(Inter)Conectando o mundo acadêmico e o mundo das práticas de saúde: a trajetória de Regina Marsiglia (1943-2017)

(Inter)Connecting the academic world and the world of health practices: a trajectory of Regina Marsiglia (1943-2017)

(Inter)Conectando el mundo académico y el mundo de las prácticas de salud: la trayectoria de Regina Marsiglia (1943-2017)

Cássio Silveira Nivaldo Carneiro Junior Patrícia Martins Montanari Paulo Artur Malvasi Sobre os autores

Regina Maria Giffoni Marsiglia foi e ainda é uma expressão de afeto e reconhecimento de uma trajetória militante, produtora e produto de um grande espaço de relacionamentos denominado Saúde Coletiva. A professora, pesquisadora e articuladora de pessoas e ideias contribuiu com sua sensibilidade pedagógica, ecletismo teórico e incessante curiosidade à formação de um campo de conhecimentos que emergiu por meio de forças políticas cuja expressiva potência aproximou acadêmicos, trabalhadores, gestores, estudantes e coletivos voltados às ações de transformação da realidade sociossanitária brasileira.

Regina Marsiglia graduou-se no ano de 1966 em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). No ano de 1969, concluiu a graduação em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Na escuridão política que assombrava esse período histórico brasileiro, tendo inclusive vivido em seu contexto familiar as consequências das exceções promovidas pelo aparato policial civil-militar em ação na época, escolheu aprofundar criticamente seus conhecimentos sobre as ações dos serviços sociais e o trabalho em saúde e dedicar-se ao processo de formação de um sistema nacional de saúde universal.

Em 1966, assumiu o cargo de docente no Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP), escola médica fundada em 1963, e, com professores como José da Silva Guedes e Augusto Leopoldo Ayrosa Galvão, assumiu as disciplinas de História da Medicina e Ciências Sociais Aplicadas à Medicina, tendo ampliado anos depois a participação dessas disciplinas aos cursos de Enfermagem e de Fonoaudiologia. A partir de 1979, assumiu o cargo de docente responsável pela disciplina de Investigação em Serviço Social, no curso de Serviço Social da PUC-SP. Nessa instituição, aprofundou a utilização e o manejo das metodologias de pesquisa-ação e pesquisa participante com grupos sociais vulneráveis, vislumbrando o diálogo do serviço social com a saúde e o rompimento com o escopo tradicional das práticas do serviço social que ainda compreendiam a saúde pela perspectiva filantrópica11. Mota AE, Bravo MIS, Uchôa R, Nogueira VMR, GOMES L, Teixeira M, et al. Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional. 5a ed. São Paulo: Cortez; 2015.. Ao longo dos anos 1990, organizou e coordenou na mesma instituição o curso de especialização em saúde para assistentes sociais, participou da criação do Núcleo Interdisciplinar de Saúde, constituindo a linha de pesquisa “Serviço Social na Área da Saúde”, dentro da qual orientou mais de trinta trabalhos de pesquisa (dissertações e teses) que percorreram diversos temas emergentes em diálogo nas fronteiras disciplinares: violências, imigração, políticas sociais, trabalho em saúde, envelhecimento, entre outros. Exerceu suas atividades de docência, pesquisa e extensão até seu falecimento no mês de julho do ano de 2017.

Preocupada com o encaminhamento de problemas concretos das coletividades humanas e a eficácia social da atuação nessas realidades, construiu caminhos para a integração docente-assistencial ou integração ensino-serviço, fato que tomou boa parte de suas reflexões, iniciativas e participações ativas nos diversos espaços públicos dos serviços sociais e de saúde, assim como nos acadêmicos, provocando debates e questionamentos para articulações efetivas desses setores. Em 1968, esteve presente na fundação do Centro de Saúde Escola Barra Funda, unidade vinculada ao Departamento de Medicina Social da FCMSCSP, mantendo-se sempre atenta às questões emergentes e atualizadas da assistência, do ensino e das pesquisas nesse serviço.

