Ciências Humanas e Naturais: diálogos e política de colaboração

Nikolas Rose Sérgio Resende Carvalho Cathana Freitas de Oliveira Sobre os autores

A interdisciplinaridade é cada vez mais necessária. É um requisito epistemológico, pois os objetos que queremos compreender não se restringem aos limites estabelecidos das disciplinas. É um requisito organizacional, pois precisamos sacudir as estruturas ossificadas das universidades, seus enclaves e rivalidades departamentais e é, também, um requisito pragmático, pois a natureza de muitos problemas que queremos compreender requer a colaboração de especialistas com uma ampla variedade de formações acadêmicas11. Alsop A, Freese J, Perrig-Chiello P, Plomin R, Rose N. The good, the bad and the ugly - understanding between the social sciences and the life sciences. An ESF SCSS strategic workshop report [Internet]. Estrasburgo: European Science Foundation; 2014 [cited 2017 Dec 13]. Available from: https://boris.unibe.ch/53366/.
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As questões difíceis levantadas pelo diálogo entre campos disciplinares diferentes são especialmente pertinentes nas relações entre as ciências da vida e as ciências sociais. As relações entre esses dois domínios do conhecimento foram intensas durante o século XIX - as ciências da vida frequentemente expressando suas preocupações por meio de metáforas tomadas da vida social de sua época e as ciências sociais emprestavam das ciências da vida várias metáforas e modelos, sugerindo, muitas vezes, que os elementos principais da vida humana eram moldados por sua biologia. Porém, durante o século XX, essas interações foram sendo gradualmente substituídas por hostilidade e suspeitas mútuas, especialmente quando a biologia e a genética do século XX foram associadas ao reducionismo e ao determinismo, e a ciência social pareceu desejar purificar-se, distanciando-se da biologia.

Com o desenrolar de nosso próprio século, as possibilidades de interação parecem mais positivas. Hoje, muitos cientistas da vida - na genômica, na neurociência, na biomedicina - reconhecem que as antigas distinções entre um organismo e seu entorno não são mais viáveis e que, para usar uma frase que está se tornando um clichê, o meio-ambiente não está apenas ‘lá fora’, mas ‘entra debaixo da pele’. Nesse emergente ‘estilo de pensamento’(a)(a)‘Estilo de pensamento’ é uma maneira particular de pensar, ver e agir. O termo deriva do trabalho de Ludwick Fleck, especialmente de sua obra Origin and Development of a Scientific Fact [Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico] (1935). Envolve, por exemplo, ser membro de uma comunidade de pensamento em uma disciplina e ter um conhecimento detalhado de suas relações de poder e status. “Não é apenas sobre uma certa forma de explicação, sobre o que significa explicar; é, também, sobre o que há para ser explicado” (p. 12)., que é, pelo menos parcialmente, não-reducionista e não determinista, o discurso de verdade da genômica contemporânea não vê mais os genes como as entidades ocultas que nos determinam22. Rose N. The politics of life itself: biomedicine, power, and subjectivity in the Twenty-First Century. Oxford: Princeton University Press; 2007..

No entanto, ao mesmo tempo em que o determinismo genético é rejeitado ou questionado, novas estratégias estão surgindo buscando intervir em sequências de DNA, as quais, de uma maneira nova, estão sendo vistas como centrais para a saúde e a doença. Ao redor do mundo, pesquisadores e responsáveis por políticas públicas evidenciam sua fé na big data, ligando o sequenciamento completo do genoma de milhares de indivíduos a estilos de vida e informações sobre saúde, para que tais dados sejam analisados por algoritmos buscando produzir uma ‘medicina de precisão’. Assim, a vitalidade é molecularizada e a vida tornou-se aberta à política em nível molecular. De maneira mais geral, os organismos, incluindo os humanos, “são vistos como sendo constituídos por mecanismos vitais inteligíveis entre entidades moleculares” que podem ser objeto de intervenção, intervenção esta que deixou de ser restringida pela aparente normatividade de uma ordem vital natural22. Rose N. The politics of life itself: biomedicine, power, and subjectivity in the Twenty-First Century. Oxford: Princeton University Press; 2007. (p.6). A biologia agora é vista não como destino, mas como oportunidade22. Rose N. The politics of life itself: biomedicine, power, and subjectivity in the Twenty-First Century. Oxford: Princeton University Press; 2007..

