O quilombo Mata Cavalo/Brasil e a sindemia da COVID-19: o racismo e o direito de (r)existir em questão

Kleber Gonçalves Madureira Reni Barsaglini Sobre os autores

Resumo

Comunidades quilombolas têm sentido efeitos do racismo aprofundados com a COVID-19 cujas repercussões se amplificam em contextos de desigualdades raciais, caracterizando-se como sindemia. O termo remete à sinergia de elementos biológicos, econômicos, ambientais, políticos e sociais que potencializam condições e estados coexistentes, repercutindo na vida e afetando a saúde. Assim, analisamos as repercussões da sindemia da COVID-19 a partir das percepções de lideranças de comunidade quilombola em Mato Grosso. Em estudo qualitativo entrevistamos três lideranças em maio/2022, usando roteiro semiestruturado e tratamos os dados pela análise temática. A sindemia da COVID-19 visibilizou a precariedade estrutural quanto ao transporte, estradas, saneamento, acesso à água, alimentos e serviços de saúde. O isolamento, mortes, medos tiveram repercussões psicossociais, mas ausência de atenção à saúde mental. Propostas antirracistas clamam por: reparar precariedades reconhecendo a dívida do Estado com a população negra; valorizar experiências, modo de vida, cosmovisão, valores civilizatórios ancestrais afrocentrados. Enfim, fortalecer, reafirmar e efetivar ações antirracistas como o Estatuto da Igualdade Racial e a PNSIPN em todos possíveis espaços, políticas e instituições.

Palavras-chave:
Quilombolas; COVID-19; Sindemia; Iniquidades; Racismo

Introdução

O objetivo deste artigo foi analisar as repercussões da COVID-19 na perspectiva da sindemia a partir das percepções de quilombolas de uma comunidade de Mato Grosso, Brasil. Para tanto, traz-se uma visão panorâmica do racismo e das relações étnico-raciais pela mobilização de três vozes quilombolas, um corpo-lugar que pelas vivências da sindemia da COVID-19 nos situam nas suas vidas e, respectivamente, nas lutas pelo direito de existir/resistir e pelo (re)conhecimento dos seus direitos.

As percepções decorrem da relação com o mundo, mediadas pela corporalidade e apreendidas pelos sentidos, ou seja, corpo aberto aos lugares, sintonizado com as coisas, acontecimentos e pessoas que constantemente o solicitam no fluxo contínuo Ser-mundo11 Barsaglini R. Experiência: fundamentos conceituais e a abordagem socioantropológica em saúde e cronicidade. In: Barsaglini R, Portugal S, Melo L, organizadores. Experiência, Saúde, Cronicidade: um olhar socioantropológico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, Imprensa da Universidade de Coimbra; 2021. p. 39-62.. Falar de percepção é considerar a legitimidade do olhar por dentro, de quem nos diz de algo com a autoridade de quem esteve lá, em presença, ou seja, vivenciou e nos relata o que é passível de retenção pela memória e sensibilidades (sempre) situadas11 Barsaglini R. Experiência: fundamentos conceituais e a abordagem socioantropológica em saúde e cronicidade. In: Barsaglini R, Portugal S, Melo L, organizadores. Experiência, Saúde, Cronicidade: um olhar socioantropológico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, Imprensa da Universidade de Coimbra; 2021. p. 39-62.. Os/as interlocutores/as habitam, vivem o lugar, constituem elo entre a comunidade e o poder público e sentiram coletivamente as repercussões da sindemia, daí a relevância da sua fala para a aproximação às percepções não limitadas ao individual.

As comunidades quilombolas constituem grupos étnico-raciais com trajetórias próprias, unidos em temporalidade única (passado, presente, futuro), dotados de relações territoriais específicas, sentimento de povo, de ancestralidade negra e carregam histórico de resistências, lutas e ações às persistentes opressões sofridas para garantia e acesso de direitos22 Christovão SRT. Impactos da covid-19 nas comunidades quilombolas do Estado de Santa Catarina: enfoque para Comunidade Quilombola São Roque/SC/RS. In: V COPENE SUL; 2021 out 26-28.. Como disse Abdias do Nascimento “quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial”33 Nascimento A. O Quilombismo. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora Perspectiva, IPEAFRO; 2019., de modo que para além de resposta ao sistema escravista o quilombo é, também, o direito de existir em toda a sua plenitude22 Christovão SRT. Impactos da covid-19 nas comunidades quilombolas do Estado de Santa Catarina: enfoque para Comunidade Quilombola São Roque/SC/RS. In: V COPENE SUL; 2021 out 26-28..

Conforme dados do IBGE de 2019, no Brasil havia 1.674 municípios com localidades quilombolas, sendo 90 deles na região Centro-Oeste e nessa, 17 no estado de Mato Grosso44 Arruti JM, Cruz, C, Pereira A, Sartori J, Sousa CJ, Gusmão HNB, Bertolozzi TB. O impacto da covid-19 sobre as comunidades quilombolas. Informativo Desigualdades Raciais COVID-19 AFRO-CEBRAP 2021; 6:1-58., onde, em uma delas, foi realizada a pesquisa que originou o presente artigo55 Madureira KG. A sindemia da covid-19 em uma comunidade quilombola de Mato Grosso: repercussões e iniquidades em saúde [dissertação]. Cuiabá: Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva/Universidade Federal de Mato Grosso; 2023.. As comunidades quilombolas têm vivenciado efeitos do racismo estrutural66 Almeida SL. O que é racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento; 2018. materializado pelas barreiras no acesso às políticas públicas fundamentais (saúde, educação, transporte, saneamento, regularização territorial) reproduzidas há gerações77 Silva GM, Souza BO. Quilombos e a luta contra o racismo no contexto da pandemia. Bol Análise Político Institucional 2021; 26:85-91.. Nesse contexto, a vulnerabilidade nos quilombos se aprofunda em crises graves, como a da pandemia da COVID-1977 Silva GM, Souza BO. Quilombos e a luta contra o racismo no contexto da pandemia. Bol Análise Político Institucional 2021; 26:85-91., cujas repercussões não operam sozinhas nos contextos de desigualdades, principalmente raciais, motivando compreender esse processo enquanto sindemia, como disse Richard Horton88 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet 2020; 396(10255):874..

