Experiências e estratégias de pessoas com doença falciforme no Distrito Federal: a ruptura biográfica

Jéssica Luciano da Costa Maria Inez Montagner Miguel Ângelo Montagner Sandra Mara Campos Alves Maria Célia Delduque Sobre os autores

Resumo

Trata-se de um estudo sobre a doença falciforme, enfermidade crônica que afeta muitas pessoas no Brasil. O objetivo foi compreender como as pessoas lidam com as adversidades oriundas do diagnóstico e a ruptura biográfica. A descrição das experiências e estratégias empregadas pelas pessoas compuseram um quadro que expressa os habitus dos entrevistados, construídos em relação dialética com a vulnerabilidade determinada pela doença. A abordagem foi qualitativa e empregou entrevistas focadas como propostas por Merton, a técnica bola de neve aplicada em grupos relacionados à doença falciforme em redes sociais. Sete participantes foram selecionados por serem informantes privilegiados, portadores da doença, maiores de 18 anos, moradores no Distrito Federal e usuários não exclusivos do Sistema Único de Saúde. O material das entrevistas foi categorizado a partir dos núcleos focais empregados. Os resultados apontaram as categorias: ruptura biográfica, experiência e estratégias de enfrentamento, atenção à saúde. Concluímos que é necessária uma sensibilização dos profissionais e da população sobre as dificuldades da condição de vida das pessoas com doença falciforme e a consolidação das políticas públicas e das redes de atendimento para acolher essa população.

Palavras-chave:
Doença falciforme; Doença crônica; Experiência; Vulnerabilidade social

Introdução

As doenças falciformes são enfermidades crônicas de caráter genético, e existem várias discussões sobre a etiologia e as mutações genéticas dais quais derivam11 Lopes WSL, Gomes R. A participação dos conviventes com a doença falciforme na atenção à saúde: um estudo bibliográfico. Cien Saude Colet 2020; 25(8):3239-3250..

Empregaremos neste trabalho, quanto às definições biomédicas da enfermidade, o termo doença falciforme, pois de acordo com a pesquisadora Silva, o termo engloba todas as outras desordens causadas pela mesma mutação genética, além da anemia falciforme22 Silva ACR. Compartilhando genes e identidades: orientação genética, raça e políticas de saúde para pessoas com doença e traço falciforme em Pernambuco. Recife: Editora UFPE; 2014..

Contrariamente ao que se pensa, a doença falciforme não é rara. De acordo com Modell et al.33 Modell B, Darlison M. Global epidemiology of haemoglobin disorders and derived service indicators. Bull World Health Organ 2008; 86(6):480-487., ela faz parte de um grande grupo chamado de “desordens da hemoglobina”. Nos distúrbios falciformes, os glóbulos vermelhos falciformes bloqueiam pequenos vasos sanguíneos e causam anemia, asplenia funcional, episódios de dor intensa e danos residuais aos órgãos.

Desde então, foram realizados diversos estudos buscando descrever os aspectos patológicos e a fisiologia da doença falciforme, ou seja, até hoje estuda-se as melhores formas de se compreender a associação entre a doença e as necessidades das pessoas assistidas44 Montalembert M, Anderson A, Costa F, Jastaniah W, Kunz JB, Odame I, Beaubrun A, Lartey B, Inusa BP. P1487: Sickle Cell Health Awareness, Perspectives and Experiences (Shape) Survey: findings on the burden of sickle cell disease on patients and their unmet needs as reported by healthcare professionals. HemaSphere. 2022; 6(Suppl.):1369-1370..

Segundo Model et al.33 Modell B, Darlison M. Global epidemiology of haemoglobin disorders and derived service indicators. Bull World Health Organ 2008; 86(6):480-487., tais desordens estão presentes em 71% dos 229 países do mundo, sendo que 5,2% da população mundial carrega o gene responsável. Ainda, a hemoglobina S é responsável por 40% dos portadores e causa mais de 80% das comorbidades das pessoas que têm a doença. Logo, estima-se o nascimento de cerca de 276 mil crianças com doença falciforme por ano no mundo, sendo que 3,5 mil nasceriam no Brasil55 Felix AA, Souza HM, Ribeiro SBF. Aspectos epidemiológicos e sociais da Doença Falciforme. Rev Bras Hematol Hemoter 2010; 32(3):203-208..

A doença é diagnosticada de maneira precoce por meio da triagem neonatal, conhecida popularmente como “teste do pezinho”, exame realizado entre o 3º e o 6º dia de vida66 Botler J, Camacho LAB, Cruz MM. Análise de desempenho do Programa de Triagem Neonatal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, de 2005 a 2007. Cad Saude Publica 2011; 27(12):2419-2428.. Cabe lembrar que somente em 2001 passou a ser um direito da criança realizar o teste em qualquer lugar do Brasil77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Assistência à Saúde. Coordenação-Geral de Atenção Especializada. Manual de Normas Técnicas e Rotinas Operacionais do Programa Nacional de Triagem Neonatal. Brasília: MS; 2002.. Antes dessa normatização, a doença podia ser diagnosticada a partir dos seis primeiros meses de vida por meio de sintomas e complicações clínicas que a criança podia apresentar, mas o diagnóstico podia demorar88 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Assistência à Saúde. Manual de Educação em Saúde: Auto-Cuidado Doença Falciforme. Brasília: MS; 2008..

