Oogun Àṣẹ ** do iorubá, remédios de Axé: estratégias de cuidado com a saúde no Candomblé em Nova Iorque (EUA)

Oogun Àṣẹ: estrategias de cuidado de la salud en la Santería en Nueva York (EEUU) (resumen: p. 14)

Marcelo Máximo Niel Pedro Paulo Gomes Pereira Sobre os autores

Resumos

Este artigo apresenta resultados de uma etnografia realizada entre 2013 e 2017, por meio de observação participante, entrevistas e acompanhamento da vida cotidiana de mães de santo que buscam reinventar o Candomblé em Nova Iorque (EUA). O artigo acompanha três mães de santo, em suas buscas por traduzirem a religião para esse novo contexto, descrevendo como se dá o encontro com os adeptos e clientes em busca de cuidados com a saúde e bem-viver, por meio do uso das plantas e rezas empregadas nos rituais e nas cerimônias religiosas.

Candomblé; Mãe de santo; Religião; Cuidado com a saúde


Este artículo presenta resultados de una etnografía realizada entre 2013 y 2017, por medio de observación participante, entrevistas y acompañamiento de la vida cotidiana de madrinas que buscan reinventar la Santería en Nueva York (EE.UU.). El artículo acompaña a tres madrinas en sus búsquedas por traducir la religión para ese nuevo contexto, describiendo cómo se realiza el encuentro con los adeptos y clientes que buscan cuidados con la salud y el bien vivir por medio del uso de plantas y rezos utilizados en los rituales y ceremonias religiosas.

Santería; Madrina; Religión; Cuidado de la salud


Introdução

O Candomblé é uma religião brasileira de matriz africana, formada a partir da fusão de elementos religiosos de vários povos escravizados, que também incorporou influências da cultura indígena, do catolicismo popular e do espiritismo de origem europeia 11. Goldman M. Histórias, devires e fetiches das religiões afro-brasileiras: ensaio de simetrização antropológica. Anal Soc. 2009; 44(190):105-37. . Seu funcionamento é complexo, dispondo de várias práticas mágicas que envolvem o uso de plantas, pós, rituais de sacrifício e elaborados alimentos e bebidas, que visam à manutenção da força vital, que é denominada de Axé 22. Prandi R. Segredos guardados: Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia das Letras; 2005. , um processo dinâmico de movimentação de energia, que aumenta conforme ritos e atitudes ofertados aos orixás.

Essas práticas rituais visam: realização terrena de bem-estar e bem-viver, qualidade de vida, saúde física e mental e prosperidade material. Nesse aspecto, o sacerdote, chamado de pai ou mãe de santo, ocupa um papel central porque, além dos adeptos, deverá atender à clientela que recorre aos seus serviços mágicos, o que coloca o Candomblé como uma forma de cuidado com a saúde e busca por bem-estar 33. Ziegler J. Os vivos e a morte. Rio de Janeiro: Zahar; 1977.

4. Gomberg E. Hospital de orixás: encontros terapêuticos em um terreiro de candomblé. Salvador: EdUFBa; 2001.

5. Santos EF. O poder dos candomblés: perseguição e resistência no recôncavo da Bahia. Salvador: EdUFBa; 2009.

6. Lima F. As quartas-feiras de xangô: ritual e cotidiano. João Pessoa: Grafset; 2010.
-77. Prandi R. As religiões negras no Brasil: para uma sociologia dos cultos afro-brasileiros. Rev USP. 1996; (28):64-83. . O cuidado com a saúde pode ser compreendido como uma relação intersubjetiva, que se desenvolve em um tempo contínuo e que deve incluir os desejos e as necessidades da pessoa que é tratada, além da preocupação com o seu bem-estar 88. Pinheiro R, Mattos RA. Cuidado: as fronteiras da integralidade. 3a ed. Rio de Janeiro: Hucitec; 2005. . Arouca 99. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo: Unesp; 2003. descreveu o trabalho em saúde como um “trabalho afetivo” que requer contato humano, onde a cooperação é imanente e que, de acordo com Onocko Campos 1010. Onocko Campos RT. O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde: uma contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde coletiva. Cienc Saude Colet. 2005; 10(3):573-83. , nesse encontro entre agentes da oferta de cuidados e os agentes que demandam cuidados, os corpos e as afetividades se encontram e são ambos afetados. Já o bem-estar, ou bem-viver, pode ser definido, segundo Miranda Sá Jr. 1111. Miranda Sá LS Jr. Desconstruindo a definição de saúde. Jornal do Conselho Federal de Medicina (CFM) [Internet]. 2004 [citado 31 Jul 2017]. Disponível em: http://www. unifesp.br/dis/pg/Def-Saude.pdf .
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, como a noção subjetiva de sentir-se bem, sem apresentar sofrimento somático ou psíquico, nem prejuízo no desempenho pessoal ou social. Também pode ser definido pela sensação de superação das dificuldades da vida.

Nos últimos anos, diversos autores têm se dedicado a descrever a incessante viagem do Candomblé e de seus elementos religiosos para outros lugares do mundo e têm apontado, de modo geral, a constante tradução de suas práticas em cada novo destino 11. Goldman M. Histórias, devires e fetiches das religiões afro-brasileiras: ensaio de simetrização antropológica. Anal Soc. 2009; 44(190):105-37.,22. Prandi R. Segredos guardados: Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia das Letras; 2005.,1212. Bahia J. O Candomblé em terras alemãs. Londrina. 2016; 10(18):86-104. doi: 10.5433/2237-9126.2016v12n18p86.
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13. Capone S. Searching for Africa in Brazil: power and tradition in Candomblé. Durham: Duke University Press; 2010.

