Casais de mulheres lésbicas e bissexuais que vivenciam a dupla maternidade: (des)encontros na produção do cuidado em saúde

Manoel Antônio dos Santos Amanda Brandane Minari Érika Arantes de Oliveira-Cardoso Sobre os autores

Resumo

O vínculo com os serviços de saúde é uma dimensão crucial para viabilizar o projeto materno de casais de mulheres lésbicas e bissexuais. Este estudo teve como objetivo analisar os significados culturalmente construídos sobre o vínculo com os serviços e profissionais de saúde por mulheres lésbicas e bissexuais que vivenciaram a dupla maternidade. Investigação qualitativa fundamentada na antropologia interpretativa. O corpus de pesquisa foi construído com base em entrevista em profundidade com 10 mulheres de 30 a 39 anos. Os resultados mostram que o acesso à parentalidade implicou um itinerário permeado por satisfações e sofrimentos devido a tentativas frustradas e perdas gestacionais. Também foram relatados percalços vivenciados na produção do cuidado em saúde devido a preconceitos, falta de empatia e despreparo de profissionais para lidarem com acompanhamento de pré-natal aos casais de mulheres lésbicas/bissexuais. As manifestações de discriminação foram mais contundentes em relação às mães não gestantes. Os resultados oferecem subsídios para implementação de políticas de humanização e planejamento de programas e serviços de saúde baseados em cuidados culturalmente sensíveis à diversidade para casais de mulheres lésbicas/bissexuais que vivenciam a transição para a maternidade.

Palavras-chave:
Minorias sexuais e de gênero; Saúde da mulher; Serviços de saúde; Satisfação do paciente

Introdução

Não podemos perder de vista o fato de que as mudanças sociais, culturais, econômicas, políticas e científicas que movimentam a dinâmica da sociedade contemporânea têm impulsionado transformações profundas nos conceitos e significados das práticas que regulam as relações familiares11 Vespucci G. Una fórmula deseable: el discurso "somos famílias" como símbolo hegemónico de las reivindicaciones gay-lésbicas. Sex Salud Soc 2014; 17:30-65.. Embora ainda prevaleça uma concepção dominante de família nuclear monogâmica, heterocêntrica e patriarcal, essa questão ganha novos contornos à medida que esse modelo hegemônico tem sido desafiado nas últimas décadas com as mutações observadas no cenário sociocultural, que têm impactado a organização e funcionamento das famílias contemporâneas22 Gato J, Fontaine AM. Impacto da orientação sexual e do género na parentalidade: uma revisão dos estudos empíricos com famílias homoparentais. Exaequo 2011; 23:83-96.,33 Lacoste PV, López MEP, Gallegos BP. Discursos conservadores en torno a las familias: entre el orden de género y las falacias naturalistas: el caso del Frente Nacional por la Familia en México (FNF). Cien Soc Relig 2022; 24:e022001.. Os valores e o legado simbólico do patriarcado ainda resistem, mas estão sendo colocados à prova44 Tannuri JGCG, Silva M. Família homoparental: enfrentando a vitalidade do patriarcado. Rev Linhas 2019; 20(43):256-271..

A era contemporânea tem fomentado aberturas que permitem dar visibilidade a uma variedade de configurações familiares que interpelam as relações de parentesco e filiação tradicionais55 Meletti AT, Scorsolini-Comin F. Conjugalidade e expectativas em relação à parentalidade em casais homossexuais. Rev Psicol Teor Prat 2015; 17(1):37-49.,66 Vilhena J, Souza BCA, Uziel PA, Zamora H, Novaes VJ. Que família? Provocações a partir da homoparentalidade. Mal-Estar Subj 2011; 11(4):1639-1658.. Um dos questionamentos mais persistentes coloca em xeque a noção essencialista de que existe complementaridade entre homem e mulher, que se expressaria na função reprodutiva e na ideia de que apenas as uniões heterossexuais podem proporcionar um ambiente ideal para o desenvolvimento psicológico das crianças22 Gato J, Fontaine AM. Impacto da orientação sexual e do género na parentalidade: uma revisão dos estudos empíricos com famílias homoparentais. Exaequo 2011; 23:83-96.,77 Lira AN, Morais NA, Boris GDJB. Concepções e modos de viver em família: a perspectiva de mulheres lésbicas que têm filhos. Psicol Teor Pesq 2016; 32(4):e324213..

A afirmação dos relacionamentos amorosos estáveis entre pessoas do mesmo gênero tem ganhado proeminência no debate público tanto no cenário brasileiro quanto no mundo ocidental55 Meletti AT, Scorsolini-Comin F. Conjugalidade e expectativas em relação à parentalidade em casais homossexuais. Rev Psicol Teor Prat 2015; 17(1):37-49.. As famílias homoparentais têm ganhado relevo nos estudos sobre famílias nas últimas décadas justamente por promoverem um contexto de desenvolvimento que não segue o paradigma heterocêntrico tradicional, por serem constituídas por relações afetivas e vínculos parentais entre pessoas com orientações sexuais diversas do padrão heteronormativo, tais como os núcleos familiares constituídos por lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans ou não binárias77 Lira AN, Morais NA, Boris GDJB. Concepções e modos de viver em família: a perspectiva de mulheres lésbicas que têm filhos. Psicol Teor Pesq 2016; 32(4):e324213.,88 Santos YGS, Scorsolini-Comin F, Santos MA. Homoparentalidade masculina: revisando a produção científica. Psicol Reflex Crit 2013; 26(3):572-582..

