças e rituais adquiridos ao longo do tempo, presentes no sistema popular dessas comunidades. É importante ter um olhar ativo voltado ao conhecimento dos praticantes terapêuticos desses locais (benzedeiras, parteiras) no manejo de ervas medicinais encontradas no entorno das comunidades e sua utilização na manutenção da saúde das mulheres3434 Tavares F, Caroso C, Bassi FMN, Penaforte T. Saberes e fazeres terapêuticos quilombolas. Salvador: EDUFBA; 2019.,3535 Pimenta DG, Cunha MA, Barbosa TLA, Silva CSO, Gomes LMX. O parto realizado por parteiras: uma revisão integrativa. Enfermería Global 2013; 12(2):494-505..

Foi observada, ainda, uma falta de procura pelos cuidados de saúde institucionalizados, que se justifica na dificuldade dessas mulheres para marcar consultas e exames na APS comuns na gravidez devido à demanda reprimida. Foi relatado um descontentamento das mulheres em relação à assistência de saúde recebida. A maioria não obteve um acompanhamento gestacional adequado pela equipe de saúde, como mostram as falas a seguir.

De uns eu fiz pré-natal, de outros não fiz. Consegui fazer exame de sangue dos que eu fiz. E ultrassom de dois, só de dois, esses eu vi o que que era antes de nascer (Lurdes).

Aqui não tem médico, não, minha filha, pra pré-natal, a gente quando sente muito mal nas gravidez, tem que sair daqui... (Maria).

A assistência pré-natal ocorre de forma irregular, em detrimento da falta de recursos para deslocamento até os meios urbanos. O acompanhamento da gestação torna-se precário, a ponto de negligenciar a realização de exames básicos, como ultrassom obstétrico. O pré-natal que não é realizado de forma adequada pelas mulheres tem a importância de identificar precocemente doenças tanto da mãe quanto do feto, permitindo uma evolução gestacional saudável, com posterior redução de riscos durante o processo de parturição e puerpério, reduzindo a morbimortalidade materno-infantil3434 Tavares F, Caroso C, Bassi FMN, Penaforte T. Saberes e fazeres terapêuticos quilombolas. Salvador: EDUFBA; 2019..

O processo de parturição foi adaptado ao longo do tempo, sendo auxiliado geralmente pelas parteiras, um grupo de mulheres que obtiveram conhecimento sobre o parto por meio das gerações anteriores, e que fazem parte do sistema informal de cuidados em saúde. As parteiras são mulheres com o conhecimento adequado, capazes de entender toda a percepção íntima do nascimento, em qualquer região brasileira. Têm também conhecimento acerca de cuidados relacionados à gravidez e ao período puerperal (aborto, resguardo e cuidados com o recém-nascido)3535 Pimenta DG, Cunha MA, Barbosa TLA, Silva CSO, Gomes LMX. O parto realizado por parteiras: uma revisão integrativa. Enfermería Global 2013; 12(2):494-505..

A parteira tem papel fundamental no incentivo e no cuidado da gestante no seu processo de parir. Apesar de atualmente a maioria das entrevistadas ter seus filhos em ambiente hospitalar, algumas, principalmente as mais idosas, tiveram seus filhos com auxílio dessa cuidadora, e demonstram respeito e carinho por essa figura:

Eu pari uns menino com a parteira, e uns foi sozinha mesmo, eu paria, segurava e enrolava num pano... (Luci).

O menino nasceu, mas foi difícil, veio todo machucado, chorando pouco, se não fosse a parteira, que era boa demais, tinha morrido (Cida).

As parteira que tinha aqui era boa, cuidava da gente, dava apoio, a agente não passava medo na hora de parir (Railda).

Os cuidados terapêuticos prestados pelas parteiras nessas comunidades mostraram-se valiosos. Em casos extremos, quando não há tempo hábil de deslocamento para os hospitais para recebimento de acompanhamento durante o parto, as parteiras desempenham um papel fundamental, auxiliando a parturiente durante o período de expulsão do bebê. O trabalho delas dentro do sistema informal também não se resume ao auxílio aos partos; este ser prestador de cuidados detém um arsenal de atribuições, desde a manutenção da saúde da mãe-filho durante o período gestacional até os cuidados no pós-parto.

