Homem trans e gestação paterna: experiências durante o período gravídico-puerperal

Rebeca Nascimento dos Santos Mascarenhas Vitória Valéria Cristo Santos Bruno Silva de Santana Anne Alencar Monteiro Telmara Menezes Couto Anderson Reis de Sousa Danilo Martins Roque Pereira Lilian Conceição Guimarães de Almeida Sobre os autores

Resumo

Este estudo objetiva analisar as experiências de um homem trans durante o período gravídico-puerperal e a perspectiva de enfermeiras obstetras em formação, a partir das dinâmicas e da organização dos cuidados de saúde obstétricos em ambiente hospitalar. Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, baseado em estudo de caso, em que utilizou entrevistas e observações diretas para a coleta das informações. A análise foi feita a partir do marco teórico e normativo do Processo de Enfermagem, da Teoria dos Cuidados e da perspectiva teórico/crítica do transfeminismo. Os resultados estão organizados em seis categorias: Homem trans em contexto de gestação, parto e puerpério; parceria e dimensões parentais; dilemas enfrentados pelo casal grávido; impressões registradas pela profissional de enfermagem; compreensão do caso sob a lente teórica e epistemológica; implicações para os profissionais da saúde. Destaca-se a necessidade de promover espaços de educação permanente junto aos profissionais da saúde e reformular legislações de maneira a viabilizar a elaboração de políticas públicas baseada no respeito à diversidade e cuidado equânime, reconhecendo as especificidades da população trans nos contextos da gestação, parto e puerpério.

Palavras-chave:
Poder Familiar; Paternidade; Pessoas Transgênero; Minorias Sexuais e de Gênero; Avaliação de resultados em Cuidados de Saúde

Introdução

Este estudo foi desenvolvido a partir da organização dos cuidados e práticas de saúde dedicadas aos homens trans e suas parcerias, mediante ao contexto da parentalidade no período gravídico-puerperal. A concepção de “parentalidade” transcende os limites dos laços biológicos e amplia a ideia de família, abrangendo famílias constituídas por pessoas de diversas identidades de gênero11 Besse M, Lampe NM, Mann ES. Experiences with Achieving Pregnancy and Giving Birth Among Transgender Men: A Narrative Literature Review. Yale J Biol Med 2020; 93(4):517-528.. Neste contexto, emerge o termo “transparentalidade”, que envolve famílias compostas por pessoas trans e desafia os padrões cisheteronormativos, promovendo uma maior diversidade na concepção e vivência da parentalidade22 Monaco S. Different in Diversity: An Intersectional Reading of LGBT Parenting. Culture Studi Soc 2022; 7(2):234-252..

O termo “trans” se refere à população transgênero, englobando pessoas com identidades e expressões de gênero diferentes daquelas atribuídas ao nascer33 Coleman E, Radix AE, Bouman WP, Brown GR, de Vries ALC, Deutsch MB, Ettner R, Fraser L, Goodman M, Green J, Hancock AB, Johnson TW, Karasic DH, Knudson GA, Leibowitz SF, Meyer-Bahlburg HFL, Monstrey SJ, Motmans J, Nahata L, Nieder TO, Reisner SL, Richards C, Schechter LS, Tangpricha V, Tishelman AC, Van Trotsenburg MAA, Winter S, Ducheny K, Adams NJ, Adrián TM, Allen LR, Azul D, Bagga H, Basar K, Bathory DS, Belinky JJ, Berg DR, Berli JU, Bluebond-Langner RO, Bouman MB, Bowers ML, Brassard PJ, Byrne J, Capitán L, Cargill CJ, Carswell JM, Chang SC, Chelvakumar G, Corneil T, Dalke KB, De Cuypere G, de Vries E, Den Heijer M, Devor AH, Dhejne C, D'Marco A, Edmiston EK, Edwards-Leeper L, Ehrbar R, Ehrensaft D, Eisfeld J, Elaut E, Erickson-Schroth L, Feldman JL, Fisher AD, Garcia MM, Gijs L, Green SE, Hall BP, Hardy TLD, Irwig MS, Jacobs LA, Janssen AC, Johnson K, Klink DT, Kreukels BPC, Kuper LE, Kvach EJ, Malouf MA, Massey R, Mazur T, McLachlan C, Morrison SD, Mosser SW, Neira PM, Nygren U, Oates JM, Obedin-Maliver J, Pagkalos G, Patton J, Phanuphak N, Rachlin K, Reed T, Rider GN, Ristori J, Robbins-Cherry S, Roberts SA, Rodriguez-Wallberg KA, Rosenthal SM, Sabir K, Safer JD, Scheim AI, Seal LJ, Sehoole TJ, Spencer K, St Amand C, Steensma TD, Strang JF, Taylor GB, Tilleman K, T'Sjoen GG, Vala LN, Van Mello NM, Veale JF, Vencill JA, Vincent B, Wesp LM, West MA, Arcelus J. Standards of Care for the Health of Transgender and Gender Diverse People, Version 8. Int J Transgend Health 2022; 23(S1):S1-S259.. Desta forma, a transição de gênero envolve uma série de fatores heterogêneos e não lineares em que a autoidentificação desempenha um papel central, mas não necessariamente envolve mudanças comportamentais, legais e corporais.