Dentre as configurações familiares sistematicamente apagadas e invisibilizadas pelas normatizações limitantes do enquadre heteronormativo, encontramos as experiências de dupla maternidade. Esse construto, que por vezes comparece nomeado pela literatura com termos como maternidade lésbica, refere-se à experiência de casais de mulheres que mantêm um relacionamento afetivo-sexual e que vivenciam o projeto de serem mães99 Azeredo RFD. Maternidade lésbica no Brasil: uma revisão de teses e dissertações nas Ciências Sociais, Humanas e da Saúde [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2018.. Tais configurações familiares desafiam os estereótipos da heterocisgeneridade e questionam a suposta complementaridade entre feminino e masculino, pressupostos binários que fundamentam a construção de papéis gendrados, regulados por scripts a serem seguidos no itinerário parental.

A literatura evidencia que as estratégias para acesso à parentalidade podem incluir diferentes dispositivos - adoção, coparentalidade e relacionamentos heterossexuais anteriores, como ocorre em famílias recompostas, podendo envolver ou não o uso de tecnologias reprodutivas1010 Cecílio MS, Scorsolini-Comin F, Santos MA. Produção científica sobre adoção por casais homossexuais no contexto brasileiro. Estud. Psicol 2013; 18(3):507-516.. A utilização de diferentes meios e recursos ora reproduz o modelo heterossexual binário, ora o descontroem e desnaturalizam, apontando caminhos originais e plurais para a realização do desejo de formar e viver em família55 Meletti AT, Scorsolini-Comin F. Conjugalidade e expectativas em relação à parentalidade em casais homossexuais. Rev Psicol Teor Prat 2015; 17(1):37-49.,77 Lira AN, Morais NA, Boris GDJB. Concepções e modos de viver em família: a perspectiva de mulheres lésbicas que têm filhos. Psicol Teor Pesq 2016; 32(4):e324213.. Nessa perspectiva é importante focalizar, sob diversas perspectivas, os aspectos subjetivos e intersubjetivos que colaboram para a constituição da família homoparental, sem desconsiderar o caráter sócio-histórico da instituição familiar, seja em sua configuração hetero ou homoparental44 Tannuri JGCG, Silva M. Família homoparental: enfrentando a vitalidade do patriarcado. Rev Linhas 2019; 20(43):256-271.,88 Santos YGS, Scorsolini-Comin F, Santos MA. Homoparentalidade masculina: revisando a produção científica. Psicol Reflex Crit 2013; 26(3):572-582..

As políticas públicas, ações programáticas e tecnologias sociais direcionadas à comunidade LGBTQIAPN+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgênero, Queer, Intersexo, Assexuais, Pansexuais, Não bináries e demais que se inscrevem no campo das dissidências sexuais e de gênero) têm origem no reconhecimento de que a escassez de políticas sociais de combate ao preconceito, à discriminação e exclusão vulnerabilizam essa parcela da população1111 Mello L, Brito W, Maroja D. Políticas públicas para a população LGBT no Brasil: notas sobre alcances e possibilidades. Cad Pagu 2012; 39:403-429.. Basta recordar que até há pouco tempo não havia uma política de promoção da saúde voltada à comunidade no âmbito do Ministério da Saúde.

Na esteira da luta por legitimação social, a Política Nacional de Saúde Integral LGBT, instituída pela Portaria nº 2.836, de 2011, é considerada um marco histórico importante por reconhecer as consequências perversas da discriminação e da exclusão, e por reafirmar os direitos dessa população1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2836, de 1º de dezembro de 2011. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Diário Oficial da União; 2011.. A criação e posterior implementação desta política decorre de um processo de amadurecimento das lutas emancipatórias e conquista gradual de espaços pelas gerações passadas, que precisam ser continuamente reafirmados no cotidiano1313 Laurentino ACN. Políticas públicas de saúde para a população LGBT: da criação do SUS à implementação da Política Nacional de Saúde Integral de LGBT [dissertação]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2015..

As demandas que se colocam atualmente no campo da saúde coletiva contribuem para reorganizar os movimentos sociais e refletem reivindicações de grupos específicos que se sentem relegados à margem, que solicitam uma compreensão na perspectiva de cuidados diferenciados1313 Laurentino ACN. Políticas públicas de saúde para a população LGBT: da criação do SUS à implementação da Política Nacional de Saúde Integral de LGBT [dissertação]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2015.. Ao longo das últimas décadas as ações específicas para a população LGBTQIAPN+ estiveram focadas em políticas parciais de combate ao HIV e à disseminação da Aids. Mesmo nesse recorte a saúde das mulheres lésbicas e bissexuais foi amplamente negligenciada, refletindo os vieses que atravessam as relações entre gênero e saúde. Por esse motivo, a necessidade de uma abordagem plural e multifocal sobre esse tema tem sido cada vez mais valorizada, com suas implicações no campo dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres1414 Corrêa MEC. Duas mães? Mulheres lésbicas e maternidade [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública; 2012..

As questões reportadas por mulheres envolvidas na construção da dupla mostram a necessidade de estudos específicos sobre suas necessidades, incluindo a de apoio psicossocial por meio de diferentes modalidades de suporte e cuidados, nos diferentes níveis de promoção, prevenção e intervenção em saúde, em especial na realidade brasileira, ainda carente de estudos no tema99 Azeredo RFD. Maternidade lésbica no Brasil: uma revisão de teses e dissertações nas Ciências Sociais, Humanas e da Saúde [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2018.. Nos últimos anos esse tema têm ganhado espaço crescente, mas a dupla maternidade ainda enfrenta barreiras para impor sua agenda e incrementar sua visibilidade.