Autores3535 Pimenta DG, Cunha MA, Barbosa TLA, Silva CSO, Gomes LMX. O parto realizado por parteiras: uma revisão integrativa. Enfermería Global 2013; 12(2):494-505. afirmam que as parteiras, a partir do conhecimento tradicional acerca das ervas medicinais, produziam uma diversidade de chás e infusões para conforto da parturiente durante o trabalho de parto, com amenização das dores. Como forma de acompanhamento integral da cliente, elas instalavam-se na casa da mulher até a queda do coto umbilical.

O trabalho da parteira ou outra figura feminina dentro do meio familiar continua nos cuidados pós-parto da mãe e do recém-nascido, quando são utilizadas plantas e ervas na fabricação de chás e banhos de assento na tentativa de evitar hemorragias puerperais e infecções3535 Pimenta DG, Cunha MA, Barbosa TLA, Silva CSO, Gomes LMX. O parto realizado por parteiras: uma revisão integrativa. Enfermería Global 2013; 12(2):494-505.. O sistema informal e o popular são os mais acionados no puerpério para as ações de cuidado à saúde.

A gente dava ao menino o peito e remédio do mato pra limpar dentro dele e tomava também (Q9).

Os meninos nasciam tudo, a parteira aparava, dava remédio margoso, a benzedera já cortava o mal olhado, e a gente ficava boa rapidinho depois que nascia (Q7).

O uso de chás, banhos e rezas também no período da gestação, parto e puerpério mostra a cultura das mulheres quilombolas, ou seja, a cultura de um povo e sua memória, revelando a ligação do modo de vida relacionado ao meio ambiente e ao cuidado3636 Bonfim JO, Prado IF, Boa Sorte ET, Couto PLS, França NM, Gomes AMT. Práticas de cuidado de parteiras e mulheres quilombolas à luz da antropologia interpretativa. Rev Bras Promo Saude 2018; 31(3):1-11..

Tais saberes ainda estão presentes na contemporaneidade e nas práticas das mulheres pertencentes a comunidades quilombolas. Nessa perspectiva, a medicina popular é, então, uma prática compartilhada na comunidade quilombola, entre parentes, amigos e vizinhos que têm a mesma visão de mundo, que oferece respostas concretas aos problemas causados por doenças3636 Bonfim JO, Prado IF, Boa Sorte ET, Couto PLS, França NM, Gomes AMT. Práticas de cuidado de parteiras e mulheres quilombolas à luz da antropologia interpretativa. Rev Bras Promo Saude 2018; 31(3):1-11.,3737 Wusch S, Budó MLD, Beuter M, Garcia RP, Seiffert MA. Proteção: dimensão do cuidado em famílias rurais assentadas. Esc Anna Nery 2018; 18(3):533-538..

Foi possível observar que o IT das mulheres quilombolas se concentra nos conhecimentos populares e no suporte de parteiras, familiares e comunidade em geral, e que elas relatam encontrar dificuldades de acesso aos cuidados em saúde institucionalizados. Tais resultados reforçam a necessidade de que sejam repensadas as estratégias de atenção à saúde junto às comunidades quilombolas, devendo ser consideradas todas as suas particularidades sociais, culturais, epidemiológicas e, principalmente, a sua localização, que é, em sua maioria, rural. Dessa forma, ações inclusivas e estratégias mais efetivas de promoção da equidade são essenciais para diminuir os danos recorrentes que o racismo institucional tem imposto nas comunidades quilombolas18, 38.

Considerações finais

Foi possível conhecer o IT das entrevistadas com o significado da saúde por elas atribuído e as barreiras existentes para o acesso aos serviços de saúde.

Conhecer esses significados, barreiras e caminhos é fundamental para que sejam repensadas as estratégias e políticas públicas que envolvem as comunidades quilombolas. Foi possível conhecer um pouco mais sobre a prática popular de saúde, o que reforça a necessidade de os profissionais de saúde não apenas conhecê-la, mas a considerar ao realizar suas ações de cuidado junto a essa população, fortalecendo a participação das comunidades ao longo de todo o processo de cuidado.

É válido reforçar que, apesar de todos os avanços do SUS, ainda são necessárias ações que realmente ofereçam a essa comunidade serviços pautados nos princípios que norteiam o sistema de saúde, como a universalidade, a integralidade e a equidade, para que assim sejam oferecidos serviços que atendam às reais necessidades dessa população.

