Provimento médico no sistema de saúde da Austrália: uma conversa com Megan Cahill

Medical recruitment and retention in the Australian health system: a dialogue with Megan Cahill

Recrutamiento y retención de médicos en el sistema de salud de Australia: un diálogo con Megan Cahill

Tazio Vanni Antonio Pithon Cyrino Anna Cristina Rodopiano de Carvalho Ribeiro Sobre os autores

Palavras-chave:
Médicos de família / provisão & distribuição; Zona rural; Austrália

Keywords:
General practitioners / supply & distribution; Rural areas; Australia

Palabras-clave:
Médicos de família / provisión & distribución; Medio rural; Australia

Megan Cahill foi uma das principais convidadas para participar do “Seminário Internacional Processo de Integração, Educação e Trabalho e o Impacto no Cuidado: o papel da formação e da educação permanente nas Redes de Atenção ordenadas pela Atenção Básica”, realizado pela Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde (SGTES), do Ministério da Saúde, em Brasília, nos dias 17 e 18 de setembro de 2014, quando concedeu esta entrevista.

À época era chefe da General Practice Education and Training (GPET), organização australiana financiada pelo governo federal daquele país, responsável pela formação dos médicos de família.

Megan Cahill é nutricionista. Atuou em Saúde Comunitária, em hospitais e em pesquisa acadêmica, analisando a alimentação humana em áreas de baixa renda. Trabalhou no Reino Unido por aproximadamente cinco anos no planejamento da Atenção Primária no sistema nacional de saúde inglês. Ao retornar para a Austrália, atuou em organização de apoio aos médicos de família locais e no planejamento da força de trabalho, serviços clínicos e gestão de relações e acordos de financiamento nas esferas federal e estadual, em departamentos estaduais de saúde. Atualmente, Megan Cahill é chefe-executiva da Rural Workforce Agency Victoria (RWAV), organização não governamental australiana financiada pelo governo federal do país, destinada a melhorar a saúde de comunidades rurais, regionais e aborígenes em Victoria.

POLÍTICAS AFIRMATIVAS NO ACESSO À FORMAÇÃO MÉDICA

Na Austrália, há muitas maneiras de entrar na faculdade de Medicina. Quando o aluno conclui o ensino médio faz um exame […] e se tiver uma nota alta o suficiente entra na faculdade. Se tiver feito outro curso antes, por exemplo, Farmácia ou Enfermagem, há outro exame que se pode fazer e, se conseguir boa nota, é permitido começar o curso de Medicina.

Na Austrália, 25% dos alunos devem vir de zonas rurais. Para esses alunos, mais importante do que sua nota é seu local de residência. Portanto, mesmo que não consigam nota alta, ingressarão no curso porque vêm de uma área rural.

Para os aborígenes a probabilidade de entrar na escola de Medicina será ainda maior porque não há médicos aborígenes em número suficiente. Este ano (2014), foi a primeira vez que a porcentagem de alunos de Medicina aborígenes refletiu essa população: atualmente 2,5% dos alunos desse curso são aborígenes, percentual semelhante para a população geral.

Há muitos programas e organizações que apoiam e orientam médicos e alunos aborígenes durante o curso para que continuem sua formação.

POLÍTICAS DE PROVIMENTO MÉDICO EM ÁREAS RURAIS E REMOTAS: A VIVÊNCIA COMUNITÁRIA DURANTE A FORMAÇÃO MÉDICA

Na Austrália, […] se começarmos pelas faculdades de Medicina, todas elas, exceto uma universidade, estão envolvidas em um esquema de treinamento clínico rural.

Na escola médica existe a bolsa de estudo John Flynn Scholarship.

John Flynn foi um dos primeiros médicos rurais na Austrália. Ele criou o “serviço médico aéreo”: a cada ano, durante quatro ou cinco anos da universidade, alguns alunos passam duas semanas na mesma comunidade. O objetivo desse programa é aprender sobre a vida na comunidade rural e não sobre a prática clínica. É mais no sentido de “é assim que você pode se sentir parte da comunidade”.

Também há bolsas para médicos. Você tem o curso pago se for trabalhar em uma área rural quando se formar. Então, quanto mais remoto o lugar, menos tempo você trabalhará. É um sistema de progressão invertida.