Os avanços do conhecimento biomédico possibilitaram o uso das novas tecnologias reprodutivas para viabilização do projeto materno de casais de mulheres lésbicas/bissexuais, que passaram a contar com procedimentos que permitem a gestação de uma ou de ambas as parceiras, utilizando ou não de seu material genético1414 Corrêa MEC. Duas mães? Mulheres lésbicas e maternidade [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública; 2012.,1515 Bos HM, Gartrell NK. Lesbian-mother families formed through donor insemination. In: AE Goldberg AE, Allen KR, editors. LGBTQ-parent families: innovations in research and implications for practice. 2ª ed. Worcester: Springer Publishing; 2020. p. 25-44.. Além disso, famílias formadas pela via de adoção sempre integraram - e continuam integrando - o cenário da dupla maternidade, sendo que o processo adotivo pode ser pleiteado pelo casal ou por uma das parceiras55 Meletti AT, Scorsolini-Comin F. Conjugalidade e expectativas em relação à parentalidade em casais homossexuais. Rev Psicol Teor Prat 2015; 17(1):37-49..

Considerando esse panorama, foi delineado o presente estudo, que teve como objetivo analisar os significados culturalmente construídos sobre o vínculo com os serviços e profissionais de saúde por mulheres lésbicas e bissexuais que vivenciaram a dupla maternidade.

Método

Desenho metodológico

Trata-se de uma investigação fundamentada na abordagem qualitativa e situada no campo da antropologia da saúde1616 Alves PC, Rabelo MC, organizadores. Antropologia da saúde: traçando identidade e explorando fronteiras. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, Editora Relume Dumará; 1998.. Na literatura científica internacional, assim como no contexto brasileiro, há um corpo consistente de pesquisas que resultam em vasta produção bibliográfica com a aplicação de métodos qualitativos em Saúde Coletiva1717 Minayo MCS. Sampling and saturation in qualitative research: consensuses and controversies. Rev Pesqui Qualit 2017; 5(7):1-12.. A base destes estudos é a interpretação que os atores sociais dão para suas ações e práticas, com base na cultura, e suas ressonâncias na produção da saúde1616 Alves PC, Rabelo MC, organizadores. Antropologia da saúde: traçando identidade e explorando fronteiras. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, Editora Relume Dumará; 1998..

A pesquisa qualitativa busca entender os significados que os sujeitos atribuem às suas experiências e, para tanto, deve ser flexível e dinâmica1717 Minayo MCS. Sampling and saturation in qualitative research: consensuses and controversies. Rev Pesqui Qualit 2017; 5(7):1-12.. Os métodos e aspectos relacionados ao desenho do estudo podem ser modificados na medida em que novas informações são recolhidas. Também a análise e interpretação dos dados mudam com o decorrer do estudo na medida em que são incorporados novos elementos e que se passa a conhecer melhor o contexto estudado. Na abordagem qualitativa, o processo de investigação é dinâmico, flexível, vivo, não linear, não homogêneo e não sequencial.

Participantes

Participaram do estudo 10 mulheres adultas, que se autoidentificaram como mulheres cisgênero lésbicas ou bissexuais que compartilharam a experiência de maternidade com outra mulher. Foram estabelecidos os seguintes critérios de inclusão no estudo: idade acima de 18 anos, autoidentificar-se como mulher lésbica ou bissexual, que vivenciaram a dupla maternidade. Foram critérios de exclusão: não dispor de dispositivo de acesso online ou conexão de internet, necessários para a coleta de dados; impossibilidade de assegurar um lugar seguro e reservado (na residência ou no trabalho) para participar de entrevista on-line.

As participantes foram selecionadas pelo método bola de neve. A pessoa índex (primeira a ser entrevistada) era membro ativa de um grupo on-line sobre a temática da dupla maternidade e sugeriu potenciais entrevistadas, incluindo o contato de mulheres não integrantes do referido grupo, o que impulsionou a coleta de dados e assegurou a diversidade do conjunto. A primeira pessoa indicada pela participante índex foi contatada e, mediante confirmação de sua disponibilidade, prosseguiu-se a coleta de dados. Assim se procedeu sucessivamente com as demais, até que se alcançasse a saturação da amostra, que se deu com oito participantes. Para nos asseguramos disso, realizamos mais duas entrevistas, que corroboraram a recorrência de informações, assegurando o alcance da saturação. Logo, o número de entrevistadas foi definido a posteriori pelo critério de saturação dos dados1717 Minayo MCS. Sampling and saturation in qualitative research: consensuses and controversies. Rev Pesqui Qualit 2017; 5(7):1-12. (Quadro 1).

Quadro 1
Perfil sociodemográfico das entrevistadas.

Coleta de dados

Foram observados os cuidados preconizados pela literatura quanto à utilização de entrevista online. O corpus de pesquisa foi construído com base em entrevistas individuais, complementadas por anotações da pesquisadora contendo o registro detalhado de impressões, reflexões e sentimentos despertados pelas experiências vividas.