A noção de sindemia foi concebida por Merrill Singer (médico e antropólogo norte-americano) na década de 1990 como abordagem reveladora de interações biológicas, sociais, econômicas e ambientais (sinergismo) que afetam negativamente o prognóstico, o tratamento e as políticas de saúde88 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet 2020; 396(10255):874.,99 Bispo Jr JP, Santos DB. COVID-19 como sindemia: modelo teórico e fundamentos para a abordagem abrangente em saúde. Cad Saude Publica 2021; 37(10):e00119021..

A pertinência de considerar a COVID-19 como sindemia deve-se à flagrante denúncia de sua origem social e não fenômeno puramente biológico, possibilitando entender as combinadas repercussões injustas e desiguais agravadas pela sobreposição de carga de doenças crônicas, racismo, pobreza, enfim, pela violência estrutural99 Bispo Jr JP, Santos DB. COVID-19 como sindemia: modelo teórico e fundamentos para a abordagem abrangente em saúde. Cad Saude Publica 2021; 37(10):e00119021.. Pela teoria sindêmica o sinergismo das interações biológicas, ambientais e sociais entre condições e estados se retroalimentam aumentando a suscetibilidade de uma população, com efeitos ampliados prejudicando ou piorando seu estado de saúde88 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet 2020; 396(10255):874.

9 Bispo Jr JP, Santos DB. COVID-19 como sindemia: modelo teórico e fundamentos para a abordagem abrangente em saúde. Cad Saude Publica 2021; 37(10):e00119021.
-1010 Singer M, Bulled N, Ostrach B, Mendenhall E. Syndemics and the biosocial conception of health. Lancet 2017; 389(10072):941-950..

As repercussões da COVID-19 seguem essa perspectiva pela interação entre doenças e os marcadores sociais que culminaram na maior exposição da população negra ao vírus, com desfecho de maior índice de mortalidade1111 Baqui P, Bica I, Marra V, Ercole A, van Der Schaar M. Ethnic and regional variations in hospital mortality from COVID-19 in Brazil: a cross-sectional observational study. Lancet 2020; 8(8):e1018-e1026.. Bem se mostra adequado o conceito para pensar as repercussões da COVID-19 em contexto de desigualdades raciais como o brasileiro e, especificamente, em comunidade quilombola. Impele, também, pensar sinergicamente os enfrentamentos antirracistas, haja vista que no mundo contemporâneo episódios de racismo são recorrentes seja no esporte, nas brincadeiras (racismo recreativo), no entretenimento (dramaturgia), na política e nas instituições. As relações humanas encontram-se racializadas e calcadas na diferença das raças, das classes e do poder em que o princípio de exclusão se assenta em hierarquização racial1010 Singer M, Bulled N, Ostrach B, Mendenhall E. Syndemics and the biosocial conception of health. Lancet 2017; 389(10072):941-950.,1212 Santos BS. A construção multicultural da igualdade e da diferença. Coimbra: Oficina do CES; 1999., sendo processo histórico em que uma cultura, pelo discurso da verdade, cria o interdito e o rejeita.

Trata-se de racismo institucional1313 Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc 2016; 25:535-549. e da necropolítica. O primeiro induz, mantém e condiciona a organização e a ação do Estado, suas instituições e políticas públicas a (re)produzir a hierarquia racial1313 Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc 2016; 25:535-549. atualizando interesses coloniais. O racismo institucional está cristalizado nas instituições. Age à revelia de um agente ou de ações individuais1414 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições; 2018.. É a discriminação pela raça que decorre não da ação concreta de alguém, mas da forma como as instituições estão organizadas, operando sob recorte racial invisível que dificulta ou impede o acesso de pessoas negras aos lugares de poder e prestígio social, bloqueia o acesso aos direitos e exercício de cidadania1212 Santos BS. A construção multicultural da igualdade e da diferença. Coimbra: Oficina do CES; 1999.

13 Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc 2016; 25:535-549.
-1414 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições; 2018..

Já o segundo, uma política de Estado que aponta para morte, onde se escolhe quem vai viver e quem pode morrer1414 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições; 2018.. O necroestado, através do necropoder, olha para as minorias sociais e, contundentemente para corpos negros, como descartáveis, não dotados de humanidade e cria estereótipo de sujeito atrasado1515 Schucman LV. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: hierarquia, branquitude e poder na cidade de São Paulo [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2014., arcaico, selvagem, bestializado, fragilizado e vulnerabilizado, cujo desfecho mais objetivo é a morte. Assim, quando a humanidade é negada, a prática da violência se torna possível e legitimada1414 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições; 2018.,1515 Schucman LV. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: hierarquia, branquitude e poder na cidade de São Paulo [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2014.. Na sindemia o extermínio da população negra (Necropolítica!) foi acelerado por um (des)governo que usou a política para negar a ciência, propagou fake news, implementou tratamento ineficaz e tardou na proteção social e no combate às desigualdades concentrando na população negra o monopólio da violência, exclusão e morte.