Temos duas formas diferentes de categorizar a necessidade de profissionais: segundo regiões remotas ou escassez de médicos, porque algumas áreas urbanas não possuem médicos suficientes.

Há outro esquema em que, se houver falta de profissionais, você também pode obter uma bolsa de estudos. No treinamento para médico de família, a política do governo estabelece que metade dos nossos médicos precisa ter treinamento em áreas rurais e remotas. Assim, 52%, no momento (2014), estão em treinamento nessas áreas. Tal treinamento para formar médicos de família ocorre após o término do curso de Medicina, do internato, da residência e do registro profissional(d)(d)Essas etapas têm uma duração de um ano para o internato, bem variável para a residência, já que algumas pessoas são residentes por um bom tempo. O treinamento para médico de família dura em média 3,8 anos, variando em diferentes instituições entre três e quatro anos..

A organização que eu dirijo(e)(e)General Practice Education and Training (GPET). forma médicos de família. O programa tem 13 anos e envolve 17 instituições que fornecem esse treinamento em toda a Austrália. Para alocar treinamentos que atendam a essas cotas algumas estão localizadas em áreas rurais e outras em áreas urbanas.

No primeiro ano do programa houve a oferta de 400 vagas e 650 candidatos e, no ano seguinte, 1.500 vagas e 2.200 candidatos, claramente mais competitivo. Em 2015, 1.500 médicos foram admitidos. Visto que é um modelo de formação, as instituições são contratadas para encontrar clínicas e fornecer treinamento aos médicos nesses lugares. Contudo, está ficando mais difícil encontrar clínicas suficientes nas áreas rurais e remotas para treinamento, porque os médicos após o treinamento tornam-se médicos de família e permanecem nesses locais. Assim, não há mais consultórios disponíveis para os médicos em treinamento.

PROGRAMAS DE PROVIMENTO MÉDICO EM ÁREAS RURAIS

Há várias questões referentes aos programas de incentivo que requerem maior atenção.

Eu não faria como se tem feito na Austrália, onde um político tem uma ideia brilhante e oferece uma bolsa ou um incentivo; depois, no ano seguinte, outro político, outra ideia brilhante e outro esquema de incentivo. Enfim, as regras podem ser diferentes ou não, mas certamente poderiam ser mais eficientes do que são.

Eles estimulam os médicos a irem para áreas rurais e remotas oferecendo mais recursos. Há programas de substituto temporário - porque, provavelmente, uma das maiores dificuldades de atrair médicos para as áreas rurais é que eles não têm tempo livre para feriados ou para fazer um curso. Esse programa, financiado pelo governo, treina médicos da cidade para trabalharem como substitutos em áreas rurais e melhorarem suas habilidades em emergência médica, anestesia, cirurgia e obstetrícia. Eles fazem um curso de curta duração e depois trabalham como substitutos - é um programa de menor sucesso -. Outro esquema oferecido é a criação de campus de várias universidades em região rural, as Escolas Clínicas Rurais. A maioria das escolas de Medicina agora tem uma escola clínica rural para que os alunos façam a maior parte do curso nas áreas rurais. Uma das coisas que aprendemos é que você deve criar um campus para formação na área rural.

A Constituição que guia o nosso país não permite o recrutamento. Quando o governo quis introduzir essa obrigatoriedade, nossa associação médica argumentou que a constituição australiana não permite que as pessoas sejam recrutadas. É por isso que temos de colocar todo o nosso foco em levar as pessoas para as áreas rurais e remotas durante o curso, seja na faculdade de Medicina ou em treinamento profissionalizante, porque assim que elas recebem a bolsa, podem ir para qualquer lugar da Austrália. Precisamos tentar fazer com que permaneçam nesse estágio inicial e, como eu disse, as evidências mostram que, se você foi à escola primária [rural], que é o primeiro nível de escolaridade, esta é uma boa indicação de que você vai continuar. Um estudo recente mostrou que, se você prestar algum serviço médico rural enquanto estiver na universidade ou nos anos de estágio e residência, isso também é um bom indicador que você ficará nessa região.

