A parresía**Do grego παρρησία. Neste trabalho, optou-se pela transliteração parresía, grafia utilizada nas traduções nacionais dos últimos cursos de Michel Foucaultbem como em obras de cunho didático/enciclopédico, como Castro. Entretanto, a grafia parrhesía também é utilizada em algumas traduções, designando o mesmo conceito, sendo aqui preservada esta segunda forma apenas em citações literais nas quais ela aparece, como é o caso de Foucault como experiência formativa voltada aos profissionais da saúde

La parresia como experiencia formativa enfocada en los profesionales de la salud

Renata Maraschin Jarbas Dametto Sobre os autores

Resumos

Evidencia-se uma crise filosófica comprometendo a área da saúde e a formação de seus profissionais: o modelo cartesiano trouxe grandes avanços tecnológicos, mas apresenta sinais de esgotamento, percebidos na crescente incapacidade das sociedades contemporâneas de cuidarem adequadamente da saúde de seus membros e no distanciamento excessivo entre profissionais e público atendido. No intuito de oferecer elementos que reforcem a viabilidade de se instituir uma experiência humanizante no encontro entre profissional e população, propõe-se, neste ensaio, a noção de amizade como parresía, recorrendo-se a Gadamer e Foucault, porquanto fundamento pedagógico e filosófico para a formação em saúde. Ao se fundar o processo formativo no franco falar, coloca-se, em ação, o discurso que demanda pelo sentido da presença e pela presença do sentido nas aproximações entre profissionais e população, surgindo possibilidade de nestas haver menos governo, porquanto prescrição de condutas e mais força de afetação sensível.

Formação de profissionais de saúde; Filosofia da Educação; Parresía


Existe una crisis filosófica que afecta el área de la salud y la formación de sus profesionales: el modelo cartesiano brindó grandes avances tecnológicos, pero presenta señales de agotamiento percibidos en la creciente incapacidad que tienen las sociedades contemporáneas de cuidar adecuadamente de la salud de sus miembros y en el distanciamiento excesivo entre los profesionales y el público atendido. Con el objetivo de ofrecer elementos que refuercen la viabilidad de instituir una experiencia de humanización en el encuentro entre el profesional y la población se propone en este ensayo la noción de amistad como parresia, recurriendo a Gadamer y Foucault, por tratarse de una base pedagógica y filosófica para la formación en salud. Al basar el proceso formativo en la conversación franca se pone en acción el discurso que demanda el sentido de la presencia y la presencia del sentido en las aproximaciones entre profesionales y población, surgiendo la posibilidad de que en ellas haya menos gobierno, en lo que se refiere a prescripción de conductas y más fuerza de afectación sensible.

Formación de los profesionales de la salud; Filosofía de la Educación; Parresia


Introdução

Formar profissionais da saúde qualificados para aturem de forma humana, e em consonância com os princípios e diretrizes do Sistema de Saúde do Brasil, é um desafio contemporâneo que se impõe tanto ao campo da Saúde quanto ao campo da Educação Superior. Tal desafio se salienta frente ao diagnóstico de crise nesses dois campos55. Ministério da Saúde. Ministério da Educação (BR). Pró-saúde: programa nacional de reorientação da formação profissional em saúde [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2005 [acesso 2014 Jun 26]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pro_saude_cgtes.pdf
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,66. Feuerwerker LCM, Sena R. A construção de novos modelos acadêmicos, de atenção à saúde e de participação social. In: Almeida M, Feuerwerker LCM, Llanos CM, organizadores. A educação dos profissionais da saúde na América Latina: teoria e prática de um movimento de mudança. São Paulo: Hucitec; 1999. p. 47-82.. Na saúde, a crise se constitui por meio da contradição entre o modelo dominante, biomédico, centrado no combate técnico à doença, que já vem apresentando sinais de esgotamento, e o modelo da construção social da saúde, pautado por práticas de construção da saúde.

O modelo biomédico é originado de um conceito de saúde como ausência de doença, propondo a assistência ao doente em seus aspectos individuais e biológicos, centrado: no hospital, na hegemonia das especialidades médicas, no uso intensivo da tecnologia, com ênfase na recuperação do indivíduo doente. Por sua vez, o modelo da construção social da saúde apoia-se no fortalecimento do cuidado e na crescente autonomia das populações em relação à saúde. Essa crise na saúde se revela, sobretudo, na incapacidade da maioria das sociedades de promover e proteger a saúde coletiva, estando essa incapacidade relacionada com a ineficácia e ineficiência dos sistemas e do modelo assistencial predominante, com as dificuldades estruturais para financiá-los, e com a crescente insatisfação da população em sua relação com os serviços e com os profissionais de saúde66. Feuerwerker LCM, Sena R. A construção de novos modelos acadêmicos, de atenção à saúde e de participação social. In: Almeida M, Feuerwerker LCM, Llanos CM, organizadores. A educação dos profissionais da saúde na América Latina: teoria e prática de um movimento de mudança. São Paulo: Hucitec; 1999. p. 47-82.. Corroboram com essa perspectiva Pinheiro e Ceccim77. Pinheiro R, Ceccim RB. Experienciação, formação, cuidado e conhecimento em saúde: articulando concepções, percepções e sensações para efetivar o ensino da integralidade. In: Pinheiro R, Ceccim RB, Mattos RA, organizadores. Ensinar saúde: a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área da saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, Cepesq, Abrasco; 2006. p. 13-35., quando afirmam que a urgência de transformação na formação em saúde decorre, entre outros fatores,