Segundo Nascimento et al. 99 Nascimento MI, Przibilski ALF, Coelho CSG, Leite KFA, Makenze M, Jesus SB. Mortality attributed to sickle cell disease in children and adolescents in Brazil, 2000-2019. Rev Saude Publica 2022; 56:56-65. (2022), há dois estratos etários mais afetados: de 0 a 4 anos e de 15 a 19. Mesmo com necessidades de diferentes cuidados, os autores apontam que, na adolescência, depois de superar todos os problemas durante a infância oriundos da doença falciforme, ainda há a possibilidade de morte. É um período crítico, de construção de plena da consciência pessoal e de transição para a fase adulta. Eles apontam que “elucidar essa problemática será essencial para readequar a atenção nessa fase da vida, a qual é impregnada de desafios e incertezas, agravados pela DF”99 Nascimento MI, Przibilski ALF, Coelho CSG, Leite KFA, Makenze M, Jesus SB. Mortality attributed to sickle cell disease in children and adolescents in Brazil, 2000-2019. Rev Saude Publica 2022; 56:56-65. (p. 7).

Existem diversos sintomas clínicos que as pessoas com doença falciforme apresentam: crises de dor, febres, aumento súbito do baço ou distensão abdominal, dor torácica, tosse, deficiência visual, prostração, dificuldade respiratória, ereção peniana dolorosa, náuseas, vômitos, icterícia, alterações neurológicas (convulsões, letargia, fraqueza muscular, mudança de comportamento), impossibilidade de ingerir líquidos, sinais de desidratação. Portanto, podemos perceber que as complicações de saúde dessas pessoas não permitem que elas tenham plenas condições e qualidade de vida, necessitando de políticas públicas e sociais que as protejam e lhes permitam ter participação como cidadão1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Manual de eventos agudos em doença falciforme. Brasília: MS; 2009.. A única “cura” descrita é o transplante de medula óssea, proposta ainda em estudo nos meios acadêmicos, e mesmo considerando seus benefícios no curto prazo, a perspectiva em longo prazo deve ser considerada, além de se tratar de um tratamento ainda restrito a grupos específicos1111 Bhatia M, Walters M. Hematopoietic cell transplantation for thalassemia and sickle cell disease: past, present and future. Bone Marrow Transplant 2008; 41(2):109-117..

Marco teórico

Aa transição demográfica mundial e também a brasileira nos levaram ao crescimento contínuo das enfermidades crônicas, característica das sociedades modernas1212 Schramm JMA, Oliveira AF, Leite IC, Valente JG, Gadelha AMJ, Portela MC, Campos MR. Transição epidemiológica e o estudo de carga de doença no Brasil. Cien Saude Colet 2004; 9(4):897-908.. Estas, mais do que as agudas, divergem do modelo da história natural da doença, pois não têm cura nem reabilitação total.

Nossa motivação para a pesquisa foi elucidar como a doença falciforme provoca sofrimentos, perdas e incapacidades para as atividades rotineiras, o que nomeamos de ruptura biográfica. A ruptura pode acontecer em diversos momentos da biografia da pessoa, introduzindo novas experiências, como a necessidade de medicação e de espaços de atendimento, bem como complicações de ordem econômica, religiosa e social pelas quais passam as pessoas que têm essa doença1313 Montagner MA. Trajetórias e biografias: notas para uma análise bourdieusiana. Sociologias 2007;17:240-264..

Michael Bury considera que a enfermidade está relacionada a questões sociais e econômicas que interferem nas experiências vivenciadas por pessoas em processo de adoecimento crônico. Esse processo, catalisado em geral pelo diagnóstico, foi descrito por Bury1414 Bury M. Chronic Illness as biographical disruption. Sociol Health Illness 1982; 4(2):167-182.,1515 Bury M. Doença crônica como ruptura biográfica. Tempus Actas Saude Colet 2011; 5(2):41-55. como ruptura biográfica, processo no qual a pessoa começa a vivenciar a perda de sua rotina de vida, precisando reinventar ou desenvolver novas práticas para dar continuidade ao seu próprio “eu” e para atender às novas responsabilidades. O adoecimento crônico rompe as estruturas com as quais o indivíduo está acostumado a conviver e a conhecer, levando ao enfrentamento de novas realidades, que envolvem a dor, o sofrimento e a possibilidade da morte, conforme constatou-se de diferentes formas em outros estudos1616 Souza DKCP, Montagner MI, Alves SMC, Montagner MA. A experiência e as estratégias das mulheres de etnia cigana com o nascimento dos seus filhos: a realidade do mundo cigano no Sistema Único de Saúde do Distrito Federal. Cad Ibero Am Direito Sanit 2022; 11(1):106-127.

17 Montagner MA, Montagner MI. Ruptura biográfica, trajetórias e habitus: a miséria do mundo é um câncer. Tempus Actas Saude Colet 2011; 5(2):193-216.
-1818 Montagner MI. Mulheres e câncer de mama: experiência e biografia cindidas [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2011..