Os médicos precisam ir à escola de Medicina na região rural. Eles precisam fazer seu estágio, sua residência e depois sua especialização em uma área rural, porque se voltarem para a cidade para continuar o curso, não retornam mais à região, pois todos estão na idade de se casar e ter filhos. É preciso promover isso nas áreas rurais e não nas áreas urbanas. Na verdade, eu acho que o melhor programa para fazer com que as pessoas permaneçam nas áreas rurais é um serviço de namoro online! Acho que se muitas pessoas tiverem parceiro já com carreira na área rural, a probabilidade de ficarem é maior. Porém, se estiverem na cidade, na maioria das vezes o seu parceiro terá emprego lá, como advogado, contador ou médico.

Para tentar atrair profissionais muitos municípios construíram unidade médica e ajudaram os familiares a encontrar acomodação e emprego. Isso é cada vez mais comum nos municípios. É uma solução específica, principalmente nas comunidades que batalharam para ter um médico de família. É quando os municípios, geralmente, colocam esse esquema em prática.

Existe também uma organização de médicos rurais, em cada estado, que oferece grande apoio aos profissionais dessas comunidades. Essa organização - que iniciou como movimento local, mas passou a receber recursos do governo federal - fornece um programa de atualização aos médicos e desenvolve programas de apoio as suas famílias, como um fim de semana na praia. Enquanto os médicos fazem treinamento suas famílias realizam atividades sociais.

DEMAIS PROGRAMAS DE INCENTIVO AOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE

Acho que estamos falando, principalmente, dos médicos, mas há também várias bolsas e incentivos para outros profissionais de saúde. Porém, para os médicos existem há mais tempo e, por isso, temos mais informações sobre seu funcionamento. Os que são para Enfermagem, Odontologia e outros profissionais de saúde são mais novos e semelhantes, em termos de fornecer incentivo para as pessoas irem às áreas rurais. As escolas clínicas rurais agora estão se expandindo para além do fornecimento de remédios. Elas também terão enfermeiros e outros profissionais de saúde. As pessoas estão aprendendo a trabalhar em equipe e atenderão melhor desta forma quando terminarem seu treinamento. É o esquema Rural Clinical Training and Support (Treinamento e Apoio Clínico Rural).

Ele engloba os profissionais que atendem na saúde e, de forma semelhante, os departamentos universitários de saúde rural, por isso são específicos para diferentes especialidades. Agências de Força de Trabalho Rural apoiam todas as profissões da saúde: médicos, enfermeiros e outros profissionais. Há um em cada estado, assim como treinamento em serviços de saúde controlados pelos aborígenes para profissionais de saúde aborígenes, que é uma função bem específica, além de educadores culturais e de saúde.

EDUCADORES E MENTORES CULTURAIS: ESTRATÉGIA PARA VÍNCULOS E SEGURANÇA CULTURAL NO TREINAMENTO MÉDICO

Outro componente importante dos nossos serviços em áreas rurais e remotas é o nosso serviço médico para aborígenes. Embora a maioria dos aborígenes more nas cidades, existem muitas unidades de saúde para os aborígenes apenas em áreas rurais e remotas. Nossos médicos treinam nessas unidades e têm o apoio das pessoas que chamamos de educadores culturais e mentores culturais, porque a história aborígene é aquela de que o homem branco invadiu suas terras e de que a sua saúde é muito pior do que a de muitos outros australianos. Seu sistema de relacionamento é bem diferente dos modelos ocidentais.

Temos idosos, em cada comunidade, que dizem ao médico em treinamento: “esta é a história da nossa região, não se deve falar sobre certas coisas e pode falar sobre outras coisas”, porque, muitas vezes, no atendimento às comunidades aborígenes, os médicos devem perguntar às pessoas como elas estão, como está a família e, no fim, perguntar sobre a sua saúde. Você tem de seguir um processo para criar um relacionamento, muito mais do que em uma cultura ocidental ou europeia. Parte do nosso programa utiliza esses educadores culturais e mentores culturais para orientar os médicos nessas comunidades.

O treinamento também especifica a frequência da visita e, obviamente, no início da formação haverá alguém lá, ao final de quase toda consulta. A supervisão é mais intensa no início do treinamento. À medida que as pessoas progridem, exige-se menos. Os educadores culturais e os mentores culturais estão presentes o tempo todo para mediar dúvidas entre as diferentes culturas. Podemos chamar isso de segurança cultural.

TENSÕES E DESAFIOS NOS PROGRAMAS DE PROVIMENTO MÉDICO

A maior parte do financiamento dessas políticas de provimento médico é federal. Na atenção primária também é federal; eles brigam entre s, e um culpa o outro, enquanto os hospitais estão a cargo do estado.