No ano de 1981, concluiu seu mestrado em Ciência Política na Universidade de São Paulo com a dissertação intitulada “Assistência médica e relações de trabalho na empresa: o modelo de convênios com a Previdência Social”, ocupando-se em conhecer a complexidade histórica e organizacional do sistema de proteção social no país. Anos depois, em 1993, concluiu seu doutorado na mesma instituição, aprofundando-se no tema com a tese intitulada “Servidor, funcionário, trabalhador: interesses e culturas organizacionais no setor público da saúde”, em que manteve o foco nas análises sobre o trabalho, evidenciando uma visão de história abrangente e crítica no tocante ao desenvolvimento social, econômico e político do país. Foi precursora de uma abordagem interdisciplinar da saúde, educação e trabalho, dedicada à educação interprofissional (EIP) já nos anos 1980, em sua participação na Residência Multiprofissional em Saúde Pública, parceria da FCMSCSP com o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS).

Suas atividades acadêmicas jamais se distanciaram das vinculações com a realidade dos serviços sociais e de saúde. Incisivamente, apontou para a necessidade das articulações entre serviços de saúde e assistência social por meio de ações educacionais que disseminassem os conhecimentos para além das fronteiras acadêmicas. Promoveu e estimulou eventos, na intenção de provocar tensões e transformações nos serviços e na academia.

Na década de 1980 integrou-se às experiências nacionais dos projetos de Integração Docente-Assistencial (IDA). Sua participação foi fundamental na implantação do Projeto de Integração Docente-Assistencial da Santa Casa de São Paulo (Pida), nas regiões norte e centro da cidade de São Paulo. O Pida viabilizou uma importante articulação local, estabelecendo mecanismos de referência/contrarreferência, educação continuada para os profissionais da rede pública de saúde, inserção de alunos na atenção básica e apoio às pesquisas orientadas para as sistematizações da assistência. Além disso, provocou uma capilaridade da relação ensino-serviço, consolidando a referência da Santa Casa nessas regiões da cidade22. Marsiglia RG. Relação ensino/serviços: dez anos de integração docente assistencial (IDA) no Brasil. São Paulo: Hucitec; 1995..

A implantação do Sistema Único de Saúde (SUS); suas novas atribuições e formatos na organização dos serviços de saúde; e mudanças dos perfis e de interesses dos gestores públicos inviabilizaram a permanência do Pida. Nessa inflexão, o olhar para a região central da cidade foi sendo transformado por novas demandas para os setores sociais. Em 1996, contribuiu, junto com equipe do Centro de Saúde Escola Barra Funda, com a formulação do Projeto Área Central, com questões para a assistência, ensino e pesquisa qualitativamente diferentes do Pida, configurando, por exemplo, a equidade no acesso aos serviços e políticas públicas específicas para grupos populacionais em situação de vulnerabilidade social33. Silveira C, Carneiro Junior N, Marsiglia RMG. Projeto inclusão social urbana: nós do centro. Metolodologia de pesquisa e de ação para inclusão social de grupos em situação de vulnerabilidade no centro da cidade de São Paulo. São Paulo: Fundação Arnaldo Vieira de Carvalho; 2009..

Nos anos 2000, teve intensa participação na implementação do Programa Nacional de Reorientação da Formação em Saúde (Pró-Saúde) e do Programa de Educação para o Trabalho (Pet-Saúde), ampliando a participação de alunos de graduação de Medicina, Fonoaudiologia e Enfermagem da FCMSCSP nos serviços de atenção primária na área central da cidade de São Paulo. A reorientação da formação profissional por meio do ensino de uma abordagem integral sobre o processo saúde-doença-cuidado com ênfase na atenção básica propiciou transformações nos processos de geração de conhecimentos, ensino e aprendizagens múltiplas na prestação de serviços à população44. Batista NA, Batista SH. Docência em saúde: temas e experiências. São Paulo: Senac; 2004.