O material produzido no contexto interativo com as interlocutoras se apoia na perspectiva da escuta e do olhar de uma pesquisadora que se autodefine como mulher cisgênero lésbica e branca, pesquisadora do campo das lesbianidades. A entrevista aberta, em profundidade, contemplou uma questão norteadora, que solicitava à participante discorrer sobre suas experiências com a dupla maternidade. A entrevista foi conduzida de forma a deixar a interlocutora confortável e livre para se expressar em relação aos acontecimentos e pensamentos que ela julgava relevantes em sua trajetória de maternidade. O uso desse tipo específico de entrevista é consistente com o objetivo do estudo, na medida em que permite que as interlocutoras expressem livremente suas vivências, sentimentos e significações atribuídas aos acontecimentos por ela identificados como relevantes para a compreensão de suas vivências com a dupla maternidade.

O contato inicial com as participantes foi realizado por meio de aplicativos de mensagens e redes sociais digitais. Para aquelas que aceitaram o convite foi enviado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para as que foram contatadas pelo Instagram, o TCLE foi enviado por e-mail ou WhatsApp, devido às limitações da plataforma digital. Foi solicitado às participantes que assinassem o termo antes da realização da entrevista e que assegurassem que os encontros ocorressem em local reservado e em condições de segurança e sigilo. É importante garantir um ambiente virtual livre de interferências de terceiros e que ofereça conforto e privacidade, considerando-se a possibilidade de que temas sensíveis e afeitos à intimidade das entrevistadas fossem abordados durante a conversação.

As entrevistas foram conduzidas em ambiente on-line, via plataforma digital Google Meet, no período de julho e dezembro de 2022, com duração entre 51 e 92 minutos. As conversas foram gravadas utilizando o recurso de videochamada fornecido pela plataforma digital, mediante prévio consentimento das participantes. O material foi posteriormente transcrito na íntegra pela pesquisadora, respeitando a literalidade das falas.

Análise dos dados

O percurso de elaboração da pesquisa incluiu a análise cuidadosa do material coligido, o que incluiu as notas de campo reflexivas e observacionais da pesquisadora, descrevendo detalhadamente fatos, atos e sentimentos despertados a partir de sua observação do campo. Foram realizadas leituras exaustivas do material com base em um procedimento de análise que possibilitou identificar unidades de significado que deram origem aos eixos temáticos, fornecendo subsídios para a interpretação dos dados e a construção dos resultados1717 Minayo MCS. Sampling and saturation in qualitative research: consensuses and controversies. Rev Pesqui Qualit 2017; 5(7):1-12..

Os dados coletados foram sucessivamente organizados e depurados em temas e a análise consistiu no constante confronto de elementos que emergiram das diversas observações, procurando capturar nos registros os elementos comuns/convergentes e possíveis diferenças/divergências. Nessa etapa da análise foi possível estabelecer as recorrências e singularidades observadas nas situações e contextos relatados pelas entrevistadas, com o cuidado de separar e diferenciar as convergências das singularidades (marcas únicas)1717 Minayo MCS. Sampling and saturation in qualitative research: consensuses and controversies. Rev Pesqui Qualit 2017; 5(7):1-12..

Como referencial teórico para interpretação dos dados foi utilizada a Teoria Interpretativa da Cultura de Geertz1818 Geertz C. A interpretação das culturas. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos; 1989.. Esse referencial enfatiza a importância da diversidade cultural como recurso multifacetado e inovador, utilizado para ampliar a visão da complexidade dos significados das ações humanas, inspirando-se em valores tais como divergência, respeito e compartilhamento de ideias e experiências das mães entrevistadas na construção de suas experiências e práticas sociais relacionadas à dupla maternidade.

Nessa concepção epistemológica, o conhecimento antropológico surge das práticas simbólicas e dos discursos alimentados pelas diferenças e suas fronteiras. Na antropologia interpretativa a busca do conhecimento se dá por meio do esforço de se aproximar do outro, entendido como caminho para abraçar a alteridade e legitimar o diferente. No percurso traçado para conhecer a realidade, admite-se que as incertezas, paradoxos e ambiguidades são parte inerente do processo. A valorização de tais elementos substitui a busca de relações causais, regulares, cíclicas, na medida em que se privilegia uma gama de tentativas de compreensão produzidas em contextos locais e particulares, nos quais se espera que apareçam, no decorrer do itinerário de pesquisa, acontecimentos imprevistos e desafios até então desconhecidos1818 Geertz C. A interpretação das culturas. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos; 1989..

A afirmação da dupla maternidade oferece um contexto catalisador de desestabilização de certezas e crenças consagradas em relação à família e criação de filhos, introduzindo imprevisibilidade em um campo esquadrinhado por discursos hegemônicos e normatizadores, ao mesmo tempo em que se valoriza a produção de saber local1818 Geertz C. A interpretação das culturas. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos; 1989..

Os resultados das análises foram sistematizados e interpretados com base nos estudos da área da dupla maternidade, norteando-se pelo referencial teórico da antropologia interpretativa, o que permitiu desvelar as dimensões da experiência viva revelada sob a perspectiva de suas protagonistas.

O estudo obteve aprovação prévia do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição (CAAE nº 58782922.5.0000.5407) e obedeceu às recomendações preconizadas pela Resolução nº 510/2016, resguardando o direito à privacidade das participantes e de suas famílias.

Resultados e discussão

Em relação às características sociodemográficas das participantes, a faixa etária variou entre 30 e 39 anos (média de idade 34,5 anos). Quanto ao nível de escolaridade, três tinham ensino superior completo (Samantha, Camila e Vivan), duas tinham ensino superior incompleto (Débora e Maria), duas haviam completado a pós-graduação (Talita e Tarsila), duas com pós-graduação incompleta (Alice e Coral) e Renata tinha ensino médio completo. Em relação à atividade laboral/ocupação, oito participantes estavam ativas no exercício de suas profissões. Camila era microempresária (pousadeira), Vivan estilista, Tarsila médica, Débora servidora pública municipal, Alice publicitária, Coral consultora de saúde pública e Maria administradora e revisora de texto. Samantha declarou trabalhar como autônoma. Talita e Renata não exerciam atividade remunerada no momento da entrevista e relataram ter deixado o mercado de trabalho após terem os filhos.