Com relação a alguns dos outros programas, se você é médico e foi formado no exterior, talvez no Brasil, e quer trabalhar como médico de família na Austrália, para ter acesso aos recursos federais terá de trabalhar em uma região rural ou remota por até dez anos. Não acho isso uma boa ideia, porque colocará pessoas novas em nosso sistema australiano - novas em relação à nossa língua, novas em relação à nossa cultura, em um ambiente muito incompatível. A taxa de retenção é muito baixa, eles cumprem os dez anos e vão direto para a zona urbana. E cumprem os dez anos, porque sendo formados no exterior, só conseguem obter os recursos de financiamento para médicos de família da Austrália, de origem federal, se receberem do governo o “número de provedor”, o qual só é concedido se forem para área rural ou remota Muitas pessoas acreditam que esta não é uma boa maneira de fazer as coisas e eu também não recomendaria isso, pois acredito que é necessário ter habilidade especial e realmente querer trabalhar nessas comunidades rurais e remotas. Penso também que forçar as pessoas não é uma boa ideia, pois nossa experiência mostra que, assim que termina esse período de dez anos, elas retornam à cidade.

Muitas vezes você pode trabalhar menos que dez anos. Se você for para um local muito remoto, você só precisa trabalhar cinco anos lá. Por outro lado, se você estiver perto da cidade, você terá de trabalhar os dez anos. Então, tudo varia com base nessa perspectiva. Minha organização administra o programa da rede OTD (Overseas Trained Doctors) - Médicos Formados no Exterior, com duas áreas de foco: uma é para médicos que se formaram no exterior e querem obter o que chamamos de registro geral na Austrália. Para se inscrever no Conselho Médico você deve passar nos exames. Então, esse programa ajuda no treinamento para conseguir a aprovação, mas não temos tido uma participação muito alta nele. A outra área é de um programa que tem se tornado popular e que ajuda os médicos formados no exterior a obter treinamento para médico de família. Uma avaliação é feita sobre a aprendizagem necessária de cada médico e um programa de aprendizagem individual é desenvolvido. Quando eles concluem esse programa, fazem os exames. Vimos médicos que passaram nos exames depois de serem reprovados quatro ou cinco vezes. É um programa de grande apoio e funciona muito bem porque está focado não apenas nas habilidades necessárias, mas também na aprendizagem da cultura australiana, mostrando também como funciona o Sistema de Saúde da Austrália. Eu acho que é por isso que tem sido um sucesso.

O PROCESSO DE ALOCAÇÃO: DISTRIBUIÇÃO, CRITÉRIOS E SELEÇÃO PARA MÉDICOS DE FAMÍLIA

Na Austrália, é bem difícil, porque não temos recrutamento para áreas remotas. Você só pode tentar atrair pessoas pagando mais.

Nós temos um sistema de classificação que divide o país conforme seu nível rural. Há cinco categorias diferentes as quais usamos e vemos quantos médicos existem em cada uma delas e, com base nessa proporção, alocamos o número de estagiários para a área. É assim que fazemos nossa alocação. Analisamos a população de uma área e depois trabalhamos com base em aproximadamente 1:1500 e vemos quantos médicos são necessários. Alocamos os médicos em treinamento para tentar alcançar essa proporção, mas é mais complexo porque, no papel, pode parecer que precisamos de um médico em um local específico, mas se você conversar com o provedor de treinamento, ele vai dizer: “Esta é uma prática ruim, eu não colocaria um médico estagiário lá.” Às vezes, há uma necessidade, mas o serviço não tem consultório sobrando, não tem a infraestrutura física para treinar. Você pode considerar isso em nível nacional e fazer a alocação, mas precisa acompanhar de perto nossos provedores de treinamento para encontrar o melhor lugar para a formação e onde os educadores estão. O governo, nas últimas eleições, fez promessas de financiamento de obras de construção para aumentar a capacidade de treinamento em áreas rurais e remotas.

Temos também um processo de seleção para o treinamento. Identificamos oito critérios para ser um médico de família. Nós temos duas formas de teste que verificam esses critérios e então conferimos ao candidato uma pontuação. Os critérios do exame são a resiliência e uma combinação de características clínicas e de personalidade, e fazemos várias validações. Os dois exames medem essas características e mostram alta correlação.