Na sindemia da COVID-19 vimos o Estado invisibilizar e animalizar o corpo preto pela seleção intencional dos que supostamente mereciam ou não serem assistidos e beneficiados pelo Plano Nacional de Enfrentamento à COVID-191616 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus COVID-19. Brasília: Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública/COE COVID-19; 2021.. É o racismo estrutural como elemento da determinação social da saúde, a brutal ideia de que o corpo negro não precisa e não merece ser cuidado. Para mostrar como isso aconteceu na prática escutaremos os/as quilombolas.

Método

Estudo realizado em 2022 na comunidade quilombola Mata Cavalo, fundada no século XIX e, em parte, reconhecida e titulada pela Fundação Cultural Palmares em 20001717 Soares CCA. Educação ambiental na comunidade quilombola de Mata Cavalo: diálogos da arte, cultura e natureza [dissertação]. Cuiabá: Programa de Pós-Graduação em Educação/Universidade Federal de Mato Grosso; 2018.. Localiza-se na área rural de Nossa Senhora do Livramento, Mato Grosso, que dista 52,2 Km da capital, Cuiabá, é formada por 6 (seis) pequenas comunidades, cada qual com associação e respectivas lideranças1717 Soares CCA. Educação ambiental na comunidade quilombola de Mata Cavalo: diálogos da arte, cultura e natureza [dissertação]. Cuiabá: Programa de Pós-Graduação em Educação/Universidade Federal de Mato Grosso; 2018..

Em maio/2022 entrevistamos três pessoas quilombolas indicadas pela Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas de Mato Grosso (CONAQ). Após autorização formal, foi realizada visita à comunidade, guiada por uma interlocutora para conhecer a estrutura física e organizacional, equipamentos sociais locais.

As entrevistas seguiram roteiro temático, ocorreram de forma remota e foram gravadas. Pela análise temática1818 Gomes R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R, organizadores. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 30ª ed. Petrópolis: Vozes; 2011. p. 79-108. buscamos no material empírico expressões da sindemia, enquanto interconexões de elementos biológicos e sociais, valendo-se dos conceitos de repercussões, saúde, iniquidades, necropolítica, sempre em contexto de desigualdades e racismo para pensar, também, ações antirracistas.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE nº. 54707321.6.0000.8124). As pessoas entrevistadas não serão caracterizadas para evitar presumir a identidade e nos trechos das falas usamos nomes africanos e unissex, quais sejam e significados: Ayo (alegria, felicidade), Eno (dádiva, presente) e Abayomi (nascido/a para trazer alegria e felicidade). Para demais nomes citados usamos letras aleatórias. Os resultados são apresentados em dois tópicos articulados: a caracterização do quilombo e as repercussões em sinergia.

Características do quilombo Mata Cavalo: afetos e precariedades

Mata Cavalo conta atualmente com 251 domicílios efetivos, a maioria das casas tem cobertura de palha, piso batido, paredes de barro, sendo o padrão de 88,77% delas1919 Moreira DL. Território, luta e educação: dimensões pulsantes nos enfrentamentos dos conflitos socioambientais mapeados no Quilombo de Mata Cavalo [dissertação]. Cuiabá: Programa de Pós-Graduação em Educação/Universidade Federal de Mato Grosso; 2017.. Sua história é repleta de lutas, resistências à opressão sofrida pelo escravismo colonial, o qual atravessa o tempo e se reconfigura nos dias atuais, como se nota:

Hoje nós somos um povo livre que luta para manter viva a nossa cultura [...] deixada pelos nossos antepassados [...]. Os desafios que a gente tem são muitos [...], (tem a) questão da regularização do território [...] porque apesar da gente estar dentro do quilombo, mas o território de Mata Cavalo ele ainda não foi (todo) titulado. Então a gente aqui no quilombo convive com ações judiciais e a qualquer momento a gente não sabe o que pode acontecer. Então, falta sensibilidade, a gente ainda tem que conviver com fazendeiros dentro do quilombo o que acaba gerando conflito [...] até doença [...] as pessoas [...] vivem numa instabilidade, numa tensão [...] (Abayomi).

A relação intensa e de continuidade que as pessoas têm com o corpo-território de Mata Cavalo faz pensá-lo como espaço de identidade quilombola, sendo físico‐material, político, econômico e simbólico2020 Silva SR, Nascimento LK. Negros e territórios quilombolas no Brasil. Cad CEDEM 2012; 3(1):23-37.. Tanto é que os mata-cavalenses constroem, reafirmam e perpetuam forte vínculo afetivo, físico e cultural com a terra ancestral. Escutemos:

Para mim morar no quilombo é um presente de Deus [...] porque aqui a gente tem a oportunidade de ter contato com a história dos nossos antepassados, com a cultura [...]. A gente aqui vive em família, né. Todos se conhecem, tem laços de parentesco e solidariedade [...]. Esse povo dá uma lição de vida, de resiliência, de resistência, isso faz com que a gente tenha muito orgulho de pertencer a esse lugar, né. Porque a gente tem uma história, eu sei da onde eu vim [...] eu sei a história do meu povo [...] de estar num lugar onde meu tataravô, meu avô viveu [...] (Abayomi).

A tranquilidade, a paz, você chega [...] liga um som [...] nossa casa é na beira do rio. Na beira do tanque, aquele cheiro gostoso da natureza, nóis pesca. Aqui é tranquilo. Bom demais (Ayo).