Nove participantes se declararam casadas (Talita, Vivan, Tarsila e Débora havia três anos, Alice e Renata quatro anos, Camila e Coral sete anos e Maria oito anos) e uma estava recentemente separada (Samantha). Todas as mulheres haviam regularizado seu relacionamento, algumas antes mesmo da equiparação da união estável ao casamento entre pessoas do mesmo gênero, como forma de garantir direitos sociais e jurídicos.

Nota-se que todas as entrevistadas fizeram uso de tecnologias de reprodução assistida e nenhuma tinha filhos de relacionamentos anteriores. Um elemento em comum nas experiências relatadas foi a perda de bebês e sucessivas tentativas frustradas de gestação durante o processo de fertilização in vitro.

Em relação à composição familiar, oito entrevistadas (Talita, Camila, Vivan, Tarsila, Débora, Alice, Coral e Renata) relataram ter uma família nuclear, uma participante relatou ter uma família monoparental no momento da entrevista (Samantha, em processo de separação recente) e outra classificou sua família como extensa (Maria, que vive com sua esposa, filho e sogra).

A renda familiar variou de R$ 1.000,00 a R$ 40.000,00. Em relação à filiação religiosa, seis participantes declararam não ter nenhuma (Samantha, Talita, Camila, Tarsila, Débora e Coral) ou ser ateia (Samantha). Vivan afirmou ser “pagã praticante”, com frequência mensal em suas práticas religiosas. Alice declarou ser espírita, mas afirmou que, após o nascimento do filho, tornou-se relapsa em suas práticas religiosas, que eram semanais no período anterior à transição para a maternidade. Maria afirmou ser católica, com prática religiosa semanal. Renata também declarou ser católica, mas afirmou que não tem praticado.

Com apoio da antropologia interpretativa buscamos entender as formas pelas quais as mulheres entrevistadas expressam e interpretam suas vivências de gratificação e sofrimento no âmbito dos serviços de saúde reprodutiva para viabilização da maternidade. Foi elaborado o tema: “Construção do vínculo com os serviços e profissionais de saúde”. As falas foram codificadas da seguinte maneira: MG: mãe gestante; MN: mãe não gestante.

Os resultados mostram que o desejo de ser mãe estava inscrito precocemente na história das participantes:

Eu já tinha muita vontade de ser mãe, desde sempre, desde que eu entendi [...] o que era ser mãe, como era, então ali por volta dos meus 17 anos eu já pesquisava como que uma mulher lésbica poderia ter filho e eu já sabia, inclusive, nessa idade, de que eu poderia ter acesso ao SUS (Camila, 30, MG).

O processo gravídico-puerperal foi vivenciado como uma experiência sensível que instaura as bases da vinculação mãe-filho, junto ao desejo e ao mesmo tempo receio de como seria cuidar de uma criança. Para viabilizar a gravidez, as mulheres recorreram a técnicas de fertilização in vitro. As tecnologias reprodutivas atualmente permitem, por meio do método ROPA (Recepção de Óvulos da Parceira), que uma das mulheres do casal gere filhos com o óvulo implantado da outra. Também é possível recorrer ao sêmen doado, seja por homens conhecidos ou doador desconhecido99 Azeredo RFD. Maternidade lésbica no Brasil: uma revisão de teses e dissertações nas Ciências Sociais, Humanas e da Saúde [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2018.,1515 Bos HM, Gartrell NK. Lesbian-mother families formed through donor insemination. In: AE Goldberg AE, Allen KR, editors. LGBTQ-parent families: innovations in research and implications for practice. 2ª ed. Worcester: Springer Publishing; 2020. p. 25-44.. A experiência com o tratamento médico foi avaliada como “péssima” por uma das interlocutoras:

Eu estava com oito meses de gestação, estava com pressão alta, dando 16, 16.1, 15.9, e ela [obstetra] não passou medicação, não passou nada. E também no caso da minha esposa, quando foi ela que engravidou, teve uma mudança no atendimento quando o obstetra soube que ela não pagaria pelo parto. A partir do momento que ela falou que não ia pagar o parto, que ia ter o parto com um plantonista do hospital mesmo, [...] você via que o atendimento dele mudou, sabe? “Ai, não vai fazer comigo, então não tenho por que perder [faz sinal de aspas com as mãos] o meu tempo” (Renata, 32, MG e MN).

As inquietações acerca do processo gravídico-puerperal, que algumas vezes acompanham as experiências de transição para a maternidade, precisam encontrar um ambiente acolhedor no âmbito da saúde. No entanto, a maioria das participantes relatou algum incidente crítico nos encontros com os profissionais dos serviços de saúde:

Uma vez, um dos médicos que entrou no consultório, na ficha estava escrito que eram duas mães, tal tal tal, e ele fazia questão de... era um senhor já de mais idade, e ele fazia questão de falar: “Ai, cadê o pai da criança, ai, chama o pai”, sabe assim? Tinha que explicar mil vezes que não, não tem pai, são duas mães, e não sei o quê (Renata, 32, MG e MN).

