Seis propostas para a formação em Psicologia: um diálogo entre PET-Saúde e Ítalo Calvino

Seis propuestas para la formación en Psicología: un diálogo entre PET-Salud e Ítalo Calvino

Renata Guerda de Araújo Santos Jefferson de Sousa Bernardes Sobre os autores

Resumos

Este artigo problematiza a formação em Psicologia orientada aos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). Apresenta pesquisa produzida por meio de rodas de conversas com o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). A análise temática foi realizada a partir do encontro entre os diálogos das rodas com o texto de Ítalo Calvino “Seis propostas para o próximo milênio”: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência, derivando as seis propostas para a formação em Psicologia. Conclui-se que a formação do trabalho para o SUS acontece na vida e é na vida das cidades e das pessoas que a formação em Psicologia precisa (insistir no desafio de consistir) ocupar espaços concretos que dialoguem com as necessidades de saúde das populações.

Formação em Psicologia; Integração ensino-serviço; Sistema Único de Saúde


Este artículo problematiza la formación en Psicología orientada en los principios del Sistema Brasileño de Salud (SUS). Presenta una investigación producida por medio de círculos de conversación con el Programa de Educación por el Trabajo para la Salud de la Universidad Federal de Alagoas (UFAL). El análisis temático se realizó a partir del encuentro entre los diálogos de los círculos con el texto de Ítalo Calvino “Seis propuestas para el próximo milenio”: levedad, rapidez, exactitud, visibilidad, multiplicidad y consistencia, derivando las seis propuestas para la formación en Psicología. Se concluye que la formación del trabajo para el SUS se realiza en la vida y es en la vida de las ciudades y de las personas que la formación en Psicología precisa (insistir en el desafío de consistir) ocupar espacios concretos que dialoguen con las necesidades de salud de las poblaciones.

Formación en Psicología; Integración enseñanza-servicio; Sistema Brasileño de Salud


Formação em Psicologia e saúde no Brasil

A regulamentação da psicologia como profissão no Brasil, em 1962, incluiu o currículo mínimo dos cursos de graduação. A transmissão de conhecimentos se dava por meio do parcelamento de disciplinas. Os estudos eram isolados dos processos concretos do contexto social em que se davam, e a aprendizagem era realizada com o acúmulo de informações. Esse currículo se constituiu a partir das ciências naturais, valorizando, sobretudo, o método experimental 11. Bernardes JS. O debate atual sobre a formação em psicologia no Brasil: permanências, rupturas e cooptações nas políticas Educacionais [tese]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2004. .

A racionalidade econômica do neoliberalismo ressignificou as políticas e setores antes considerados improdutivos e reorganizou a oferta de serviço e consumo induzindo outros modos de produção, transformando o direito público em mercadoria. Nesse contexto, a Psicologia brasileira se consolidou como um projeto convergente com a lógica moderna de regulação e controle, transformando-se, assim, em um território fértil para a disseminação de técnicas projetadas para um indivíduo conhecível e funcional, fortalecendo uma política de coerção e manipulação calculada dos elementos, gestos e comportamentos das populações 11. Bernardes JS. O debate atual sobre a formação em psicologia no Brasil: permanências, rupturas e cooptações nas políticas Educacionais [tese]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2004.

2. Rivero NE. Formação em psicologia e governamentalidade [tese]. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 2010.
-33. Foucault M. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Editora Vozes; 2010. .

O modelo liberal, positivista e biomédico foi produzido nas mais diversas esferas das áreas da saúde e na psicologia brasileira. As novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para os cursos da saúde parecem manter a fragmentação e o isolamento das diversas disciplinas 11. Bernardes JS. O debate atual sobre a formação em psicologia no Brasil: permanências, rupturas e cooptações nas políticas Educacionais [tese]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2004. . A eficácia desse modelo tem se esgotado no cotidiano do trabalho, pois, historicamente, a organização das disciplinas se deu por: especialização precoce, normatização dos procedimentos queixa-conduta e naturalização do processo saúde-doença.

O Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) surge e se consolida em um cenário em que novos discursos passam a circular e a validar práticas originais, tecendo, assim, outro perfil profissional, politicamente implicado na construção de um sistema justo e solidário de atenção.

O convite à interdisciplinaridade e à valorização de conteúdos e experiências de aprendizagem que priorizem as necessidades sociais se apresentam como desafios necessários para a transformação da formação 33. Foucault M. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Editora Vozes; 2010. . Nesse sentido, em iniciativa com instâncias de controle social na saúde, surge, a partir de 2003, a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS), com o intuito de aproximar a formação profissional em saúde das necessidades da população 44. Feuerwerker L, Almeida M. Diretrizes curriculares e projetos pedagógicos: é tempo de ação! Rev Bras Enferm. 2003; 56(4):351-2.,55. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação em Saúde. Política Nacional de Educação Permanente. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2008. (Série B. Textos Básicos da Saúde). . Para isso, vários programas e ações são constituídos, por exemplo, o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde).

