Identidade do sanitarista no Brasil: percepções de estudantes e egressos de cursos de graduação em Saúde Pública/Coletiva

The identity of the Public Health professional in Brazil: perceptions of Public and Collective Health students and graduates of undergraduate courses

Identidad del sanitarista en Brasil: percepciones de estudiantes y egresados de los cursos de graduación en Salud Pública y Salud Colectiva

Vinício Oliveira da Silva Isabela Cardoso de Matos Pinto Sobre os autores

Resumos

A emergência dos cursos de graduação em Saúde Coletiva no Brasil tem colocado em pauta a diversidade de processos que conferem legitimidade à atuação profissional e implicam o reconhecimento da identidade do “novo” sanitarista. Este estudo teve como objetivo analisar a identidade do sanitarista a partir da formação nos cursos de graduação em Saúde Pública/Coletiva no Brasil. Trata-se de estudo exploratório, de natureza qualitativa, com realização de grupo focal. Adotou-se o referencial teórico-metodológico de Dubar - Trajetórias subjetivas, lógicas de mobilidade e formas identitárias. Embora a maioria não tivesse interesse prévio de inserção na Saúde Coletiva, a maneira como se define revela afinidades - elemento favorável à construção social de identidade profissional. Sujeitos e identidades passam a fazer parte da produção discursiva de inúmeros enunciados, caracterizados por uma visão da dimensão político-social e dos valores inerentes à prática nesse campo.

Palavras-chave
Saúde Coletiva; Recursos humanos em Saúde; Identidade profissional; Formação profissional


The emergence of Collective Health undergraduate courses in Brazil has called into question the degree of diversity in processes that give legitimacy to professional practice and push for recognition of the identity of the “new” Public Health professional. The objective of this study was to analyze the identity of Public Health professionals based on their formation in Public and Collective Health undergraduate courses in Brazil. This is an exploratory, qualitative study, carried out by means of focus group. Dubar's subjective trajectories, logics of mobility and identity forms was used as a theoretical framework. Although most participants have no previous interest in working with Collective Health, their affinities are revealed by the way in which they define themselves, an element that supports the social construction of professional identities. Subjects and identities become part of the discursive output of many utterances, characterized by a vision of the political and social dimensions and the values that are inherent to medical practice in that field.

Keywords
Collective Health; Human resources in Health; Professional identity; Professional education


El surgimiento de los cursos de graduación en Salud Colectiva en Brasil ha puesto en pauta la diversidad de procesos que proporcionan legitimidad a la actuación profesional y que implican el reconocimiento de la identidad del “nuevo” sanitarista. El objetivo de este estudio fue analizar la identidad del sanitarista a partir de la formación en los cursos de graduación en Salud Pública y Salud Colectiva en Brasil. Se trata de un estudio de exploración de naturaleza cualitativa, con realización de grupo focal. Se adoptó el referencial teórico-metodológico de Dubar - Trayectorias subjetivas, lógicas de movilidad y formas de identidad. Aunque la mayoría no tenía interés previo de inserción en la Salud Colectiva, la manera como se define revela afinidades, un elemento favorable para la construcción social de identidad profesional. Sujetos e identidades pasan a formar parte de la producción discursiva de innumerables enunciados, caracterizados por una visión de la dimensión político-social y de los valores inherentes a la práctica en ese campo.

Palabras clave
Salud Colectiva; Recursos humanos en Salud; Identidad profesional; Formación profesional


Introdução

Nas últimas décadas, as transformações sociais produziram impactos significativos nas esferas do trabalho e emprego. Nesse contexto, as políticas educacionais, com o objetivo de dar conta das necessidades sociais e da complexidade do mundo contemporâneo, seja em nível global, seja em contextos sociais específicos, têm dado espaço ao surgimento de novos modelos de formação, bem como de novas profissões.

Considerando a interface entre a educação e o mundo do trabalho - seja na reconfiguração das práticas ou na necessidade de novos perfis profissionais -, a formação ocupa papel central no processo de socialização e (re)construção das identidades sociais e profissionais. Os vínculos emprego-formação se reforçaram historicamente no cerne dos processos identitários. As formas de construção das categorias sociais a partir das esferas do trabalho, do emprego e da formação constituem áreas pertinentes das identificações sociais dos próprios indivíduos nos respectivos campos de atuação11. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005..

No Brasil, o espaço da Saúde Coletiva, enquanto espaço multiprofissional e interdisciplinar22. Vieira-Da-Silva LM, Paim JS, Schraiber LB. O que é Saúde Coletiva?. In: Paim JS, Almeida-Filho N, organizadores. Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: Medbook; 2014., tem se preocupado amplamente com a efetivação do Sistema Único de Saúde (SUS) e dado importância à necessidade de formar profissionais qualificados para a transformação das práticas e mobilizados politicamente para a mudança de modelos de atenção, como propõe esse campo22. Vieira-Da-Silva LM, Paim JS, Schraiber LB. O que é Saúde Coletiva?. In: Paim JS, Almeida-Filho N, organizadores. Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: Medbook; 2014.,33. Bosi MLM, Paim JS. Graduação em Saúde Coletiva: limites e possibilidades como estratégia de formação profissional. Cienc. Saude Colet. 2010; 15(4):2029-38..

No âmbito da formação em saúde, desde a criação do SUS, investimentos foram registrados nas modalidades pós-graduação lato e stricto sensu, nas quais se observaram, respectivamente, vários cursos para a qualificação dos processos de trabalho em saúde e o crescimento dos programas de pós-graduação em Saúde Coletiva. Além disso, mais recentemente, verificou-se a criação de cursos de graduação em Saúde Coletiva. Esse cenário foi responsável pela expansão, heterogeneidade e diversidade de cursos nesse campo.