A maior parte das interlocutoras acessou serviços especializados da rede privada. Já Camila destacou a boa experiência que teve com o atendimento prestado pelo SUS (“são mais receptivos do que em particular”). Todos os casais optaram, inicialmente, pelo uso das tecnologias reprodutivas a partir de um entendimento de que a via biológica seria a maneira mais plena de vivenciar a maternidade. Ao assumirem como primeira escolha o uso das tecnologias, os casais vivenciaram percalços e experiências de rupturas como as trajetórias de gravidezes interrompidas. Na maioria dos casais o sofrimento resultante foi mitigado graças ao alento proporcionado pelo desfecho de sucesso após várias tentativas sem obter êxito:

Processo difícil porque a primeira etapa, que é a etapa de estimulação de hormônios, de ovulação, eu tinha que tomar injeções diárias na barriga, eu me aplicava, [..] para poder ter um resultado positivo [...] de estimulação. Então, é difícil nesse sentido, porque os hormônios mexem com tudo (Maria, 39, MG).

E aí ela [esposa] foi, fez as tentativas com os óvulos dela, foram três tentativas, não deu certo, mas a médica falou que seria difícil mesmo pela idade [...] e aí foi onde ela tentou fazer com os meus óvulos, [...] ela engravidou, com oito semanas, ela perdeu, e aí ela falou: “Ai, eu não tenho mais cabeça, vai você agora”, e aí foi onde eu fui. Fiz, engravidei da [filha mais velha] e [...] a gente tinha ainda dois [...] embriões [...], e ela falou assim: “Ai, eu vou lá e vou transferir só por desencargo mesmo”, [...] aí a gente foi, já com a cabeça de que não daria certo, e aí ela fez. E engravidou (Renata, 32, MG e MN).

Eu ia engravidar dos óvulos dela, então precisava as duas estarem juntas com a parte do ciclo de ovulação, de fertilização [...] foi de primeira que a gente conseguiu engravidar [...] a gente já estava com 35, então, a gente achou que ia ser um processo mais demorado (Alice, 36, MG).

Houve quem acabou optando pelo caminho da adoção, por não conseguir consumar o processo após várias tentativas frustradas de gestação. Também foram relatados percalços vivenciados durante os atendimentos em saúde no que concerne à qualidade do vínculo estabelecido com os profissionais. As manifestações de lesbofobia mais contundentes foram direcionadas à mãe não gestante:

Essa foi uma das mais sérias violências que eu considero que a gente sofreu porque, assim, em nenhum momento fomos consideradas casal, em nenhum momento fomos consideradas pessoas, ali a gente era útero, entendeu? E assim, “tem maca pra eu ver o útero?”, “tem máquina pra botar as perna dela?”, então vai, tem duas máquinas, tem dois úteros, vamos separar, totalmente, sabe, sem o menor traquejo (Vivan, 35, MN).

Em muitos outros ambientes, como, por exemplo, roda de gestante, a gente estava lá compartilhando experiências e tudo, e ela nunca era incluída, [...] mesmo todo mundo sabendo que existia um casal de duas mães ali, raramente era dito: “Ai, o pai ou a outra mãe, ou a mãe não gestante”, ou qualquer coisa do tipo, é… então, essa invisibilização, né, [...] de não colocar a [nome da esposa, mãe não gestante da filha] exatamente no lugar de ser tão mãe quanto eu (Samantha, 34, MG).

Tem pessoas que se dirigem só a mim porque sou a gestante, e a gente acaba sempre cansando [...] de ter que ficar provando maternidade quando é em relação à mãe não gestante, que é muito difícil, [...] então sempre tem: “Ah, mas e você, vai ter o seu?”, ou se já tem o dela (Camila, 30, MG).

Porque daí, sei lá, tipo, se é com genética da [nome da esposa] e a [nome da esposa] que está grávida, você é acompanhante, não tem nada que te faça ser reconhecida como mãe ali (Vivan, 35, MN).

No posto de saúde: “Está bom, mas quem, quem é a mãe?” E nós: “A mãe é as duas”. “Está bom, mas quem gestou?”. “Está bom, vai, [em tom indignado] ela é a mãe de verdade, eu sou a mãe de mentira”. Eu tenho que falar isso. É o meu jeito de protestar (Vivan, 35, MN).

Fomos muito bem apoiadas, muito bem recebidas, é… pelo SUS, pelo hospital que a gente fez, e, no meio desse caminho, tem algumas de várias questões que são mais sobre [...] como o sistema lida [...] hospital, clínica [...]. Ainda tem essa dificuldade das pessoas de colocar o nome ali, o nome “responsável” ou “filiação”, como vem em um documento (Camila, 30, MG).

Para se protegerem da eventual exposição a preconceitos e discriminação nos cenários de saúde, algumas se anteciparam e tomaram algumas precauções:

Já era indicação de alguém, e de alguém muito próximo da médica, então a gente [...] não tinha essa barreira [...] de falar sobre o tema [dupla maternidade], ou de repente encontrar algum preconceito e não ser bem recebida (Coral, 39, MN).

Na perspectiva das interlocutoras, os profissionais de saúde muitas vezes ratificam as prescrições da heteronormatividade:

Aí o médico [...] falou isso: “Normalmente a gente faz isso porque [...] se o pai desmaiar, a gente vai ter que dar atenção pro pai, sendo que quem deveria ter atenção é a parturiente”, entendeu? E eu ainda falei pra ele: “Mas eu não sou o pai, eu sou a mãe!” [em tom indignado] Eu precisava estar ali pra parir, entendeu? (Vivan, 35, MN).