O PET-Saúde, assim como outros programas e ações oriundos da PNEPS, vem produzindo deslocamentos na formação e práticas em saúde. Tais deslocamentos são importantes para avançarmos rumo a uma formação baseada nas necessidades de saúde da população.

Diante dessas questões, a proposta deste artigo é discutir a formação em Psicologia e o trabalho no SUS, adotando, como elemento problematizador, o PET-Saúde e seus efeitos performativos.

Para isso, articularemos a formação em psicologia com as “Seis propostas para o próximo milênio” 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. , de Ítalo Calvino, funcionando como “imagens-objetivo” 77. Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, ABRASCO; 2001. p. 43-68. . Princípios não muito claros que conduzem nossos desejos na recusa de aceitar o que está aí. Utilizaremos essas proposições como princípios norteadores para a formação em psicologia. A literatura, segundo Barthes (1996) 88. Barthes R. Aula. São Paulo: Cultrix; 2007. , faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles. Exploramos a narrativa literária estabelecendo pontos de conexões entre as vozes presentes, sem a pretensão de estabelecer paralelos ou discussões aprofundadas sobre literatura e linguagem. Nessa obra 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. , o autor apresenta seis proposições que deveriam marcar o século XXI, não somente na literatura, mas na própria existência, transformando-as em imperativos ético-políticos: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Buscaremos estabelecer pontos de conversas e interseções entre as proposições de Calvino e o diálogo das Rodas de Conversas realizadas com os participantes do PET-Saúde (estudantes do curso de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e psicólogos da Secretaria Municipal de Saúde de Maceió). Entretanto, antes de avançarmos para tais proposições, delimitaremos questões de ordem conceitual, contextual e metodológica.

Projetos de Formação para o SUS – a recusa em aceitar o que está aí

A partir dos avanços da Reforma Sanitária brasileira e os campos de disputa dos modelos assistenciais e de gestão, argumenta-se que os muitos dispositivos existentes para operar tais processos não se delimitam em sistemas homogêneos. Esses dispositivos são móveis, instáveis, heterogêneos, com tensas confrontações, desequilibradas, e produzem resistências diversas 99. Weinmann AO. Dispositivo: um solo para a subjetivação. Psicol Soc. 2006; 18(3):16-22. . Produzem, também, rearranjos e rearticulações constantes em sua configuração, pois geram fissuras nos estados de dominação 99. Weinmann AO. Dispositivo: um solo para a subjetivação. Psicol Soc. 2006; 18(3):16-22. .

Os dispositivos são práticas que indicam um conjunto de características ligadas ao caráter de imprevisibilidade do próprio dispositivo e àquilo que tange à sua condição de “acontecimento” 99. Weinmann AO. Dispositivo: um solo para a subjetivação. Psicol Soc. 2006; 18(3):16-22. . Geralmente, são modelagens produtivas capazes de operar nas diversas dimensões da caixa de ferramentas do trabalhador da saúde e em seus modos de subjetivação.

Entretanto, as capturas no uso desses dispositivos implicam movimentos vivos, quer seja no uso de tecnologias duras (equipamentos/protocolos) ou na tradução de um exame de laboratório que envolve um saber tecnológico mais definido, que são as tecnologias leve-duras, ou, ainda, as tecnologias leves, que estão na dimensão relacional do encontro com o outro 1010. Mehry E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2002. .

Os primeiros projetos de psicologia se consolidaram como dispositivos que encontraram espaços como técnicas de regulamentação, com pretensos conhecimentos universalizantes sobre as pessoas com o objetivo institucional de administrá-las, moldá-las, reformá-las 1111. Rose N. Políticas de la vida - biomedicina, poder y subjectividad en el siglo XXI. La Plata: Editora Universitária; 2012. .

Ao considerarmos que os dispositivos operam em linhas-funções as quais outras orientações são sempre possíveis, como pensar a formação em psicologia e o trabalho para o SUS a partir de linhas que não se fechem em si mesmas, mas que possibilitem outras composições? Esta definição somente é possível pela capacidade que o dispositivo assume no que se refere à novidade e a criatividade.

Atualmente, visualizamos algumas fissuras no cotidiano dos cursos, novas experimentações têm buscado construir outros projetos. Isto não significa que este movimento esteja buscando substituir o modelo vigente, ou um modelo mais verdadeiro. Mas, por considerar que a história é um movimento de permanências e rupturas.

Entretanto, buscamos priorizar, no modelo de formação, um projeto apoiado nas necessidades de saúde da população e nos desafios para a consolidação do SUS. Tal projeto apresenta-se como imagem-objetivo. “Imagem-objetivo” é um enunciado de certas características que são consideradas por alguns como desejáveis, visando uma sociedade mais justa e solidária. Uma imagem-objetivo nunca é detalhada e não se confunde com projetos específicos que dirão como as coisas devem funcionar, ao contrário, é sempre expressa por meio de enunciados gerais, marcada pela incerteza quanto aos caminhos possíveis para sua produção 77. Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, ABRASCO; 2001. p. 43-68. . Implica, portanto, redistribuição dos possíveis que desembocam numa transformação ao menos parcial, improgramável, ligada à imprevisível criação de novos espaços-tempos, de agenciamentos institucionais inéditos 1212. Deleuze G, Parnet C. Diálogos.: Ribeiro EA, tradutor. São Paulo: Escuta; 1998. .