14. Silva VG. Orixás na metrópole. Petrópolis: Vozes; 1995.
-1515. Pordeus I Jr. Uma casa luso afro-portuguesa com certeza: emigrações e metamorfoses da umbanda em Portugal. São Paulo: Terceira Margem; 2000. . Essa tradução vai se operando e o Candomblé vai se reinventando, à medida que viaja, inclusive em seus rituais de cura. Foi observando essas viagens, que se decidiu por iniciar a pesquisa, realizada entre 2013 e 2017 na cidade de Nova Iorque, descrevendo: a presença das práticas do Candomblé na cidade, sua relação com aquele espaço urbano e suas reinvenções, evidenciadas por meio do encontro com três mães de santo brasileiras do Candomblé de Nação Ketu, cujas tradições provêm, em maior parte, do povo iorubá.

Neste artigo, discute-se esse conjunto de estratégias de cuidados que é utilizado por essas mães de santo, que chamou-se de Oogun Àṣẹ , ou remédios do Axé na língua iorubá, o uso de rituais como forma de reestabelecer a saúde física e mental e ofertar alívio para mal-estares e dificuldades da vida prática de seus adeptos e clientes, demonstrando a peculiaridade de tais práticas, quando realizadas nesse contexto específico da cidade de Nova Iorque, que não ocorre da mesma forma quando deslocado de seu contexto habitual no Brasil e, particularmente, apresenta diferenças resultantes das interações das três mães de santo com seus backgrounds singulares nesse novo ambiente.

Método

O artigo se baseia nos achados de uma pesquisa realizada sobre as práticas de Candomblé na cidade de Nova Iorque, por meio de uma observação participante, entrevistas e acompanhamento da vida cotidiana de três mães de santo do Candomblé Ketu, originário da cultura iorubá. A observação participante é amplamente empregada nas pesquisas envolvendo o Candomblé, por se tratar de uma religião iniciática, na qual grande parte dos elementos relativos ao seu funcionamento é secreta. Portanto, uma pessoa “de fora” dificilmente terá acesso a esses elementos sem que ela se torne adepta. Essa entrada para o Candomblé cria um problema metodológico para o pesquisador, porque, uma vez que está dentro, a princípio, pelo seu interesse científico, acaba sendo “enfeitiçado” pela religião, como cita a antropóloga Stefania Capone 1313. Capone S. Searching for Africa in Brazil: power and tradition in Candomblé. Durham: Duke University Press; 2010. , como uma consequência óbvia do método de observação participante. O que ocorre, na verdade, é um misto entre “ser enfeitiçado” e “deixar-se enfeitiçar”, constituindo, conforme explicitou Favret-Saada 1616. Favret-Saada J. Inquiétante étrangeté. SociologieS. 1990; 8:3-9. , a experiência de “ser afetado” como uma forma de experimentar por conta própria os efeitos de uma rede particular de comunicação.

Neste caso particular, o acesso cada vez mais frequente às leituras antropológicas sobre o Candomblé, promoveu a aproximação com a religião. Esse interesse em pesquisar o Candomblé influenciou sobremaneira a entrada na religião e culminou com a minha iniciação durante a realização da pesquisa. A iniciação no Candomblé é o processo pelo qual a pessoa permanece reclusa por um período de vinte a trinta dias, submetida a diversos rituais secretos, e se caracteriza por uma forma de renascimento para a vida religiosa dedicada ao Orixá 22. Prandi R. Segredos guardados: Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia das Letras; 2005. . Fazer parte parecia, num primeiro momento, facilitar a entrada do pesquisador no campo, uma vez que possuía algum domínio sobre a sua “linguagem”. Entretanto, à medida que imergia no campo, percebia que a linguagem constituiu apenas uma pequena parte facilitadora, mas não a totalidade, uma vez que cada sacerdotisa possui seus próprios segredos, tanto no aspecto religioso, como nos aspectos concernentes às práticas religiosas numa terra estrangeira.

O trabalho de campo realizou-se entre janeiro de 2013 e fevereiro de 2017, caracterizado por diversos encontros com três importantes mães de santo brasileiras, que praticavam/praticaram rituais de Candomblé na cidade de Nova Iorque. Nesses quatro anos de pesquisa, foram realizadas diversas viagens a Nova Iorque e Salvador, estabelecendo encontros e conversas com essas mães de santo e com outros interlocutores. Embora não tenha havido a possibilidade de permanecer longos períodos em Nova Iorque, em função das atividades como médico psiquiatra, os encontros com as mães de santo estudadas foram frequentes e intensos. Em cada novo encontro, que geralmente durava algumas horas, surgia uma nova informação, um novo conhecimento.

Resultados

O intuito desse artigo foi o de percorrer os caminhos de cuidado das mães de santo em Nova Iorque, apontando convergências e divergências entre suas práticas em relação às práticas realizadas nos Candomblés no Brasil. Embora tenha recebido informações sobre a existência de outros sacerdotes em Nova Iorque, não se obteve sucesso em encontrá-los durante a realização da pesquisa. Desse modo, grande parte dos conhecimentos evidenciados nesse artigo são provenientes dos intensos encontros com essas três mães de santo, as quais são apresentadas a seguir.