Tinha um pouco essa carga assim, tipo: “Ah, então a [nome da esposa] é a mãe que está gestando, e tu é a mãe que vai trabalhar”. Então, tipo: “Tu é um homem” [faz sinal de aspas com as mãos] (Coral, 39, MN).

A gente estava em pandemia [...] a [nome da esposa] não pôde me acompanhar em todas as consultas, ela conseguiu ir só nas últimas consultas, mas também não sentimos nenhuma hostilidade em relação a isso. (Alice, 36, MG).

Há um espaço socialmente construído para a mãe não gestante: um lugar desprestigiado e invisibilizado. É como se o tempo todo houvesse a validação do adágio popular que afirma: “mãe só há uma”. A diferença culturalmente atribuída a quem gera e gesta o bebê transparece até na (im)possibilidade de exprimir o próprio sofrimento diante das experiências dolorosas de perda gestacional:

Ela [esposa] engravidou e perdeu o bebê, aí foi devastador [...] pra mim foi muito difícil porque eu coloquei a minha dor no bolso pra poder segurar a dela. Porque, na minha cabeça [...] estava dentro dela, então ela estava sofrendo mais do que eu e hoje eu vejo que eu estava totalmente equivocada, sabe? Não existe isso, eu sofri tanto quanto. [...] as pessoas não [...] enxergavam o meu sofrimento, enxergavam somente o dela, porque ela estava gerando (Renata, 32, MG e MN).

Há situações em que o próprio casal parece reproduzir a divisão heteronormativa e gendrada dos papéis parentais:

Temos muito definido assim, eu sou a mãe do [nome do filho], eu gerei. Então, eu sou mãe do [nome do filho], a [nome da esposa] ele chama de Memê (Maria, 39, MG).

A percepção da parentalidade entre casais de mulheres é influenciada por controvérsias alimentadas por ideologias familiaristas e naturalistas, que atualmente encontram-se aguçadas pela ofensiva conservadora33 Lacoste PV, López MEP, Gallegos BP. Discursos conservadores en torno a las familias: entre el orden de género y las falacias naturalistas: el caso del Frente Nacional por la Familia en México (FNF). Cien Soc Relig 2022; 24:e022001.. O casal de lésbicas/bissexuais que compartilha o projeto de maternidade contesta a suposta “naturalidade” do sistema essencialista pautado na diferença sexual e nas normas de gênero. Esse sistema reproduz o modelo de família nuclear herdado do sistema patriarcal e, ao fazê-lo, reafirma uma determinada hierarquia de prestígio e valoração. Por esse motivo, ao se afirmarem como mães, o casal de mulheres lésbicas e bissexuais subvertem as relações de aliança, filiação e sexualidade dominantes, colocando-as de ponta-cabeça1919 Tombolato MA, Maia ACB, Santos MA. A trajetória de adoção de uma criança por um casal de lésbicas. Psicol Teor Pesq 2019; 35:e3546.,2020 Tombolato MA, Maia ACB, Uziel AP, Santos MA. Prejudice and discrimination in the everyday life of same-sex couples raising children. Estud Psicol 2018; 35:e3546..

Profissionais de saúde podem se sentir desconfortáveis em abordar esses relacionamentos, o que contribui para sua invisibilização e silenciamento no campo da saúde reprodutiva. Ademais, devido às prescrições normativas do patriarcado, as mulheres são inferiorizadas em diversos âmbitos sociais nos quais os homens desfrutam de privilégios e poder44 Tannuri JGCG, Silva M. Família homoparental: enfrentando a vitalidade do patriarcado. Rev Linhas 2019; 20(43):256-271.. Por isso é importante expandir os domínios e espaços de fala e escuta onde as palavras possam ser claramente articuladas e audíveis em alto e bom som, sem subterfúgios e sem preconceitos sutis disfarçados de tolerância.

Atenção especial deve ser dada ao lugar da mãe não gestante na saúde. É preciso desconstruir a naturalização da primazia do vínculo biológico, enquanto elemento do imaginário coletivo que confere legitimidade às relações de parentesco e que se reproduz na saúde2121 Ben-Ari A, Livni T. Motherhood is not a given thing: experiences and constructed meanings of biological and nonbiological lesbian mothers. Sex Roles 2006; 54(7):521-531.. A literatura refere que essa concepção naturalizada socialmente é uma crença intocável que constitui um desafio persistente para os casais que contrariam a heteronormatividade2222 Biblarz TJ, Savci E. Lesbian, gay, bisexual, and transgender families. J Marr Fam 2010; 72(3):480-497.. A isso se soma a tendência à objetificação e à redução biologicista que impregnam o discurso biomédico: “Em nenhum momento fomos consideradas casal, [...] ali a gente era útero” (Vivan, 35, MN).

O que se vê de modo recorrente é que, aos olhos dos profissionais da saúde, a mãe responsável pela gestação biológica da criança parece desfrutar de mais direitos e responsabilidades sobre o filho77 Lira AN, Morais NA, Boris GDJB. Concepções e modos de viver em família: a perspectiva de mulheres lésbicas que têm filhos. Psicol Teor Pesq 2016; 32(4):e324213.,1414 Corrêa MEC. Duas mães? Mulheres lésbicas e maternidade [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública; 2012.. A mãe não gestante não tem sua voz ouvida e legitimada, o que sugere que há produção de sentidos diferenciados para a maternidade da mulher lésbica/bissexual, a depender da percepção de sua implicação biológica na gestação da criança2121 Ben-Ari A, Livni T. Motherhood is not a given thing: experiences and constructed meanings of biological and nonbiological lesbian mothers. Sex Roles 2006; 54(7):521-531.. A mãe não gestante dificilmente tem sua participação no processo gravídico-puerperal reconhecida, respeitada ou endossada. Para lidar com essas vicissitudes, as mulheres podem acessar as estratégias de tecnologias reprodutivas, nas quais uma delas gera o filho com o óvulo da outra ou uma engravida com o sêmen de algum parente de sua parceira, a fim de assegurar o laço biológico do filho com as duas mães, ou ainda podem recorrer ao registro dos nomes das duas mães na certidão de nascimento1414 Corrêa MEC. Duas mães? Mulheres lésbicas e maternidade [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública; 2012..