Dada a importância do tema, esta pesquisa procurou elucidar as formas como as pessoas gerenciam e administram suas vidas com a enfermidade e seus sintomas - suas experiências a partir da ruptura biográfica causada pela doença falciforme. Analisamos as estratégias empregadas pelas pessoas, incorporadas em seu habitus, ou melhor, como se manifesta o habitus dessas pessoas nas práticas cotidianas do tratamento e ao se relacionarem com seus corpos. Para tanto, utilizamos os conceitos que discutiremos abaixo.

O conceito de habitus de Pierre Bourdieu1919 Bourdieu P. Le sens pratique. Paris: Minuit; 1980. remete a uma aprendizagem histórica, por meio do processo de socialização familiar secundária na escola e, ainda, terciária na formação do habitus profissional. O habitus transcende a individualidade, pois incorpora em si a aprendizagem e a atuação nas situações que aconteceram nos campos sociais do agente social, criando marcas na maneira de pensar e agir de acordo com o grupo, a época e com as pessoas com quem se vive. Para Montagner e Montagner 1717 Montagner MA, Montagner MI. Ruptura biográfica, trajetórias e habitus: a miséria do mundo é um câncer. Tempus Actas Saude Colet 2011; 5(2):193-216. (p. 197) o

habitus indica um sistema de esquemas de percepção, de valores e de juízos, de apreciação e de ação que são inclusive inscritos no corpo, incorporados pelas experiências, como “galhos mortos” que ainda pertencem à árvore e fazem parte de sua estrutura.

O conhecimento das expressões do habitus das pessoas ou dos grupos, através das práticas de enfrentamento da enfermidade crônica, permitirá não só evidenciar aspectos ainda desconhecidos da relação dos indivíduos com a enfermidade, também garantirá a elaboração de novas propostas de cuidado para essa população, por meio de dados reais e que compreendam as demandas dos indivíduos. Nesse processo de enfrentamento da doença, as pessoas empregam estratégias práticas, pragmáticas, baseadas em sua experiência de vida ou na própria criatividade no momento de necessidade. Essas estratégias dependem dos recursos à disposição da pessoa - que poderiam ser chamados de capitais na teoria de Bourdieu - e estão intrinsecamente ligadas ao habitus de grupo.

A expressão e realização do habitus dos agentes acontece nos campos sociais, nos quais a presença da enfermidade determina a ocorrência de diferentes vulnerabilidades em um grupo1717 Montagner MA, Montagner MI. Ruptura biográfica, trajetórias e habitus: a miséria do mundo é um câncer. Tempus Actas Saude Colet 2011; 5(2):193-216.. A situação de vulnerabilidade das pessoas com doença falciforme, oriunda das estruturas sociais, as leva a empregar estratégias cotidianas de enfrentamento de sua condição. Essas estratégias fazem parte do habitus do indivíduo e de seu grupo, pois esse habitus fornece os meios e ferramentas de ação que são continuamente colocados em jogo. Esses meios presentes de forma estruturada e estruturante no habitus podem ser compreendidos como os capitais econômico, social, cultural, simbólico e outros2020 Bourdieu P. As regras da arte. São Paulo: Cia das Letras; 1996.. Essa conformação histórica da vulnerabilidade leva os indivíduos a práticas mais ou menos eficazes dentro de suas condições de vida e de um dado campo social.

Montagner e Montagner2121 Montagner MA, Montagner MI. Desigualdades sociais e o pensamento social em saúde: vulnerabilidade social na sociedade pós-moderna. In: Montagner MA, Montagner MI, organizadores. Manual de Saúde Coletiva. Curitiba: CRV; 2018. p. 17-38. descrevem a vulnerabilidade estrutural ou genética como uma situação definida em um momento histórico, de origem concreta, derivada de determinado campo social, reconhecida em termos sociais e relacionais por grupos, que envolvem mais do que apenas o individual e determinam também o próprio coletivo. A vulnerabilidade genética - presente nas estruturas sociais - atinge todos os membros do grupo em questão por meio dos condicionantes da cultura, da política e da economia, ou seja, por meio de todos os campos sociais. Ainda que de formas indiretas ou difracionadas pelos campos sociais e pela determinação de classe, a vulnerabilidade estrutural - do grupo - conduzirá todos esses indivíduos a sofrerem uma desvalorização como pessoa pública e como cidadão, o que pode levá-los a uma alienação de seus direitos como ser humano e cidadão.

O objetivo central deste artigo consiste em compreender e analisar como as pessoas lidam com a ruptura biográfica e as adversidades oriundas de sua vulnerabilidade, por meio da descrição das experiências e estratégias de pessoas com doença falciforme.

Metodologia

Neste estudo, utilizou-se a abordagem qualitativa e empregou-se a entrevista focada, descrita por Merton e colaboradores, que requer duas condições, a primeira é o conhecimento prévio sobre o tema e/ou do acontecimento abordado; a segunda é que haja entre entrevistador e entrevistados relação direta com o tema2222 Merton RK, Fiske M, Kendall PL. The Focused Interview. Glencoe: The Free Press; 1956.. Nessa técnica, os núcleos focais do roteiro de entrevista são estabelecidos de antemão, a partir da bibliografia consultada e da experiência do pesquisador. Esses núcleos direcionam as entrevistas e mantêm o assunto delimitado. A entrevista semiestruturada foi dividida em quatro núcleos (focais) de perguntas: história de vida, doença falciforme, experiências e estratégias de enfrentamento específico.