[...] do baixo impacto das práticas profissionais na configuração dos estados de saúde nas coletividades (adoece-se e morre-se de agravos e doenças para os quais existem prevenção e cura), registra-se a insatisfação dos usuários com os padrões assistenciais e com a relação profissional-usuário, assim como se registra evidência de práticas iatrogênicas (excesso de solicitação de exames, de encaminhamentos e de indicação de procedimentos invasivos)77. Pinheiro R, Ceccim RB. Experienciação, formação, cuidado e conhecimento em saúde: articulando concepções, percepções e sensações para efetivar o ensino da integralidade. In: Pinheiro R, Ceccim RB, Mattos RA, organizadores. Ensinar saúde: a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área da saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, Cepesq, Abrasco; 2006. p. 13-35.. (p. 21)

Na educação, a crise se revela pela contraposição entre a concepção hegemônica tradicional, expressa por meio da pedagogia da transmissão, da prática pedagógica centrada no professor e no currículo, da aquisição de conhecimentos de maneira desvinculada da realidade, em oposição à concepção crítica reflexiva, sustentada na construção do conhecimento a partir da problematização da realidade, na articulação teoria e prática, e na participação ativa do estudante no processo ensino-aprendizagem. Influenciando e se relacionando com as crises acima referidas, é possível identificar uma crise de fundo filosófico: o modelo cartesiano de ciência separou do mundo todas as qualidades sensíveis, pois para conhecer o verdadeiro ser do universo seria necessário abandonar por completo todas as sensações e impressões, desejos e afetos, tudo o que se apresenta como subjetivo e que, supostamente, não permite que proposições científicas rigorosas e universais sejam formadas66. Feuerwerker LCM, Sena R. A construção de novos modelos acadêmicos, de atenção à saúde e de participação social. In: Almeida M, Feuerwerker LCM, Llanos CM, organizadores. A educação dos profissionais da saúde na América Latina: teoria e prática de um movimento de mudança. São Paulo: Hucitec; 1999. p. 47-82..

Se, por um lado, está o reconhecimento de que a ciência cartesiana e o paradigma biomédico promoveram muitos avanços técnicos em relação à saúde, sobretudo na medicina, refletindo no aumento da expectativa de vida das populações; por outro, se trata de reconhecer que também gerou um distanciamento excessivo entre profissionais e população, o que se desdobra: na crescente insatisfação revelada cotidianamente; nos tristes e amplamente divulgados casos de negligência, imperícia, imprudência; nas acusações de omissão de socorro, de descaso com o sofrimento das pessoas das quais esses profissionais cuidam, assim como nos casos de sofrimento mental entre profissionais de saúde, cuja etiologia remete a uma experiência laboral desumanizante.

Frente ao desafio de construir uma atuação profissional cada vez mais solidária e ética na área da saúde, propõe-se, neste artigo, a possibilidade de se refletir sobre alternativas para essa crise filosófica de fundo que atravessa a saúde e a educação, no sentido de repor uma perspectiva ampla e integral do processo saúde e doença e nos processos formativos, que inclua as qualidades sensíveis (sensações, impressões, desejos, afetos) e o entendimento de que elas compõem um panorama integral da vida. Trata-se de repor essa visão holística, que já estava posta, previamente, na medicina grega hipocrática, sendo, todavia, progressivamente desconsiderada, pois tida como fonte de erro pelo pensamento cartesiano, e, em consequência, pelo modelo biomédico.

Ao se retomar a medicina grega hipocrática, interessa destacar seu caráter holístico, que trata de uma abordagem sempre em relação ao paciente como um todo. Esse holismo também estava arraigado em valores culturais muito difundidos na sociedade grega88. Bynum W. História da Medicina. Souto Maior F, tradutora. Porto Alegre: L± 2011., dos quais se destaca a amizade. Assim, a pergunta que norteia o delineamento que se tentou dar a este artigo é: como o dizer franco e a amizade podem se configurar como fundamentos pedagógicos e filosóficos no processo de formação dos profissionais da saúde?

Recorrendo à tradição hermenêutica, ressalta-se que os conceitos de dizer franco e amizade, que se pretende adotar nessa discussão, são de origem greco-romana, tal qual reconstruídos por Michel Foucault em suas análises desenvolvidas nos cursos proferidos no Collège de France (1976-1984) – período no qual o autor entra no terceiro domínio da sua obra (domínio do ser consigo) e desenvolve conceitos como ascese, conversão, parresía e amizade, noções, por vezes, negligenciadas, uma vez que não são tratadas de forma sistemática em sua última e incompleta obra, intitulada História da Sexualidade99. Freitas AS. A parresía pedagógica e o êthos da educação como psicagogia. Rev Bras Educ [Internet]. 2013 [acesso 2014 Jun 26]; 18(53):325-493. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782013000200005 Doi: 10.1590/S1413-24782013000200005.
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,1010. Ortega F. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro: Graal; 1999..