No Brasil, os protocolos de saúde para pessoas trans, geralmente, se baseiam em perspectivas patologizantes, o que não reflete a complexidade das experiências individuais44 Simakawa VV. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2015.. Nesse âmbito, o conceito de “gestação paterna” destaca a possibilidade de homens trans se tornarem pais por meio da gestação55 Peçanha LMB. Ressignificar e empoderar o corpo: Homem trans grávido e os desafios da adequação. In: Seminário Internacional Desfazendo Gênero. 2ª ed. Salvador: Anais UFBA; 2015. p. 1-5.,66 Peçanha LMB, Neves BDA. Memórias transmasculinas: Das reflexões nacionais ao movimento de homens trans carioca. In: Seminário Internacional Desfazendo Gênero. 5ª ed. Salvador: Anais UFBA; 2021.. Este termo se baseia na perspectiva teórico/crítica e epistemológica do transfeminismo das transmasculinidades que surge com o objetivo de abarcar as demandas e especificidades de homens trans e pessoas transmasculinas dentro do transfeminismo77 Leonardo MBP, Anne AM, Jaqueline GJ. Transfeminismo das transmasculinidades: diálogos sobre direitos sexuais e reprodutivos de homens trans brasileiros. Rev Bras Estud Homocultura 2023; 6(19):90-104.. Portanto, a gestação por homens trans desafia as noções tradicionais de masculinidade e feminilidade, o que tem implicações profundas nas concepções de maternidade e paternidade88 Monteiro AA. Homens que engravidam: um estudo etnográfico sobre parentalidades trans e reprodução [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2018..

Em termos de análise para a resolução dos problemas evidenciados no caso, empregou-se o referencial teórico e normativo do Processo de Enfermagem, cuja definição do Conselho Federal de Enfermagem trata-se de um “é um método que orienta o pensamento crítico e o julgamento clínico do Enfermeiro direcionando a equipe de enfermagem para o cuidado à pessoa, família, coletividade e grupos especiais”99 Brasil. Conselho Federal de Enfermagem (COFEN). Resolução nº 736 de 17 de janeiro de 2024. Dispõe sobre a implementação do Processo de Enfermagem em todo contexto socioambiental onde ocorre o cuidado de enfermagem. Diário Oficial da União 2024; 23 jan.. O referencial do Processo de Enfermagem foi empregado ainda, por ser considerado uma estratégia potente de ensino clínico e de fortalecimento do emprego de uma linguagem padronizada em saúde1010 Freitas MIP, Carmona EV. Estudo de caso como estratégia de ensino do Processo de Enfermagem e do uso de linguagem padronizada. Rev Bras Enferm 2011; 64(6):1157-11560..

Neste contexto, aplicou-se os pressupostos da Teoria dos Cuidados (Caring Theory) proposta por Kristen Swanson, desenvolvida no ano de 1988 no cenário americano a partir do método indutivo, a qual vem sendo amplamente utilizada no âmbito da prática em obstetrícia, principalmente, por profissionais do campo da Enfermagem, mantendo o seu foco nos processos do cuidar enquanto intervenções a serem implementadas no campo de atuação da Enfermagem1111 Swanson KM. Empirical development of a middle range theory of caring. Nurs Res 1991; 40(3):161-166.

12 Swanson KM. Nursing as Informed Caring for the Well-Being of Others. IMAGE 1993; 25(4):352-357.
-1313 Oliveira TC, Silva ALL, Oliveira JFS, Pereira EAT, Trezza MCSF. A assistência de enfermagem obstétrica à luz da teoria dos cuidados de Kristen Swanson. Enferm Foco 2018; 9(2):3-6..

Este referencial teórico pode apoiar a construção de uma relação entre profissional e paciente, auxiliando a organização da assistência, e preconiza etapas para reflexão do cuidado e suas dimensões: “conhecer”, “estar com”, “fazer por”, “possibilitar” e “manter as crenças”1313 Oliveira TC, Silva ALL, Oliveira JFS, Pereira EAT, Trezza MCSF. A assistência de enfermagem obstétrica à luz da teoria dos cuidados de Kristen Swanson. Enferm Foco 2018; 9(2):3-6.. Esta prática coaduna e torna-se essencial na promoção de cuidados inclusivos que respeitem as complexidades da gestação, parto e puerpério de homens trans1414 Rosa DF, Carvalho MVF, Pereira NR, Rocha NT, Neves VR, Rosa AS. Nursing Care for the transgender population: genders from the perspective of professional practice. Rev Bras Enferm 2019; 72:299-306..

Este estudo objetiva analisar as experiências de um homem trans durante o período gravídico-puerperal e a perspectiva de enfermeiras obstetras em formação, a partir das dinâmicas e organização dos cuidados de saúde obstétricos em ambiente hospitalar. Este trabalho promove visão das necessidades de cuidados de saúde e barreiras enfrentadas por homens trans gestantes, destaca a importância do respeito às experiências individuais no ambiente de assistência à saúde.