É evidente que, no marco do século XXI, as ideias sobre o que constitui uma família estão se tornando mais inclusivas, o que reforça laços de pertencimento. Com base em sua experiência pessoal de mãe lésbica com sua esposa, a canadense Meisner2323 Meisner N. Double pregnant: two lesbians make a family. Canadian: Fernwood Publishing; 2014. mobiliza a categoria “natural” para questionar a “natureza” do que é considerado “normal” dentro de cada cultura em nível local, mostrando que a dupla maternidade desafia o significado de família nos dias atuais. As noções tradicionais de gênero e papéis de gênero são facilmente desconstruídas quando se observam as famílias formadas por pessoas do mesmo gênero.

Os atendimentos realizados nos serviços de saúde constituem parte fundamental da rede de suporte para o fortalecimento de ações de cuidado às mulheres e suas famílias homoparentais nos vários âmbitos da saúde. Por essa razão, as concepções de profissionais da saúde, muitas vezes saturadas de preconceitos, clichês e estereótipos sobre família e laços conjugais, devem ser continuamente interpeladas e tensionadas.

Considerações finais

Os resultados mostraram que a primeira escolha das mães recaiu no desejo de conceberem um filho do próprio ventre ou da parceira. Uma vez tomada essa decisão, nossas interlocutoras passaram a pensar no método de concepção, além de estudarem os meios de viabilização da gravidez. O acesso a serviços de saúde e tecnologias reprodutivas foi favorecido pela boa condição social da maioria das participantes. Poucas utilizaram o sistema público de saúde. Todavia, os casais depararam com diversos percalços em seus itinerários na saúde, incluindo manifestações de discriminação e falta de empatia, que foram mais contundentes em relação à mãe não gestante.

É preciso ampliar o acervo de saberes sobre a relação entre as usuárias e os profissionais que atuam no campo da saúde coletiva, capacitando-os para que possam construir referências e implementar diretrizes para o aprimoramento do acesso a cuidados sensíveis à diversidade para mulheres não heterossexuais em idade reprodutiva. A ampliação da produção de conhecimento é necessária para fornecer subsídios que permitam direcionar políticas inclusivas em diversos núcleos de assistência e recursos comunitários, como a Estratégia de Saúde da Família, que incorpora os princípios básicos do SUS, como universalização e integralidade, além de valorizar a participação ativa da comunidade. Como parte do combate à estigmatização e invisibilização, é preciso integrar as famílias homoparentais, ampliando seu senso de pertencimento ao território. Entre apagamentos e resistências, os problemas elencados pelo presente estudo solicitam visibilizar e valorizar novos modos de pensar em saúde coletiva, capazes de contemplar a pluralidade dos modos de existência.

Há uma certa perplexidade com a persistência de posturas e atitudes preconceituosas nos serviços. Os resultados deste estudo indicam que a reprodução de lesbofobia nos settings de saúde tem ressonâncias na qualidade do vínculo estabelecido entre profissionais e casais que vivenciam a dupla maternidade. Isso contribui para restringir o atendimento diferenciado a que essa população tem direito, o que contraria os valores compartilhados da dignidade humana na produção do cuidado em saúde. Outro fator controverso é a relação entre conhecimento biomédico e naturalização da maternidade em confluência com a heteronormatividade. A dicotomia induzida pelo modelo de cuidado biomédico alimenta tensionamentos persistentes entre necessidades das mulheres lésbicas e bissexuais que desejam ter filhos e o conhecimento produzido pela racionalidade biomédica e os modelos hegemônicos que imperam nos serviços de saúde. Esse fenômeno se desdobra nos diversos níveis de atenção à saúde, ampliando os desafios da atuação profissional na assistência à saúde da mulher, em particular no cuidado das que vivenciam o espectro das dissidências sexuais.

Este estudo tem como limitação a estratégia de recrutamento das participantes, uma vez que a técnica utilizada pode restringir a diversidade de informantes. Estudos que focalizem a organização da rede de atenção à saúde materno-infantil e os indicadores para monitoramento do desempenho da atenção ofertada às usuárias que vivenciam a dupla maternidade podem contribuir para o aprimoramento da qualidade do vínculo. A implementação da Política Nacional de Saúde Integral definida pela Portaria 2.836 requer a qualificação de profissionais e gestores e a organização da rede de atenção em busca de uma atuação intra e intersetorial coordenada, que possibilite desestabilizar noções naturalizadas sobre família e desconstruir preconceitos sobre a homoparentalidade. Como potencialidade, destaca-se que os dados analisados neste estudo provêm de descrições densas obtidas por meio de entrevistas em profundidade realizadas com as interlocutoras.

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  • Financiamento

    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Abr 2024

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2023
  • Aceito
    26 Dez 2023
  • Publicado
    26 Dez 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br