Regina, Pimpa e Bárbara, Àwọn Ìyá Àṣẹ, ou as Senhoras do Axé na Big Apple

As três mães de santo chegaram à cidade de Nova Iorque em meados dos anos 1980, levando consigo seus conhecimentos, seus búzios, seus apetrechos mágicos e seu Axé. Assim, quando essas mulheres aportaram em Nova Iorque, elas também carregaram o seu Axé e seguiram praticando a religião na cidade, reinventando suas práticas de acordo com suas necessidades e possibilidades.

Regina foi a primeira Mãe de Santo a praticar Candomblé em Nova Iorque da qual se teve conhecimento, antes mesmo de iniciar a pesquisa. Essa informação “curiosa” causou um impacto tão grande que despertou o interesse em estudar essa realidade mais a fundo. Nas constantes viagens a Salvador, uma amiga informou que Regina viajava todo ano para Nova Iorque e permanecia lá cerca de seis meses, durante as estações quentes, e o resto do ano ficava em Salvador, ocasiões em que foram realizados diversos encontros com o pesquisador. Com 79 anos de idade e cinquenta de iniciação, ela segue transportando Axé, realizando consultas e prescrevendo tratamentos espirituais até hoje.

Bárbara, com 56 anos, mora em Nova Iorque há mais de trinta anos. Um amigo brasileiro, que viveu alguns anos em Nova Iorque como imigrante ilegal, foi a ponte para Bárbara. Bárbara começou sua vida espiritual frequentando terreiros de Umbanda, uma religião de matriz africana, caracterizada pelo culto aos Orixás, associado à presença de guias espirituais, como Pretos Velhos, Caboclos, Erês, Pombagiras e Exus, que dão consultas aos fiéis. Apesar do seu primeiro contato com a Umbanda ter se dado em Niterói, sua cidade natal, ela somente desenvolveu sua mediunidade na Umbanda quando já morava em Nova Iorque. Foi iniciada no Candomblé no Rio de Janeiro alguns anos depois. Bárbara realiza consultas de búzios e as prescrições dadas pelo jogo. Embora com menor frequência, realiza algumas cerimônias de Candomblé, e manteve suas práticas de Umbanda, realizando festas para Pretos Velhos, Caboclos, Erês, Pombagiras e Exus.

Pimpa foi oficialmente a primeira mãe de santo a chegar em Nova Iorque. O acesso a Pimpa foi obtido por meio da pesquisadora Stefania Capone, no primeiro encontro mantido com ela no Rio de Janeiro, em 2015, quando decidiu procurá-la durante sua permanência no Brasil, por se tratar de umas das maiores pesquisadoras sobre religiões de matriz africana no mundo. O breve e profundo encontro ocorreu em 2015, em sua casa, em São Paulo. Ela estava com setenta anos, e padecia de um câncer terminal. Conforme ela mesma havia dito nesse dia, seu estado era grave. Faleceu três meses após o encontro. Pimpa ensinou a cubanos e afro-americanos diversos rituais do Candomblé que não eram realizados ou eram desconhecidos na Santería – religião de matriz africana originada na América Central –, e ficou bastante próxima dos santeros, como são chamados os sacerdotes dessa religião. Com eles deu continuidade às suas práticas como mãe de santo.

Regina, Bárbara e Pimpa, apesar de suas diferentes origens geográficas e socioculturais, possuíam conhecimentos convergentes no que se refere ao Candomblé, mesmo tendo sido iniciadas por diferentes pais de santo, cada uma em sua terra natal. Foi possível perceber que, embora muitas de suas práticas se diferenciassem, alguns elementos, que serão apresentados a seguir, são constantes e fundamentais em todas elas.

A consulta ao jogo de búzios

O jogo de búzios é o sistema oracular que somente pode ser realizado pelo pai ou mãe de santo no Candomblé, e é a partir do que o jogo diz que se determinam: a situação na qual a pessoa se encontra, seus caminhos, seus problemas espirituais, energéticos, de saúde, financeiros e amorosos, e quem é o Orixá que rege a cabeça da pessoa, chamado de “santo de cabeça”, que rege aspectos da personalidade, caminhos, destinos e até traços físicos 1717. Beniste J. Jogo de búzios: um encontro com o desconhecido. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1999. .

A própria consulta aos búzios já possui efeitos terapêuticos. É um momento de decifrar as dificuldades, realizando uma interpretação sob a ótica da religião e oferecer palavras de conforto e aconselhamentos. Doenças, perturbações no sono, alergias, desentendimentos, são, muitas vezes, vistos como oriundos de desequilíbrios que devem ser sanados com oferendas aos Orixás, banhos, limpezas, ou podem até representar sinais de que o orixá está “pedindo a cabeça”, ou seja, exigindo a iniciação daquela pessoa.

As mães de santo possuem uma grande bagagem de conhecimento sobre banhos, ervas, limpezas e defumações e, não raras vezes, orientam seus seguidores sobre tais práticas, conforme o tipo de dificuldade pela qual estão passando. Entretanto, mesmo que haja um conhecimento acumulado decorrente de experiências anteriores, os búzios devem ser sempre consultados, sobretudo, para os rituais do Candomblé, porque os ritos e as necessidades de cada Orixá para cada adepto ou cliente são únicos. E é através dos búzios que cada Orixá diz o que deseja, quais ervas ou qual outro produto será utilizado para aquela pessoa.