No entanto, para além da luta pela titularidade e posse definitiva das terras, há outras lutas necessárias diante das condições estruturais na vida em Mata Cavalo, como testemunhado pela visita realizada55 Madureira KG. A sindemia da covid-19 em uma comunidade quilombola de Mato Grosso: repercussões e iniquidades em saúde [dissertação]. Cuiabá: Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva/Universidade Federal de Mato Grosso; 2023.: estradas sem asfalto, trechos esburacados, outros cheios d’água (era dia chuvoso), sem iluminação e sinalizações, vulnerabilizando os/as quilombolas aos riscos de acidentes e violências. Precariedade que dificulta escoar produtos locais comercializados nas redondezas ou chegar o socorro de urgência/ambulância. Embora o reconhecimento dos direitos quilombolas seja constitucional, a efetiva promoção de acesso e gozo da plena cidadania encontra desafios e barreiras, como contaram mostrando a sinergia de aspectos fragilizadores da existência:

Não há transporte público até as comunidades, tendo que fazer esse trajeto com veículo próprio seja moto, carro, charrete ou a cavalo (Ayo).

Precisamos vencer a falta de muitas políticas para tornar o nosso povo um povo com dignidade [...] os desafios que a gente tem muito, por exemplo, é na educação, a gente ainda não tem a educação que a gente quer, né, por causa de estrutura que o governo geralmente não dá [...]. O acesso à saúde também é uma coisa que nos preocupa muito, porque o nosso município é preparado para atender doenças de baixa complexidade, né, porque nós não temos UTI [...]. Na questão da saúde a gente ainda não tem um posto de saúde por exemplo dentro da comunidade onde possa ter atendimento de forma específica, regular, geralmente temos atendimentos mensais ou tem que ir até a cidade [....] Se algum de nós (adoecer de) uma forma mais grave, nós não vamos conseguir atendimento. Porque a gente não tem dinheiro para pagar um médico particular [...]. Quem não tem recursos para pagar privado ainda precisa esperar a longa espera para procedimentos mais complexos pelo SUS (Abayomi).

Outra condição estrutural pré-existente se refere à insuficiência do saneamento básico. Sabe-se que no Brasil 8 em cada 10 pessoas que vivem na zona rural não têm acesso a ele2121 United Nations Children's Fund (UNICEF), World Health Organization (WHO). Progress on household drinking water, sanitation and hygiene 2000-2017: Special focus on inequalities [Internet]. 2019 [cited 2023 mar 28]. Available from: file:///C:/Users/Edina/Downloads/JMP-2019-FINAL-high-res_compressed.pdf e haveria 31 milhões de moradores das áreas rurais necessitando de saneamento, em especial acesso à água que é associada à pobreza e desnutrição, diarreias e outras doenças parasitárias2222 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Programa Nacional de Saneamento Rural. Brasília: Funasa; 2019.. Em Mata Cavalo foi mencionado que “a dificuldade nossa aqui é água. Nós temos um problema imenso, não só no Mata Cavalo, mas no município inteiro tem a problemática que é a água [...]” (Eno).

Esse dado é importante, pois a OMS2323 Organización Mundial de la Salud (OMS). Agua, saneamiento, higiene y gestión de desechos em relación con el SARS-CoV-2, el virus causante de la COVID-19: orientacion es provisionales [Internet]. Ginebra: OMS; 2020 [acesso 2023 mar 28]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/333807/WHO-2019-nCoV-IPC_WASH-2020.4-spa.pdf. estabeleceu a higiene das mãos como estratégia de combate e controle da COVID-19 e orientou sobre o saneamento básico. Soma-se que é essencial à promoção da saúde da população e sua ausência, em contexto periférico ocupado por pessoas pretas e pobres, revela o racismo estrutural. Dessa forma, os/as quilombolas têm seu fenótipo e a ruralidade “transformados tanto na marca como na causa de sua pobreza, humilhação, opressão”2424 Nyerere JK. Speech to the Congress. Black Scholar 1974; 5(10):16-22., acentuadas nas regiões mais pobres onde a população negra é majoritária33 Nascimento A. O Quilombismo. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora Perspectiva, IPEAFRO; 2019.. Não são precarizações isoladas, mas combinadas e interseccionadas que se potencializam sinergicamente na fragilização da vida em território negro. É necropolítica operando pelas desigualdades sociais vividas por quilombolas em que o Estado, pelo exercício do poder e da violência estrutural, tem relegado a população negra à periferia do acesso e cuidado em saúde e de dignas condições de vida.

Um aspecto a destacar é a mobilização de saberes de outros sistemas terapêuticos que se torna problemática quando imposta pela insuficiência dos serviços oficiais de saúde e problemas de acesso, como sugerem os relatos. A etnobiologia2525 Diegues ACS, Arruda RSV, Silva VCF, Figols FAB, Andrade D. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil [Internet]. Brasília, São Paulo: MMA, USP; 2000. [acesso em 28/3/2023]. Disponível em: http://livroaberto.ibict.br/bitstream/1/750/2/Biodiversidade%20e%20comunidades%20tradicionais%20no%20Brasil.pdf. abrange saberes e modos de saber-fazer transmitidos oralmente e caracterizam culturalmente uma comunidade tradicional. É o caso o uso de plantas, ervas, raízes, óleos medicinais, somados às práticas por especialistas de cura (curandeiros, erveiros, pais-de-santo, benzedores), não restritas às áreas rurais, tradicionais, isoladas ou atrasadas2626 Loyola MA. Medicina popular: rezas e curas do corpo e de alma. Rev Cien Hoje 1987; 6(35):34-43., porque decorrem de entendimento abrangente do processo saúde-doença-vida-território que não dissocia Natureza/Cultura:

Temos a tradição de estar usando remédio caseiro, tem uns chás, uns remedinhos caseiros que é sempre bom você está tomando [...] (Eno).