Referências

  • 1
    Siqueira SMC, Jesus VS, Camargo CL. Itinerário terapêutico em situações de urgência e emergência pediátrica em uma comunidade quilombola. Cien Saude Colet 2016; 21(1):179-189.
  • 2
    Kleinman A. Concepts and a model for the comparison of medical systems as cultural systems. Soc Sci Med 1976; 12(1):85-93.
  • 3
    Pimenta MM, Oliveira RCA Contribuição da sociologia para o ensino em saúde. ver Linhas 2020. 21(45):260-284.
  • 4
    Zuim RCB, Trajman A. Itinerário terapêutico de doentes com tuberculose vivendo em situação de rua no Rio de Janeiro. Physis 2018; 28(2):e280205.
  • 5
    Salatino ACC, Rosa SHD, Oliveira AS, organizadores. Relações étnico-raciais: saberes e visibilidades necessárias. São Paulo: Pimenta Cultural; 2021.
  • 6
    Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES). Comunidades quilombolas em Minas Gerais [Internet]. 2014 [acessado 2014 ago 8]. Disponível em: https://www.cedefes.org.br/cd-de-dados-comunidades-quilombolas-de-minas-gerais/
    » https://www.cedefes.org.br/cd-de-dados-comunidades-quilombolas-de-minas-gerais
  • 7
    Fundação Cultural Palmares (FCP). Quadro geral de comunidades remanescentes de quilombos (CRQs) [Internet]. 2019. [acessado 2019 jan 4]. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/wp content/uploads/2015/07/Tabela-de-crq-completa-quadro-geral-3.pdf
    » http://www.palmares.gov.br/wp content/uploads/2015/07/Tabela-de-crq-completa-quadro-geral-3.pdf
  • 8
    Breno OF, Nascimento EF, Pedrosa JIS, Monte LMI. Vivências de travestis no acesso ao SUS. Physis 2017; 27(4):1023-1038.
  • 9
    Fernandes SL, Santos AO. Itinerários terapêuticos e formas de cuidado em um quilombo do agreste alagoano. Psicol Cienc Prof 2019; 39(esp.):38-52.
  • 10
    Pinheiro R, Gerhardt TE, Ruiz ENF, Silva Junior AGS. Itinerários terapêuticos: integralidade no cuidado, avaliação e formação em saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, Abrasco; 2016.
  • 11
    Santos RB. Mulher e poder: a perspectiva de alunas(os) e professoras(es) do colégio modelo Luís Eduardo Magalhães-Salvador. Rev Forum Ident 2013; 12(6):36-53.
  • 12
    Teixeira IMC, Oliveira MW. Práticas de cuidado à saúde de mulheres camponesas. Interface (Botucatu) 2014; 18(2):1341-1354.
  • 13
    Lima ARA, Heck RM, Vasconcelos MKP, Barbieri RL. Ações de mulheres agricultoras no cuidado familiar: uso de plantas medicinais no sul do Brasil. Texto Contexto Enferm 2014; 23(2):365-372.
  • 14
    Zilmer JGV, Schwartz E, Muniz RM. O olhar da enfermagem sobre as práticas de cuidado de famílias rurais à pessoa com câncer. Rev Esc Enferm 2012; 46(6):1371-1378.
  • 15
    Rückert B, Cunha DM, Modena CM. Saberes e práticas de cuidado em saúde da população do campo: revisão integrativa da literatura. Interface (Botucatu) 2018; 22(66):903-914.
  • 16
    Araújo MJS, Souza AFS, Castro AK, Silva EC. Representatividades quilombolas do grupo Dandara da comunidade Sussuarana de Piripiri, Piauí, Brasil. Res Soc Develop 2020; 9(7):e515974376-e515974376.
  • 17
    Prates LA, Possati AB, Timm MS, Cremonese L, Oliveira G, Ressel LB. Significados atribuídos por mulheres quilombolas ao cuidado à saúde. Rev Pesq Cuidado Fundamental 2018; 10(3):847-855.
  • 18
    Gerhardt TE, Ruiz EFN. Itinerários terapêuticos: dispositivo revelador da cultura do cuidado e do cuidado na e da cultura. In: Pinheiro R, Gerhardt TE, Silva Júnior AG, Di Leo PF, Ponce M, Venturiello MP, organizadores. Cultura do cuidado e o cuidado na cultura: dilemas, desafios e avanços para efetivação da integralidade em saúde no Mercosul. Rio de Janeiro: Cepesc Editora, 2015. p. 255-270.