Métodos

Estudo de caso qualitativo, narrativo e reflexivo de experiências do cotidiano profissional. O estudo de caso envolve investigação aprofundada da vida real e contextos que merecem atenção1515 Andrade SR, Ruoff AB, Piccoli T, Schmitt MD, Ferreira SA, Xavier ACA. O estudo de caso como método de pesquisa em enfermagem: uma revisão integrativa. Texto Contexto Enferm 2017; 26(4):e5360016.,1616 Yin RK. Case Study Research and Applications: Design and Methods. 6ª ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2018..

O lócus foi uma capital do Nordeste, Brasil, mediante ao acompanhamento da trajetória de um homem trans adulto no período gravídico-puerperal em serviços públicos de saúde (ambulatoriais, hospitalares e especializados).

O participante foi recrutado de maneira intencional a partir dos critérios de inclusão: ser homem trans, adulto, ter vivenciado a gestação e o acompanhamento pré-natal junto à parceria. Não foram aplicados critérios de exclusão por se tratar de estudo de caso único.

A equipe de pesquisa foi composta por pessoas transgêneras e cisgêneras, nos níveis de formação: Residência em Enfermagem Obstétrica, mestrado e doutorado na área de Ciências Sociais, Antropologia, Enfermagem, Educação Física e Direito. Parte da equipe teve acesso direto ao participante, devolvendo ao mesmo o material coletado para a apreciação.

A produção dos dados envolveu diferentes estratégias metodológicas, com fins na triangulação das fontes de dados, compreensão mais abrangente do fenômeno, localização da consistência e validade dos dados, a saber: 1. notas de campo registradas a partir das vivências de formação na residência (realizado de forma coordenada, guiada por um roteiro); 2. preenchimento de uma matriz analítica (planejamento do estudo, desenvolvimento do projeto determinando o modelo, as etapas e os instrumentos ao mesmo); e 3. validação, compartilhamento dos dados coleta/análise e construção do estudo1616 Yin RK. Case Study Research and Applications: Design and Methods. 6ª ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2018..

A coleta de dados foi seguida por um roteiro instrucional para a elaboração do estudo de caso clínico (identificação do caso, formulação de questões norteadoras, resumo de problemas identificados, fundamentação teórica, alternativas ou propostas, ações implementadas ou recomendadas, e discussão do caso)1717 Galdeano LE, Rossi LA, Zago MMF. Roteiro instrucional para a elaboração de um estudo de caso clínico. Rev LatinoAm Enferm 2003; 11(3):371-375..

Posteriormente, aplicou-se um formulário estruturado (questões sociodemográficas, identitárias, laborais e de saúde - aspectos ginecológicos, obstétricos e puerperais) e perguntas abertas direcionadas a experiências do período gravídico-puerperal, a paternidade/parentalidade e relação afetivo-conjugal. Além disso, realizou-se entrevista em profundidade (dinâmica do casal e parentalidade), realizada em dois momentos, por meio do recurso audiovisual disponibilizado no aplicativo WhatsApp. Assim, foram derivadas as categorias temáticas, mediante a saturação dos dados, considerando a ocorrência, convergência e complementaridade, em termos da reflexividade.

A aproximação ao participante se deu em uma atividade voltada à parentalidade trans realizada de forma colaborativa (coletivo de homens trans, serviços de saúde, ativistas, universidades e representantes da sociedade civil). O participante foi informado e convidado a ser incluído no estudo. Foi aplicado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e concedida a anuência. Posteriormente, foram agendados os procedimentos de coleta, garantindo a autonomia, conveniência e confidencialidade).

Os áudios obtiveram a duração de 110 minutos, submetidos à transcrição literal e processados sob o suporte do software NVIVO12, que possibilitou gerar códigos teóricos (nós), otimizando o processo de codificação dos dados. Ressalta-se que nenhum recurso de imagem foi utilizado para fins de análise dos dados. Este procedimento foi realizado por dois pesquisadores, de forma organizada, a fim de sistematizar os dados, agrupando-os por unidades de sentido, em termos de padronização por conteúdo temático, a partir da constituição de um corpus de análise.

Os dados foram submetidos à Análise de Conteúdo Temático, proposto por Bardin1818 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016., a fim de identificar temas e padrões emergentes: homem trans em contexto de gestação, parto e puerpério; parceria e dimensões parentais; dilemas enfrentados pelo casal grávido; impressões registradas pela profissional de enfermagem; compreensão do caso sob a lente teórica e epistemológica; implicações para os profissionais da saúde.

Os resultados foram analisados a partir do marco teórico e normativo do Processo de Enfermagem e da Teoria dos Cuidados (Caring Theory), proposto por Kristen Swanson, bem como, a partir da perspectiva teórico/crítica do transfeminismo1111 Swanson KM. Empirical development of a middle range theory of caring. Nurs Res 1991; 40(3):161-166.