As prescrições mágicas

Da consulta ao jogo de búzios emergem as prescrições para os rituais que devem ser realizados, ou seja, o momento do tratamento propriamente dito. É bastante frequente que pais e mães de santo tenham, ao lado do jogo de búzios, um caderninho no qual anotam as prescrições para seus clientes. Ervas, grãos, pós, banhos, defumações, patuás, fios de contas, panos, animais, bebidas e uma infinidade de outros produtos que poderão ser utilizados.

Bahia 1212. Bahia J. O Candomblé em terras alemãs. Londrina. 2016; 10(18):86-104. doi: 10.5433/2237-9126.2016v12n18p86.
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ressalta, na literatura sobre a expansão do candomblé, a capacidade plástica e altamente flexível da religião em se adaptar a diferentes contextos e sociedades, seja na América Latina 1818. Oro A. As religiões afro-brasileiras: religiões de exportação. In: Anais do Afro- American Religions in Transition. International Conference of The Americanists; Uppsala, Suécia; 1998.,1919. Segato RL. Uma vocação de minoria: a expansão dos cultos afro-brasileiros na Argentina como processo de reetnização. Dados Rev Cienc Soc. 1991; 34(2):249-78. , em Portugal 1515. Pordeus I Jr. Uma casa luso afro-portuguesa com certeza: emigrações e metamorfoses da umbanda em Portugal. São Paulo: Terceira Margem; 2000. , ou na França e Alemanha 1212. Bahia J. O Candomblé em terras alemãs. Londrina. 2016; 10(18):86-104. doi: 10.5433/2237-9126.2016v12n18p86.
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, como em outros lugares do globo. Durante a pesquisa bibliográfica, foi possível perceber que, embora houvesse relatos das práticas de Candomblé nos Estados Unidos 1313. Capone S. Searching for Africa in Brazil: power and tradition in Candomblé. Durham: Duke University Press; 2010. , não foram encontrados estudos que descrevessem mais especificamente como que se davam tais práticas. Já no caso do vodu, McCarthy Brown 2020. McCarthy Brown K. Mama Lola: a vodou priestess in Brooklyn. Berkeley: University of California Press; 2001. ressalta a figura de Mama Lola, uma sacerdotisa do Vodu, uma outra religião de matriz Africana, como uma importante via de manutenção da religiosidade dos imigrantes haitianos em Nova Iorque.

Essa plasticidade e flexibilidade não querem dizer, ressalta Bahia 1212. Bahia J. O Candomblé em terras alemãs. Londrina. 2016; 10(18):86-104. doi: 10.5433/2237-9126.2016v12n18p86.
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, que tais processos de hibridismo e transnacionalização da religião não tenham problemas e impasses em seus novos contextos nacionais. As constantes reinvenções que as mães de santo vão implementando garantem a permanência da religião e de suas práticas nessa nova paisagem nacional, que constitui um processo de elaboração dentro da configuração da diversidade própria do lugar, tanto política quanto simbólica 1919. Segato RL. Uma vocação de minoria: a expansão dos cultos afro-brasileiros na Argentina como processo de reetnização. Dados Rev Cienc Soc. 1991; 34(2):249-78. . No caso deste artigo, as três sacerdotisas explicitaram que, logo de início, havia grande dificuldade em encontrar produtos, como folhas, sementes e pós utilizados em seus rituais, e que, muitas vezes, tinham dee lançar mão de novas estratégias, como, por exemplo: utilizar folhas secas ao invés de frescas, ou até mesmo congelar algumas plantas que não seriam facilmente encontradas, por não serem nativas ou por não estarem disponíveis no inverno.

Bárbara explicitou esse processo constante de substituições de produtos, baseado em suas consultas à literatura disponível sobre Candomblé, aliadas a seus anos de experiência como mãe de santo e seus bons resultados obtidos. Diferentemente de Pimpa e Regina, Bárbara denotou uma preocupação maior, não apenas com os resultados positivos, mas, com o cuidado de não causar danos ou efeitos colaterais indesejáveis, além de manter uma relação de confiança com seus adeptos e clientes:

“Existe a substituição, é uma religião com alto poder de adaptação, e você vai criando estratégias. Você usa uma adaptação e dá certo, mas você não pode falar pra pessoa que essa erva não existe aqui e você vai usar outra, porque isso não passa confiança, mas você vê o efeito desejado acontecer.” (Bárbara)

Desse modo, é possível apreender que, tanto nesse contexto específico das mães de santo em Nova Iorque como em outros lugares para onde o Candomblé viaja e se instala, que as prescrições mágicas vão sendo recriadas, de acordo com a disponibilidade dos materiais necessários, engendrando um processo que envolve criatividade e conhecimento, além de uma constante negociação com o próprio Orixá, que dará a chancela, a autorização para essas novas receitas mágicas.

Há dois tipos de prescrição bastante específicos nos rituais de Candomblé, que são amplamente utilizados pelos sacerdotes brasileiros, e também são utilizados pelas três mães de santo em Nova Iorque: o ebó e o bori . O ebó é um ritual que serve para limpeza da pessoa ou como uma forma de aportar energias positivas. Conforme o tipo de ebó indicado, comidas e bebidas, objetos e animais são passados no corpo da pessoa e despachados, ou seja, depositados em ambientes externos ao local no qual ele foi realizado.