A graduação em Saúde Coletiva é tributária da construção do campo da Saúde Coletiva no Brasil e da sua vinculação à Reforma Sanitária Brasileira e ao SUS, que se constituem como base argumentativa para a implantação dos referidos cursos22. Vieira-Da-Silva LM, Paim JS, Schraiber LB. O que é Saúde Coletiva?. In: Paim JS, Almeida-Filho N, organizadores. Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: Medbook; 2014.,33. Bosi MLM, Paim JS. Graduação em Saúde Coletiva: limites e possibilidades como estratégia de formação profissional. Cienc. Saude Colet. 2010; 15(4):2029-38.. Atualmente, são 21 cursos de graduação na área da Saúde Pública/Coletiva, considerando suas distintas nomenclaturas, implantados em universidades brasileiras. Com o gradativo processo de implantação, a partir do ano de 2008, as primeiras turmas de sanitaristas concluíram a graduação no ano de 201244. Cezar DM, Ricalde IG, Santos L, Rocha CMF. O bacharel em Saúde Coletiva e o mundo do trabalho: uma análise sobre editais para concursos públicos no âmbito do Sistema Único de Saúde. Saude em Redes. 2015; 1(4):65-73..

Esses cursos se configuram como a mais nova iniciativa no campo da formação em Saúde Coletiva. Nascem de um longo processo de amadurecimento teórico e metodológico da área, fruto da longa experiência de ensino nos diversos cursos de graduação da saúde e da tradição da pós-graduação lato e stricto sensu, formando há mais de quarenta anos sanitaristas para o Sistema de Saúde. Surgiram como uma ideia em função do desenvolvimento da Saúde Coletiva, enquanto campo de saberes e práticas, distinto da Saúde Pública institucionalizada, e transformaram-se em um projeto que identificava a necessidade de formar novos sujeitos, individuais e coletivos, transformadores e comprometidos com a Reforma Sanitária Brasileira e com a implementação do SUS, a partir de um corpo de conhecimentos e práticas que pudessem ser assimilados desde a graduação33. Bosi MLM, Paim JS. Graduação em Saúde Coletiva: limites e possibilidades como estratégia de formação profissional. Cienc. Saude Colet. 2010; 15(4):2029-38.,55. Paim JS, Pinto ICM. Graduação em Saúde Coletiva: conquistas e passos para além do sanitarismo. Tempus: Actas Saude Colet. 2013; 7:13-35..

A graduação em Saúde Coletiva pretende superar as práticas e identidades profissionais tradicionais da Saúde Pública, apontando com mais clareza para uma formação interdisciplinar, com ênfase nas noções de direito à saúde, cidadania e emancipação dos sujeitos, sendo o egresso desses cursos um profissional com formação generalista, humanista crítica e reflexiva, qualificado para o exercício das práticas que compõem o campo da Saúde Coletiva e fundamentado nos saberes provenientes da Epidemiología, da Política, Planejamento, Gestão e Avaliação em saúde e das Ciências Sociais e Humanas em Saúde44. Cezar DM, Ricalde IG, Santos L, Rocha CMF. O bacharel em Saúde Coletiva e o mundo do trabalho: uma análise sobre editais para concursos públicos no âmbito do Sistema Único de Saúde. Saude em Redes. 2015; 1(4):65-73..

Vários autores11. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005.,66. Hall S. A Identidade cultural na pós-modernidade. Río de Janeiro: DP&A Editora; 2011.

7. Lopes JR. Registros teòrico-històricos do conceito de identidade. Psicol Soc. 1996; 8(2).
-88. Santos BS. Modernidade, identidade e a cultura de fronteira. Tempo Social (Rev Sociol USP). 1994; 5(1-2):31-52. apontam que a concepção de identidade é diversa e imprecisa. Sua construção se dá a partir de representações individuais e subjetivas dos sujeitos, que implica em uma construção conjunta de dupla face entre o individual e o coletivo. Para Dubar11. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005., a identidade é “o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições” (p. 36). Tais pressupostos apontam, portanto, para a necessidade de considerar o contexto em que os profissionais estão inseridos, a finalidade e a direcionalidade de suas práticas, bem como a formação e trajetória desses atores na construção/reconstrução da identidade.

No que se refere à produção científica sobre a identidade dos atores da Saúde Coletiva no Brasil, os estudos são escassos na literatura e tratam, em geral, da inserção de atores das distintas categorias profissionais no campo da Saúde Coletiva. Esses profissionais passam por dificuldades no rompimento de paradigmas, o que ocasiona uma “crise de identidade” ao implicar na reconstrução ou transformação da identidade, a partir de sua trajetória e prática profissional e das relações envolvidas nesse processo99. Silva VO, Pinto ICM. Construção da identidade dos atores da Saúde Coletiva no Brasil; uma revisão da literatura. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):549-60..