Enfatiza-se que a publicação destes cursos e a compreensão do potencial filosófico e pedagógico desses conceitos têm impulsionado uma nova recepção das ideias foucaultianas no campo da educação99. Freitas AS. A parresía pedagógica e o êthos da educação como psicagogia. Rev Bras Educ [Internet]. 2013 [acesso 2014 Jun 26]; 18(53):325-493. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782013000200005 Doi: 10.1590/S1413-24782013000200005.
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e da formação de profissionais de saúdecc O termo parrhesia consta na base de dados Pubmed. Podem ser encontradas, nesta base de dados, nove referências relativas aos usos da parrhesia na formação de profissionais de saúde. Dado o limite do número de palavras para este artigo, não foi possível acrescentar as discussões realizadas nestas publicações ao presente trabalho, o que será realizado em estudos futuros relativos a este tema.. Do pensamento tardio de Foucault, é possível “ver nascer com clareza uma reflexão a respeito dos métodos, dos conhecimentos e dos exercícios necessários para impulsionar uma dinâmica formativa direcionada ao dizer-fazer ético”99. Freitas AS. A parresía pedagógica e o êthos da educação como psicagogia. Rev Bras Educ [Internet]. 2013 [acesso 2014 Jun 26]; 18(53):325-493. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782013000200005 Doi: 10.1590/S1413-24782013000200005.
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(p. 332). Por essa razão, elege-se essa etapa do pensamento de Foucault, destacando a relação que se estabelece entre amizade e parresía (o dizer verdadeiro, franco-falar) na direção da consciência. Nas palavras de Foucault44. Foucault M. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes; 2004., tem-se que: “Parrhesia é a abertura do coração, é a necessidade, entre os pares, de nada esconder um ao outro do que pensam e se falar francamente. Noção [...] a ser elaborada, mas que, sem dúvida, foi para os epicuristas, junto com a de amizade, uma das condições, um dos princípios éticos fundamentais da direção”44. Foucault M. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes; 2004. (p.169).

Para refletir sobre de que forma a amizade e a parresía podem constituir fundamento pedagógico e filosófico no processo de formação dos profissionais da saúde, divide-se a discussão em três partes. Na primeira parte, é reconstruída a tensão entre os modelos de assistência na saúde ainda vigentes: o modelo tradicional biomédico e o modelo da construção social da saúde, sendo deste originária a preocupação com o processo de reorientação da formação dos profissionais da saúde. Na segunda parte, alicerça-se uma perspectiva filosófica na tradição hermenêutica, que lança luz sobre a possibilidade de ampliação da formação universitária, de modo geral, e da formação dos profissionais da saúde, de modo particular, recorrendo, sobretudo, ao pensamento de Hans-Georg Gadamer e a relação que estabelece com a medicina hipocrática. E, na terceira parte, debate-se – também em uma perspectiva hermenêutica, embora diferente da de Gadamer – como a amizade e a parresía, tal qual apresentadas no pensamento de Michel Foucault, podem constituir fundamento pedagógico e filosófico para a formação dos profissionais da saúde.

Tensão entre os modelos de assistência na saúde ainda vigentes e a preocupação com o processo de reorientação da formação dos profissionais da saúde

A problemática que dá origem à reflexão proposta neste artigo traduz-se na tensão vigente entre o modelo tradicional biomédico e o modelo da construção social da saúde que demanda uma ação de reorientação da formação dos profissionais desta área. O modelo de saúde e de medicina voltado para a assistência à doença em nível individual e biológico, centrado no hospital, nas especialidades médicas e no uso intensivo de tecnologia, é denominado modelo biomédico ou flexneriano, em referência ao Relatório Flexner, de 1911, que fundamentou a reforma das faculdades de medicina nos Estados Unidos e no Canadá. Este modelo estruturou a assistência médica previdenciária nas décadas de 1940 e 1950, orientando, também, a organização dos hospitais universitários ou de ensino1111. Silva Júnior AG, Alves CA. Modelos assistenciais em Saúde: desafios e perspectivas. In: Morosini MVGC, Corbo ADA, organizadores. Modelos de atenção e a saúde da família. Rio de Janeiro: EPSJV, Fiocruz; 2007. p. 27-42.. Esse modelo dá diminuta relevância ao contexto psicossocial dos fenômenos, dos quais depende uma compreensão plena e adequada dos indivíduos, sua saúde e suas doenças. Como decorrência de um processo formativo ancorado nesse modelo, tem-se o favorecimento da construção de uma postura de desconsideração aos aspectos psicossociais tanto dos próprios profissionais da saúde quanto dos indivíduos envolvidos no cuidado prestado por eles1212. De Marco MA. Do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial: um projeto de educação permanente. Rev Bras Educ Med [Internet]. 2006 [acesso 2014 Jun 28]; 30(1):60-72. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbem/v30n1/v30n1a10.pdf Doi: 10.1590/S0100-55022006000100010.
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, o que se traduz em críticas crescentes à formação profissional e à atuação em saúde pautadas por esse modelo. Entre essas críticas, destaca-se a realizada por Barros1313. Barros JA. Pensando o processo saúde doença: a que responde o modelo biomédico? Saude Soc [Internet]. 2002 [acesso 2014 Jun 28]; 11(1):67-84. Disponí-vel em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v11n1/08.pdf Doi: 10.1590/S0104-12902002000100008.
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, quando afirma que

Paralelamente ao avanço e sofisticação da biomedicina foi sendo detectada sua impossibilidade de oferecer respostas conclusivas ou satisfatórias para muitos problemas ou, sobretudo, para os componentes psicológicos ou subjetivos que acompanham, em grau maior ou menor, qualquer doença. As críticas à prática médica habitual e o incremento na busca de estratégias terapêuticas estimulada pelos anseios de encontrar outras formas de lidar com a saúde e a doença (no seu conjunto designadas como medicinas alternativas ou complementares) constituem uma evidência dos reais limites da tecnologia médica.1313. Barros JA. Pensando o processo saúde doença: a que responde o modelo biomédico? Saude Soc [Internet]. 2002 [acesso 2014 Jun 28]; 11(1):67-84. Disponí-vel em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v11n1/08.pdf Doi: 10.1590/S0104-12902002000100008.
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(p. 79)