A presente pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Brasília, Faculdade de Ceilândia, processo nº 25406619.2.0000.8093.

Os critérios de inclusão adotados no estudo foram: ter o diagnóstico da doença, fazer uso não exclusivo do Sistema Único de Saúde (SUS) no Distrito Federal, ter idade igual ou superior a 18 anos, morar no DF ou na RIDE (Região Integrada de Desenvolvimento Econômico) do DF e fazer parte de alguma organização social ou política que tenha como objetivo central a doença falciforme.

Os participantes selecionados como informantes privilegiados foram escolhidos em função de serem pessoas com atuação política social, seja em grupos organizados em associações de pacientes ou em relação com políticos e agentes públicos, como médicos, gestores e acadêmicos.

Utilizou-se a técnica bola de neve (snow ball), que se baseia no procedimento de reunir na amostra indivíduos que apresentem uma característica em comum, independentemente do grupo populacional que faça parte. Os primeiros participantes foram contatados em comunidades (páginas e grupos de redes sociais) relacionadas à doença falciforme e abordados diretamente, explicando-se a pesquisa. Solicitou-se que indicassem pessoas que tinham as mesmas características definidas para o estudo. Esse processo se repetiu até a formação da “bola de neve” de participantes, a amostra desejada e com a qual obtém-se o ponto de saturação da pesquisa2323 Goodman LA. Snowball Sampling. Annals Mathematical Stat 1961; 32(1):148-170.. As entrevistas foram realizadas por meio virtuais, como os aplicativos Google Meet, Zoom, WhatsApp.

O estudo foi conduzido entre maio e junho de 2020 e contou com a participação de sete pessoas. Para preservar suas identidades, foram atribuídos nomes fictícios baseados em personalidades da música popular brasileira (MPB): Elis, Clara, Clementina, Marisa, Geraldo Vandré, Adoniran e Nilze. Com a realização das entrevistas, foi possível aglutinar os achados em torno de três categorias: ruptura biográfica, estratégias de enfrentamento e atenção à saúde.

Resultados e discussão

Dados socioeconômicos

Foram entrevistados dois homens e cinco mulheres; eles se declararam como: três pretos, dois pardos, um branco e um não respondeu. Dos sete entrevistados, quatro se consideram católicos apostólicos; um católico não praticante, um evangélico, um sem religião e uma não resposta. Cinco entrevistados eram casados e dois solteiros. Por fim, quatro tinham plano de saúde particular.

Cabe ressaltar que os participantes, ainda que tivessem planos de saúde com níveis de cobertura variáveis (em geral planos mais simples), recorrem ao SUS nos momentos de crise, em especial aos centros de referência, e ainda recebem os medicamentos por via da Farmácia de Alto Custo do SUS. Os planos de saúde servem para o tratamento de comorbidades e a realização de exames com resultados mais rápidos. Alguns participantes relataram usar os planos de saúde para tratamentos de saúde mental, como psicólogos e psiquiatras.

Constata-se que a maioria da amostra é oriunda da população negra, composta de pretos e pardos. Cabe ressaltar aqui a ligação entre a doença falciforme e a dimensão racial. Como aponta Calvo2424 Calvo-Gonzalez E. Hemoglobinas variantes na área médica e no discurso cotidiano: um olhar sobre raça, nação e genética no Brasil contemporâneo. Saude Soc 2017; 26(1):75-87., os conceitos relacionados aos aspectos raciais são definidos de acordo com a história e a cultura, ao longo dos tempos. A relação entre medicina e senso comum não foge a essa regra. O conceito de raça, compreendido pela medicina e pelo senso comum, sofreu mudanças históricas e culturais ao longo de todo o período no qual a doença falciforme foi e é estudada. Ressalte-se que as mudanças que encontramos na sociedade atual quanto ao processo de compreensão da doença falciforme em relação a pretos e pardos é resultado dos movimentos da população negra no sentido de se repensar, de forma política e ideológica, as estruturas de atendimento, acolhimento e cuidados da pessoa em função de seu pertencimento racial.

A idade dos participantes variou de 33 a 54 anos. Quanto à ocupação ou profissão, três afirmaram estar aposentados, um era técnico de enfermagem, dois eram funcionários públicos e um psicólogo. Um dado relevante foi que os aposentados tinham o ensino fundamental ou médio, enquanto aqueles com ensino técnico ou superior continuaram a atuar em suas áreas após conseguirem fazer adaptações necessárias. A possível explicação é a própria enfermidade e suas complicações, que impediriam os trabalhos com horários ou atuação física mais rígidos, o que seria facilitado nas profissões mais “liberais”, com maior flexibilidade de horários e disposição de tempo.

Esses informantes têm idades superiores a 33 anos e já passaram por grandes períodos de internação, exames, transfusões e cirurgias, dado que há 30 anos não havia outras possibilidades medicamentosas e curativas como atualmente. No documento expedido pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS - CONITEC2525 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC). Medicamentos para o tratamento de doença falciforme. Brasília: MS; 2022. sobre os impactos das novas tecnologias de medicamentos e o SUS para o tratamento da doença falciforme, mesmo não se tratando de um guia de prática clínica, podemos verificar a quantidade de novas drogas incorporadas nos últimos anos. Esses medicamentos, além de aumentar o número de anos vividos, produzem um efeito positivo na qualidade de vida, alterando a percepção e a experiência com os efeitos desta doença.