A cura vem através de benzimento. Através das ervas medicinais. Por isso essa gama de conhecimento em relação às ervas, porque realmente a gente não (tem) condições e não (tem) o poder público. [...] com essa falta de apoio preciso da questão da saúde a gente recorre muito às plantas medicinais, né. Na comunidade tem muita planta medicinal, né. Isso é até uma sorte porque não tem o dinheiro para comprar o remédio na farmácia e a gente pode recorrer aos nossos quintais, aos nossos vizinhos, né, para ter acesso a isso, apesar de todas as coisas (Abayomi).

Outra prática ancestral é a agricultura familiar que é basilar na economia de Mata Cavalo para a subsistência e comercialização em feiras, na beira da estrada ou pequenos estabelecimentos intermediários. Esta se contrapõe a lógica da agricultura de larga escala e da monocultura que prevalece em Mato Grosso. A primeira garante alimento na mesa dos cidadãos, já a segunda faz dos produtos, commodities e intensifica os impactos ambientais que resultam, principalmente, da ação humana ligada à agropecuária orientada pelo modelo do agronegócio, hegemônico em Mato Grosso2727 Pignati WA, Montanari-Correa ML, Leão LHC, Pignatti MG, Machado JMH, organizadores. Desastres sócio-sanitário-ambientais do agronegócio e resistências agroecológicas no Brasil. São Paulo: Outras Expressões; 2021.. Os apoios institucionais estatais a esses dois modelos historicamente são desproporcionais (tem cor!), expressam descaso e, sendo a população negra a mais atingida pela degradação ambiental, reverbera como racismo ambiental, como discutiram Tavares et al.2828 Tavares JR, Silva CG, Guimarães CFE, Costa RS. Racismo ambiental, esquecimento e seletividade estatal: Quilombo Vidal Martins e o Parque Estadual do Rio Vermelho/SC. Rev Politicas Publicas 2021; 25(2):701-719. correlacionando-o ao esquecimento e à seletividade estatal. Nossos/as interlocutores/as dão pistas da relação local mais sustentável com os recursos naturais:

A gente, também, tem nossa rocinha que a gente planta, mesmo com as queimadas queimando nossas roças, nossas plantações, queimando pastos, queimando o nosso cerrado [...] a gente teve que plantar pra poder estar comendo, até hoje a gente continua fazendo isso, né, de plantar (Eno).

Muitas famílias vivem da agricultura familiar. Especificamente de vender seus produtos, mandioca, banana, doce [...] na zona rural não tem, né, estímulo pra você ganhar o pão de cada dia, né. Ou você planta mandioca, banana pra você vender lá na beira da estrada em Livramento (município) ou então não tem como você morar na zona rural, né (Ayo).

Com poucas oportunidades de emprego na área rural, em Mata Cavalo há habitantes que residem na comunidade e em municípios maiores, permanecendo no local pessoas mais idosas, como referiu Ayo que “a maioria dos que moram aqui são idosos”. A lida rural demanda esforços físicos difíceis no envelhecimento, gerando dependência de programas sociais, como contou Abayomi: “tem quem vive de aposentadoria, né. Tem quem vive de bolsa família”.

Nessas condições é que a COVID-19 chegará, configurando a sindemia tratada a seguir.

Repercussões em sinergia: a sindemia do coronavírus no Quilombo Mata Cavalo

Os interesses e as entranhas coloniais levaram o Estado brasileiro a ancorar a Política de Enfrentamento à COVID-19 nos fatores biológicos e individualizados. Desconsiderar as desigualdades sociais que faz a COVID-19 operar de maneira distinta nos grupos sociais, torna explícito o intencional extermínio da população pobre, preta e rural (Necropolítica!).

Há de ponderar os processos social e biológico para compreender a produção das doenças na coletividade analisando os elementos determinantes, ampliando a explicação causal99 Bispo Jr JP, Santos DB. COVID-19 como sindemia: modelo teórico e fundamentos para a abordagem abrangente em saúde. Cad Saude Publica 2021; 37(10):e00119021.,2929 Laurell AC. A saúde-doença como processo social. Rev Latino Am Salud 1982; 2:7-25.. Nesse sentido, concordamos que raça/cor, classe social, gênero e geração são estruturantes na sociedade, interferindo nos desfechos da saúde, da doença, do cuidado e das mortes1313 Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc 2016; 25:535-549.,3030 Goes EF, Ramos DO, Ferreira AJF. Desigualdades raciais em saúde e a pandemia da Covid-19. Trab Educ Saude 2020; 18(3):e00278110.,3131 Lopes F. De volta aos primórdios: em defesa do SUS como uma política antirracista. Bol Análise Político Institucional 2021; 26:9-19.. Faculta, assim, afirmar que a COVID-19 não é doença democrática e não se trata de pandemia (biológica, comum a todos), mas sindemia em que combinam e potencializam condições e estados que repercutem no processo saúde-doença88 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet 2020; 396(10255):874.,99 Bispo Jr JP, Santos DB. COVID-19 como sindemia: modelo teórico e fundamentos para a abordagem abrangente em saúde. Cad Saude Publica 2021; 37(10):e00119021.. Os óbitos relacionados à COVID-19 citados a seguir são atribuídos às comorbidades, porém entendemos haver interações sinérgicas com as condições de vida no contexto de desigualdades raciais, mostrando uma produção de sentidos sobre aquelas mortes que beira à naturalização:

Um associado tinha ácido úrico, testou positivo, não aguentou e faleceu (Ayo).

X [nome] tinha 50-60 anos e pegou COVID. Ele faleceu, mas ele tinha problema no coração e tinha diabetes (Abayomi).