O bori , que, em iorubá, quer dizer “dar de comer à cabeça”, compreende oferecer alguns alimentos, geralmente brancos e sem tempero, como: arroz, canjica, pão, peixe e manjar, oferecidos aos Orixás Iemanjá e Oxalá, por serem considerados os principais responsáveis pela cabeça e pela sanidade mental.

Esse ritual se destina, em primeira instância, a preparar a cabeça para receber o Orixá no momento da iniciação, mas, muitas vezes, também é realizado como uma forma de trazer calma e serenidade à pessoa submetida. Pimpa foi a primeira mãe de santo a realizar um bori em Nova Iorque, inclusive, em alguns sacerdotes da Santeria, porque, segundo ela, ou eles não conheciam o ritual, ou não o faziam de modo adequado.

Quem procura o Candomblé em Nova Iorque?

As três mães de santo relataram que a clientela é composta, em sua maioria, por brasileiros, mas, também, por americanos, hispânicos e afro-americanos, de vários níveis sociais, muitos deles, inclusive, possuidores de seguro-saúde. Ou seja, a busca pelos serviços oferecidos é uma escolha, uma estratégia de cuidado com a saúde e busca de bem-estar físico, espiritual e material.

Elas descreveram motivações bastante convergentes para a busca dos seus serviços religiosos: resolução de problemas de saúde, financeiros e amorosos; alívio para conflitos emocionais ou psicológicos; reestabelecimento de equilíbrio energético ou espiritual. Há, também, uma grande quantidade de pessoas que teve contato anterior com o Candomblé, ou com outras religiões de matriz africana, como a Umbanda, a Santería e o Culto de Ifá (culto aos Orixás levado pelos nigerianos, mais recentemente), como forma de confirmar ou corrigir feitos anteriores, “incorretos” ou “incompletos”. Elas compartilham a noção de que há uma necessidade, por parte das pessoas que vivem em Nova Iorque, de um contato com a espiritualidade, e o Candomblé é tido, por hispânicos e afro-americanos, como a fonte mais fiel das tradições oriundas da África, as quais foram perdidas por eles no processo de escravidão e colonização.

Pimpa, Regina e Bárbara compartilharam a noção de que a busca pelo Candomblé por seus clientes é, muitas vezes, motivada pela presença de sinais de adoecimento mental. A cabeça, ou ori , é tida como a sede da nossa consciência e, por esse mesmo motivo, o principal local de estabelecimento de ligação com o Orixá. A cabeça deve ser sempre cuidada para que a pessoa tenha uma vida plena. Bárbara ressaltou, também, que muitas dessas perturbações mentais podem advir de obsessões, ou seja, são ocasionadas pela presença de espíritos obsessores, cuja influência é eliminada com a realização de ebós ou outras formas de limpeza:

“Eu percebo que há também uma conexão da religião com a saúde mental. Quando eu era mais jovem costumava ler sobre Kardec e as obsessões, mas foi quando frequentei a Umbanda que encontrava pessoas extremamente perturbadas que depois de tratadas saíam boas.” (Bárbara)

Bárbara, diferentemente das outras duas, além da consulta ao jogo de búzios, também preserva a sua reverência aos “guias” de Umbanda, que dão suas consultas por meio da incorporação. Ela dá um destaque especial para as consultas dos pretos velhos, que são conhecidos nas práticas de Umbanda por serem dotados de sabedoria e paciência, além do vasto conhecimento de rezas, benzeduras e uso das ervas, para retirar as doenças e perturbações, trazendo a cura para os males. Mas, também atende os fiéis com outros guias, como caboclos, erês, exus e pombagiras 2121. Prandi JR. Os candomblés de São Paulo: a velha magia na metrópole nova. São Paulo: Edusp; 1991. .

A partir da primeira consulta e após a realização dos tratamentos prescritos, se a pessoa obteve êxito em sua busca, acaba se fidelizando à mãe de santo. As três sacerdotisas relataram que, muitas vezes, acabam se tornando amigas dessas pessoas que as procuram e que várias delas permanecem como clientes, ao longo de muitos anos. Foi possível conversar com algumas dessas pessoas que recorreram aos serviços e tratamentos dessas sacerdotisas e, em geral, elas exaltam: a disponibilidade delas em ajudar na resolução dos problemas pelos quais passavam, a boa vontade, a capacidade de escutar e a grande fé que elas possuem.

A necessidade de iniciação

Pimpa, Regina e Bárbara adotaram estratégias diferentes quando a pessoa que está se consultando deve ser iniciada no Candomblé. Costuma-se dizer que o Orixá está “querendo a cabeça” e esse pedido se manifesta, não raras vezes, por meio do adoecimento e de infortúnios que acabaram por conduzir a pessoa a uma peregrinação por médicos e serviços de saúde, sem sucesso, culminando com o encontro com a sacerdotisa que revelará o desejo do Orixá.