12 Swanson KM. Nursing as Informed Caring for the Well-Being of Others. IMAGE 1993; 25(4):352-357.
-1313 Oliveira TC, Silva ALL, Oliveira JFS, Pereira EAT, Trezza MCSF. A assistência de enfermagem obstétrica à luz da teoria dos cuidados de Kristen Swanson. Enferm Foco 2018; 9(2):3-6.. Com o objetivo de garantir a credibilidade dos dados gerados (resultados do estudo), foram adotadas estratégias como a revisão por pares (pesquisadores(as) desenvolvedores(as) do estudo); revisão por especialistas na área de transgeneridade e saúde; análise por parte dos participantes do estudo e reflexividade da equipe de pesquisa. Nessa direção, a transferibilidade dos resultados foi abordada por meio da descrição detalhada do contexto do estudo de caso, bem como dos participantes. O registro detalhado das informações, procedimentos metodológicos e decisões de pesquisa tomadas, assegurou a confiabilidade do estudo.

Foram cumpridos os aspectos éticos em todas as etapas do estudo. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob CAAE: 11851619.2.0000.5531 e o parecer de número 3.960.330. Foram respeitadas as legislações vigentes no Brasil para o desenvolvimento de pesquisas envolvendo seres humanos, bem como das recomendações expedidas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa para a realização de estudos de caso. Para fins de preservação da imagem, integridade e anonimato dos participantes, foram utilizadas descrições genéricas. Ressalta-se que não foram acrescentadas informações adicionais ao caso, prezando pela sua veracidade, confiabilidade e validade interna, preservando a sensibilidade sociocultural existente na experiência investigada.

Resultados e discussões

Os resultados desta pesquisa foram estruturados a partir da descrição das questões norteadoras formuladas, delineado pelo resumo do levantamento dos problemas, alterações identificadas, o enquadramento teórico, com a exposição das alternativas, propostas ações a serem implementadas e/ou recomendadas, com fins na otimização da condução do caso, estruturada em seis categorias temáticas.

Categoria Temática 1: O caso - homem trans contexto de gestação, parto e puerpério

Esta categoria apresenta os dados oriundos do estudo do caso de um homem transgênero, no contexto da gestação, parto e puerpério, os quais expressaram eventos experienciados no âmbito da assistência hospitalar. Aponta para contextos clínicos pregressos, decorrentes da trajetória terapêutica em serviços de saúde na Atenção Primária e Especializada, especificamente, em um ambulatório de atendimento à pessoa transgênero. Compõem as características sociodemográficas, de saúde geral, ginecológica e obstétrica, os exames diagnósticos realizados, manifestações clínicas experienciadas o período gravídico-puerperal, incluindo a saúde mental (Quadro 1).

Quadro 1
Categorização do caso - pessoa/paciente transgênero em contexto de gestação e parto. Salvador, Bahia, Brasil, 2023.

Esse contexto ressalta a necessidade premente de integração de cuidados de saúde mental no acompanhamento gestacional de pessoas transgênero, dada a influência substancial do período gravídico-puerperal, tanto na saúde física quanto emocional. Além disso, a decisão de interromper a gestação devido a questões de saúde mental, enfatiza o respeito à vida também daquele que gesta, bem como a intervenção médica quando necessário para garantir o bem-estar de ambos os envolvidos. Em suma, esse caso ilustra a complexidade do acompanhamento gestacional de pessoas transgênero e destaca a necessidade de abordagens sensíveis e inclusivas na prestação de cuidados de saúde durante esse período55 Peçanha LMB. Ressignificar e empoderar o corpo: Homem trans grávido e os desafios da adequação. In: Seminário Internacional Desfazendo Gênero. 2ª ed. Salvador: Anais UFBA; 2015. p. 1-5..

A gestação vivenciada por um homem transgênero abala e desafia a ideia preconcebida de que esse processo é intrinsecamente associado à feminilidade. Além das convenções biológicas, tradicionalmente associadas às designações “pai” e “mãe”, a parentalidade abrange uma diversidade de abordagens para cuidar e de se identificar no contexto da estrutura parental binária. Cada homem trans desempenha o papel parental que melhor se alinha com a sua própria jornada pessoal88 Monteiro AA. Homens que engravidam: um estudo etnográfico sobre parentalidades trans e reprodução [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2018..

Categoria Temática 2: O caso - a parceria e as dimensões parentais

Esta categoria explicita a relação com a parceira, uma mulher cisgênera, segundo o participante. Os resultados apontaram para a percepção parental limitada à condição de acompanhante e não co-participante, atuante ao longo da gravidez, parto e puerpério no contexto hospitalar. O relato possibilitou localizar a insatisfação do participante com o cotidiano assistencial e as interações junto aos profissionais da saúde, no que tange ao reconhecimento da parentalidade do casal grávido. Destaque, para o preenchimento da Declaração de Nascido Vivo (DNV), no campo parturiente foram registradas informações relacionadas ao paciente - homem trans grávido e pai do recém-nascido -, estando tal preenchimento em desacordo com o desejo do pai que gestou, além disso a mãe e parceira não teve seus dados inseridos na declaração (Quadro 2).