Considere, por exemplo, o nascimento recente e bem-sucedido de uma criança por meio do transplante de útero de uma amiga para uma mulher que não tinha capacidade de se reproduzir (…) considere o uso de drogas para regular todos os tipos de capacidades humanas, seja o Viagra, sejam os assim chamados potencializadores cognitivos. Tudo isso sugere que, quanto mais sabemos sobre a base biológica de qualquer característica, mais podemos reverter, construir e descobrir os fundamentos moleculares ou biológicos daquela característica. Ou, pelo menos, esse é o sonho - em princípio, quanto mais sabemos, mais somos capazes de intervir33. Carvalho SR, Teixeira RR. Politics of life itself and the future of medical practices: dialogues with Nikolas Rose (part 3). Interface (Botucatu). 2017; 21(60):221-30..

Desde a metade do século XIX, as autoridades políticas, aliadas a muitas outras - médicos, biólogos, educadores, etc. -, assumiram a tarefa de gerenciar a vida por meio tanto das disciplinas do corpo quanto pela biopolítica. Essas estratégias intelectuais e políticas foram iniciadas principalmente, em diferentes níveis de governo, por filantropos, médicos reformistas e instituições, organizações religiosas, fundos de bem-estar social e assim por diante. Essa biopolítica assumiu várias formas: a administração de cidades e da sociabilidade em nome da minimização do adoecimento, o gerenciamento de nascimentos e mortes, e assim por diante. Assim, o nascimento da biopolítica:

ligou-se inextricavelmente à ascensão das ciências da vida, das ciências humanas, da medicina clínica. Originou técnicas, tecnologias, especialistas e equipamentos para o cuidado e o gerenciamento da vida de cada indivíduo e de todos os indivíduos, do planejamento de cidades aos serviços de saúde22. Rose N. The politics of life itself: biomedicine, power, and subjectivity in the Twenty-First Century. Oxford: Princeton University Press; 2007. (p. 54).

As ciências sociais e as ciências da vida compartilham uma longa história; portanto, é possível pensar que, como os estilos de pensar na biologia se transformam, talvez os ‘estilos de pensamento’ naquelas disciplinas que buscam compreender as organizações sociais e suas consequências deveriam, também, se transformar.

O gerenciamento da nossa existência corpórea tornou-se uma das exigências éticas centrais do nosso presente. Deixou de ser um assunto restrito à elite ou àqueles que aderem a um culto particular do corpo e se tornou uma das maneiras centrais nas quais todos, e cada um de nós, somos obrigados a gerenciar nossa vida diária e nossa existência, em termos de dieta, consumo de álcool, exercícios, em termos do uso de drogas de vários tipos para regular os processos corporais, sejam elas estatinas para reduzir o risco de ataque cardíaco ou derrame cerebral, ou drogas para gerenciar nossa sexualidade, como o Viagra. Esse é o significado quando nos referimos ao ‘nascimento’ de um ‘indivíduo somático’ - não tanto como uma realidade nova, mas como o objeto e o alvo do conhecimento, da intervenção e de práticas éticas junto a nossa existência cotidiana. À medida que nossa existência se torna ‘somática’, nossa ‘corporalidade’ se torna central para a nossa compreensão sobre o que os seres humanos são, o que devem fazer e que expectativas podem ter. Isso não substitui o indivíduo psicológico que se tornou hegemônico durante o século XX44. Rose N. Inventing our selves: psychology, power, and personhood. Cambridge: Cambridge University Press; 1996.; ao invés disso, complementa e suplementa essa perspectiva.

Nessa nova forma de subjetivação, podemos ver ‘novos conceitos de ‘cidadania biológica’ e “novas expectativas dos seres humanos em relação ao seu adoecimento” e também em relação as suas ‘vidas em si, que “reorganizam as relações entre os indivíduos e as autoridades biomédicas, e remodelam as maneiras pelas quais os seres humanos se relacionam consigo mesmo enquanto ‘indivíduos somáticos’. Essa atenção ao somático, que vem incluindo, cada vez mais, a gestão da existência neurobiológica, deixou de ser restringida pelos polos da saúde e da doença. Muitas intervenções, hoje, buscam otimizar a vida - e não apenas prevenir e curar doenças e reabilitar pacientes -, “agindo no presente para assegurar o melhor futuro possível àqueles que são seus sujeitos”. Assim, as tecnologias biomédicas incorporam visões controversas do que poderia ser, na vida humana individual e/ou coletiva, verdadeiramente, um estado ótimo22. Rose N. The politics of life itself: biomedicine, power, and subjectivity in the Twenty-First Century. Oxford: Princeton University Press; 2007.. Segundo aprendemos com Michel Foucault, precisamos estar atentos à história de nosso presente, não porque nos interessamos pelo passado, mas sim porque nos interessamos em intervir em futuros possíveis - e isso demanda ações no presente.