Ruptura biográfica

O diagnóstico é, em geral, o marco inicial na construção do habitus da pessoa com a enfermidade. A partir de então, o agente social passa a interiorizar e tomar consciência de sua situação de enfermo crônico e das mudanças no seu cotidiano. Esse é o momento que podemos considerar de ruptura biográfica1515 Bury M. Doença crônica como ruptura biográfica. Tempus Actas Saude Colet 2011; 5(2):41-55.. Cabe ressaltar que a ruptura biográfica pode se apresentar como um processo gradativo, passando por graus de aprofundamento.

A doença falciforme é uma enfermidade detectada pelo conhecido “teste do pezinho”, que passou a ser obrigatório em 1992, com a Portaria nº 22 do Ministério da Saúde, que instituiu o Programa de Diagnóstico Precoce do hipotireoidismo congênito e fenilcetonúria. Em 2001, há ampliação da triagem neonatal, com objetivo de cobrir 100% dos nascidos. No entanto Mallmann et al.2626 Mallmann MB, Tomasi YT, Boing AF. Neonatal screening tests in Brazil: prevalence rates and regional and socioeconomic inequalities. J Pediatr (Rio J) 2020; 96(4):487-494. apontam que o teste tem relação positiva com: região do país, sendo maior a chance de realização no Sudeste e no Sul, em seguida Centro-Oeste e Nordeste, em comparação com o Norte; maior chance entre os que têm plano de saúde, com maior renda familiar per capita e cor/etnia branca. Por fim, a desinformação ou desconhecimento sobre a importância do teste é outra desigualdade apontada2727 Reichert APS, Pacífico VC. Conhecimento de mães quanto a importância do teste do pezinho. Rev Bras Enferm, Brasília 2003; 56(3):226-229..

Considerando a idade de nossos informantes, nem todos receberam o diagnóstico tempestivo. Contaram que as mães tiveram de procurar diversos especialistas para obter o diagnóstico e, neste ínterim, houve até mesmo acusações de maus-tratos com as crianças, por elas apresentarem inchaços nas mãos e pés e pelo choro contínuo de dor. A primeira ruptura costuma ocorrer na época da escolarização, quando as diferenças começam a ser observadas.

Clementina, por exemplo, relatou questões típicas da ruptura biográfica, pois sendo católica, tem dificuldades de frequentar a missa e, além da enfermidade crônica, tem complicações decorrentes do tratamento com radioterapia para um câncer na pelve. Tais limitações impedem que ela execute atividades que considera importantes para sua vida, precisando reinventar suas ações cotidianas e sua rotina. Ela exprimiu que a impossibilidade de se ajoelhar para fazer suas rezas a fazia, muitas vezes, sentir-se mal perante seus irmãos de fé. Não poder expressar sua fé foi um impacto muito maior do que não conseguir cuidar de si mesma.

Um ponto fundamental relatado por vários entrevistados foi a limitação da escolha de suas profissões, decorrente das limitações pessoais (independentemente de interesses pessoais), bem como deixar os estudos formais. Faltas às aulas ou ao trabalho por questões de saúde não são compreendidas por empregadores e professores. Essa condição ruptura é reforçada com a fala de Adoniran:

É complicado ter que todos os dias lutar contra a doença e ainda provar competência para não ser demitido no emprego ou conseguir acompanhar os colegas de escola, nem todos conseguem, já lutamos demais pela vida.

A demanda frequente por afastamentos e atestados médicos é interpretada como preguiça e inaptidão para o trabalho ou os estudos. Mesmo que seja apenas para conseguir uma medicação, o tempo de atendimento em unidades de saúde varia de acordo com a demanda, mas todos os participantes relataram que, se o atendimento for de emergência em prontos-socorros ou unidades de pronto atendimento, ele é demorado. Adoniran cita que o atendimento demora entre uma e duas horas, mesmo quando recebe a pulseira alaranjada indicando a severidade do quadro.

Sobre o atendimento para consultas de rotina com o hematologista, não é tão difícil, entretanto, no caso de algum evento que impeça a presença no dia e horário, remarcar a consulta é muito complicado. Geraldo Vandré relata que frequenta periodicamente unidades de saúde para avaliação de seu quadro de saúde após um transplante de fígado, além de já ter feito o transplante de medula óssea, e sempre prioriza as datas de agendamento, pois sabe que, caso ele falte, sairá do fluxo de atendimento.

Outro exemplo a respeito da ruptura biográfica diz respeito às férias, que deixam de ser como um momento agradável e trazem novas preocupações. A pessoa com doença falciforme deve considerar onde obter assistência médica caso tenha uma crise. Foi o que narrou Adoniran:

[...] quando você sai de viagem, só escolhe as roupas que vai usar, certo? No meu caso eu tenho que ter, além de um lugar de atendimento [hospitalar], remédios, entre outras coisas que preciso preparar, ou não podemos viajar. E mesmo assim, sei que terei complicações ao chegar no local.