Diante dos sinais de esgotamento do modelo biomédico como o único capaz de contemplar plenamente as demandas de saúde, as quais, de forma crescente, extrapolam a perspectiva reducionista de saúde como ausência de doença, e no sentido de criar alternativas para pensar a saúde de forma mais ampla, a partir dos anos 1970, o modelo de construção social da saúde estabeleceu-se, nos debates internacionais, como proposta alternativa ao modelo biomédico, pois enfatizava a racionalização do uso das tecnologias na atenção médica e o gerenciamento eficiente. Nesse modelo, a centralidade na promoção, proteção e recuperação e produção dos cuidados de saúde gera, como desdobramento, a necessidade de transformações no processo de formação profissional1111. Silva Júnior AG, Alves CA. Modelos assistenciais em Saúde: desafios e perspectivas. In: Morosini MVGC, Corbo ADA, organizadores. Modelos de atenção e a saúde da família. Rio de Janeiro: EPSJV, Fiocruz; 2007. p. 27-42..

No que se refere à tendência de perspectiva no campo da saúde no Brasil, é possível observar

um amplo e consistente movimento para reorganizar e incentivar a atenção básica como estratégia privilegiada do modelo de construção social da saúde para a organização do cuidado em saúde. Estabelecer uma atenção básica resolutiva e de qualidade, significa reafirmar os princípios constitucionais da universalidade, equidade e integralidade das ações estabelecidas para o Sistema Único de Saúde (SUS)1414. Ministério da Saúde. Ministério da Educação (BR). Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde – Pró-Saúde: objetivos, implementação e desenvolvimento potencial [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2007 [acesso 26 Jun 2014]. Disponível em: http://www.prosaude.org/publicacoes/pro_saude1.pdf
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. (p. 7)

Nesse sentido, constitui desafio permanente o reforço de uma vigorosa articulação entre as instituições formadoras e o serviço público de saúde. Há que se corrigir o descompasso entre a orientação da formação dos profissionais de saúde e os princípios, as diretrizes e as necessidades do Sistema Único de Saúde.

O consenso nacional sobre a necessidade de reorientação do modelo de formação dos profissionais da saúde1414. Ministério da Saúde. Ministério da Educação (BR). Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde – Pró-Saúde: objetivos, implementação e desenvolvimento potencial [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2007 [acesso 26 Jun 2014]. Disponível em: http://www.prosaude.org/publicacoes/pro_saude1.pdf
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15. Ceccim RB. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Cad Saude Publica [Internet]. 2009 [acesso 2015 Nov 8]; 25(10):2299-300. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2009001000021&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt Doi: 10.1590/S0102-311X2009001000021.
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16. Portaria Interministerial nº 2.101, de 3 de novembro de 2005. Institui o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde - Pró-Saúde – para os cursos de graduação em Medicina, Enfermagem e Odontologia [Internet]. Diário Oficial da União. 4 Nov 2005; (212):111 [acesso 2014 Jun 26]. Disponível em http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/2101.pdf
http://portal.saude.gov.br/portal/arquiv...
-1717. Stedile NLR, Friendlander MR. Metacognição e ensino de Enfermagem: uma combinação possível? Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2003 [acesso 2014 Jun 26]; 11(6):792-9. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-11692003000600014&script=sci_arttext Doi: 10.1590/S0104-11692003000600014.
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tem sua expressão maior no Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (PRÓ-SAÚDE), elaborado pelo Ministério da Saúde em parceria com o Ministério da Educação e em cooperação da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). De acordo com o PRÓ-SAÚDE, a mudança no processo formativo está centrada no deslocamento do entendimento reducionista de saúde (como ausência de doença em nível biológico) para uma compreensão mais abrangente, de saúde integral, determinada por fatores de natureza econômica, política, social, biológica e cultural.