Esses desenvolvimentos têm consequências importantes para a política da vida e para as relações entre as Ciências Humanas e com as Ciências Naturais. Oferecem a oportunidade de ultrapassar o comentário e a crítica, e abrem novas oportunidades para uma relação diferente com o biológico. As humanidades podem e devem usar suas ferramentas metodológicas e teóricas para contribuir para uma análise crítica das tecnologias biomédicas contemporâneas, enfatizando o que aprendemos nas últimas décadas de pesquisa: que nossas capacidades (neuro) biológicas estão ligadas a ‘teias’ culturais, semióticas, corporais, societárias e estéticas - e vice-versa55. Rose N, Abi-Rached JM. Neuro: the new brain sciences and the management of the mind Princeton. Princeton: Princeton University Press; 2013.. Como Foucault demonstrou em O Nascimento da Clínica66. Foucault M. The birth of the clinic: an archaeology of medical perception. Abingdon: Routledge; 2003., o remodelamento epistemológico, ontológico e técnico da percepção médica ocorre por meio de interconexões de mudanças em uma série de dimensões, algumas das quais parecem, à primeira vista, bastante distantes da medicina. Mais do que nunca, é verdade que, conforme Foucault escreveu na História da Sexualidade77. Foucault M. The history of sexuality. The will to knowledge. London: Penguin; 1978. v. 1., o ser humano, hoje, é um animal em cuja política sua vida de ser vivo está em questão.

Nesse contexto, acreditamos que novas formas de troca entre cientistas naturais e sociais podem e devem surgir, levando a uma experimentação com os conceitos de natureza e cultura, biologia e sociedade, afeto e cognição, vida e morte, para além de ideias ultrapassadas relacionadas a ‘nature versus nurture’ [inato versus desenvolvido/cultivado].

Consideramos que tal parceria poderia ajudar a esclarecer dilemas éticos da pesquisa biológica; por exemplo, dilemas sobre “tecnologias reprodutivas, disputas sobre ética do prolongamento da vida, eutanásia, manutenção da vida de bebês nascidos com deficiências graves e assim por diante”66. Foucault M. The birth of the clinic: an archaeology of medical perception. Abingdon: Routledge; 2003. (p. 222). Também poderia ajudar a “contribuir para uma perspectiva crítica sobre a política contemporânea da vida e as formas pelas quais ela está intrinsecamente entrelaçada à economia da vida - a abertura dos processos vitais à intervenção tornou a vida em si um campo para uma capitalização intensa por parte da indústria farmacêutica, da indústria de equipamentos médicos e assim por diante”66. Foucault M. The birth of the clinic: an archaeology of medical perception. Abingdon: Routledge; 2003. (p. 222). No mesmo momento em que os avanços das tecnologias biomédicas nos possibilitam intervir sobre nós mesmos de novas maneiras, nossa vitalidade foi aberta, como nunca antes, à exploração econômica e à extração de biovalor. Portanto, isto não é apenas biopolítica; mas também, uma bioeconomia que está transformando a nossa própria concepção do que somos.

Estamos testemunhando um novo entrelaçamento entre formas de conhecimento e técnicas de intervenção, modos de capitalização, disputas políticas e éticas. Isso constitui um campo novo, fascinante e importante para análise e disputas políticas - um campo que deveria ser central para o trabalho das Ciências Humanas. Precisamos ir além da interpretação da mão oculta do capitalismo neoliberal, ou dos interesses ocultos do Estado ou das nossas autoridades para, em primeiro lugar, descrevermos os desenvolvimentos dentro dos quais estamos enredados. Na verdade, talvez as ciências sociais críticas devam mover-se para além da crítica e reconhecer que o pensamento mais profundo é aquele que permanece na superfície!22. Rose N. The politics of life itself: biomedicine, power, and subjectivity in the Twenty-First Century. Oxford: Princeton University Press; 2007.