Estratégias de enfrentamento

A doença falciforme, como uma enfermidade de caráter crônico, demanda o desenvolvimento de diversas estratégias, de modo a permitir que a pessoa adoecida possa vivenciar situações cotidianas e demandas sociais sem grandes prejuízos. Para isso a pessoa demanda uma rotina de acompanhamento de saúde, pois são muitos os fatores que podem levar a crises. Como essas pessoas conseguem esse acompanhamento, em especial no SUS? Algumas das estratégias são apresentadas nos próximos parágrafos.

Clara relata que para conseguir um convênio médico precisou esconder sua enfermidade crônica, dado que os convênios não autorizam a adesão por questão de possível aumento de custos com o tratamento de complicações. Adoniran, que não tem convênio médico, afirma ainda que é muito difícil conseguir contratar um convênio tendo uma enfermidade crônica, e por isso nunca sequer tentou fazer o contrato de adesão. Desse modo, percebe-se que as pessoas com doença falciforme tendem a ser atendidas somente pelo SUS ou ter grandes dificuldades para obter atenção em saúde. Dessa forma, a possibilidade de conseguirem tratamento adequado para se manterem saudáveis e sem crises vem sendo retirada de suas vidas: o setor privado não quer assumir essa responsabilidade e custo, o setor público tem dificuldades para atender a essa demanda.

As estratégias em saúde dessas pessoas tornam-se ainda mais complexas quando se considera a obtenção de medicamentos por meio da Farmácia de Alto Custo. Todos os informantes relataram dificuldades de conseguir acesso a pelo menos um dos medicamentos de que fazem uso. Na ausência de acesso, é necessário fazer a compra do medicamento. Logo, outra estratégia muito comum dos enfermos é perguntar em grupos de pessoas com doença falciforme nas redes sociais se alguém tem o medicamento sobrando. Essa estratégia de escambo de medicamentos é muito corriqueira. Nilze, por exemplo, para conseguir medicamentos prescritos para depressão e síndrome do pânico, precisa comprar cada um dos seus medicamentos, já excetuando os remédios da doença falciforme. Esse gasto, para a sua condição financeira, é muito expressivo, por isso aceita ajuda e escambo para conseguir os remédios. Essas estratégias podem trazer várias consequências: desde ter uma medicação de dosagem errada até o consumo de medicamentos sem prescrição médica, em ambos os casos podendo desencadear outros problemas de saúde.

Em relação à informação e às “consultas”, a troca de informações entre os participantes dos grupos de redes sociais sobre a doença falciforme é uma das estratégias utilizadas. Nesses grupos são informados os locais onde há a dispensação de medicamentos, indicação de hospitais e médicos, bem como da situação de cada pessoa em relação à sua saúde e aos procedimentos realizados. Os grupos sentem segurança ao ter pessoas que enfrentam os mesmos problemas e que dão apoio físico, moral e até religioso.

A prática da ajuda mútua entre os participantes dos grupos em redes sociais tem um lado positivo quanto à adesão ao tratamento medicamentoso, uma vez que existe uma troca de informações sobre efeitos colaterais, práticas de alívio, além de formas de conseguir medicamentos e atendimento médico. Alguns entrevistados apontaram que em um dos grupos havia a participação de um médico que fazia atendimentos de emergência e ajudava com as questões clínicas, políticas e jurídicas. No entanto, isso não impede a automedicação, estimulada por algumas pessoas do grupo, como apontou Adoniran:

[...] é sempre preciso ter o cuidado com as informações, algumas supervalorizam os medicamentos que ainda não têm comprovação confirmada, outras dão dicas de remédios caseiros. Eu já entrei nessa e posso garantir que temos que ter cuidado, pois já fui vítima dessas desinformações e sempre brigo quando veja algo assim nos grupos.

Outra estratégia utilizada pelas pessoas é a judicialização. Os participantes da pesquisa informaram que muitas vezes, em vez de procurar os medicamentos ou a internação pelos meios usuais dos serviços, um caminho mais rápido é entrar com uma ação judicial, dado que isso é as vezes estimulado por profissionais do serviço. Em alguns casos, ao mesmo tempo em que um parente acompanha o enfermo ao hospital ou à farmácia, outra pessoa se apresenta na Defensoria Pública.

Atenção em saúde

Para suprir as necessidades de saúde dessa população em vulnerabilidade existem dois tipos de atendimento: as emergências e urgências por um lado, e as consultas de rotina e intervenções de rotina por outro. Todos os nossos informantes utilizaram, mas cabe aqui uma ressalva: não se tratou neste estudo de fazer uma avaliação do atendimento, mas de analisar as estratégias empregadas pelos participantes para conseguir ser atendido nos mais diferentes espaços de saúde.

Em geral os entrevistados comentaram sobre a dificuldade de agendar exames mais complexos. Por isso, sempre tentam fazer os exames em clínicas particulares, o que acarreta custos adicionais, mas dessa forma conseguem acelerar o andamento da terapêutica pelo SUS.

Para os entrevistados, acessar um médico de confiança é essencial. Eles relataram preferir esperar mais tempo para conseguir atendimento com determinados profissionais, pois sabem do comprometimento ético e de seu envolvimento com as pessoas. Enfatizaram o caráter social do profissional, às vezes em detrimento de seu conhecimento, mesmo considerando que esses profissionais são muito qualificados e entendam muito sobre a doença, uma vez que em geral, em pouco tempo, têm suas necessidades resolvidas. Todos os informantes elogiaram o papel de seus médicos em relação à presteza, à eficácia e à atenção no atendimento.