A intervenção no processo educativo constitui, na perspectiva do PRÓ-SAÚDE, o meio mais adequado para se alcançar tal mudança na concepção de saúde. Para tanto, tende ser necessário deslocar o eixo da formação, atualmente centrada na assistência individual prestada em unidades especializadas, em direção à sintonia com as necessidades sociais, considerando as dimensões econômicas, culturais e sociais em que vive a população, e instrumentalizando os profissionais para uma abordagem generalista, humanística, solidária e ética dos determinantes do binômio saúde-doença55. Ministério da Saúde. Ministério da Educação (BR). Pró-saúde: programa nacional de reorientação da formação profissional em saúde [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2005 [acesso 2014 Jun 26]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pro_saude_cgtes.pdf
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,1414. Ministério da Saúde. Ministério da Educação (BR). Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde – Pró-Saúde: objetivos, implementação e desenvolvimento potencial [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2007 [acesso 26 Jun 2014]. Disponível em: http://www.prosaude.org/publicacoes/pro_saude1.pdf
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. Há que se modificar, portanto, um processo educativo formal que contempla, insuficientemente, a questão da promoção da saúde e da prevenção de agravos, estando comumente fragmentado e dissociado do contexto social, e que enfatiza a excelência técnica e a formação especializada. Quanto ao enfoque pedagógico, frequentemente, limita-se às metodologias tradicionais baseadas na transmissão de conhecimentos, que não privilegiam a formação crítica do estudante. A abordagem interdisciplinar e o trabalho em equipes multiprofissionais raramente são explorados pelas instituições formadoras na graduação, o que se reproduz nas equipes de saúde, resultando na ação isolada de cada profissional e na sobreposição das ações de cuidado e sua fragmentação1414. Ministério da Saúde. Ministério da Educação (BR). Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde – Pró-Saúde: objetivos, implementação e desenvolvimento potencial [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2007 [acesso 26 Jun 2014]. Disponível em: http://www.prosaude.org/publicacoes/pro_saude1.pdf
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No que se refere ao desenvolvimento da proposta do Pró-Saúde, é necessário considerar a importância da integralidade das ações, assim como a dimensão individual e coletiva, enfatizando a abordagem interdisciplinar com ampla articulação entre as ações preventivas e curativas, atuando tanto na comunidade e no ambulatório quanto em clínicas de ensino e no âmbito hospitalar1414. Ministério da Saúde. Ministério da Educação (BR). Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde – Pró-Saúde: objetivos, implementação e desenvolvimento potencial [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2007 [acesso 26 Jun 2014]. Disponível em: http://www.prosaude.org/publicacoes/pro_saude1.pdf
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. Respeitando as diretrizes nacionais aprovadas pelo Ministério da Educação, o processo formativo deve estar atento: ao acelerado ritmo de evolução do conhecimento, à mudança do processo de trabalho em saúde, às transformações nos aspectos demográficos e epidemiológicos, tendo como perspectiva o equilíbrio entre excelência técnica (especialização, alta tecnologia, instalações sofisticadas e supervalorização do saber técnico) e a relevância social (acesso equitativo, abordagem integral, orientação ética, humanística e promoção da qualidade de vida)1414. Ministério da Saúde. Ministério da Educação (BR). Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde – Pró-Saúde: objetivos, implementação e desenvolvimento potencial [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2007 [acesso 26 Jun 2014]. Disponível em: http://www.prosaude.org/publicacoes/pro_saude1.pdf
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.

O desafio, contudo, parece ser exatamente como encontrar o equilíbrio entre excelência técnica e relevância social, dando conta das especificidades de cada área sem perder a dimensão humana integral por trás dos fenômenos da saúde. Desafio que chama à reflexão e vai ao encontro da convocação de Ceccim1515. Ceccim RB. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Cad Saude Publica [Internet]. 2009 [acesso 2015 Nov 8]; 25(10):2299-300. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2009001000021&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt Doi: 10.1590/S0102-311X2009001000021.
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quando afirma que

A luta por educação e por saúde é para todos e todas, é, também, para cada um e cada uma. Penso deixar aí uma convocação aos educadores: lutar com a formação, mas em sua ressingularização permanente, em escuta pedagógica daquilo que pede passagem, em uma arte da educação. O processo de trabalho em saúde é reconfigurado pelas ações de ensino e profissionalização1515. Ceccim RB. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Cad Saude Publica [Internet]. 2009 [acesso 2015 Nov 8]; 25(10):2299-300. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2009001000021&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt Doi: 10.1590/S0102-311X2009001000021.
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. (p. 2300)

Diante do desafio apresentado na convocação acima citada, acredita-se no potencial da hermenêutica e da parresia enquanto formas de apreciação da experiência e de relação com a verdade que contemplam a dimensão necessariamente singular da formação, sem, por isso, deslocar-se dos objetivos universalizantes do campo da saúde, de seu inevitável compromisso com todos.

Perspectiva filosófica hermenêutica e a relação com a medicina hipocrática lançando luz sobre a ampliação do processo formativo dos profissionais da saúde

Gadamer1818. Gadamer HG. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes; 2006., Nussbaum1919. Nussbaum M. Sin fines de lucro: por qué la democracia necesita de las humanidades. Buenos Aires: Katz Editores; 2010., Flickinger2020. Flickinger HG. A caminho de uma pedagogia hermenêutica. Campinas: Autores Associados; 2010., Dalbosco2121. Dalbosco CA. Universidade e formação profissional alargada: porque ainda humanidades. In: Bertolin JCG, Souza JCC, organizadores. Planejamento institucional de uma universidade comunitária: ideias, propostas e experiências na UPF. Passo Fundo: UPF; 2012. p. 24-35. alertam sobre os riscos do tecnicismo na formação dos estudantes universitários e, também, sobre como a democracia necessita das humanidades. O alerta dos autores vai ao encontro das perspectivas que apontam para um estreitamento das relações entre formação profissional em saúde e o que preconiza o Sistema Único de Saúde, como proposto pelo PRÓ-SAÚDE.

Dalbosco2121. Dalbosco CA. Universidade e formação profissional alargada: porque ainda humanidades. In: Bertolin JCG, Souza JCC, organizadores. Planejamento institucional de uma universidade comunitária: ideias, propostas e experiências na UPF. Passo Fundo: UPF; 2012. p. 24-35. revela tendência mundial da Educação Superior marcada pela redução progressiva do conhecimento à informação e pelo tecnicismo, concentrando-se na formação de profissionais para atender as demandas imediatas do mercado do trabalho em detrimento de uma ampla formação cultural. Nesse sentido, o autor alerta para o encurtamento do papel das humanidades na formação das novas gerações de estudantes, por meio da exclusão de disciplinas humanistas dos currículos dos cursos de graduação, bem como para o duplo risco que essa tendência mundial provoca: reducionismo na ideia de universidade como centro de produção e socialização do conhecimento em detrimento da pesquisa e do ensino e, também, a própria concepção democrática de sociedade.