Quadro 2
Categorização do caso - a parceria e as dimensões parentais. Salvador, Bahia, Brasil, 2023.

Na categoria 2, observa-se que as fragilidades legais associadas a transparentalidade criam obstáculos no registro civil do filho gestado, e, consequentemente, de receber benefícios sociais, os quais debilitam os direitos da criança, visto que, a falta da documentação impede o lactente de acessar os serviços de saúde, como vacinação, consultas de acompanhamento do crescimento e desenvolvimento, e a educação como creches. Contudo, no Manual de Instruções para Preenchimento da DNV está disposto que deve ser preenchido em nome completo do(a) parturiente apenas aquele(a) que gestou a criança, independentemente da sua identidade de gênero1919 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise Epidemiológica e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis. Declaração de Nascido Vivo: manual de instruções para preenchimento. 4ª ed. Brasília: MS; 2022..

Em 2016, o Decreto nº 8.727 que “dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional”, no Artigo 1º explica o nome social enquanto a “designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida” e identidade de gênero como a “dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como isso se traduz em sua prática social, sem guardar relação necessária com o gênero atribuído no nascimento”, sendo estes direitos importantes para a dignidade da pessoa humana. Uma vez que o paciente já tenha alterado o prenome e o gênero nos documentos, a modificação do registro pode ser realizada2020 Brasil. Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016. Dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Diário Oficial da União 2016; 28 abr..

Categoria Temática 3: A problematização do caso - dilemas enfrentados pelo casal grávido

A problematização do caso encontra-se descrita nesta categoria, que aponta para os dilemas enfrentados pelo casal grávido em relação ao contexto assistencial em relação à parentalidade e o cuidado em saúde (Quadro 3).

Quadro 3
Problematização do caso - dilemas enfrentados pelo casal grávido. Salvador, Bahia, Brasil, 2023.

Na categoria 3, o relato demonstra a falta de recursos financeiros do casal e a escolha pela inseminação caseira como forma de concretizar o projeto parental. Evidencia-se que no Brasil há uma desigualdade no acesso às tecnologias reprodutivas. Isso se deve ao fato de que o acesso da população, sobretudo por pessoas LGBTQIANP+, à reprodução assistida em clínicas enfrenta várias barreiras, como por exemplo, os altos custos dos procedimentos particulares; a pouca oferta no sistema de saúde pública; a concentração das clínicas nos espaços urbanos; e a presença de um ambiente clínico cis-heterocentrado.

É nesse contexto complexo que a inseminação caseira se insere como uma prática de auto inseminação realizada fora das clínicas de reprodução assistida2121 Mariana GF, Marlene T. Inseminação caseira como possibilidade de lesboparentalidades no Brasil. Rev Encuentros Latinoam 2021; 5(2):180-201.. Com isso, a inseminação caseira se configura como uma ferramenta e estratégia de autonomia reprodutiva que permite aos homens trans e pessoas transmasculinas concretizarem seus projetos parentais2222 Monteiro AA, McCallum C. Paternidades Trans: uma análise etnográfica das experiências parentais de um homem trans em Salvador, Bahia. Rev Bras Estud Homocultura 2023; 6 (20):30-59..

Diante desse conflito acerca das expectativas criadas com o período gravídico puerperal que podem não se adequar a realidade vivenciada, surgem alterações emocionais e desafios que implicam na disforia de gênero. É fundamental ressaltar a relevância da rede de apoio, em especial o envolvimento da parceria durante o período gravídico-puerperal, bem como a presença de familiares e amigos próximos capazes de oferecer um suporte positivo2323 Charter R, Ussheret JM, Perz J, Robinson K. The transgender parent: experiences and constructions of pregnancy and parenthood for transgendermen in australia. Int J Transgend 2018; 19(1):64-77..

Ademais, os achados do presente estudo apontaram para transfobia pelos profissionais da saúde. Esse fenômeno caracteriza-se pela negação histórica e cultural através do medo, desconforto, ódio, estigmatização de como uma pessoa trans constrói a própria identidade de gênero. A violência, seja ela velada ou materializada, provoca sofrimento nesta população, impondo barreiras que dificultam a aproximação e cuidado em saúde. A presença de homem trans no serviço de saúde, desta forma, representa uma quebra do discurso ideológico binário, como o pensamento que apenas mulheres cisgênero podem engravidar, por relacionar o útero apenas ao feminino2424 Zerbinati JP, Bruns MAT. Transfobia: contextos de negatividade, violência e resistência. PERI 2019; 2(11):195-216..

A Lei nº 7.716, de 1989, que “define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor”, consta que no Art. 1º “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Amplia sua proteção para vários tipos de intolerância, mesmo que não mencione diretamente a discriminação em razão da orientação sexual e identidade de gênero, mas podem ser enquadradas nesta Lei2525 Brasil. Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Diário Oficial da União 1989; 5 jan..