As questões discutidas aqui referem-se a múltiplos campos do conhecimento e de práticas e trazem, por exemplo, ao campo da Saúde Coletiva - território em que alguns dos autores deste editorial exercem suas atividades de pesquisa - questões instigantes que consideramos absolutamente relevantes para a atualização de seu arcabouço teórico.

Tais questões trazem ao debate a necessidade de radicalizar a tarefa transdisciplinar desse campo, que emergiu na década de 1970 na confluência dos conhecimentos das áreas de Políticas Públicas, Administração e Planejamento, de Epidemiología e Ciências Sociais, por meio da incorporação de outros campos de conhecimento, como a filosofia88. Martins A. Novos paradigmas e saúde. Physis. 1999; 9(1):83-112. e, em um aparente paradoxo, campos biológicos que, como argumentamos acima, vêm sofrendo importantes transformações. Esse importante ponto de intersecção entre as ‘ciências’ deveria abrir espaço, também, para pesquisas que objetivem acompanhar os movimentos da vida, engendrando conexões que permitam ir além da reprodução de modelos teóricos e metodológicos hegemônicos, objetivando explorar novas possibilidades do fazer e do pensar.

Do ponto de vista do cuidado em saúde, esse ponto nos alerta para a necessidade de atualizar nossa compreensão do que é visto como vida e saúde e as consequências deste novo entendimento. Hoje, os serviços de saúde precisam ir além da tarefa de prevenção, promoção, cura e reabilitação, implementando, também, ações que objetivem otimizar a vida de cada pessoa e de todas as pessoas, num momento em que a gestão de nosso corpo vem assumindo, cada vez mais, uma posição central no processo de produção do que pensamos ser ou do que pensamos que devemos ser.

Além disso, acreditamos que a abordagem que comentamos acima pode ser importante para repensarmos nossos projetos educacionais e de pesquisa. Pode ser útil ultrapassar os preconceitos e as linhas que separam as ciências biológicas das ciências humanas, superando separações artificiais e disputas de espaço, que poderiam se beneficiar mutuamente da transdisciplinaridade.

Um esforço que deve buscar uma reinvenção crítica do que pensamos, do que somos e de como devemos agir para transformar o mundo e a nós mesmos55. Rose N, Abi-Rached JM. Neuro: the new brain sciences and the management of the mind Princeton. Princeton: Princeton University Press; 2013.. Em outras palavras, um esforço que deveria procurar construir, inventando, uma nova política de subjetividade.

  • (a)
    ‘Estilo de pensamento’ é uma maneira particular de pensar, ver e agir. O termo deriva do trabalho de Ludwick Fleck, especialmente de sua obra Origin and Development of a Scientific Fact [Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico] (1935). Envolve, por exemplo, ser membro de uma comunidade de pensamento em uma disciplina e ter um conhecimento detalhado de suas relações de poder e status. “Não é apenas sobre uma certa forma de explicação, sobre o que significa explicar; é, também, sobre o que há para ser explicado” (p. 12).

Referências

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    Alsop A, Freese J, Perrig-Chiello P, Plomin R, Rose N. The good, the bad and the ugly - understanding between the social sciences and the life sciences. An ESF SCSS strategic workshop report [Internet]. Estrasburgo: European Science Foundation; 2014 [cited 2017 Dec 13]. Available from: https://boris.unibe.ch/53366/
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  • 2
    Rose N. The politics of life itself: biomedicine, power, and subjectivity in the Twenty-First Century. Oxford: Princeton University Press; 2007.
  • 3
    Carvalho SR, Teixeira RR. Politics of life itself and the future of medical practices: dialogues with Nikolas Rose (part 3). Interface (Botucatu). 2017; 21(60):221-30.
  • 4
    Rose N. Inventing our selves: psychology, power, and personhood. Cambridge: Cambridge University Press; 1996.
  • 5
    Rose N, Abi-Rached JM. Neuro: the new brain sciences and the management of the mind Princeton. Princeton: Princeton University Press; 2013.
  • 6
    Foucault M. The birth of the clinic: an archaeology of medical perception. Abingdon: Routledge; 2003.
  • 7
    Foucault M. The history of sexuality. The will to knowledge. London: Penguin; 1978. v. 1.
  • 8
    Martins A. Novos paradigmas e saúde. Physis. 1999; 9(1):83-112.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2018
  • Aceito
    14 Fev 2018
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