Entre os estudos encontrados na literatura sobre a graduação em Saúde Coletiva, identifica-se nas diversas abordagens a lacuna existente em relação ao objeto do presente trabalho, que consiste na novidade da graduação como inovação na preparação de profissionais de saúde1010. Ceccim RB. Inovação na preparação de profissionais de saúde e a novidade da graduação em Saúde Coletiva. Bol Saude. 2002; 16(1):9-36.; a graduação antecipando a formação do sanitarista1111. Teixeira CF. Graduação em Saúde Coletiva; antecipando a formação do sanitarista. Interface (Botucatu). 2003; 7(13):163-6.; limites e possibilidades da graduação como estratégia de formação profissional33. Bosi MLM, Paim JS. Graduação em Saúde Coletiva: limites e possibilidades como estratégia de formação profissional. Cienc. Saude Colet. 2010; 15(4):2029-38.; a visão dos coordenadores sobre a implantação dos cursos no Brasil1212. Belisário AS, Pinto ICM, Castellanos MEP, Nunes TCM, Fagundes TLQ, Gil CRR, et al. Implantação do curso de graduação em Saúde Coletiva; a visão dos coordenadores. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1625-4.; perfil sociodemográfico dos estudantes no Brasil1313. Castellanos MEP, Fagundes TLQ, Nunes TCM, Gil CRR, Pinto ICM, Belisário AS, et al. Estudantes de graduação em saúde coletiva: perfil sociodemográfico e motivações. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1657-66.; a graduação e suas conquistas e passos para além do sanitarismo55. Paim JS, Pinto ICM. Graduação em Saúde Coletiva: conquistas e passos para além do sanitarismo. Tempus: Actas Saude Colet. 2013; 7:13-35.; o que se pode alcançar com a graduação no Brasil1414. Mota E, Santos L. O que se pode alcançar com a graduação em Saúde Coletiva no Brasil? Tempus: Actas Saude Colet. 2013; 7(3):37-41.; a graduação preenchendo lacunas e formando competências para o SUS1515. Santana PR, Martins RD, Guarda FRB, Cruz SL, Santana SCS. Bacharelado em Saúde Coletiva: preenchendo lacunas e formando competências para o SUS. Tempus: Actas Saude Colet. 2013; 7(3):43-55.; quem são os novos sanitaristas e qual seu papel1616. Bezerra APS, Andrade BBL, Batista BS, Reis CR, Arenhart CGM, Parente CG, et al. Quem são os novos sanitaristas e qual seu papel?. Tempus: Actas Saude Colet. 2013; 7(3):57-62.; a graduação e a construção de cenários práticos1717. Silva NEK, Ventura MV, Ferreira J. Graduação em Saúde Coletiva e o processo de construção de cenários práticos. Tempus: Actas Saude Colet. 2013; 7(3):91-101.; o que pode fazer uma bacharel em Saúde Coletiva e a arte de pesquisar como prática de promoção da saúde1818. Carneiro RC. E o que faz/pode fazer um bacharel em Saúde Coletiva? A arte de pesquisar como prática de promoção da saúde. Tempus: Actas Saude Colet. 2013; 7(3):103-13.; a percepção do graduando sobre o estágio supervisionado1919. Bezerra APS, Moutinho AFM, Alkmim DFB, Morais IAM. A percepção do graduando em Saúde Coletiva sobre o estágio supervisionado. Tempus: Actas Saude Colet. 2013; 7(3):115-27.; a implementação do curso na Universidade Federal da Bahia2020. Castellanos MEP, Ribeiro GS, Esperidião MA, Souto AC, Jesus KC, Silva CCG, et al. A implementação do curso de graduação em saúde coletiva do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia; da criação até a formatura da primeira turma. Tempus: Actas Saude Colet. 2013; 7(3):63-80.; perspectivas, opiniões e críticas dos graduandos sobre os cursos2121. Sampaio JRC, Santos RDS. Graduandos em saúde coletiva Brasil: perspectivas, opiniões e críticas sobre os cursos. Tempus: Actas Saude Colet. 2013; 7(3):81-9.; e o bacharel em Saúde Coletiva e o mundo do trabalho44. Cezar DM, Ricalde IG, Santos L, Rocha CMF. O bacharel em Saúde Coletiva e o mundo do trabalho: uma análise sobre editais para concursos públicos no âmbito do Sistema Único de Saúde. Saude em Redes. 2015; 1(4):65-73..

Diante do exposto e reconhecendo a importância de tomar como categoria de análise a identidade profissional nessa área, o presente artigo tem como objetivo analisar a identidade do sanitarista a partir da formação nos cursos de Graduação em Saúde Pública/Coletiva no Brasil.

Desenho de estudo, procedimentos para produção dos dados e plano de análise

Foi realizado um estudo exploratório, de natureza qualitativa sobre as percepções dos estudantes dos cursos de graduação em Saúde Coletiva ou similares(c)(c)Serão considerados cursos similares àqueles que foram criados no contexto do Reuni e possuem nomenclaturas distintas da Saúde Coletiva e que tenham como justificativa a formação de sanitaristas, com perfil adequado ao SUS. Nesse caso, Castellanos et al.13 apontam distintas nomenclaturas nessa situação: Bacharelado em Saúde Coletiva (UFAC, UEA, UFBA, UFMT, UNIFESSPA, UPE, UFPE, ASCES, UFPR, Unila, UFRJ, UFRGS); Gestão em Saúde Coletiva (UNB); Gestão em Saúde (UNB, UFCSPA); Gestão em Saúde Ambiental (UFU); Gestão em Sistemas e Serviços de Saúde (UFRN); Gestão em Saúde Coletiva indígena (UFRR); Bacharelado em Saúde Pública (USP); Gestão de Serviços de Saúde (UFMG); Gestão em Saúde Humana e Ambiental (FMABC). acerca da identidade do sanitarista no Brasil. Tomou-se como referência a teoria da construção das identidades sociais e profissionais de Claude Dubar11. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005.. Segundo esse autor, a construção das identidades sociais e profissionais é composta por três campos essenciais que definem a identidade profissional: o mundo vivido do “trabalho”, a “trajetória” socioprofissional e, principalmente, os movimentos de “emprego” e a relação dos profissionais com a “formação”, especialmente a maneira como aprenderam o trabalho que realizam ou realizarão.

A produção dos dados envolveu a realização de grupo focal que aconteceu no âmbito da Vil Reunião do Fórum Nacional de Graduação em Saúde Coletiva, com a participação de 16 sujeitos, entre estudantes de diferentes semestres e egressos dos cursos de graduação em Saúde Pública/Saúde Coletiva das universidades brasileiras, que compõem/compuseram a representação estudantil dos seus respectivos cursos de origem.

O grupo focal foi dividido em dois momentos, com a participação dos mesmos sujeitos: o primeiro contemplou questões geradoras acerca das motivações para inserção na graduação em Saúde Pública/Saúde Coletiva e sobre suas experiências e trajetória no curso; compreensões sobre a formação do sanitarista; e debate enquanto liderança sobre a formação do sanitarista. O segundo contemplou questões geradoras acerca das concepções sobre Saúde Pública e Saúde Coletiva; percepções sobre as possibilidades de emprego, mercado de trabalho; e possibilidades de profissionalização.