Ele já tinha problema de saúde, ele era operado do coração, tinha marcapasso, pressão de válvula [...] ficou internado na UTI, mas levou a pior e morreu (Eno).

A população negra tem maior prevalência de enfermidades crônicas pré-existentes como hipertensão arterial e diabetes3232 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Depto de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social. 3ª ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2017., sendo as mais relacionadas aos óbitos pelo novo coronavírus. Lembrando que em Mata Cavalo “a maioria dos que moram aqui são idosos”, a suscetibilidade se soma que negros/as detêm, compulsoriamente, o monopólio da marginalização social, do sofrimento, da exclusão, da privação dos direitos e das liberdades fundamentais3333 Azevedo E. A escravatura atual chama-se fome [Internet]. Le Monde; 2021 [acessado 2023 mar 28]. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-escravatura-atual-chama-se-fome/.
https://diplomatique.org.br/a-escravatur...
. Sinergias, portanto.

Diante de condições vulnerabilizantes a CONAQ, o Governo e as Associações de Mata Cavalo, em alianças, solidariedade política, social e entre-ajuda se unem para atenuar as consequências da sindemia, como contam:

Tivemos que nos unir, ser solidário para que a gente passasse esse momento sem as pessoas morrer de fome [...] (Ayo).

Como não tinha para quem vender, porque tava tudo fechado, sem funcionar [...] as pessoas ficaram sem renda, né. Vivendo de cesta básica que chegava de solidariedade do vizinho que compartilhava, né. Fazia a troca, eu tenho a galinha você tem o milho e vamos trocar [...] (Abayomi).

Através de várias ONGs a gente pôde suprir algumas necessidades de algumas famílias em relação à alimentação. Ganhamos muitas doações de ONGs, de comida, até do próprio Governo do Estado e Federal [...] (Eno).

Reiteramos que Mato Grosso se destaca no plantio da soja e tem o maior rebanho bovino do Brasil3434 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cidades e Estados. Nossa Senhora do Livramento-MT [Internet]. [acessado 2023 mar 30]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/mt/nossa-senhora-do-livramento.html.
https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estado...
. Contudo, tais cultivos não se destinam à alimentação do povo, pois são mercadorias, commodities2727 Pignati WA, Montanari-Correa ML, Leão LHC, Pignatti MG, Machado JMH, organizadores. Desastres sócio-sanitário-ambientais do agronegócio e resistências agroecológicas no Brasil. São Paulo: Outras Expressões; 2021.. A escassez de alimento, evidente em Mata Cavalo, sempre foi empreendimento colonial atrelado aos interesses particulares do agronegócio e da economia, agravado e visibilizado pela sindemia da COVID-19. É agudização de problemas cronificados que extrapolam o âmbito da saúde, alcançando conjunturas econômica, política e estrutural sobrepondo desigualdades raciais acentuando para a população negra lugar de desprivilegio, às margens das políticas públicas3535 Santos ER. Necropolítica, coronavírus e o caso das comunidades quilombolas brasileiras. Rev CEAM 2020; 6(1):114-124..

As taxas da doença e morte pela COVID-19 têm sido maiores na população negra do que na branca, explicando-se pela determinação social do binômio saúde-doença, pela interação com as doenças crônicas prevalentes e pelas diferenças no acesso aos serviços adequados3636 Araujo EM, Caldwell KL, Santos MPA, Souza IM, Santa Rosa PLF, Santos ABS, Batista LE. COVID-19 morbimortality by race/skin color/ethnicity: the experience of Brazil and the United States. Saude Debate 2020; 44(n. esp. 4):191-205.. Expressão de racismo institucional!

E o vírus chegou em Mata Cavalo. As incertezas e o pouco conhecimento científico sobre a doença, a presença de casos positivos na comunidade aliados às dificuldades estruturais e de serviços citados, geraram inseguranças, medo e desespero, ou seja, repercutiu na saúde mental, emocional dos mata-cavalenses. Vejamos:

Essa doença é assustadora [...] principalmente no início quando a gente não tinha mais informação sobre, aí a gente sabe, tem consciência que sempre a população mais pobre é prejudicada, infelizmente. Então, a gente ficou assim, sem chão [...] vendo as mortes pela televisão [...]. E aí a gente via pessoas morrendo inicialmente fora do Brasil, assustava cento e poucas mortes e depois chegou no Brasil de 600 e 700 casos de mortes por dia [...], momentos de muito desespero [...,] esse foi o momento de maior pânico na comunidade por que a gente já tinha tomado a primeira dose e mesmo assim houve morte por conta da COVID [...], mas aqui todo mundo se isolou muito mesmo porque tinha muito medo, sabendo que a gente não teria muitas vezes acesso ao hospital, que é uma doença desconhecida (Abayomi).

Eu não sei como que ela surgiu de que maneira ou por que ela surgiu, [...], mas essa doença é terrível, né [...] levou muita gente, muitos amigos, muitos moradores da comunidade, né. Pessoas adoráveis, pessoas que lutou pela comunidade quilombola, que esteve desde o começo e pegou a COVID (Eno).

Nesse contexto de sindemia são frequentes o medo de adoecer e morrer, angústia e tristeza, sentimento de impotência e medo de perder as condições de subsistência3737 Noal DS, Passos MFD, Freitas CM, organizadores. Recomendações e orientações em saúde mental e atenção psicossocial na COVID-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020.. Na fala de Abayomi fica claro que os sintomas são potencializados quando os marcadores sociais da (in)diferença tornam sujeitos e grupos mais ou menos vulnerabilizados ao adoecimento, logo, o sofrimento psíquico reverbera singularmente na vida da população negra.