Nussbaum1919. Nussbaum M. Sin fines de lucro: por qué la democracia necesita de las humanidades. Buenos Aires: Katz Editores; 2010. também analisa a redução significativa das disciplinas humanistas na formação profissional das novas gerações e a insuficiência de um ensino profissionalizante na preparação de novas gerações para a democracia. Sobretudo porque é das artes e da literatura, na perspectiva da autora, que provém a imaginação que possibilita, ao estudante, desenvolver sua capacidade criativa e, ainda, o interesse pelo outro. Flickinger1616. Portaria Interministerial nº 2.101, de 3 de novembro de 2005. Institui o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde - Pró-Saúde – para os cursos de graduação em Medicina, Enfermagem e Odontologia [Internet]. Diário Oficial da União. 4 Nov 2005; (212):111 [acesso 2014 Jun 26]. Disponível em http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/2101.pdf
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também adverte sobre a perda da noção do todo decorrente da especialização, mas alerta que seria demasiadamente ingênuo querer reviver o estágio antigo de uma visão única do saber humano, capaz de integrar a diversidade hoje existente nas ciências. Ele propõe a intensificação do debate em torno da possível reconstrução de pontes entre as disciplinas.

Gadamer1818. Gadamer HG. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes; 2006., ao discutir a problemática geral que se coloca sobre os aspectos do cuidado com a saúde na era da ciência e da técnica, diz que o pensamento matemático-experimental se impôs de tal forma na arte de curar que se perdeu no labirinto da especialização, perdendo-se, também, a noção do todo. “Infelizmente, temos de admitir para nós mesmos que o que se seguiu ao progresso da ciência foi o enorme retrocesso no cuidado geral com a saúde e na prevenção de doenças”1818. Gadamer HG. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes; 2006. (p. 111). Para recuperar essa noção do todo, ele propõe a construção de pontes entre filosofia e medicina prática pela dupla face teoria e práxis. Para o autor, teoria significa o contemplar, apenas o olhar, reconhecer o que é ou o que se apresenta. Na práxis, executa-se um permanente processo de aprendizado e de autocorreção, seja com o sucesso ou com o fracasso. Devemos aprender a atravessar a divisão que há entre o teórico que sabe acerca de generalidades e o prático que deve atuar na sempre singular situação do paciente adoecido. Essa aproximação entre teoria e práxis dar-se-ia a partir da discussão sobre noção de todo, de totalidade, de equilíbrio e de tratamento porquanto escuta, diálogo e olhar cuidadoso, elementos que o filósofo alemão aponta como aqueles que podem fazer frente à instrumentalização da ciência na área da saúde1818. Gadamer HG. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes; 2006..

Gadamer ressalta que, na medicina grega hipocrática, encontramos um rico material ilustrativo de como todos os fatores climáticos e ambientais contribuem para a concreta constituição do ser, de cuja recuperação se trata. Assim, o contexto no qual a parte tratada se encontra, permite concluir que a natureza do todo abrange o conjunto da situação vital do paciente e, até mesmo, a do médico. A medicina, assim, pode ser comparada com a verdadeira retórica. O médico, tanto quanto o verdadeiro orador, deve ver a totalidade da natureza. Assim como o orador tem de encontrar a palavra correta por meio do juízo verdadeiro, da mesma forma, o médico também tem de ver além daquilo que é o objeto próprio do seu saber e de seu ser-capaz-de-fazer, se ele quiser ser o verdadeiro médico. Sua condição é uma posição intermediária, difícil de manter, entre uma presença profissional afastada do humano e um compromisso com o humano. Constitui seu estado de médico necessitar de confiança e, ao mesmo tempo, também ter de limitar o seu poder. É necessário ver para além do caso que trata, para ter condições de avaliar o ser humano no todo de sua situação vital. Desse modo, o médico deve refletir, até mesmo, sobre a sua própria atividade e o que ela causa no paciente; tem de saber se retirar, pois ele não pode fazer com que o paciente dependa dele, nem desnecessariamente prescrever condições de conduta de vida que dificultem o restabelecimento de seu equilíbrio vital1818. Gadamer HG. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes; 2006..

Ao ressaltar a necessidade de o médico refletir sobre a sua atividade e sobre o que ela causa no paciente e, nesse ínterim, compreender que não pode fazer com que o paciente dependa dele, nem prescrever desnecessariamente condições de conduta de vida, talvez seja possível sugerir um ponto em comum entre essa perspectiva gadameriana e a amizade como parresía em Foucault, entendendo a formação menos como uma arte de governar ou guiar, e mais como uma força de afetação sensível dos sujeitos. E, dessa forma, propor a amizade como parresía como fundamento didático, formativo e filosófico no ensino das disciplinas da área da saúde.

A amizade e parresía e a relação com a formação dos profissionais da saúde

O conceito de amizade proposto nesta discussão é aquele de origem greco-romana, reconstruído por Michel Foucault em suas análises históricas desenvolvidas nos cursos proferidos no Collège de France (1976-1984). Desta fase do pensamento foucaultiano, destaca-se a relação que se estabelece entre amizade e parresía. Nos cursos proferidos em 1983 e 1984 sobre a temática da parresía (o dizer verdadeiro), Foucault acentua o papel do amigo, cuja presença era imprescindível para o sucesso desta prática. Apresentar-se ao juízo do outro pressupunha a confiança de uma relação pessoal e uma relação comum com a verdade. Aos olhos do outro aparecia a estética da própria existência e era desta forma apreensível, refletindo-se no outro1010. Ortega F. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro: Graal; 1999.. Entretanto, tal noção não é unívoca em todos os escritos da antiguidade, e a fim de estender a noção a outros sentidos possíveis do termo, recorre-se a Foucault22. Foucault M. A coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes; 2011.:

Um dos significados originais da palavra grega parresía é o “dizer tudo”, mas na verdade ela é traduzida, com muito mais frequência, por fala franca, liberdade de palavra, etc. Essa noção de parresía, que era importante nas práticas da direção de consciência, era [...] uma noção rica, ambígua, difícil, na medida em que, em particular, designava uma virtude ou qualidade (há pessoas que tem a parresía e outras que não tem a parresía); é um dever também (é preciso, efetivamente, sobretudo em alguns casos e situações, poder dar prova de parresía); e enfim é uma técnica, é um procedimento: há pessoas que sabem se servir da parresía e outras que não sabem se servir da parresía. E essa virtude, esse dever, essa técnica devem caracterizar, entre outras coisas e antes de mais nada, o homem que tem o encargo de quê? Pois bem, de dirigir os outros, em particular de dirigir os outros em seu esforço, em sua tentativa de constituir uma relação consigo mesmo que seja uma relação adequada. Em outras palavras, a parresía é uma virtude, dever e técnica que devemos encontrar naquele que dirige a consciência dos outros e os ajuda a constituir sua relação consigo.22. Foucault M. A coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes; 2011. (p. 42-3)

A parresía, pontua Foucault22. Foucault M. A coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes; 2011., não é uma mera demonstração, embora implique demonstrar e use suas estratégias para tal; também não é uma retórica, pelo contrário, talvez seja seu negativo, dado que não utiliza-se de figuras de pensamento, não é uma arte do dizer; também não é uma forma de discutir, já que não pressupõe o prevalecimento de um discurso sobre outro; e, o que implica mais diretamente na proposta deste ensaio, não é uma técnica pedagógica, não se trata de um ensino, antes, “lança-se a verdade na cara daquele com quem dialoga ou a quem se dirige”22. Foucault M. A coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes; 2011. (p. 53), de modo, quem sabe, antipedagógico. Mas mesmo não sendo uma prática pedagógica, visa ou atinge uma transformação: do sujeito que a pratica, e daquele a quem a fala verdadeira se dirige; não é um método de ensino, mas, sim, uma experiência formativa.

A parresía, e seus sentidos de “dizer tudo”, “falar livremente”, “liberdade de palavra”, faz-se uma noção complexa, pois representa, simultaneamente, virtude, habilidade, obrigação e técnica, que deve caracterizar o indivíduo que tem como tarefa a direção de outros indivíduos na sua constituição como sujeitos morais1010. Ortega F. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro: Graal; 1999..

Nos séculos I e II da era atual – momento histórico sobre o qual Foucault concentra seus estudos e nos quais encontra subsídios para os cursos proferidos entre 1976-1984 –, o cuidado de si intensifica-se e a tarefa de estabelecer uma relação satisfatória consigo torna-se prática social, desencadeando o surgimento de escolas e academias, e abrangendo numerosas relações sociais (familiares, de amizade). Na chamada “cultura de si”, a parresía ocupa lugar de destaque, uma vez que a autoconstituição como sujeito moral exige a presença e a ajuda constante de outro indivíduo, dotado da faculdade de parresía, sendo que a figura do outro corresponde ao parresiasta ou aquele no qual se deve buscar abrigo1010. Ortega F. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro: Graal; 1999..

Ramirez2222. Ramirez CEN. Foucault professor [Internet]. In: Trabalhos GTS 31ª Reunião Anual da ANPED; 2008; Caxambu, Brasil. Caxambu: ANPED; 2008 [acesso 2014 Jun 28]. Disponível em: http://31reuniao.anped.org.br/1trabalho/GT17-4152--Int.pdf
http://31reuniao.anped.org.br/1trabalho/...
, em seu trabalho sobre a face professor de Foucault, mostra a existência de uma relação estreita entre a prática filosófica do cuidado de si, da qual a parresía é um de seus elementos constituintes, desenvolvida nos séculos I e II, e a prática pedagógica. Citando o trabalho de Potte-Boneville sobre Foucault como mestre estoico, Ramirez2222. Ramirez CEN. Foucault professor [Internet]. In: Trabalhos GTS 31ª Reunião Anual da ANPED; 2008; Caxambu, Brasil. Caxambu: ANPED; 2008 [acesso 2014 Jun 28]. Disponível em: http://31reuniao.anped.org.br/1trabalho/GT17-4152--Int.pdf
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relata que a forma de ensino – sendo este entendido como prática e ato público do professor – poderia ser compreendida como parresía, como franco falar; e, nesse sentido, ensinar é fazer de modo a permitir ao outro emancipar-se da própria relação de ensino, essa autonomia em face do discurso do mestre. Esse franco falar pode ser assumido como um exercício de si, como um exercício de transformação, o que se caracterizaria como atitude pedagógica.