Os discursos e interações dos dois momentos do grupo focal foram gravados e posteriormente transcritos. As informações foram sistematizadas em planilha no Excel. Após a análise e sistematização das informações, emergiram três categorias: 1 - A inserção no curso/motivações; 2 - A formação em Saúde Pública/Coletiva; e 3 - Movimentos de emprego, mercado de trabalho e possibilidades de profissionalização.

A análise de conteúdo tomou como referência as orientações teórico-metodológicas de Dubar11. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005.,2222. Dubar C. Trajetórias sociais e formas identitárias: alguns esclarecimentos conceituais e metodológicos. Educ Soc. 1998; 19(62):13-30., que, amparado na teoria sobre construção de identidades profissionais, propõe como ponto de partida os relatos do próprio percurso dos indivíduos. Esse modelo empírico no tratamento da identidade é denominado “Trajetórias subjetivas, lógicas de mobilidade e formas identitárias”. A hipótese central desse modelo é a de que quando o ator, em uma situação focalizada em si, coloca seu percurso em palavras, permite a construção linguística de uma ordem categorial do discurso biográfico e lhe confere significado social.

De acordo com Dubar2222. Dubar C. Trajetórias sociais e formas identitárias: alguns esclarecimentos conceituais e metodológicos. Educ Soc. 1998; 19(62):13-30.: “[…] tomar a sério falar sobre si mesmo vindo de um sujeito incitado ‘a se narrar’ e entrando num diálogo, verdadeiro ‘exercício espiritual’, com um pesquisador capacitado para escutar, talvez constitua uma condição sine qua non para um uso sociológico da noção de identidade” (p. 14).

Considerando a subjetividade do conceito de identidade e a amplitude dos campos que a constituem, este artigo tratará da identidade do sanitarista no Brasil, na perspectiva da formação - um dos três campos implicados com a construção das identidades sociais e profissionais -, envolvendo duas categorias: 1) A inserção no curso/motivações; e 2) A formação em Saúde Pública/Coletiva.

O estudo foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa, sendo observadas as recomendações e normas do Conep - Resolução CNS 466/12 a respeito de pesquisas que envolvem seres humanos.

Resultados e discussão

A inserção nos cursos/motivações

Diversos fatores levaram os estudantes para os cursos de graduação em Saúde Pública/Coletiva, a saber: as experiências com o trabalho nos serviços de saúde, as vivências em outras graduações de saúde, a realidade social e também a influência familiar. A maioria dos entrevistados não tinha intenção prévia de inserção nos cursos. Dentre as motivações, destaca-se a experiência prévia com o trabalho. Nesse caso, eram profissionais com outras formações, que trabalharam em secretarias municipais de saúde e, ao se envolverem com as práticas no âmbito do SUS, obtiveram influências de profissionais de saúde e tiveram seus interesses pela Saúde Coletiva despertados.

[…] Sou formada em administração e ciências contábeis e quando eu estava sendo diretora administrativa de um posto da periferia, aquela experiência mexeu demais comigo […] mas eu estava em um lugar em que eu não entendia absolutamente nada sobre o que as pessoas faziam ali, sobre a saúde, […] e eu me dei conta que eu não estava preparada pra assumir aquele posto […] de grande complexidade […]. Eu fui pra URROS, mediante o reingresso de curso superior, aí eu procurei a Saúde Coletiva que era uma coisa que, pelo currículo que eu verifiquei que era uma coisa que poderia dar conta daquelas coisas […]. (P14)

Esses elementos evidenciam a construção de uma identidade, a partir dos processos de socialização, influenciados tanto por fatores profissionais quanto pelas formas típicas de suas trajetórias individuais, de mundos sociais e sistemas de práticas11. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005.. Nesse sentido, observa-se que a escolha desse grupo pelo curso foi motivada, principalmente, pelas suas experiências prévias com processos formativos em outras áreas e com o trabalho que desenvolviam, incorporando símbolos e significados à sua trajetória e que, ao se inserirem nesse campo, revelam transformações identitárias na relação entre o mundo vivido do trabalho e a busca pela formação profissional visada.

A formação se tornou cada vez mais valorizada não apenas para o acesso aos empregos, mas também em suas trajetórias. Se o emprego é cada vez mais fundamental para os processos identitários, a formação está ligada a ele de maneira cada vez mais estreita. “Por acompanhar cada vez mais todas as dinâmicas do trabalho e do emprego, a formação intervém nas dinâmicas identitárias por muito tempo além do período escolar”11. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005. (p. XXVI-XXVII).

As motivações para escolha dos cursos, neste estudo, corroboram, de modo geral, os resultados do estudo de Castellanos et al.1313. Castellanos MEP, Fagundes TLQ, Nunes TCM, Gil CRR, Pinto ICM, Belisário AS, et al. Estudantes de graduação em saúde coletiva: perfil sociodemográfico e motivações. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1657-66., que identificou que, entre as motivações para a escolha dos cursos de graduação em Saúde Coletiva, cerca de 45,7% foram de ordem profissional, 35,2% de ordem pessoal e 14,8% de ordem socioeconômica. Tais achados, ao sugerirem interesses e escolhas predominantemente relacionadas aos movimentos de emprego e mercado de trabalho, apresentam-se de acordo com o pensamento de Dubar11. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005. no que diz respeito à centralidade do trabalho na vida das pessoas e na construção de suas identidades sociais e profissionais.

Ainda, entre as escolhas, verifica-se entre alguns que o desejo de se inserir no curso de medicina e o insucesso nessa escolha os levaram a cursar Saúde Coletiva, que representa as segunda e terceira opções no vestibular.