Outra repercussão na saúde mental dos quilombolas foi a medida de isolamento e distanciamento. Isso choca com o modo de vida ali que cultiva a relação, o coletivo, coerente às práticas ancestrais2020 Silva SR, Nascimento LK. Negros e territórios quilombolas no Brasil. Cad CEDEM 2012; 3(1):23-37.. Abayomi contou da decisão de “vamos nos enclausurar, vamos fechar nossas casas até para parentes que venham da cidade” e Eno diz “a gente tentou evitar o máximo a presença dos parentes, da filha. Ficamos isolados”. O isolamento repercutiu na comercialização de produtos locais afetando a saúde mental pela ameaça à sobrevivência material pois, como disse Abayomi “muitas famílias vivem especificamente de vender seus produtos e aí sem sair da comunidade, sem receber gente na comunidade como é que iria produzir?”.

Sintomas do confinamento como ansiedade, depressão, uso nocivo de álcool, menor bem-estar mental; e da quarentena como tédio, solidão e raiva3838 Ahmed MZ, Ahmed O, Aibao Z, Hanbin S, Siyu L, Ahmad A. Epidemic of COVID-19 in China and Associated Psychological Problems. Asian J Psych 2020; 51:102092. resultam da interação de fatores vividos por todos durante a sindemia como a finitude humana, a gravidade da doença, a desinformação, as fakes news, a fragilidade da vida e a precariedade dos serviços de saúde. Contudo, com a insuficiência dos serviços de saúde, vulnerabilização e agressão por preconceitos culturais pré-existentes, as repercussões psicossociais se exacerbaram em Mata Cavalo fazendo com que vivessem um pandemônio, um clima de tensão, medo e horror, como se nota. Ou seja, os efeitos sanitários, sociais e econômicos atingem toda a população na sindemia, mas alguns grupos vivenciam de modo mais agudo3737 Noal DS, Passos MFD, Freitas CM, organizadores. Recomendações e orientações em saúde mental e atenção psicossocial na COVID-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020.:

Esse medo nos acometia dia e noite porque quando a gente viu a morte de crianças com a COVID, agravando o número de internações, infecção e aí acabou muita gente adoecendo e até agravando certo tipo de doença pelo medo de adoecer, de ficar grave pelo medo de não ter atendimento. Porque a maioria das pessoas não tem recurso para atendimento particular. Eu acho que esse medo adoeceu mais a gente que a própria COVID [...] não podia ter esse contato e as crianças daqui elas chegam abraçam, elas querem dar bença, tem muito essa questão do toque foi muito sofrimento ver a criança e não poder tocá-la, chegar perto, ter que usar máscara [...] foi momento muito tenso, muito difícil [...] aqui todo mundo se isolou muito mesmo porque tinha muito medo [...] a gente sofria desse medo (Abayomi).

O cenário acima revela a pertinência da atenção à saúde mental na sindemia, concomitante à sua ausência nas ações da Política Nacional de Enfrentamento à COVID-191717 Soares CCA. Educação ambiental na comunidade quilombola de Mata Cavalo: diálogos da arte, cultura e natureza [dissertação]. Cuiabá: Programa de Pós-Graduação em Educação/Universidade Federal de Mato Grosso; 2018.:

Faltou [...] dar um atendimento para acalmar a gente [...] eu acho que deixou [...] a desejar [...] no trabalho mais efetivo, eu acho que conscientização, com psicólogo, com acompanhamento para acalmar as famílias neste sentido [...] o medo causou ansiedade, eu mesmo tive que fazer tratamento de estomago por conta desse meio período (Abayomi).

Corpo e mente são indissociáveis. Nas narrativas nota-se a carência de ações massivas para acolher os sentimentos aflorados na/pela sindemia, sem psiquiatrizá-los confluindo com os princípios da integralidade e equidade previstos no SUS e na Reforma Psiquiátrica.

Outra repercussão limite foi a morte por complicações da COVID-19:

Essas pessoas que faleceram, elas faleceram quando a gente ainda tava tomando a primeira dose [...] época que o RR [nome] morreu, que o Sr SS faleceu e que o Sr TT faleceu. Esse foi o momento de maior pânico na comunidade. A gente já tinha tomado a primeira dose e mesmo assim houve morte por conta da COVID. Aí ninguém confiava em ninguém, porque não tá escrito na testa quem tá contaminado ou não, né. Então, esse início da pandemia quando a gente não conhecia direito e essas mortes [...] (Abayomi).

Primeiro a gente perdeu o Sr X, depois Y, depois W e depois o Sr Z (Eno).

A morte de um/a quilombola tem importância qualitativa, extrapola o morrer físico, sendo repleta de sentidos, simbolismos, significados potentes, principalmente de pessoas idosas que carregam a história na memória (re)contada oralmente na sociabilidade intergeracional. Tais mortes significam extermínio político, cultural, linguístico, religioso e ancestral de um povo3535 Santos ER. Necropolítica, coronavírus e o caso das comunidades quilombolas brasileiras. Rev CEAM 2020; 6(1):114-124.:

Essas pessoas que faleceram [...] eram pessoas muito ativas na comunidade, muito querida. Então, foi um momento muito triste, cada uma delas [...] foi muito chocante [...]. A cada morte de um quilombola é um pedaço da história, da tradição do Quilombo que morre, porque apesar da gente aprender todo dia, mas a gente fica sempre dependente do conhecimento dessas pessoas, né. É um chá, o Sr RR por exemplo, ele tirava a seiva do Jatobá que é muito bom para quem está com problema no pulmão, era ele que mexia com o trator da associação, ele sabia muitas histórias, sabia onde que fica o marco do território, né. O Sr SS nos ajudava a fortalecer a questão da cultura da capoeira. [...] Esse ano agente teve, esse mês agora, a gente teve dia 13, uma atividade aqui na comunidade e quando a capoeira se apresentou [...] a gente sentiu a falta dele, sentiu a presença dele, e sentiu, vai fazer falta a presença dele aqui na comunidade. Então, com certeza cada morte que se vai, não só pela COVID, mas de cada um desses nossos anciãos com certeza é parte da história. Meu bisavô, por exemplo, ele morreu com 113 anos, então a nossa confiança em contar a história da comunidade era ele que nasceu em 1905. Ele conviveu com pessoas que foram escravizados, então ele teve acesso às pessoas que viveram, né, essa crueldade. Ele sabia contar para gente toda essa história. A minha vó quando faleceu ela era uma líder da comunidade, sabia muitas histórias e tem coisas que ela levou com ela que a gente não teve tempo de aprender, né. Ela morreu com 75 anos. Então, tem muita coisa que a gente não conseguiu aprender com ela (falecida) e assim com essas pessoas que a COVID, infelizmente, levou também. Tinham muitas coisas para a gente aprender com elas, muitas contribuições que podiam trazer para o povo, para a luta, mas infelizmente foi interrompido pela Covid e a gente ficou órfão, né, desses saberes (Abayomi).

Uma líder do quilombo quando ela faleceu... Nossa Senhora! Quando morre um quilombola é um irmão, uma pessoa da família. Aqui somos unidos, o que acontece com um preocupa todo mundo, quando um é despejado todo mundo está junto, quando você perde uma pessoa que está aqui todos os dias no seu convívio, é um irmão, é uma perda, só Deus para explicar, né. Não tem explicação. Quando morre um quilombola é um parente meu, um membro da minha família, um irmão que a gente está perdendo. Deixa lembrança, recordação e saberes (Eno).

Notamos assim, o reflexo de como o sistema colonial está entranhado nas relações estruturais brasileiras de modo que, os quilombolas continuam suas lutas pela existência e promoção dos direitos de vida digna. Parafraseando Millôr Fernandes “o Quilombo Mata Cavalo tem um longo passado pela frente”, por isso é necessário resistir. O racismo difuso e persistente, seus desdobramentos e suas repercussões, não é processo acabado e, portanto, a não passividade mobiliza para enfrentamentos antirracistas. Sigamos abolicionistas!

Considerações finais

Considerar a sindemia da COVID-19 e suas repercussões possibilitou compreender parte do enfrentamento ao coronavírus, desmascarando os valores subjacentes do Estado ao tratar o fenômeno como pandemia e doença democrática. Tal compreensão se baseou nos relatos com toda a força, autoridade e legitimidade da experiência de interlocutores/as que ecoam vozes.

Quilombolas compõem a população negra e foram singularmente expostos/as ao vírus, com destaque às repercussões psicossociais, explicadas pela consciência histórica de que a precariedade e o preconceito racial são filtros importantes para o acesso ao cuidado materializando a face institucionalizada do racismo.

É o presente/futuro repetindo o passado. Há 523 anos o racismo e o extermínio da população negra fazem parte da nossa realidade, afinal o Brasil foi edificado através/sobre o sangue e o suor do povo negro derramado neste chão. Africanos/as escravizados/as chegaram na terra do ouro e do pau-brasil sem bagagem, sem hospedagem, sem direito e sem assistência à saúde. As disparidades em saúde e a desigualdade racial/social são históricas e a população negra vem sendo mantida em situação de pobreza e vulnerabilidades - processo que a sindemia do novo coronavírus colocou em evidência e potencializou.

No Brasil a abolição da escravidão foi incompleta, pois corpos negros, “libertos”, permanecem à margem da atenção do Estado, carecendo de ações e serviços públicos em áreas fundamentais ao desenvolvimento humano.

A perspectiva sindêmica é oportuna à compreensão não fragmentada de problemas complexos e estruturantes, como é o caso do racismo e das desigualdades raciais com as interseccionalidades colocadas nas interações micro, meso e macrossociais e se refletem na existência da população negra. Em coerência, pode subsidiar respostas abrangentes, multisetoriais e integradas que sejam, sobretudo, antirracistas.

Uma proposta antirracista e contra hegemônica na política de saúde consiste basicamente em dois aspectos. Primeiro, reparar o saneamento rural, a precariedade da infraestrutura de domicílios, de estradas, da economia, ou seja, quitar a dívida histórica do Estado com a população negra. Segundo, superar a ausência histórica de diálogo com povos quilombolas dado o silenciamento sepulcral imposto às suas experiências, modo de vida e cosmovisão. O movimento é de transformá-los de pobres e camponeses, a valorosos povos, onde seus valores civilizatórios, experiências e formas coletivas de organizar e dinamizar a vida, seus conhecimentos médicos e práticas ancestrais sejam respeitados e valorizados para pensar e implementar ações de saúde em seu território.

É preciso fortalecer e efetivar ações existentes como o Estatuto da Igualdade Racial, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) e elaborar políticas e criar instituições pautadas na justiça social e cognitiva (epistêmica) - um universo de diálogo onde vozes silenciadas se façam escutar, uma alternativa ao saber ocidentalizado e colonizado. Na saúde isso requer produzir conhecimentos branco-centrados, negro-centrados, indígena-centrados e quilombolas-centrados, ou seja, conhecimentos a partir de pontos de vista específicos e promover bons encontros.

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  • Financiamento

    O primeiro autor contou com bolsa da CAPES e apoio do PROAP/UFMT.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2023
  • Aceito
    21 Ago 2023
  • Publicado
    23 Ago 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br