Para Freitas99. Freitas AS. A parresía pedagógica e o êthos da educação como psicagogia. Rev Bras Educ [Internet]. 2013 [acesso 2014 Jun 26]; 18(53):325-493. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782013000200005 Doi: 10.1590/S1413-24782013000200005.
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, a parresía filosófica, ou seja, a filosofia praticada como cuidado de si e como pedagogia (paideia), exige um modo específico de pôr em ação o discurso, no vínculo mestre e discípulo, que demanda não uma retórica, mas uma erótica, já que a questão posta pela pedagogia, exercida como uma psicagogia (modo de condução da alma), não é, simplesmente, a do sentido do saber ou o saber do sentido, mas, propriamente, o sentido da presença e a presença do sentido na relação formativa entre mestre e discípulos. A pedagogia como psicagogia, assim, corresponde a um modo de olhar e de ouvir a si mesmo e ao outro (de natureza prático-sensível). Como exercício psicagógico, a pedagogia apoia-se em práticas que se dirigem a um sujeito em transformação, realizando-se menos como uma arte de governar ou guiar, e mais como uma força de afetação sensível dos sujeitos. Assim, como atividade prático-poética, a pedagogia geraria e difundiria discursos capazes de mobilizar ações, incitando a deliberação ética em torno de condutas aceitas ou de condutas a serem assumidas por si mesmo99. Freitas AS. A parresía pedagógica e o êthos da educação como psicagogia. Rev Bras Educ [Internet]. 2013 [acesso 2014 Jun 26]; 18(53):325-493. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782013000200005 Doi: 10.1590/S1413-24782013000200005.
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Dessa forma, a amizade como parresía, como um fundamento pedagógico e filosófico na formação dos profissionais da saúde, pode permitir que o falar livremente, compreendido como ascese de si na relação entre mestre e discípulo, se traduza em relações entre profissionais e população, nas quais exista menos governo (no sentido de prescrição desnecessária de condutas) e mais força de afetação sensível. Formar profissionais a partir desse fundamento pode contribuir para um pensar-agir em saúde cada vez mais democrático, solidário e integral.

Nesse sentido, somente a amizade suportaria a parresía: “esse discurso pelo qual o fraco, a despeito da sua fraqueza, assume o risco de criticar o forte pela injustiça que ele cometeu, esse discurso se chama precisamente parresía22. Foucault M. A coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes; 2011.(p. 125). Ou seja, não há parrhesía (o dizer verdadeiro, o franco-falar, a coragem da verdade) sem a presença do outro, do amigo, o que pressupõe a confiança e a relação com a verdade.

Este dizer verdadeiro, que quando necessário assume os riscos de interrogar e afrontar a autoridade e as limitações institucionais22. Foucault M. A coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes; 2011., seria, então, um elemento fundamental para a elevação ético-moral do trabalhador em saúde. A parresía, enquanto experiência constitutiva no âmbito formativo, vivenciada na amizade (φιλία) entre mestres e aprendizes, poderia ser transposta ao labor posterior, como expressão e conduta ética, por parte daqueles que, em suas práticas voltadas à saúde, assumem a missão de guiar os destinos dos outros.

Considerações finais

Há uma crise de fundo filosófico que influencia a crise na saúde e na educação: se, por um lado, o modelo cartesiano de ciência trouxe grandes avanços em termos de saúde, traduzida, sobretudo, na maior longevidade humana; por outro, esse modelo dá sinais de esgotamento, evidenciado, particularmente, pela incapacidade crescente de as sociedades cuidarem adequadamente da saúde de seus membros. Formar profissionais da saúde para enfrentar essa incapacidade constitui desafio tanto para a saúde quanto para a educação. Como alternativas ao modelo biomédico tradicional na saúde e à pedagogia tradicional de transmissão de conhecimentos na educação, são propostos modelos alternativos que consideram o ser humano como um todo, interconectado em suas dimensões biológica, cultural, social, psicológica, que, por sua vez, está conectado ao ambiente. Se a ciência cartesiana separou do mundo todas as qualidades sensíveis, trata-se, agora, de repor o debate sobre a importância da presença dessas qualidades na construção de modelos de saúde e de educação mais apropriados.

Na formação de profissionais de saúde, o desafio parece ser como encontrar o equilíbrio entre excelência técnica e relevância social. Ao se propor a amizade e a parresía como fundamento pedagógico e filosófico na formação dos profissionais da saúde, almejou-se contribuir com elementos de reforço à relevância social na formação desses profissionais no sentido de aproximar o que acontece na relação entre professor e aluno daquilo que acontece entre profissionais e população. O modelo de atenção à saúde que deveria nortear a formação dos profissionais preconiza justamente essa aproximação. Ao se privilegiar, no processo formativo dos profissionais, o franco falar entre professor e aluno, compreendendo essa prática ou ascese como transformação de si, coloca-se em ação o discurso que demanda pelo sentido da presença e a presença do sentido na relação formativa entre mestre e discípulos. Daí surge a possibilidade de que, nas relações entre profissionais e população, exista menos governo (no sentido de prescrição autoritária de condutas) e mais força de afetação sensível. É esta a contribuição que pretendemos dar ao desafio que se apresenta à formação dos profissionais da saúde, quando recorremos à tradição hermenêutica no pensamento de Gadamer, de Foucault, e à medicina grega hipocrática. Intenção que não se esgota neste ensaio, constituindo, antes, um primeiro passo para reflexões futuras.

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  • *
    Do grego παρρησία. Neste trabalho, optou-se pela transliteração parresía, grafia utilizada nas traduções nacionais dos últimos cursos de Michel Foucaultbem como em obras de cunho didático/enciclopédico, como Castro. Entretanto, a grafia parrhesía também é utilizada em algumas traduções, designando o mesmo conceito, sendo aqui preservada esta segunda forma apenas em citações literais nas quais ela aparece, como é o caso de Foucault
  • c
    O termo parrhesia consta na base de dados Pubmed. Podem ser encontradas, nesta base de dados, nove referências relativas aos usos da parrhesia na formação de profissionais de saúde. Dado o limite do número de palavras para este artigo, não foi possível acrescentar as discussões realizadas nestas publicações ao presente trabalho, o que será realizado em estudos futuros relativos a este tema.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2015
  • Aceito
    22 Fev 2016
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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