5. Ministério da Saúde (BR). Ministério da Educação. Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde – Pró-Saúde: objetivos, implementação e desenvolvimento potencial. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. 86 p. (Série C: Projetos, Programas e Relatórios).
-66. Marsiglia RMG. Ensino de graduação em saúde: ingresso e inserção profissional. FCMSCSP (1963-2013). São Paulo: CDG Casa de Soluções e Editora; 2013..

Seu compromisso com o SUS ficou evidenciado por seu envolvimento com o ensino no âmbito da Estratégia Saúde da Família. Os conceitos de família, território, condições de vida, saúde, epidemiologia, entre outros, ganharam força nas atividades de ensino no contexto dos serviços de saúde. O estímulo à criatividade, com ênfase em metodologias ativas de ensino, promoveu projetos de intervenção orientados para a promoção de saúde. Sua atuação gerou contribuições aos serviços, exemplificadas pelas propostas de treinamento de trabalhadores da saúde, elaboração de materiais de educação e comunicação em saúde (produção de cartilhas trilíngues para imigrantes) e novas estratégias para o atendimento domiciliar, como o tratamento para pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica.

A produção intelectual de Regina Marsiglia é exemplar da sua trajetória. Ao analisarmos os títulos, palavras-chave e coautores de seus escritos (artigos em revistas científicas, livros e capítulos), observamos a recorrência dos temas “processo ensino-aprendizagem”, “atenção primária em saúde” e “trabalho profissional”. Esses temas foram abordados de diversas maneiras (na metodologia, na discussão teórica e no escopo de pesquisa), tendo como fio condutor o comprometimento com a interdisciplinaridade: do serviço social (sua primeira formação) à política e gestão em saúde; das Ciências Sociais à história da Medicina.

Do livro fundamental para a discussão sobre formação e trabalho profissional “Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional”11. Mota AE, Bravo MIS, Uchôa R, Nogueira VMR, GOMES L, Teixeira M, et al. Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional. 5a ed. São Paulo: Cortez; 2015. aos últimos artigos publicados em revistas científicas (sobre atenção primária, processo ensino-aprendizagem na educação médica, temas emergentes das Ciências Sociais em saúde, promoção e prevenção de acidentes, entre outros)66. Marsiglia RMG. Ensino de graduação em saúde: ingresso e inserção profissional. FCMSCSP (1963-2013). São Paulo: CDG Casa de Soluções e Editora; 2013.

7. Chiarella T, Bivanco-Lima D, Moura JC, Marques MCC, Marsiglia RMG. A pedagogia de Paulo Freire e o processo ensino-aprendizagem na Educação Médica. Rev Bras Educ Med [Internet]. 2015 [citado 6 Out 2017]; 39(3):418-25. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-55022015000300418&lng=en&nrm=iso
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...

8. Gomes ABAGR, Carvalho ACM, Andrade CP, Penido FSO, Couto IC, Hashimoto MK, et al. Perfil, estresse e necessidades de cuidadores familiares e profissionais de idosos/acamados na atenção primária em saúde da cidade de São Paulo. Geriatr Gerontol Aging. 2013; 7(1):34-8.
-99. Lima DB, Moura J C, Tirico SHN, Mazzeo MR, Cunha MT, Sperandio RA, et al. Promoção à saúde e prevenção de acidentes na infância: uma ação de estudantes de medicina. Rev Med (São Paulo). 2013; 92(2):119-27., sua produção científica integra diferentes áreas do conhecimento, em um diálogo sobre as diferentes competências disciplinares e os múltiplos sentidos da compreensão dos fenômenos. Os que conviveram com Regina Marsiglia sabem que, antes da defesa de uma área específica do conhecimento, estava o interesse em compreender os fenômenos e colocar o conhecimento em ação para transformar a realidade social.