As reflexões levantadas a partir da vivência do caso ressaltam a importância fundamental de compreender as complexidades da identidade de gênero e da saúde mental de pessoas trans. Este caso enfatiza a urgência de melhorar a qualidade do atendimento prestado aos pacientes trans, especialmente dentro do contexto do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso não apenas envolve a capacitação contínua da equipe em relação às questões de gênero, mas também requer o desenvolvimento de protocolos, garantindo que os direitos e a saúde de todos os pacientes sejam respeitados.

Categoria Temática 4: A contextualização do caso - impressões registradas pela profissional de enfermagem

Os dados desta categoria apresentam a manifestação das impressões registradas pelas profissionais de enfermagem no contexto da formação em residência na área de Enfermagem Obstétrica, no que tange a contextualização do caso assistido. Foram levantadas as dificuldades e os desafios enfrentados, bem como as percepções acerca da equipe assistencial, em termos de condutas adotadas, dilemas vivenciados e a necessidade da revisão das práticas profissionais em saúde no contexto hospitalar obstétrico para o atendimento de homens trans no período gravídico-puerperal, com apontamentos para refletir e construir novos cenários assistenciais de produção do cuidado em saúde no serviço público (Quadro 4).

Quadro 4
Contextualização do caso - impressões registradas pela profissional de enfermagem. Salvador, Bahia, Brasil, 2023.

Além disso, na Categoria 4, é importante refletir sobre a prática de amamentação, a qual está marcada por períodos de sofrimento emocional, além de ser considerada o ápice do desconforto com o corpo, pois é percebida como um dos papéis sociais emblemáticos do feminino2626 García-Acosta JM, San Juan-Valdivia RM, Fernández-Martínez AD, Lorenzo-Rocha ND, Castro-Peraza ME. Trans* Pregnancy and Lactation: A Literature Review from a Nursing Perspective. Int J Environ Res Public Health 2019; 17(1):44.. É importante considerar outras possibilidades de alimentação para as crianças de homens trans que optam por não amamentar, como o uso de bancos de leite humano, fórmulas lácteas e indução a lactação pelas suas parcerias. É responsabilidade dos profissionais de saúde informar nas consultas de assistência pré-natal, sobre as diferentes alternativas disponíveis, sem pressionar o indivíduo e respeitando sua autonomia2727 MacDonald T, Noel-Weiss J, West D. Transmasculine individuals' experiences with lactation, chestfeeding, and gender identity: a qualitative study. BMC Pregnancy Childbirth 2016; 16:106..

A produção de leite é viabilizada por meio de um procedimento que abrange três etapas distintas: preparação hormonal do tecido mamário, promoção da prolactina e desmame hormonal com expressão da mama2626 García-Acosta JM, San Juan-Valdivia RM, Fernández-Martínez AD, Lorenzo-Rocha ND, Castro-Peraza ME. Trans* Pregnancy and Lactation: A Literature Review from a Nursing Perspective. Int J Environ Res Public Health 2019; 17(1):44.,2828 Ferri RL, Rosen-Carole CB, Jackson J, Carreno-Rijo E, Greenberg KB. ABM Clinical Protocol #33: Lactation Care for Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender, Queer, Questioning, Plus Patients. Breastfeeding Med 2020; 15(5):284-293.. A técnica da Indução de Lactação amplia a oportunidade para mães não biológicas amamentarem seus filhos, beneficiando, assim, uma diversidade de famílias, incluindo aquelas compostas por adotantes, pessoas trans e casais lésbicos. Isso contribui para que mais crianças tenham acesso aos benefícios nutricionais, emocionais e afetivos do leite humano, promovendo seu crescimento e desenvolvimento de forma adequada2929 Fernandes LCR, Sanfelice CFDO, Carmona EV. Indução da lactação em mulheres nuligestas: relato de experiência. Esc Anna Nery 2022; 26:e20210056.. A indução da lactação requer tempo e esforço, avaliação da saúde e das condições psicossociais, de modo a garantir a saúde tanto da pessoa que deseja induzir a lactação quanto do bebê que será amamentado.

Refletindo o contexto do parto, o cenário hospitalocêntrico é centralizado na figura médica, ao parturiente é desqualificado e impossibilitado de decidir se gostaria de cesárea ou não, devido à postura de profissionais da saúde22 Monaco S. Different in Diversity: An Intersectional Reading of LGBT Parenting. Culture Studi Soc 2022; 7(2):234-252.. Isto provoca sofrimento ao paciente, este requer orientações sobre as vias de parto e uso de métodos não farmacológicos para alívio da dor. Nesse sentido, o desrespeito à autonomia é uma violência obstétrica.