  • 19
    Nascimento SL. Pretas memórias: as mulheres diaspóricas negras e seus cachimbos [TCC]. Laranjeiras: Universidade Federal de Sergipe; 2020.
  • 20
    Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, Fausto MCR. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(11):e00255020.
  • 21
    A, Gerhardt TE. Doenças crônicas, problemas crônicos: encontros e desencontros com os serviços de saúde em itinerários terapêuticos de homens rurais. Saude Soc 2014; 23:664-676.
  • 22
    Rückert B, Cunha DM, Modena CM. Saberes e práticas de cuidado em saúde da população do campo: revisão integrativa da literatura. Interface (Botucatu) 2018; 22(66):903-914.
  • 23
    Silva NN, Favacho VBC, Boska GA, Andrade EC, Merces NP, Oliveira MAF. Acesso da população negra a serviços de saúde: revisão integrativa. Rev Bras Enferm 2020; 73(4):e20180834.
  • 24
    Lima KD. Raça e violência obstétrica no Brasil [TCC]. Recife: Fundação Oswaldo Cruz; 2016.
  • 25
    Viegas DP, Varga ID. Promoção à saúde da mulher negra no povoado Castelo, município de Alcântara, Maranhão, Brasil. Saude Soc 2016; 25(3):619-630.
  • 26
    Collins P. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. New York: Routledge; 1991.
  • 27
    Akotirene C. Intersecssionalidade. São Paulo: Pólen Livros;
  • 28
    Nascimento ER. Proposições de cuidado cultural à enfermagem frente a aspectos da saúde reprodutiva de mulheres quilombolas. Rev Baiana Enferm 2019; 33:e33375.
  • 29
    Celeste LEN, Maia MR, Andrade VA. Capacitação dos profissionais de enfermagem frente às situações de urgência e emergência na atenção primária a saúde: revisão integrativa. Res Soc Develop 2021; 10(12):e443101220521-e443101220521.
  • 30
    Hermida PMV, Nascimento ERP, Belaver GM, Danczuk RFT, Alves DLF, Jung W. Percepção de equipes de saúde da família sobre a atenção básica na rede de urgência. Rev Enferm UFPE 2016; 10(4):1170-1178.
  • 31
    Farias DC, Celino SDM, Peixoto JBS, Barbosa ML, Costa GMC. Acolhimento e resolubilidade das urgências na Estratégia Saúde da Família. Rev Bras Educ Med 2015; 39(1):79-87.
  • 32
    Younes S, Rizzotto MLF, Araujo ACF. Itinerário terapêutico de pacientes com obesidade atendidos em serviço de alta complexidade de um hospital universitário. Saude Debate 2017; 41(115):1046-1060.
  • 33
    Batista MJ, Vasconcelos P, Miranda R, Amaral T, Geraldes J, Fernandes AP. Presença de familiares durante situações de emergência: a opinião dos enfermeiros do serviço de urgência de adultos. Rev Enf Ref 2017; 4(13):83-92.
  • 34
    Tavares F, Caroso C, Bassi FMN, Penaforte T. Saberes e fazeres terapêuticos quilombolas. Salvador: EDUFBA; 2019.
  • 35
    Pimenta DG, Cunha MA, Barbosa TLA, Silva CSO, Gomes LMX. O parto realizado por parteiras: uma revisão integrativa. Enfermería Global 2013; 12(2):494-505.
  • 36
    Bonfim JO, Prado IF, Boa Sorte ET, Couto PLS, França NM, Gomes AMT. Práticas de cuidado de parteiras e mulheres quilombolas à luz da antropologia interpretativa. Rev Bras Promo Saude 2018; 31(3):1-11.
  • 37
    Wusch S, Budó MLD, Beuter M, Garcia RP, Seiffert MA. Proteção: dimensão do cuidado em famílias rurais assentadas. Esc Anna Nery 2018; 18(3):533-538.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2023
  • Aceito
    21 Ago 2023
  • Publicado
    23 Ago 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br