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Antônio Augusto Dall’Agnol Modesto Rodrigo Luciano Bandeira de Lima Ana Carolina D’Angelis Daniel Knupp Augusto Sobre os autores

50 tons de azul

Ficamos felizes por ver nosso texto na seção Debates da Interface – Comunicação, Saúde e Educação e mais ainda com os comentários tão pertinentes dos convidados. Juan Gérvas lembrou aos leitores das certezas que precisamos ter para implementar um exame de rastreamento e trouxe dados mostrando como, no caso do rastreamento de câncer de próstata, elas não existem – e as que existem contraindicam o exame. Mônica de Assis agregou o olhar do Instituto Nacional de Câncer (Inca), que vem estudando o tema e difundindo os problemas do rastreio há anos. Alfredo Neto contribuiu com a perspectiva dos estudos sociais sobre a ciência (os science studies) e da sociologia da internet (como o filter bubble e o viés de confirmação), que analisam como, em suas palavras, “[...] a produção do conhecimento científico vem obedecendo às regras do mercado e, ao mesmo tempo, sustentando cientificamente o próprio mercado”.

Em abril de 2017, entre a aprovação do artigo original e o recebimento dos comentários, a United States Preventive Services Task Force (USPSTF) abriu consulta pública para revisão de seu posicionamento11. United States Preventive Services Task Force (USPSTF). Draft recommendation statement - prostate cancer: screening [Internet]. 2017 [citado 1 Jun 2017]. Disponível em: https://www.uspreventiveservicestaskforce.org/Page/Document/draft-recommendation-statement/prostate-cancer-screening1.
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. O órgão está considerando mudar sua recomendação de “contra rastreamento de câncer de próstata com PSA” (grau de recomendação D) para “informar homens de 55 a 69 anos sobre potenciais benefícios e riscos” desse tipo de rastreio (grau de recomendação C) – em outras palavras, individualizar a decisão. Ainda é uma draft recommendation, um rascunho de recomendação, embora urologistas brasileiros logo tenham noticiado que a USPSTF havia “voltado atrás” em sua posição22. Portal da Urologia. Órgão americano volta atrás em recomendação de rastreamento para o câncer de próstata [Internet]. 2017 [citado 1 Jun 2017]. Disponível em: http://portaldaurologia.org.br/noticias-publico/orgao-americano-volta-atras-em-recomendacao-de-rastreamento-para-o-cancer-de-prostata/.
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.

As grandes pesquisas que embasam essa discussão continuam sendo a European Randomized Study of Screening for Prostate Cancer (ERSPC)33. Schröder FH, Hugosson J, Roobol MJ, Tammela TL, Zappa M, Nelen V, et al. Screening and prostate cancer mortality: results of the European Randomised Study of Screening for Prostate Cancer (ERSPC) at 13 years of follow-up. Lancet. 2014; 384(9959):2027-35. doi: http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(14)60525-0.
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e a United States Prostate, Lung, Colorectal and Ovarian Cancer Screening Trial (PLCO)44. Andriole GL, Crawford ED, Grubb RL, Buys SS, Chia D, Church TR, et al. Prostate cancer screening in the randomized prostate, lung, colorectal, and ovarian cancer screening trial: mortality results after 13 years of follow-up. J Natl Cancer Inst. 2012; 104(2):125-32. doi: http://dx.doi.org/10.1093/jnci/djr500.
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. O benefício do rastreamento, se houver, continua sendo modesto. Perez et al.55. Perez TY, Danzig MR, Ghandour RA, Badani KK, Benson MC, McKiernan JM. Impact of the 2012 United States Preventive Services Task Force statement on prostate-specific antigen screening: analysis of urologic and primary care practices. Urology. 2015; 85(1):85-9. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.urology.2014.07.072.
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comparam grupos de pacientes antes e depois do posicionamento de 2012 e concluíram que ele:

“[...] não afetou o número ou as características clínicas de pacientes encaminhados a um centro terciário por PSA elevado. Depois da recomendação, urologistas aumentaram a solicitação de PCA3 [gene associado ao câncer de próstata] e repetição do PSA e recomendaram menos biópsias na visita inicial. A fração de pacientes que finalmente receberam uma biópsia permaneceu a mesma” (p. 85).

Isso parece traduzir uma preocupação maior na indicação das biópsias, consequência, a nosso ver, muito positiva. Bhindi et al.66. Bhindi B, Mamdani M, Kulkarni GS, Finelli A, Hamilton RJ, Trachtenberg J, et al. Impact of the U.S. Preventive Services Task Force recommendations against prostate specific antigen screening on prostate biopsy and cancer detection rates. J Urol. 2015;193(5):1519-24. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.juro.2014.11.096.
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também estudaram as mudanças nas taxas de biópsias e detecção de câncer (nesse caso, entre outubro de 2008 e junho de 2013), encontrando uma diminuição nas biópsias em geral e de primeira vez (relacionada provavelmente à menor solicitação de PSA), com menos diagnósticos de câncer. Os autores destacam que a diminuição no diagnóstico de cânceres de baixo risco é encorajadora, mas preocupam-se com a diminuição simultânea dos diagnósticos de cânceres com score de Gleason 7-10, que se beneficiariam de um tratamento radical. Nada se pode afirmar, no entanto, como isso altera a parcela de doença metastática ou na mortalidade por câncer de próstata. Como comentou Juan Gérvas, para que se estabeleça um programa de rastreio, é preciso ter certeza de um impacto positivo na mortalidade por câncer de próstata, na mortalidade geral por câncer, na mortalidade por todas as causas e na qualidade de vida das pessoas submetidas ao rastreamento. Por paradoxal que pareça, menos diagnósticos não são suficientes para retomar o rastreio populacional.