Em geral a procura por atendimento está relacionada a dor álgica, priapismo, febre e dificuldade na respiração para confirmar ou não alguma complicação da doença falciforme. Um medo frequente relatado é o de receberem o tratamento para a anemia ferropriva, e, segundo os informantes, isso já aconteceu e o resultado foi morte por septicemia. Portanto, fazem questão, mesmo no auge de suas dores, de deixar bem claro que é “doença falciforme”, e não “anemia falciforme”.

Outro problema grave que por vezes pode impedir o atendimento é o de serem confundidos com pessoas usuárias de drogas e que estariam em crise de abstinência. Isso por já conhecerem e demandarem os medicamentos e as dosagens que devem ser ministradas, mas também por sua aparência física. As pessoas com doença falciforme relatam que muitas vezes chegam ao serviço de saúde tremendo por conta da dor, os olhos podem estar amarelados pelo efeito da anemia, em estado de priapismo e outros sintomas que podem confundir o profissional. Cabe ressaltar que, dada a dimensão racial, aliada a essas marcas estigmatizantes, os pacientes tendem a sofrer discriminação.

Uma política pública que os ajudou muito foi a criação da carteira na qual constam todos os seus dados, facilitando a identificação da doença e a quem recorrer em caso de dúvidas. Por exemplo, Adoniran conta que sentiu náuseas, letargia e alucinações auditivas, e que acreditava que eram efeitos adversos relacionados ao uso de um medicamento para dor, ressaltou e que não faz uso de nenhum medicamento ou bebidas alcoólicas, portanto não está no grupo de usuários de drogas: “Eu não tenho preconceito, mas eu não uso drogas e tenho certeza de que ninguém que tem doença falciforme faz uso”. Geraldo Vandré corrobora a versão de Adoniran, enfatizando que, para eles, não tomar remédio é um milagre: “Quando eu percebi que não teria mais que usar remédios [opioides], eu nem acreditei, eu me senti livre.”

A necrose da cabeça do fêmur e de outras articulações demandam cirurgia e fisioterapia frequente. Além das dificuldades da própria necrose, como dificuldade de locomoção e mobilidade, queremos enfatizar as dificuldades no âmbito da sexualidade, por dificultar fisicamente o ato sexual. Vale ressaltar que, no caso de homens com crise de priapismo causado pela enfermidade, eles costumam ser mal compreendidos ou confundidos em muitas situações nos próprios serviços. Isso os leva a só procurar ajuda quando a situação se torna grave, o que pode levar a medidas de tratamento mais drásticas1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Manual de eventos agudos em doença falciforme. Brasília: MS; 2009..

Nilze afirmou que teve osteonecrose na cabeça do fêmur e nos joelhos e precisou fazer duas intervenções cirúrgicas para recuperar a funcionalidade. Afirma, ainda, que o hospital no qual fazia acompanhamento se recusou a realizar a última cirurgia devido ao alto risco e não ofereceu acompanhamento com fisioterapeuta e terapeuta ocupacional. A segunda cirurgia foi feita em um estabelecimento particular, portanto ela arcou com todas as despesas provenientes da cirurgia.

Quanto à vida reprodutiva, as informações que recebemos dos participantes são de que alguns profissionais de saúde tendem ao desencorajamento e por vezes dão orientações equivocadas sobre aconselhamento genético para o planejamento e a decisão de ter filho. Outros nos informaram que a tomada de decisão sobre ter filhos não foi desencorajada pelos profissionais da saúde, mas o medo de terem filhos com a doença os fez desistir da ideia.

Por outro lado, com o advento do transplante de medula e de novas técnicas de tratamento genético da doença falciforme, há encorajamento para que os pais tenham outros filhos, para conseguirem material no cordão umbilical. Houve um relato de que isso já aconteceu, mesmo tendo o risco de ter outro filho com a doença, pois valeria a pena tentar:

Eu conheço uma pessoa que teve outro filho na tentativa de poder fazer o transplante, mas não foi possível, ele nasceu com complicações maiores ainda, mas nada é certo (Adoniran).

As transfusões sanguíneas atuam como medida profilática ao surgimento de complicações, como crises álgicas e acidente vascular cerebral, sendo, em alguns casos, a única medida indicada para evita-las2828 Helman R, Cançado RD, Olivatto C. Incidence of alloimunization in sickle cell disease: experience of a center in São Paulo. Einstein 2011; 9(2 Pt. 1):160-164.. Todos os informantes fizeram transfusões de sangue e contam que nesse caso tiveram o atendimento necessário e acreditam que isso ocorreu por ser uma ação classificada pelo sistema de saúde como emergencial.

Adoniran relatou que precisa de consultas a cada 21 dias, nas quais é avaliada a necessidade de transfusões sanguíneas. Ele também precisou de atendimento médico por conta das fortes dores que sente, mas adotou como estratégia, nos últimos tempos, o atendimento pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência - SAMU. A preferência por chamar esse atendimento é porque dentro da ambulância o paciente já recebe o remédio para dor e, caso necessário, os profissionais conseguem a internação com mais facilidade. Depois que chamaram o SAMU para atendê-lo uma primeira vez e ele viu que era uma boa possibilidade, passou a utilizar esse método.