Quando ele se inscreve para o treinamento, precisa nomear os provedores que sejam de sua primeira preferência e segunda preferência. As regiões de Melbourne, Sydney e Brisbane são as mais populares, desta forma, as pessoas com maior pontuação tendem a ir para essas áreas. Se a pontuação não for tão alta, o candidato provavelmente colocará sua primeira preferência fora dessas áreas para aumentar suas chances de passar. Também temos certo poder de decisão, de oferta, assim, em cerca de 5% das vagas, se o provedor já tiver conhecido o médico em algum treinamento de preparação na área, este médico pode ter preferência, mesmo que sua pontuação não lhe permita ingressar no treinamento desse provedor.

Com a implementação desse esquema de alocação a taxa de desistência diminuiu.

Estamos no fim de um estudo que mostra que, se os candidatos tiverem pontuação alta como parte da seleção, terão pontuação alta quando fizerem os exames finais e, se eles tiverem baixa pontuação na seleção, eles provavelmente precisarão de ajuda e apoio durante o treinamento e não irão tão bem nos exames. Há evidências de que o processo de seleção prevê o desempenho durante a carreira. E os canadenses deram um passo adiante e mostraram que os que vão mal na escola de Medicina e no treinamento de preparação profissional, geralmente, são aqueles que são mais criticados [pelos pacientes] e perdem seus registros profissionais. É bem interessante.

Quando os médicos estão em treinamento em medicina de família precisam ir para essas áreas para onde enviamos, mas quando terminam o treinamento podem ir para qualquer lugar. O mercado decide. Assim que você recebe a bolsa, significa que pode ter acesso ao pagamento do governo e criar um serviço de Medicina de Família ou clinicar em qualquer lugar da Austrália. Se quiser trabalhar em área rural, poderá receber mais, mas não há um sistema. Você pode ter treinado em um serviço, em uma cidade remota e eles oferecerem vaga nesse serviço, mas também podem não oferecer.

A diferença começou a ser percebida nos últimos anos quando analisamos onde estão nossos médicos em treinamento: há aumento nas partes mais remotas da Austrália, uma vez que eles têm permanecido nessas áreas.

Fizemos um estudo de acompanhamento (follow-up) para ver onde os profissionais estavam um, três e cinco anos após o treinamento. Cinco anos após o treinamento 40% dos médicos ainda estavam nas áreas rurais e remotas; e três anos depois, 60% ainda estavam nas regiões rurais e remotas. Eu acho que está certo, mas acho que devemos reconhecer que novamente uma das dificuldades das comunidades rurais é que, muitas vezes, elas não têm boas escolas. Com isso, quando seus filhos chegam ao ensino médio eles querem voltar para a cidade. Eu acho que está tudo bem que os profissionais trabalhem em uma área rural por cinco ou dez anos, retornem à cidade quando seus filhos crescerem e depois possam voltar às áreas rurais quando (seus filhos) se tornarem adultos.

CENÁRIOS DA MEDICINA DE FAMÍLIA: TRABALHO E CARREIRA

A carreira de médico de família, na Austrália é, muitas vezes, vista como uma carreira menor em relação ao médico que atua no hospital. Os cirurgiões cardíacos ou ortopedistas se acham melhores. Um médico de hospital, às vezes, ganha mais, porém, trabalha mais horas. Por outro lado, vemos as preferências de cada geração na Austrália: as pessoas querem trabalhar meio período e, particularmente, muitos dos jovens médicos atuais querem trabalhar como médico de família, talvez, três dias da semana. Eles querem trabalhar com Saúde Mental, drogas ou álcool ou em prisões, um dia da semana, e querem passar o outro dia da semana com seus filhos ou sua família.

A Medicina de Família está se tornando mais atraente porque é mais flexível quanto ao como você trabalha e pela variedade de atividades que você pode fazer. Descobrimos que as 12 semanas que o médico júnior faz como parte do estágio de Medicina de Família é o período mais popular, porque é quando eles estão em contato com os pacientes e podem tomar decisões clínicas. Por outro lado, no período no hospital, como existem muitos estagiários - às vezes, há seis em volta de um paciente -nunca conseguem, de fato, praticar medicina. Então, este tem sido um programa de muito sucesso atraindo mais pessoas para a Medicina de Família como carreira. Certamente, se você trabalha em áreas rurais há todos os incentivos e bônus e o fato de que, se mudar da cidade para uma área rural será remunerado para isso, o que também pode ser muito bom em termos financeiros.