Esta, se configura como atos de desrespeito, agressões físicas, verbais, psicológicas, negligência no parto, procedimentos sem o consentimento e impedir a presença de acompanhante são alguns exemplos3030 Organização Mundial da Saúde (OMS). Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. Genebra: OMS; 2014.,3131 Bahia. Lei nº 2.228, de 4 de junho de 2018. Dispõe sobre a implantação de medidas de informação e proteção à saúde e parturiente contra a violência obstétrica no município de Vitória da Conquista. Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista; 2018.. Em Vitória da Conquista- Bahia, a Lei nº 2.228 em 2018, que caracteriza a violência obstétrica como apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres, não inclui os homens trans parturientes, evidenciando uma lacuna na proteção legal deste segmento populacional no contexto da assistência à saúde3131 Bahia. Lei nº 2.228, de 4 de junho de 2018. Dispõe sobre a implantação de medidas de informação e proteção à saúde e parturiente contra a violência obstétrica no município de Vitória da Conquista. Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista; 2018..

Neste caso, o homem trans que gestou apresentava conflitos com as mudanças corporais decorrentes da gestação, a maneira como este constitui seu corpo e sua identidade masculina, juntamente com as interações com os profissionais da saúde que o acompanhavam, culminaram em um episódio de intenso sofrimento psicológico, representando um risco para a saúde e vida do homem trans, do filho e das pessoas ao seu redor. Para alguns homens trans que estão grávidos, as mudanças corporais associadas à gravidez podem ser desafiadoras, emocionalmente difíceis de lidar, especialmente para aqueles que desejam masculinizar seus corpos através das intervenções hormonais e cirúrgicas. A forma como os homens trans e pessoas transmasculinas percebem e constroem seus corpos é particular, sendo ou não afetada durante a gravidez. As escolhas carregam implicações emocionais, sociais e físicas ligadas a forma como é constituída as experiências de gênero e o enfrentamento de discriminações3232 Hoffkling A, Obedin-Maliver J, Sevelius J. From erasure to opportunity: a qualitative study of the experiences of transgender men around pregnancy and recommendations for providers. BMC Pregnancy Childbirth 2017; 17(Supl. 2):332..

A análise deste caso evidencia lacunas na formação de equipes da saúde no cuidado às pessoas transgênero durante o período gravídico-puerperal, destacando o contexto da Residência em Enfermagem Obstétrica. A falta da promoção de espaços de educação permanente junto aos profissionais da saúde, especialmente no campo da ginecologia e obstetrícia, reflete em práticas que comprometem a qualidade do atendimento, contribuindo para a reprodução de uma assistência obstétrica desempenhada sob a lógica da cisheteronormatividade, em que as especificidades de homens trans são invisibilizadas nos diversos cenários de atuação. Desta forma, torna-se crucial que durante a formação de profissionais da saúde possa ser incluído temas como “assistência pré-natal, ao parto, nascimento e puerpério de homens trans” que preparem estas pessoas para abordagens de cuidados centrados na pessoa e que considerem as particularidades socioculturais das transmasculinidades3333 Pereira DMR, Araújo EC, Silva ATCSG, Abreu PD, Calazans JCC, Silva LLSB. Evidências científicas sobre experiências de homens transexuais grávidos. Texto Contexto Enferm 2022; 31:e20210347..

Categoria Temática 5: A compreensão do caso - adoção de uma lente teórica e epistemológica

A compreensão do caso explicitado nesta categoria foi ancorada a partir da Teoria dos Cuidados, a partir da inter-relação com a epistemologia transfeminista para pensar a produção do cuidado profissional de Enfermagem e Saúde no período gravídico-puerperal de homens trans e a sua relação de parentalidade (Quadro 5).

Quadro 5
Compreensão do caso - adoção de uma lente teórica e epistemológica. Salvador, Bahia, Brasil, 2023.

Categoria Temática 6: Análise crítica do caso - implicações para os profissionais da saúde

Nas categorias 5 e 6, a lente Teoria do Cuidar/Cuidado proposta por Swanson se mostrou útil para sustentar os cuidados desenvolvidos no âmbito familiar em suas diversificadas configurações relacionais. Ajuda a compreender os processos cuidativos em torno do que se espera de uma pessoa gestando, tal qual dos papéis sociais a serem atribuídos para homens e mulheres, uma vez que considera o elemento de “manter a crença” - tanto nas pessoas quanto nas suas capacidades1111 Swanson KM. Empirical development of a middle range theory of caring. Nurs Res 1991; 40(3):161-166..

Considera-se como importante o cuidado produzido no âmbito da atuação da Enfermagem, centrado na relação de afeto, no desenvolvimento, que seja do profissional, que seja da pessoa cuidada, pela responsabilização e pelo envolvimento1111 Swanson KM. Empirical development of a middle range theory of caring. Nurs Res 1991; 40(3):161-166.,1212 Swanson KM. Nursing as Informed Caring for the Well-Being of Others. IMAGE 1993; 25(4):352-357.. Reconhecer as necessidades de saúde homoparentais a partir da dimensão do cuidado, sob a consideração da relação interpessoal, se mostra indispensável para o reconhecimento da diversidade sexual e de gênero nas configurações familiares. Bem como da atenção às especificidades apresentadas pelos homens trans grávidos e as suas parcerias, em que o cuidar encontra um lugar essencial, especialmente, ao ser demonstrado e praticado de maneira eficaz de maneira interpessoal.