Eu não escolhi Saúde Coletiva, eu caí de paraquedas na Saúde Coletiva, era minha terceira opção no vestibular, a primeira era medicina, a segunda era medicina, a terceira era Saúde Coletiva, que foi o curso que achei interessante quando li a descrição de cursos novos, então achei legal, achei que tinha a ver com o que eu queria fazer dentro da medicina, mas eu não sabia o que era, então não quis colocar primeira opção, coloquei terceira, eu não sabia o que era, passei, porque a relação candidato-vaga foi muito baixa. (P6)

Observa-se que esse fenómeno também se faz presente em outras profissões da saúde. Entre os achados do estudo de Ojeda et al.2323. Ojeda BS, Creutzberg M, Feoli AMP, Melo DS, Corbellini VL. Acadêmicos de enfermagem, nutrição e fisioterapia: a escolha profissional. Rev Lat-Am Enfermagem. 2009; 17(3):396-402., ao investigarem as motivações para o ingresso nos cursos de Enfermagem, Fisioterapia e Nutrição, verifica-se que a grande procura pela Medicina leva muitos candidatos a buscarem outras profissões da saúde como segunda opção - em sua maioria, a Medicina aparecia como primeira opção. Esses autores encontraram um arranjo de motivações formuladas no contexto familiar, nas representações sociais sobre as profissões e nas expectativas favoráveis sobre a entrada no mercado de trabalho.

Diferentemente das outras motivações para inserção, houve um desejo pessoal de inserção na Saúde Pública/Saúde Coletiva, construído desde sua infância, possivelmente tendo influências no âmbito familiar. Torna importante registrar que a entrada dessa estudante na área e sua formação como sanitarista foi antecipada pela recente implantação desses cursos no Brasil, dispensando assim a necessidade de se graduar para depois se inserir na área por meio dos cursos de pós-graduação.

Eu queria fazer Saúde Pública desde pequena, minha mãe é enfermeira, ela é defensora do SUS, então eu acompanhei isso por muito tempo, eu entrei no colégio querendo fazer isso e só tinha pós na USP e quando saiu a graduação eu chorei, que era o que eu queria, sabe? (P2)

Embora a maioria dos estudantes tenha relatado que não houve interesse prévio pela inserção na Saúde Coletiva, revelaram que ao longo de suas experiências e trajetórias no curso, por meio do processo de socialização, adquiriram pertencimento ao campo. Tais aspectos evidenciam o que, segundo Dubar11. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005., configura-se como um processo de construção e reconstrução de identidades na esfera da formação - quando os indivíduos aprendem a ser atores sociais e criam projeções sobre o mundo do trabalho, inserindo-se, dessa forma, nos movimentos de emprego.

[…] eu entrei no curso e eu não tive condição de sair mais, por que eu me apaixonei pelo curso, me apaixonei, me encantei e hoje eu sou totalmente envolvida, eu abandonei meu trabalho com um vínculo formal pra me dedicar exclusivamente ao curso, investir na formação, eu acho que cada semestre eu sinto que foi a decisão acertada […], a Saúde Coletiva me abriu também outra possibilidade de projeto de vida, né […] a Saúde Coletiva, pra mim se apresenta hoje como um projeto de vida muito mais abrangente e é determinadamente o que eu quero pra minha vida. (P15)

No estudo de Castellanos et al.1313. Castellanos MEP, Fagundes TLQ, Nunes TCM, Gil CRR, Pinto ICM, Belisário AS, et al. Estudantes de graduação em saúde coletiva: perfil sociodemográfico e motivações. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1657-66., dentre as motivações profissionais para a inserção nesses cursos, identificou-se como principal motivação “trabalhar na área da saúde” seguida da motivação “contribuir para a Saúde Coletiva e com o SUS”. Entre as motivações pessoais, a maior parte dos respondentes apontou “gostar e/ou sentir afinidade com a área da saúde”, seguida de “curiosidade/interesse” ou “segunda opção do vestibular”.

Ao analisar as motivações para a inserção nos cursos, verifica-se que o processo de construção da identidade é resultante de inter-relações entre fenômenos, tanto individuais quanto coletivos, que envolvem significados a partir de sua interação. Portanto, esse processo tem relação com a trajetória pessoal dos sujeitos, de modo que suas escolhas passam a se constituir como identificação social.

A formação em Saúde Pública/Saúde Coletiva

As compreensões sobre a formação apresentaram-se de forma convergente entre os sujeitos da pesquisa. Embora acreditem que alguns cursos tenham foco predominante para a gestão dos serviços de saúde, demonstram clareza acerca da multiplicidade de espaços nos quais a prática do sanitarista pode ser desenvolvida e destacam a característica ampla dessa formação que possibilita a inserção em outros espaços, tanto na esfera governamental quanto no âmbito não governamental.

Eu compreendo que a formação, ela, parece, na verdade, no início pra gente, que uma das quase totalidades das possibilidades é gestão, mas eu acho que não é por aí, eu acho que a formação ela é mais ampla e essa é a discussão que a gente tem feito, que o profissional de Saúde Pública, Saúde Coletiva, ele trabalha não só em ambientes institucionais a título de saúde, da área de saúde, esses diversos espaços, mas também ele tem um papel importante em outros espaços, né, pensando na questão da integralidade, da universalidade, da equidade, até dos princípios do SUS […] então pra mim é um campo amplo, realmente que a gente pode fazer, atuar em vários setores contribuindo direta ou indiretamente de forma significativa pra essa promoção da saúde, pra prevenção, o que acho que é também um desafio ao mesmo tempo. (P3)

Esses fragmentos corroboram com os resultados da pesquisa de Castellanos et al.1313. Castellanos MEP, Fagundes TLQ, Nunes TCM, Gil CRR, Pinto ICM, Belisário AS, et al. Estudantes de graduação em saúde coletiva: perfil sociodemográfico e motivações. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1657-66., visto que, ao consultar os projetos político-pedagógicos dos cursos, foram identificados dois enfoques principais, dados os objetivos e perfis dos egressos: de um lado, o enfoque específico em gestão e, de outro, o enfoque claro e abrangente na Saúde Coletiva, descrevendo saberes e áreas de atuação. Considerando esses aspectos, cabe destacar que, ao fim de um curso com currículo institucionalizado, é ofertado o diploma, que, por sua vez, constitui-se como burocratização de uma carreira. Ao estabelecer um escopo de práticas fundamentadas em um corpo sistemático de teoria e uma lógica de aprendizagem, a formação permite a aquisição de identidade profissional e reconhecimento social11. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005..