Quanto ao plano de carreira para o médico de família: provavelmente, não existirá uma trajetória que talvez ocorra em carreira hospitalar. Agora, vemos mais pessoas trabalhando em um serviço como contratado. Elas não são donas do serviço, não querem comprar o serviço, só querem ser um médico: entrar, ver os pacientes, sair. É cada vez mais comum ver serviços formados por grupos grandes, com 10 ou 12 médicos de família, além de enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas e outros profissionais, tudo em uma única instalação. Isso está se tornando mais comum e alguns médicos de família têm se tornado educadores médicos (preceptores), pessoas que treinam a próxima geração de médicos de família ou supervisionam os médicos em treinamento em seu serviço.

Em uma área rural, também se trabalhará no hospital local, como anestesista ou cirurgião geral ou obstetra. Como parte do treinamento para trabalhar em áreas rurais, os médicos de família fazem mais procedimentos; com isto, eles sempre praticam emergência médica e, geralmente, têm como especialidades adicionais: anestesia, obstetrícia ou cirurgia. A telessaúde tem permitido que os médicos de família trabalhem mais sob a supervisão de consultores experientes. Então, eu acho que isso está ajudando de novo, em termos de conseguir fazer mais, embora, provavelmente, não exista de fato uma carreira para os médicos de família na Austrália.

EDUCAÇÃO MÉDICA: TREINAMENTO CLÍNICO, PRÁTICA ACADÊMICA E EDUCAÇÃO PERMANENTE

Para manter o seu registro médico na Austrália é necessário realizar treinamento contínuo e a cada ano comprovar que mantém suas habilidades. Você pode fazer isso online - as Agências de Força de Trabalho Rural (Rural Workforce Agencies) oferecem fins de semana com treinamento – e, às vezes, você terá médicos da cidade para ajudar a treinar médicos de família e manter suas habilidades atualizadas. Portanto, há muitas e diferentes ofertas de educação continuada e o serviço de substituição dos médicos é parte importante para que possam ter tempo livre e se manter atualizados.

Em nossa formação profissional em pós-graduação temos três áreas principais: formação clínica normal; Educação, porque é o modelo de formação no qual precisa haver pessoas que se tornem professores e obtenham habilidades pedagógicas para diversas qualificações de pós-graduação em educação para o ensino de Medicina de Família; e a terceira área, Prática Acadêmica. Como parte desses programas, os médicos podem cumprir período acadêmico com financiamento por 12 meses para elaborarem projeto de pesquisa que contará em sua formação. Esperamos assim, que isso motive a próxima geração de médicos de família acadêmicos a fazerem pesquisas focadas na prática geral e que alguns deles façam doutorado em assuntos específicos da Medicina de Família.

VENCENDO DISTÂNCIAS…

Somos um pouco como o Brasil, grande parte da nossa população está próxima do litoral. A maioria dos australianos vive na costa e é, realmente, importante tentar apoiar pessoas que trabalham em outras regiões.

Uma parte vive em regiões remotas e, de fato, trabalha lá, mas há também supervisão remota via telessaúde, telefone ou Skype. Os supervisores fornecem apoio e treinamento, mas precisam fazer, pelo menos, se o período for de seis meses, quatro visitas presenciais por período, para avaliarem os registros dos profissionais. Um problema que temos, e eu não sei se acontece no Brasil, é para o alojamento dos profissionais que estão treinando em áreas remotas. Às vezes, não há acomodações disponíveis para as pessoas passarem seis meses vivendo lá. Em muitas regiões remotas, principalmente, em grandes áreas de mineração, existem poucos alojamentos e são muito caros para que os alunos morem lá e paguem 2.500 dólares (australianos) por semana por um galpão de lata. Uma outra agência, na Austrália, está se dedicando à criação de alojamentos para estagiários em áreas rurais e remotas. A agência federal Health Workforce Australia é uma das que financiaram várias acomodações para enfermeiros, médicos e outros profissionais de saúde. Obviamente, às vezes, nossos provedores de treinamento fornecem alojamentos também, particularmente, nas comunidades aborígenes.