Neste sentido, recomenda-se que haja a criação de dispositivos assistenciais nos serviços que garantam a segurança e a proteção das famílias homoparentais nos serviços de saúde, potencializando e fortalecendo “possibilitar/capacitar” as equipes de profissionais e trabalhadores(as) da saúde. Em uma perspectiva de tornar o cuidado transpessoal, a ser permeado por diferentes meios de comunicação, sentimentos, harmonização da mente, corpo e espírito da pessoa a ser cuidada nesses espaços, superando modelos médicos-centrados, que dão ênfase restritiva aos protocolos, ao controle, rigor, objetividade e alta incorporação tecnológica, desprezando a dimensão humanista e do sentido do cuidado como atributo valioso para a humanidade1111 Swanson KM. Empirical development of a middle range theory of caring. Nurs Res 1991; 40(3):161-166.,1212 Swanson KM. Nursing as Informed Caring for the Well-Being of Others. IMAGE 1993; 25(4):352-357..

O metaparadigma da Teoria dos Cuidados, compreende a “Enfermagem” como o cuidado que se fundamenta no bem-estar da pessoa em termos clínicos e culturais. A “Pessoa” é vista como um ser único, que pode evoluir constantemente, a qual a sua unicidade pode expressar-se através de pensamentos, emoções e comportamentos; a “Saúde” é considerada enquanto uma experiência subjetiva, plenamente significada, que pode associar-se à integridade e totalidade do ser humano. Por fim, o “Ambiente”, engloba a noção de um patamar situacional em que vai além da dimensão física1111 Swanson KM. Empirical development of a middle range theory of caring. Nurs Res 1991; 40(3):161-166.. Diante disso, convoca-se aos profissionais da saúde a “conhecer” a experiência humana a partir da transgeneridade, ressignificar a lógica do atendimento assistencial e a produção do cuidado, rever os sentidos e significados de relacionamentos afetivo-sexuais, de família e parentalidade.

Utilizar o olhar na perspectiva do transfeminismo, traz um potencial de construir outros tipos de masculinidades que se difere da masculinidade hegemônica3434 Connell RW, Messerschmidt JW. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Rev Estud Fem 2013; 21(1):241-82. e que dialogam com o feminismo, justamente por terem pautas em comum como o combate ao machismo e à misoginia, a luta contra a violência obstétrica e pelo direito ao corpo. É nesse sentido que as identidades transmasculinas subvertem os discursos normativos, dando visibilidade a outras possibilidades de construção do que é ser homem3535 Santana B. Pensando as transmasculinidades negras. In: Restier H, Souza RM, organizadores. Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial; 2019. p. 95-104.. É dentro do campo do transfeminismos das transmasculinidades que essas masculinidades encontram espaço para tensionar e debater temas centrais como gestação, parto e puerpério e saúde desta população77 Leonardo MBP, Anne AM, Jaqueline GJ. Transfeminismo das transmasculinidades: diálogos sobre direitos sexuais e reprodutivos de homens trans brasileiros. Rev Bras Estud Homocultura 2023; 6(19):90-104..

O descompasso existente entre a legislação brasileira vigente e as vivências de homens trans no período gravídico-puerperal cria uma lacuna na proteção dos direitos e na garantia de atendimento de qualidade. Sendo assim, a implementação de protocolos institucionais garante que os pacientes trans recebam atendimento oportuno e adequado.

Conclusão

A gestação de pessoas transgênero é uma realidade que precisa ser reconhecida e incorporada na organização dos serviços, necessitando de investimento na promoção de espaços de educação permanente junto aos profissionais da saúde voltada para a compreensão e respeito à diversidade de gênero e das configurações familiares. Os indivíduos transgêneros devem estar envolvidos na organização dos cuidados que desejam receber de modo a priorizar o princípio bioético que trata sobre a autonomia na tomada de decisões sobre a sua saúde.

Há a necessidade de repensar os currículos de formação profissional para que preparem adequadamente os profissionais da saúde para atender de maneira mais inclusiva e sensível às diversas identidades de gênero, proporcionando experiências teórico-práticas que viabilizem suas especificidades no cuidado e o desenvolvimento de habilidades que atendam às demandas singulares dos pacientes transgênero. Assim, a implementação de programas de educação permanente sobre cuidados a pessoas transgênero no contexto no contexto da gestação, parto e puerpério torna-se fundamental, uma vez que, poderá possibilitar uma cultura organizacional mais inclusiva.

Ademais, ainda há fragilidades significativas acerca de produções científicas que tratem sobre transparentalidade e a trajetória obstétrica de homens trans. É necessário a produção de novos estudos que abordem as questões relativas aos direitos sexuais e reprodutivos, pré-natal, amamentação e assistência ao parto e nascimento a partir das experiências de homens trans, refletindo sobre os atravessamentos da cisheteronormatividade e as representações da transparentalidade no contexto da assistência à saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Abr 2024

Histórico

  • Recebido
    25 Out 2023
  • Aceito
    29 Fev 2024
  • Publicado
    02 Mar 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br