Pimpa relatou que chegou a conduzir alguns clientes para serem iniciados no Brasil porque, segundo ela, não havia condições de realizar uma iniciação, do modo certo, em Nova Iorque, como se faz no Brasil, pela ausência de um espaço consagrado–, o terreiro, e por todos os outros impedimentos, como realizar os rituais em ambientes públicos e despachar materiais utilizados, além da escassez de materiais:

“Fazia, ebó, jogava. Fiz 3 iaôs (iniciados), mas eu trazia para o Brasil para fazer. Eu acho, pessoalmente, impossível ter uma casa lá (em Nova Iorque). Uma casa como se deve ter é muito difícil. Eu quis trazê-los para minha casa, para fazer santo, eu trouxe uma menina para a casa do Zé Flávio e fui mãe pequena dela. Os outros eu fiz porque insistiram. “Eu quero você”. Então vamos para o Brasil. Porque lá você não tem a planta certa, falta um monte de coisa.” (Pimpa)

Bárbara também considerou impossível a realização de rituais de feitura na cidade, pelos mesmos motivos apontados por Pimpa. Mais que isso, Bárbara se considera uma “cuidadora de caminhos e não de cabeças”. Relatou que, nesses casos, acabou orientando que a pessoa procurasse um terreiro no Brasil para o processo de iniciação: “Ou seja, muda tudo. Mas eu não sei como você faz um iaô aqui. Quer dizer, você pode até fazer, mas com várias mudanças”. (Bárbara)

Regina, nesse aspecto, mostrou-se mais “ousada”. Conforme relatado anteriormente, iniciou várias pessoas ao mesmo tempo, numa casa alugada numa praia nas proximidades de Nova Iorque, e estava prestes a iniciar mais um grande grupo na Califórnia. Ela descreveu algumas partes dessa complexa empreitada:

“Olha, meu filho, uma amiga minha que é mãe de santo e que mora em Nova Iorque alugou uma casa numa praia, perto de Nova Iorque. Era uma praia deserta. Fizemos um barco (nome que se dá ao processo de iniciação) com 13 iaôs. Conseguimos tudo lá, as ervas, os pós e as sementes, até os bichos. É lógico que tudo tinha suas restrições, não podíamos fazer muito barulho, fazíamos os rituais durante o dia para não perturbar a vizinhança. Foi tudo uma maravilha, mas é muito mais trabalhoso, porque não tem muita gente para ajudar.” (Regina)

Nesse contexto da necessidade de iniciação, as divergências de condutas entre as mães de santo podem, de um lado, ser derivadas dos aprendizados recebidos de seus sacerdotes e suas casas de santo de origem; por outro lado, suas histórias de vida, seus modos diferentes de inserção nesse novo espaço originam modos particulares de elaboração e reinvenção de suas práticas religiosas. Bahia 1212. Bahia J. O Candomblé em terras alemãs. Londrina. 2016; 10(18):86-104. doi: 10.5433/2237-9126.2016v12n18p86.
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, ao estudar a transnacionalização das religiões afro-brasileiras e suas adaptações, trocas e proximidades com o contexto europeu, sobretudo em Portugal e Alemanha, demonstra que essas divergências de práticas e formas de enxergar, não só o processo de iniciação, mas tantas outras práticas relativas à religião, também aparecem nesses outros cenários.

Segundo a autora, há uma busca por legitimidade das práticas ao acionarem o Brasil como o lugar oficial ou originário do Candomblé. No caso deste artigo, constatamos que é o que ocorre com Pimpa e Bárbara, ao mencionarem que não dispõem dos elementos necessários, do espaço físico, da estrutura mais completa de um terreiro para que o processo de iniciação seja realizado, o que tornaria o processo incompleto ou “não aceito” pelo Orixá. É interessante pensar que elas legitimam outros rituais realizados, muitas vezes com diversas substituições, a exemplo do bori e do ebó, mas, ao mesmo tempo, consideram impossível realizar um processo de iniciação fora do Brasil. Regina, ao realizar o processo de iniciação em Nova Iorque, com todos seus elementos e com um número grande de iniciados, faz um contraponto importante em relação à opinião das outras duas mães de santo, explicitando que talvez essa “impossibilidade” esteja mais ligada ao temor e à insegurança de quem faz do que ao desejo do Orixá propriamente dito.

Discussão

A pesquisa sobre as práticas de Candomblé em Nova Iorque demonstrou que diversos elementos se modificam, traduzem-se ou fundem-se com outras influências culturais e religiosas. Em cada nova localidade, contexto histórico e espaço diferentes, porém, a sua inserção ocorrerá de uma forma singular, traduzindo suas práticas, reescrevendo seus conceitos, reinventando seus significados 2222. Silva VG. Candomblé e umbanda caminhos da devoção brasileira. São Paulo: Ática; 1994. . Entretanto, por mais que o Candomblé se reinvente, inscrevendo-se já modificado em novas paisagens culturais, a noção da existência e da importância do Axé permanece inalterada por se tratar, segundo Elbein dos Santos 2323. Santos JE. Os Nagô e a morte: Pàde, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. 13a ed. Petrópolis:Vozes; 2008. , da força vital que sustenta o mundo e direciona a cosmovisão das religiões de influência africana.

A reivenção do Candomblé nesse novo cenário, como um processo típico de transnacionalização religiosa, deixa-nos com uma imagem resultante de faixas de cultura ou “franjas” étnicas, que irão estabelecer novas conexões e heterogeneidades outrora inexistentes. Ao se analisar o modo de inserção de cada uma das mães de santo em Nova Iorque, é possível perceber que, ao longo desse processo, no qual as reinvenções das práticas vão ocorrendo, elas também irão incorporar novos sistemas de crença, num intenso diálogo com os elementos do lugar, quer sejam os nacionais ou advindos de outras culturas 2424. Bahia J. Exu na mouraria: a transnacionalização das religiões afro-brasileiras e suas adaptações, trocas e proximidades com o contexto português. Métis Hist Cult. 2015; 14(28):111-31.,2525. Appadurai A. Dimensões culturais da globalização: a modernidade sem peias. Lisboa: Teorema; 2004.