APROXIMAÇÕES POSSÍVEIS ENTRE OS SISTEMAS DE SAÚDE AUSTRALIANO E O BRASILEIRO

Um grande relatório foi elaborado, em 2013, avaliando todos os programas do país que tratam da força de trabalho na saúde, e a análise das várias iniciativas rurais faz parte desse relatório.

Espero que possam aproveitar o melhor do que outros países já fizeram e aprender com os nossos erros. O Brasil tem uma situação semelhante, pois é um país de grandes dimensões, com muitas comunidades bem pequenas, o que é difícil.

Na Austrália, eu acho que para os cuidados primários é mais fácil dizer: OK, é isso que queremos alcançar. Porém, em relação aos cuidados secundários acho mais difícil decidir onde você vai alocar serviços para permitir um bom acesso.

Particularmente, na Austrália, o governo federal é responsável pelos cuidados primários, os estados são responsáveis pelos hospitais e alguns cuidados para as comunidades, mas se vê políticas que não estão conectadas; então, eu não sei se há desafio semelhante, no Brasil.

O Departamento de Educação federal é que define o número de alunos nas escolas médicas. Então, na verdade, existem dois departamentos envolvidos em nível federal. O Departamento de Educação financia as universidades, mas recebe recomendações do Departamento de Saúde quanto ao número de vagas de médicos necessárias. Mas, às vezes, o Departamento de Educação não ouve o Departamento da Saúde e decide sozinho.

PERSPECTIVAS PARA OS PROGRAMAS DE PROVIMENTO MÉDICO NA AUSTRÁLIA

Eu acredito que temos agora uma coordenação melhor entre os vários programas. Eu disse que temos dez programas diferentes com várias regras e incentivos. Eu penso que ficaria mais simples se pudéssemos juntar todos para que não houvesse tantos programas e para que tivéssemos apenas um conjunto de regras. Eu acho que isso criaria mais eficiência e haveria mais dinheiro para apoiar pessoas em treinamento em áreas rurais e remotas.

O programa continua apoiando jovens das zonas rurais e remotas a irem para a universidade, motivando-os a terem uma carreira em Medicina de Família. Novamente, não sei se acontece o mesmo no Brasil, mas em escolas do ensino médio em áreas rurais e remotas, muitas vezes a pontuação acadêmica do aluno não é tão alta quanto em uma escola da cidade. Com isto, o programa os ajuda com unidades educacionais e mostra-se importante no enfrentamento das desigualdades.

Eu acredito que é importante manter o que estamos fazendo. Uma das coisas mais relevantes é ter esse canal de treinamento em uma área rural, para que se possa fazer todo treinamento sem ter que ir para a cidade, exceto por curtos períodos para formação especializada, como anestesia ou obstetrícia. Eu acho que quando as pessoas vão para a cidade não voltam mais. Então, é importante poder criar esse canal de treinamento entre a escola de Medicina, pré-especialização, especialização, em todas essas áreas rurais. Isso é fundamental. Quando se olha para as novas universidades, o foco deve ser a criação desse canal médico para garantir vagas para os médicos assim que terminarem o curso de Medicina e vagas para treinamento especializado. Na Austrália, aumentamos o número de escolas e alunos de Medicina, mas não pensamos nos próximos passos. Agora, corrigimos o problema de estágio, mas temos um ponto crítico no treinamento especializado, portanto, realmente, deveríamos ter pensado nisso antes de aumentar as escolas médicas. Nós não fizemos isso muito bem.

  • (d)
    Essas etapas têm uma duração de um ano para o internato, bem variável para a residência, já que algumas pessoas são residentes por um bom tempo. O treinamento para médico de família dura em média 3,8 anos, variando em diferentes instituições entre três e quatro anos.
  • (e)
    General Practice Education and Training (GPET).

  • Errata

    Na entrevista Provimento médico no sistema de saúde da Austrália: uma conversa com Megan Cahill, com número de DOI: 10.1590/1807-57622017.0509, publicado no periódico Interface – Comunicação, Saúde, Educação, 2017; 21(Supl.1):1367-75, na página 1367:
    Onde se lia:
    10.1590/1807-57622017.0031
    Leia-se:
    10.1590/1807-57622017.0509

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2017
  • Aceito
    18 Set 2017
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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