Ademais, foi relatado por muitos dos participantes que a formação do sanitarista tem compromisso com a formação de sujeitos políticos e sociais, capazes de transformar a realidade em que estão inseridos. Nessa direção, aparecem dois elementos centrais. O primeiro é o compromisso com a construção e transformação dos serviços de saúde, e o segundo, com os princípios e diretrizes da Reforma Sanitária Brasileira, apontando para uma definitiva práxis política. Apreende-se, dessa forma, que o processo de construção da identidade desses sanitaristas envolve os contextos histórico, social e político na significação de suas experiências e representações diante da posição que passam a ocupar.

[…] outra coisa que eu acho que difere muito das formações tradicionais de saúde, que assim, eu acho que vem caminhando nesse sentido, mas que a gente potencializa isso muito mais, que a formação, né, de sujeitos implicados, de sujeitos políticos, esta formação buscando autonomia do sujeito, da emancipação dos sujeitos, eu acho que isso é possibilidade dentro da graduação em Saúde Coletiva, de forma mais intensa e que talvez nas outras formações isso ainda está meio que caminhando, isso parece pra mim muito forte, a formação do sujeito enquanto ator político, ator social. (P15)

A maneira como se definem e se apresentam revela que os sujeitos têm uma visão da dimensão político-social do seu papel na sociedade, expressando assim um compromisso com o social e com os valores inerentes à prática nesse campo. Esses são, certamente, atributos da identidade do sanitarista que vão ao encontro do projeto político-pedagógico dos cursos de graduação em Saúde Pública/Saúde Coletiva no Brasil e das justificativas para o seu processo de implantação. Cabe destacar a influência institucional nas concepções identitárias, por serem predominantemente vinculadas a instituições que participaram ativamente do movimento da Reforma Sanitária Brasileira e que vêm dando importantes contribuições para a construção do SUS.

Nos depoimentos, identifica-se concordância sobre o que é ser sanitarista, especialmente naquilo que corresponde à formação de sujeitos “epistêmicos e públicos” capazes de analisar a realidade social a partir de bases que constituem o campo da Saúde Coletiva, formando uma tríade: Epidemiología; política, planejamento e gestão; e Ciências Sociais e Humanas em Saúde. Essa última foi apontada como um dos diferenciais da formação em relação aos demais cursos da área da Saúde que possibilita maior compreensão sobre o fenômeno saúde-doença-cuidado.

[…] eu acredito que a nossa formação, ela exige sim essa tríade né, que é epidemiología, gestão, política e planejamento e as ciências sociais, mas principalmente o que nos difere é as ciências sociais né, por compreender o homem num fator macro, com um olhar mais holístico sobre a situação de saúde de uma determinada população ou de uma pessoa, eu acho que isso difere muito a nossa formação e nos faz não melhores, mas ter um potencial a mais que as outras profissões né, e nesse sentido acredito que a nossa formação é inovadora e transformadora social, porque nós nos tornamos não somente profissionais, mas militantes de um sistema que é o SUS […], de uma causa que vem do movimento dos anos 1980 que é a Reforma Sanitária Brasileira, nós somos sujeitos dessa Reforma Sanitária Brasileira que é antiga, mas continua no processo, né. (P10)

As concepções dos estudantes e egressos sugerem direcionalidade para a formação de sujeitos políticos, transformadores da realidade social na perspectiva de uma prática que possa superar a Saúde Pública institucionalizada. Nesse sentido, corroboram o pensamento de Paim e Pinto55. Paim JS, Pinto ICM. Graduação em Saúde Coletiva: conquistas e passos para além do sanitarismo. Tempus: Actas Saude Colet. 2013; 7:13-35., que apontam que a Reforma Sanitária Brasileira e o SUS requerem a constituição de sujeitos individuais e coletivos, considerando as teorias da ação disponíveis, capazes de recompor as práticas de Saúde Coletiva como uma utopia concreta, para além do sanitarismo.

Cabe considerar, de acordo com Dubar11. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005., que os modelos pedagógicos e a direcionalidade curricular dos processos formativos constituem-se em desafios identitários, por vezes legitimando formas identitárias e deslegitimando outras. Essa escolha de determinados conteúdos, em detrimento de outros, tem relação com os objetivos políticos das organizações que configuram os saberes na perspectiva do trabalho a ser desenvolvido pelos sujeitos que estão sendo formados. Tal questão suscita importante debate acerca da qualificação para o trabalho, especialmente no que diz respeito aos atributos específicos do sanitarista graduado e à sua reconstrução identitária que se dá na relação entre formação e mundo do trabalho.

Ao se considerar a diversidade de nomenclaturas adotadas pelos cursos e a necessidade de adoção de uma única terminologia que possibilitasse fortalecer o processo de reconhecimento dos cursos, os sujeitos da pesquisa problematizaram a construção da identidade do sanitarista no Brasil em torno de suas similaridades e/ou divergências, sobretudo em relação ao que se entende por Saúde Pública e Saúde Coletiva. No caso de um dos cursos, denominado “graduação em Saúde Pública”, considerou- se que a adoção dessa terminologia pela instituição trata-se apenas de uma questão histórica e do reconhecimento internacional do termo, e que, apesar disso, a direcionalidade do processo formativo dos sujeitos compreende e reconhece o caráter abrangente da Saúde Coletiva, não redutível à Saúde Pública institucionalizada.