Em uma produção intelectual com essas características, a questão ética do engajamento se impõe e este é central para uma boa leitura da contribuição de Regina Marsiglia para a área da saúde coletiva. Ela problematizou o papel do pesquisador no campo dos serviços e práticas profissionais em saúde. Sua produção nos revela a experiência humana envolvida na participação, como profissional, professora e pesquisadora no dia a dia dos serviços de saúde e das instituições responsáveis pela formação graduada e pós-graduada dos profissionais de saúde e serviço social. Nesse sentido, a produção intelectual da autora nos ajuda a superar a dicotomia entre pesquisa objetivamente construída e posicionamento político frente a questões que absorvem os pesquisadores como cidadãos. Por isso, ela gostava de dizer que, para além das mudanças de gestão governamental, o seu partido era o “Partido Sanitarista”.

A aliança que Regina Marsiglia estabeleceu em seus projetos de pesquisa com docentes, pesquisadores, estudantes e profissionais dos serviços significou a adoção de uma perspectiva política de interlocução e de construção do conhecimento. Desse modo, sua trajetória intelectual é uma inspiração para um modo de fazer pesquisa que supere a ideia de que os trabalhadores dos serviços sejam meros informantes para um modo de fazer pesquisa em que esses sujeitos sejam vistos, antes, como produtores de conhecimento. Enfim, sua militância como autora permite refletir sobre o estatuto dos saberes elaborados coletivamente e prospectar os nexos que articulam militância, pesquisa e política na área da Saúde Coletiva.

Referências

  • 1
    Mota AE, Bravo MIS, Uchôa R, Nogueira VMR, GOMES L, Teixeira M, et al. Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional. 5a ed. São Paulo: Cortez; 2015.
  • 2
    Marsiglia RG. Relação ensino/serviços: dez anos de integração docente assistencial (IDA) no Brasil. São Paulo: Hucitec; 1995.
  • 3
    Silveira C, Carneiro Junior N, Marsiglia RMG. Projeto inclusão social urbana: nós do centro. Metolodologia de pesquisa e de ação para inclusão social de grupos em situação de vulnerabilidade no centro da cidade de São Paulo. São Paulo: Fundação Arnaldo Vieira de Carvalho; 2009.
  • 4
    Batista NA, Batista SH. Docência em saúde: temas e experiências. São Paulo: Senac; 2004.
  • 5
    Ministério da Saúde (BR). Ministério da Educação. Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde – Pró-Saúde: objetivos, implementação e desenvolvimento potencial. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. 86 p. (Série C: Projetos, Programas e Relatórios).
  • 6
    Marsiglia RMG. Ensino de graduação em saúde: ingresso e inserção profissional. FCMSCSP (1963-2013). São Paulo: CDG Casa de Soluções e Editora; 2013.
  • 7
    Chiarella T, Bivanco-Lima D, Moura JC, Marques MCC, Marsiglia RMG. A pedagogia de Paulo Freire e o processo ensino-aprendizagem na Educação Médica. Rev Bras Educ Med [Internet]. 2015 [citado 6 Out 2017]; 39(3):418-25. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-55022015000300418&lng=en&nrm=iso
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-55022015000300418&lng=en&nrm=iso
  • 8
    Gomes ABAGR, Carvalho ACM, Andrade CP, Penido FSO, Couto IC, Hashimoto MK, et al. Perfil, estresse e necessidades de cuidadores familiares e profissionais de idosos/acamados na atenção primária em saúde da cidade de São Paulo. Geriatr Gerontol Aging. 2013; 7(1):34-8.
  • 9
    Lima DB, Moura J C, Tirico SHN, Mazzeo MR, Cunha MT, Sperandio RA, et al. Promoção à saúde e prevenção de acidentes na infância: uma ação de estudantes de medicina. Rev Med (São Paulo). 2013; 92(2):119-27.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2018
  • Aceito
    09 Mar 2018
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