Viajando pelas memórias de Regina, Pimpa e Bárbara, foi possível seguir os passos dos seus itinerários, cujas motivações pessoais amalgamam-se a uma noção compartilhada de que suas viagens foram determinadas por desejos e determinações dos seus Orixás. Suas bagagens materiais e culturais, embora diferissem entre si, possuíam em comum o Axé, plantado e cultivado em suas origens, levado e semeado para Nova Iorque. É por esse motivo que foram chamadas Àwọn Ìyá Àṣẹ, as Senhoras do Axé na Big Apple. De acordo com Prandi 2121. Prandi JR. Os candomblés de São Paulo: a velha magia na metrópole nova. São Paulo: Edusp; 1991. , “Axé se tem, se usa, se gasta, se repõe, se acumula. Axé é origem, é a raiz que vem dos antepassados”. É a principal forma de regulação da saúde e do bem-estar de cada pessoa, porque, para o Candomblé, as doenças não possuem um motivo puramente físico; ao contrário, são resultados de um processo de desequilíbrio de Axé 2121. Prandi JR. Os candomblés de São Paulo: a velha magia na metrópole nova. São Paulo: Edusp; 1991. , que é acessado por elas por meio do jogo de búzios, que é a via regia da construção dessa relação de cuidado, desse encontro terapêutico, que, não por acaso, é chamado de consulta. Em todos os encontros com as três mães de santo, essa prática foi evidenciada em suas falas: “um cliente que veio se consultar comigo”, “a consulta aos búzios mostrou que ele precisava fazer um ebó”, e, assim por diante.

Ainda que as alegações para a procura desses serviços mágicos sejam, aparentemente, concretas, como problemas de saúde, dificuldades financeiras e até amorosas, e mesmo que as soluções oferecidas nas práticas da religião também pareçam concretas, por meio da prescrição de banhos, limpezas, pós e oferendas, há uma perspectiva subjetiva implícita nessa busca que, não raras vezes, escapa do esquemático modelo biológico proposto pela medicina contemporânea, com seu viés notadamente organicista. É pensando nessa necessidade humana de valorização da subjetividade, que busca resoluções para problemas e conflitos das formas mais variadas, que se consideram as práticas rituais dessas sacerdotisas como uma forma de cuidado com a saúde, consoante com o pensamento de Arouca 99. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo: Unesp; 2003. , que denominou esse cuidado de “trabalho afetivo”, por se tratar de um encontro que afetará tanto o cuidador quanto a pessoa a ser cuidada.

A consulta aos búzios pode configurar, por si só, um encontro terapêutico, porque reúne elementos que podem atuar positivamente na subjetividade da pessoa, em primeiro lugar, por se tratar de um encontro com alguém investido de uma função sacerdotal, a qual se supõe ser dotada de experiência e sabedoria, portanto, um encontro pleno de elementos comunicativos, interações sociais e acolhimentos; em segundo, pelo aspecto catártico, ao permitir explicitar uma angústia ou um sofrimento; e, em terceiro, pela decodificação do problema, como dito anteriormente, por meio desse complexo sistema de significados que compõem o Candomblé. É possível que essa transformação seja suficiente para aquela pessoa que se consulta, mas, em muitos casos, há a necessidade da realização de outros rituais para se atingir o objetivo desejado, porque, conforme ressaltaram Pinezi 2626. Pinezi AKM, Jorge EFC. Doença, saúde e terapias: aproximações e distanciamentos entre o candomblé e o neopentecostalismo. Caminhos (Goiânia). 2014; 12(1):65-78. e Mandarino e Gomberg 2727. Mandarino ACS, Gomberg E. Candomblé, corpos e poderes. Perspectivas (São Paulo). 2013; 43:199-217. , a primazia do sobrenatural é a marca desse processo terapêutico e as recomendações advindas dos búzios devem ser respeitadas.

Bárbara, Pimpa e Regina descreveram que a dificuldade era muito maior no passado e que, atualmente, é muito mais fácil encontrar a maioria dos produtos, se não em Nova Iorque, com comerciantes em Miami, pela abundância da Santería naquela região. Por outro lado, elas referiram que, quando um determinado elemento não é encontrado, isso não impossibilita a realização daquele ritual, e se apoiam na premissa de que o “Orixá possui sabedoria” e compreenderá a falta de um determinado elemento ou a substituição por algo similar.

Essa premissa da sabedoria do Orixá não se aplica somente à substituição de materiais, como, por exemplo, a troca de uma folha por outra; as substituições também podem ser mais complexas, como a simplificação ou a troca de um ritual por outro, ou, mesmo, a troca de um sacrifício animal pela seiva de uma planta, à qual se dá o nome de “sangue vegetal”. Esse processo não ocorre de forma casual ou automática, é o Orixá, por meio do jogo de búzios ou de outro sistema oracular substituto, habitualmente usando-se o Obi (noz-de-cola) ou a Àlubósa (“alobassa” ou cebola), cortados em quatro gomos e lançados à superfície, do mesmo modo que se procede com os búzios, que dirá se aquela substituição foi aceita ou não. Ou seja, nos rituais de cura realizados pelas sacerdotisas em Nova Iorque, verificou-se que toda troca, substituição ou reinvenção, não é feita de forma aleatória. Ela é sempre baseada em algum conhecimento anterior, obtido por meio dos ensinamentos advindos do seu terreiro de origem ou passados oralmente pelos iniciados mais velhos ou, como relatou Bárbara, proveniente de material escrito, inclusive de pesquisas em Antropologia, e, na ausência de referências desse tipo, pela consulta ao Orixá, por meio do sistema oracular. Portanto, quando se fala em permissão para reinventar o Candomblé em cada novo contexto, considera-se que não se trata apenas de uma “autopermissão”, mas, de uma permissão real que é concedida pelo Orixá, dentro desse sistema de significados. Além da concessão da permissão, as sacerdotisas também se valem de um sistema de “dupla checagem”, consultando novamente o sistema oracular após a realização de cada ritual, como forma de saber se esse foi “aceito”, ou, como se diz habitualmente, se o Orixá ficou “satisfeito”.