[…] às vezes parece também que o fato da nomenclatura ser Saúde Pública e não Saúde Coletiva está dado a algumas coisas que já foram criadas historicamente, que não é uma verdade a meu ver, então assim, a gente chama Saúde Pública por uma questão histórica da Faculdade de Saúde Pública que foi sim financiado pela Fundação Rockfeller, um modelo norte-americano de se fazer as coisas […]. A nomenclatura não dá a forma e metodologia com que você trabalha e tem outra coisa que assim, parece que quando é Saúde Pública ela não incorpora questões mais atuais, como a questão de gênero, raça, etnia, esses debates, mas a graduação em Saúde Pública incorpora fortemente isso. A graduação em Saúde Pública da USP ela fala fortemente da questão da importância da participação social, do controle social enquanto mecanismos, dispositivos de produção de cuidado da atenção integral, universal e equânime, então assim, a gente trabalha muito a questão do SUS, então eu acho que não está dado o fato de ter um nome ou outro, mas também acho que tem essa diferença que, dependendo da forma como o profissional se oriente teoricamente, ele tem uma tática diferenciada, né, porque essa prática ela vai dialogar muito forte com seus paradigmas, com o que você entende disso. (P3)

Houve consenso que Saúde Pública e Saúde Coletiva não são sinônimos, sendo a Saúde Coletiva distinta da Saúde Pública convencional. Esses resultados estão em consonância com Paim e Pinto55. Paim JS, Pinto ICM. Graduação em Saúde Coletiva: conquistas e passos para além do sanitarismo. Tempus: Actas Saude Colet. 2013; 7:13-35., ao sugerirem que “o trabalho do profissional de Saúde Coletiva apresenta dimensões técnica, económica, política e ideológica radicais em valores de solidariedade, emancipação, igualdade, justiça e democracia, distintos da Saúde Pública subalterna aos centros hegemónicos” (p. 13).

Saúde Pública me remete àquela história mesmo das origens da Saúde Coletiva que era uma coisa mais institucionalizada, mesmo, e eu já vejo a Saúde Coletiva para além da saúde no serviço público, por exemplo, ou daquela forma que vinha sendo feita ao longo dos anos, do século passado, do século XX, e acho que a Saúde Coletiva extrapola isso, extrapola o setor saúde. (P15)

No que tange à identidade na Saúde Coletiva, nem sempre há preocupação de distingui-la da Saúde Pública. Ainda, se por um lado observa-se que diversas instituições e programas de pós-graduação e graduação pertencentes à área da Saúde Coletiva têm nomes diferentes - como Instituto de Medicina Social, Departamento de Medicina Preventiva, Escola Nacional de Saúde Pública, Mestrado em Saúde Comunitária ou Instituto de Saúde Coletiva22. Vieira-Da-Silva LM, Paim JS, Schraiber LB. O que é Saúde Coletiva?. In: Paim JS, Almeida-Filho N, organizadores. Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: Medbook; 2014. -, por outro lado, verifica-se igualmente uma série de denominações para esses cursos de graduação.

Embora seja compreendido pelos estudantes e egressos que a distinção entre Saúde Coletiva e Saúde Pública não seja apenas uma questão de nomes, a denominação Saúde Coletiva ainda é vista como um desafio para o reconhecimento social do seu objeto de atuação profissional. Diante disso, o termo “Saúde Pública”, por ser tradicional e/ou reconhecido, em algumas situações é utilizado como sinónimo de Saúde Coletiva para explicar aos que estão fora desse campo do que se trata o seu processo formativo e suas práticas.

Não, e engraçado, eu estava experimentando, eu faço Saúde Coletiva e Saúde Pública. Aí falava Saúde Coletiva pra um e Saúde Pública pro outro, Coletiva a pessoa ficava assim “que diabos é isso, velho?” e já Saúde Pública a pessoa “O SUS né? Ahh eu sei como é que é”. (P9)

Entre os resultados da pesquisa de Paim2424. Paim JS. A reforma sanitária brasileira e a construção do campo da Saúde Coletiva. Salvador: ISC, UFBA; 2014 (Relatório técnico-científico)., as concepções sobre Saúde Coletiva e Saúde Pública revelam elementos que tanto convergem quanto divergem dos achados do presente estudo. No que tange às convergências, identifica-se: crítica ao enfoque disciplinar e registro do caráter amplo do pensamento em Saúde Coletiva; elementos sugerindo a Saúde Coletiva como um campo científico em construção e âmbito de práticas sociais; relatos que apontam certa proximidade entre a Saúde Coletiva e a Reforma Sanitária Brasileira; crenças sobre a sobreposição, pura e simples, da Saúde Coletiva com a Saúde Pública, ou mera expansão e desenvolvimento desta; e vinculação da Saúde Coletiva com a prática política. Em relação às divergências, apesar das reflexões teóricas, conceituais e epistemológicas sobre Saúde Coletiva, vários entrevistados no estudo de Paim2424. Paim JS. A reforma sanitária brasileira e a construção do campo da Saúde Coletiva. Salvador: ISC, UFBA; 2014 (Relatório técnico-científico). persistiram admitindo a Saúde Coletiva e a Saúde Pública como sinônimos.

A partir das concepções sobre Saúde Pública e Saúde Coletiva, é possível identificar no processo de reconstrução da identidade do sanitarista a interface entre dois processos denominados, segundo Dubar11. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005., “atribuição” e “pertencimento”. Atos de atribuição, ou seja, a identidade para o outro (quem o outro diz que eu sou, a identidade que o outro me atribui), nessa perspectiva, referem-se aos que visam definir “que tipo de profissional o outro é (da Saúde Pública ou da Saúde Coletiva)”. Os atos de pertencimento dizem respeito à identidade para si (o que o indivíduo diz de si mesmo, o que pensa ser, ou gostaria de ser), ou seja, o pertencimento do próprio indivíduo à Saúde Coletiva ou à Saúde Pública.