Outro ponto que precisa ser cada vez mais discutido é a resistência da imprensa em noticiar os riscos dos excessos de exames. É muito comum, ao terem contato com a pauta (como aconteceu em novembro de 2015), que os veículos de comunicação de grande alcance não cheguem a avaliar o assunto. Consideram tratar-se de um desserviço à população, com o pensamento de que iriam prejudicar o cuidado em saúde ao criar uma consciência sobre o rastreamento sem necessidade. Isso deixa a informação jornalística a desejar, pois os profissionais de mídia sabem desde sua formação que devem sempre ouvir diferentes lados de uma história e deixar, no caso do rastreamento, o público tomar a decisão de realizá-lo ou não. No entanto, sabemos que muitos patrocinadores e anunciantes desses veículos fazem parte do complexo médico-industrial, incluindo indústrias farmacêuticas e grandes redes de drogarias, o que acaba por determinar o editorial de cada emissora ou publicação.

A cultura da população também deve ser levada em conta. No livro “São e Salvo”77. Gérvas J, Pérez-Fernández M. São e salvo: e livre de intervenções médicas desnecessárias. Porto Alegre: Artmed; 2016., Juan Gérvas e Mercedes Pérez-Fernández citam como pessoas saudáveis têm estado sempre em busca de doenças por meio de exames de rotina realizados desnecessariamente. A preocupação com o futuro é excessiva e o presente vivido é muito esquecido.

O desafio de produzir informação de qualidade é ainda maior hoje, quando a informação é produzida por todos e facilmente divulgada e compartilhada, sem comprovação ou evidência científica confirmada. Profissionais da saúde e aqueles que atuam diariamente na produção de conteúdo em saúde leigo devem informar quanto aos riscos da Medicina e limites da prevenção para públicos diversos quanto a escolaridade, gênero, idade e outros aspectos.

Além disso, entidades que promovem as “campanhas coloridas” muitas vezes não consideram o impacto delas na demanda por procedimentos nos serviços públicos de saúde, nos quais a racionalidade dos recursos está mais profundamente colocada do que no sistema suplementar (mais influenciado pelas regras de mercado).

Felizmente, desde antes de 2015, a discussão sobre excessos de exames, independentemente de campanhas, está mais aberta e vem conquistando mais espaço na mídia, empoderando as pessoas para que façam suas escolhas e pesem riscos e benefícios de rastreamentos. Isso conta com o empenho da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade e das médicas e médicos de família no dia a dia nos postos de saúde e consultórios particulares de todo o Brasil.

Diante de 50 tons de azul, continuamos em alerta vermelho quanto à saúde dos homens.

Referências

  • 1
    United States Preventive Services Task Force (USPSTF). Draft recommendation statement - prostate cancer: screening [Internet]. 2017 [citado 1 Jun 2017]. Disponível em: https://www.uspreventiveservicestaskforce.org/Page/Document/draft-recommendation-statement/prostate-cancer-screening1
    » https://www.uspreventiveservicestaskforce.org/Page/Document/draft-recommendation-statement/prostate-cancer-screening1
  • 2
    Portal da Urologia. Órgão americano volta atrás em recomendação de rastreamento para o câncer de próstata [Internet]. 2017 [citado 1 Jun 2017]. Disponível em: http://portaldaurologia.org.br/noticias-publico/orgao-americano-volta-atras-em-recomendacao-de-rastreamento-para-o-cancer-de-prostata/
    » http://portaldaurologia.org.br/noticias-publico/orgao-americano-volta-atras-em-recomendacao-de-rastreamento-para-o-cancer-de-prostata/
  • 3
    Schröder FH, Hugosson J, Roobol MJ, Tammela TL, Zappa M, Nelen V, et al. Screening and prostate cancer mortality: results of the European Randomised Study of Screening for Prostate Cancer (ERSPC) at 13 years of follow-up. Lancet. 2014; 384(9959):2027-35. doi: http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(14)60525-0
    » http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(14)60525-0
  • 4
    Andriole GL, Crawford ED, Grubb RL, Buys SS, Chia D, Church TR, et al. Prostate cancer screening in the randomized prostate, lung, colorectal, and ovarian cancer screening trial: mortality results after 13 years of follow-up. J Natl Cancer Inst. 2012; 104(2):125-32. doi: http://dx.doi.org/10.1093/jnci/djr500
    » http://dx.doi.org/10.1093/jnci/djr500
  • 5
    Perez TY, Danzig MR, Ghandour RA, Badani KK, Benson MC, McKiernan JM. Impact of the 2012 United States Preventive Services Task Force statement on prostate-specific antigen screening: analysis of urologic and primary care practices. Urology. 2015; 85(1):85-9. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.urology.2014.07.072
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.urology.2014.07.072
  • 6
    Bhindi B, Mamdani M, Kulkarni GS, Finelli A, Hamilton RJ, Trachtenberg J, et al. Impact of the U.S. Preventive Services Task Force recommendations against prostate specific antigen screening on prostate biopsy and cancer detection rates. J Urol. 2015;193(5):1519-24. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.juro.2014.11.096
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.juro.2014.11.096
  • 7
    Gérvas J, Pérez-Fernández M. São e salvo: e livre de intervenções médicas desnecessárias. Porto Alegre: Artmed; 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2017
  • Aceito
    21 Jul 2017
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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