Há outra medida, essa mais subjetiva, de avaliar a eficiência dos rituais realizados: o resultado obtido, ou a chamada “resposta” do Orixá ao ritual, à oferenda, à feitura. As mães de santo compartilham uma certeza de que suas práticas estão em consonância com os desejos e ditames dos Orixás, a partir da constatação de que seus pedidos e os pedidos de seus clientes são atendidos, ou, pelo menos, que se sintam prósperos e realizados, com a sensação de vencerem as dificuldades encontradas.

Bárbara se diferencia grandemente em suas práticas, quando comparada a Pimpa e a Regina, em dois principais aspectos. Em primeiro lugar, é a única mãe de santo que possui um espaço específico para a realização das consultas aos búzios, um pequeno estúdio localizado no andar térreo do prédio onde mora, e um porão onde estão guardados os seus santos e onde realiza as festas de Candomblé e Umbanda. Em segundo, ela mantém o culto às entidades da Umbanda, os “guias”, que dão consultas espirituais durantes as festas que realiza ao longo do ano. Essas consultas funcionam, de certo modo, como outra forma de acesso às aflições de seus clientes e fiéis, inclusive, com a prescrição de banhos, defumações e outros rituais como forma de sanar seus males. Essa relação de Bárbara com a Umbanda se justifica por ter ligação com o início do seu desenvolvimento espiritual, mas também, porque, segundo ela, essa “mistura” do Candomblé com a Umbanda na cidade de Nova Iorque viabiliza o acesso de muitas pessoas a tratamentos espirituais mais simples, uma vez que o Candomblé possui rituais mais complexos e, portanto, mais difíceis de serem realizados e compreendidos.

De todo modo, a necessidade de possuir um espaço específico para a realização do Candomblé não foi considerada fundamental por elas, divergindo apenas quando o assunto é a feitura, assunto sobre o qual as opiniões divergiram. Em linhas gerais, as sacerdotisas compartilham a noção de que a iniciação ou feitura não é a via final ou algo realmente necessário para todas as pessoas que procuram seus serviços; parece que grande parte dessas pessoas busca auxílio para lidar, de forma mais confortável, com as dificuldades cotidianas e, apenas em alguns casos, a iniciação será indicada, quando realmente necessária. Nessa lógica, as mães de santo se assemelham muito mais aos Babalaôs africanos, em constante trânsito e viagem, de casa em casa, de um cliente a outro, carregando consigo seus oráculos e seus apetrechos mágicos, do que a um típico sacerdote brasileiro que possui sua casa e realiza lá mesmo grande parte dos seus rituais.

Concluindo, a experiência de pesquisar as práticas rituais dessas sacerdotisas na cidade de Nova Iorque parece deixar claro a sua importância como agentes de cura para uma população que não é composta apenas de imigrantes brasileiros, mas, também, para americanos, hispânicos e afrodescendentes que enxergam, nas práticas de Candomblé e na presença dessas mães de santo, um retorno mais vigoroso às tradições do culto aos Orixás advindo da África.

Ao se pensar no papel dessas mulheres como agentes de cura, atuando na vida de seus clientes em diferentes níveis de complexidade – desde uma consulta ao jogo de búzios, envolvendo como terapêuticas o aconselhamento, a conversa e pequenos rituais compreendidos por banhos, defumações e beberagens, passando por rituais mais complexos, como ebós e boris , e podendo culminar num processo de iniciação –, fica claro que a busca por essas terapêuticas tem o objetivo de alcançar saúde, bem-estar e alívio para desequilíbrios, angústias e sofrimentos.

Desembarcando em terra estrangeira, essas sacerdotisas vão construindo, pouco a pouco e ao longo de muitos anos, uma práxis que, em muitas situações, diferencia-se de suas referências relativas aos Candomblés brasileiros, a ponto de serem consideradas, aos olhos mais tradicionais, como deturpadoras da própria religião e acusadas de não praticarem um “Candomblé verdadeiro”. Porém, vistas de perto, suas reinvenções vão configurando, pouco a pouco, um tipo de consolidação, de enraizamento, que parece contribuir de forma genuína para a expansão da religião nesses novos territórios. Porque, se de um lado as constantes modificações necessárias parecem se distanciar do culto, há, entre elas, a genuína preocupação de satisfazer os desígnios dos Orixás, sobretudo, no que diz respeito à manutenção do Axé enquanto força vital.

Agradecimentos

À Professora Stefânia Capone, pela disponibilidade em contribuir com informações valiosas para a realização da pesquisa.

Às Mães de Santo – Pimpa, Regina e Bárbara, que dedicaram o seu tempo contando suas histórias.

A todo o povo de santo.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2018
  • Aceito
    20 Ago 2018
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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