Marisa, por sua vez, demandou cuidados mais específicos por conta de úlceras nas pernas, uma úlcera no estômago e hepatite provocada por medicamentos. Doenças hepáticas causadas por medicamentos, tal como a hepatite descrita por ela, são, de acordo com Dienstag2929 Dienstag JL. Toxic and drug-induced hepatitis. In: Longo DL, Loscalzo J, Fauci A, Kasper D, Hauser S, Jameson JL, organizadores. Harrisons Principles of Internal Medicine. New York: McGraw-Hill Medicine; 2012. p. 2558-2566., as mais comuns entre as doenças hepáticas agudas. Uma das perguntas que o grupo se faz é como saber se os sinais e sintomas são por conta da doença falciforme ou se são eventos que não têm a ver com a doença, portanto exigindo outros tipos de cuidados. Os informantes disseram que tudo que sentem é explicado a partir da doença.

Em todos os casos e situações relatados, podemos perceber que existe uma grande dependência dos serviços de saúde, tanto na atenção primária como nos centros de referência. Essa dependência faz com que eles sejam conhecidos desde crianças em determinados lugares, o que facilita o bom entendimento dos protocolos pelos profissionais, que já sabem o que fazer, as dosagens de medicamento, sem a necessidade de explicar a própria doença novamente, isso tudo devido ao vínculo estabelecido entre pacientes e profissionais. No entanto, não significa que terão prioridade ou que conseguirão exames ou medicamentos com mais facilidade.

Considerações finais

Os diferentes aspectos apresentados pelos participantes, ao relatar suas experiências, ainda que não se possa generalizar os achados de forma direta, reforçam dois raciocínios centrais que envolvem enfermidades crônicas. O primeiro aspecto é que a doença afeta pessoas de diferentes grupos sociais e realidades, por isso o processo de adoecimento é diversificado e individualizado, ainda que acompanhem certos padrões de demandas e ocorrências que fazem as pessoas utilizarem estratégias próprias ou em grupos para mitigar e vencer as dificuldades.

O acompanhamento psicológico e psiquiátrico deveria ser uma prática disponível e frequente nos casos de enfermidades crônicas, em especial naquelas em que as pessoas sentem dores constantes e com períodos de crises de dor mais intensa. O acompanhamento jurídico serviria para os casos de complicações da doença e suas sequelas, que poderiam levar a pessoa à aposentadoria, com pensão, entre outras demandas.

A análise da ruptura biográfica nos mostrou claramente que as estratégias de vida devem ser continuamente atualizadas e reelaboradas após o diagnóstico3030 Bury M. Ruptura Biográfica. Tempus Actas Saude Colet 2011; 5(2):37-39.. Entre as pessoas pesquisadas, muitas passaram por um processo de descoberta da doença, pois nasceram antes da instituição do teste do pezinho e a própria ruptura veio por desdobramentos bem posteriores ao nascimento1515 Bury M. Doença crônica como ruptura biográfica. Tempus Actas Saude Colet 2011; 5(2):41-55.. A enfermidade é um fator que afeta pessoas de diferentes classes sociais e contextos, tornando os atingidos um grupo diversificado e com experiências e mecanismos de defesa muito heterogêneos, apesar da mesma vulnerabilidade estrutural de grupo. Os que tiveram diagnóstico precoce passaram por uma ruptura biográfica logo no início de sua formação como indivíduo; outros passaram por um processo contínuo que por vezes chegou à adolescência, com episódios agudos e períodos de relativa adaptação à enfermidade, até a completa ruptura, como apontado por Bury1515 Bury M. Doença crônica como ruptura biográfica. Tempus Actas Saude Colet 2011; 5(2):41-55.,3131 Bury M. The sociology of chronic illness: a review of research and prospects. Sociol Health Illness 1991; 13(4):451-468..

Nesse contexto, o habitus faz com as pessoas lidem de maneira única com as adversidades que encontram no decorrer de suas trajetórias de vida, ainda que construindo redes sociais de apoio ou de compartilhamento de suas estratégias.

O segundo aspecto se relaciona com as dificuldades e o papel do Sistema Único de Saúde. A equidade, um dos pilares do SUS, deve ser aplicada diretamente com o objetivo de reduzir as dificuldades e as barreiras que possam existir na assistência à saúde. É fundamental que ocorra, se possível, a interlocução entre diferentes esferas de assistência, de forma que a pessoa seja assistida e sejam respeitadas suas dificuldades.

As instituições políticas, quando instadas, atendem às demandas da sociedade civil organizada e constatamos que nos estados brasileiros onde há uma representação oficial ou uma associação de pessoas com doença falciforme são obtidos os melhores resultados para os afetados.

Concluímos que é necessária uma sensibilização dos profissionais da saúde e daqueles ligados à enfermidade sobre as vicissitudes e a consolidação de fato de políticas e redes de atendimento mais sólidas e ubíquas.

Antes do término das conclusões do estudo, um dos nossos informantes faleceu e lhe dedicamos essa pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2023
  • Aceito
    21 Dez 2023
  • Publicado
    23 Dez 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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