Assim, a identidade, tanto a atribuída quanto a adquirida pelo sentimento de pertencimento, é assimilada no processo de socialização dentro das esferas de que participa. Nesse contexto, as denominações “Saúde Pública” e “Saúde Coletiva” podem promover rotulagens, não apenas pelos nomes, mas pelo processo histórico que as constituíram criando diferenciações e dimensões entre si. Portanto, há um processo subjetivo de rotulagens que representam as instituições e teorias sobre a prática do sanitarista, que apresentam interfaces com a formação profissional. A subjetividade, para Dubar11. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005., é o que possibilita falarmos de uma negociação identitária para a construção de identidades.

Segundo Paim2424. Paim JS. A reforma sanitária brasileira e a construção do campo da Saúde Coletiva. Salvador: ISC, UFBA; 2014 (Relatório técnico-científico)., as palavras “Saúde Pública” e “Saúde Coletiva” não são inocentes. Há noções vinculadas a ideologias e conceitos articulados a determinadas teorias. Desse modo, é possível identificar proximidades, convergências e diferenças, em vez de proceder a uma leitura ingênua, naturalizada e a-histórica da Saúde Pública. Dessa forma, verifica-se que cada sujeito possui “definição da situação” em que está inserido, incluindo uma maneira de definir a si próprio e de definir os outros, e toma a forma de argumentos que implicam interesses e valores, posições e posicionamentos.

Considerações finais

O uso do referencial adotado permitiu a compreensão de aspectos relacionados à construção/ reconstrução da identidade e da constituição de sujeitos da Saúde Coletiva. Considera-se como limite metodológico dessa investigação o fato de ela ter envolvido apenas estudantes e egressos que compõem/compuseram a representação estudantil dos seus respectivos cursos de origem. Ressaltase que este artigo abordou a identidade do sanitarista no Brasil na perspectiva da “formação” - que se configura como apenas um dos elementos implicados com a construção das identidades sociais e profissionais.

Resultante do avanço e do amadurecimento do campo da Saúde Coletiva no Brasil e de sua vinculação ao projeto da Reforma Sanitária Brasileira, o surgimento dos cursos de graduação tem fomentado um processo de reflexão, que aborda tanto a constituição dos novos atores e perfis profissionais quanto a própria estruturação da Saúde Coletiva, enquanto campo científico de saberes e práticas. Ao evidenciar o caráter crítico e de renovação vivenciado pela Saúde Coletiva nos últimos anos, a constituição de novos sujeitos e perfis profissionais, por meio dos cursos de graduação, tem gerado a confluência entre os movimentos de emprego, mercado de trabalho e prática profissional, apontando assim para a (re)construção de uma identidade específica que não se confunde com a dos demais atores que atuam neste campo.

Cabe destacar que a Saúde Coletiva, por ser dissidente da Saúde Pública convencional, tem a graduação como uma estratégia para superar as identidades tradicionais existentes. Com uma natureza epistemológica diferenciada e uma prática política distinta, poderá dar identidade ao pensar e ao fazer, inspirado em um conjunto de valores, além de ajudar nos contornos de uma identidade profissional com saber específico e autonomia técnica que possa responder às necessidades sociais existentes que demandam esse novo tipo de profissional. Sendo assim, essa nova graduação, mais que produzir efeitos identitários sobre o campo, conduz a uma nova estratégia de profissionalização em saúde.

Espera-se que esses resultados e reflexões possam contribuir para identificação de questões e desafios que precisam ser superados no âmbito da formação em Saúde Coletiva, bem como no debate sobre a constituição deste campo. Alguns aspectos merecem atenção e reflexão sobre suas influências no perfil do egresso e na conformação de sua identidade, tais como a prática docente e o papel do professor na formação de sujeitos, considerando as teorias da ação disponíveis, capazes de recompor as práticas de Saúde Coletiva como uma utopia concreta para além do sanitarismo; os modelos pedagógicos e a direcionalidade curricular dos processos formativos os quais, devido à diversidade apontada, constituem-se em desafios identitários, bem como em que medida os cursos possuem proximidades e afastamentos com a Saúde Coletiva, a Reforma Sanitária Brasileira e o SUS.

Por fim, a direcionalidade dos cursos em seus mais diversos aspectos poderá promover rotulagens em torno da (re)construção identitária desse novo profissional, nas formas de “atributo” e “pertencimento”, sobretudo em relação ao que se entende por “Saúde Pública” e “Saúde Coletiva”, uma vez que os cursos adotam nomenclaturas distintas e as instituições formadoras possuem posições e posicionamentos em torno de sua historicidade.

  • (c)
    Serão considerados cursos similares àqueles que foram criados no contexto do Reuni e possuem nomenclaturas distintas da Saúde Coletiva e que tenham como justificativa a formação de sanitaristas, com perfil adequado ao SUS. Nesse caso, Castellanos et al.1313. Castellanos MEP, Fagundes TLQ, Nunes TCM, Gil CRR, Pinto ICM, Belisário AS, et al. Estudantes de graduação em saúde coletiva: perfil sociodemográfico e motivações. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1657-66. apontam distintas nomenclaturas nessa situação: Bacharelado em Saúde Coletiva (UFAC, UEA, UFBA, UFMT, UNIFESSPA, UPE, UFPE, ASCES, UFPR, Unila, UFRJ, UFRGS); Gestão em Saúde Coletiva (UNB); Gestão em Saúde (UNB, UFCSPA); Gestão em Saúde Ambiental (UFU); Gestão em Sistemas e Serviços de Saúde (UFRN); Gestão em Saúde Coletiva indígena (UFRR); Bacharelado em Saúde Pública (USP); Gestão de Serviços de Saúde (UFMG); Gestão em Saúde Humana e Ambiental (FMABC).

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    Paim JS. A reforma sanitária brasileira e a construção do campo da Saúde Coletiva. Salvador: ISC, UFBA; 2014 (Relatório técnico-científico).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2016
  • Aceito
    11 Maio 2017
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