As “imagens-objetivos” partem sempre de um pensamento crítico que se recusa a reduzir a realidade ao que existe, e que se indigna com o que está aí: “Os enunciados de uma imagem objetivo sintetizam nosso movimento. Ao enunciar aquilo que, segundo nossa aspiração, existirá, a imagem objetivo também fala, embora sinteticamente, daquilo que criticamos no que existe, e que nos levou a sonhar com uma outra realidade” 77. Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, ABRASCO; 2001. p. 43-68. (p. 45).

Contexto da pesquisa

Esta pesquisa desenvolveu-se no contexto do curso de psicologia da UFAL, junto ao PET-Saúde, cujo objetivo é: “contribuir na formação de futuros profissionais comprometidos socialmente, com capacidade crítica para analisar a sua realidade de trabalho e competência para agir em equipe, priorizando a integralidade da atenção” 1313. Universidade Federal de Alagoas. Projeto do PET-Saúde II / Saúde da Família – campus Maceió/UFAL. Maceió: Universidade Federal de Alagoas; 2009. (p. 2).

As atividades do PET-Saúde tiveram início em 2009, agregando 12 grupos tutoriais (trezentos participantes – entre tutores, preceptores e estudantes dos cursos de Enfermagem, Farmácia, Medicina, Nutrição, Odontologia, Psicologia e Serviço Social). Buscava-se, nessas ações, potencializar o desenvolvimento dos projetos políticos pedagógicos dos cursos da área de saúde, na perspectiva da formação profissional voltada para fortalecimento da Atenção Básica, por meio da inserção planejada de estudantes na Estratégia Saúde da Família. O programa permanece, ainda hoje, acompanhando todos os editais para sua renovação lançados pelo Ministério da Saúde.

As ações realizadas naquele momento consistiam na composição de grupos mistos/multidisciplinares, com atividades supervisionadas por preceptores e tutores nas unidades de saúde, desenvolvendo ações interdisciplinares orientadas pelo currículo de cada curso, com atividades integradas de extensão e de pesquisa multidisciplinar (oficinas, grupos, visitas e outras), preconizando ações que envolviam três grandes eixos temáticos: mortalidade infantil, humanização e participação popular/controle social.

Percurso Metodológico

Desde o início da pesquisa, ocorreram encontros com o grupo de interlocutores (estudantes e profissionais de psicologia) com o objetivo de visibilizar os passos metodológicos e, conjuntamente, articular as questões norteadoras, transformando-se em exercício que buscou garantir, de alguma forma, um processo democrático e dialógico na construção da pesquisa. Para este artigo, analisaremos duas Rodas de Conversas 1414. Bernardes JS, Guerda RAS, Silva LB. A “Roda de Conversa” como dispositivo ético-político na pesquisa social. In: Lang C, Bernardes JS, Ribeiro MAT, Zanotti SV, organizadores. Metodologias - pesquisas em saúde, clínica e práticas psicológicas. Maceió: EDUFAL; 2015. p. 13-34. realizadas com estudantes e profissionais separadamente.

As conversas foram disparadas a partir das questões norteadoras que articulavam o cotidiano da formação com a atuação no PET-Saúde, buscando estabelecer conexões entre a formação em psicologia e as necessidades de saúde da população, a partir dos princípios do SUS.

Depois das transcrições das Rodas de Conversa 1414. Bernardes JS, Guerda RAS, Silva LB. A “Roda de Conversa” como dispositivo ético-político na pesquisa social. In: Lang C, Bernardes JS, Ribeiro MAT, Zanotti SV, organizadores. Metodologias - pesquisas em saúde, clínica e práticas psicológicas. Maceió: EDUFAL; 2015. p. 13-34. , fizemos leituras flutuantes do texto com o objetivo de estabelecer os conjuntos de sentidos presentes nas falas. Em seguida, sistematizamos em Mapas Dialógicos com transcrição sequencial 1515. Nascimento VLV, Tavanti RM, Pereira CCQ. O uso de mapas dialógicos como recurso analítico em pesquisas científicas. In: Spink MJP, Brigagão JIM, Nascimento VLV, Cordeiro MP, organizadoras. A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2014. p. 247-72. , realizando o encadeamento dos temas em diálogo com os objetivos da pesquisa, procurando manter as narrativas na íntegra e em seus contextos. Posteriormente, os temas foram articulados a categorias analíticas previamente estabelecidas, a partir das proposições de Calvino, pois encontramos nas “Seis propostas para o próximo milênio” 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. o ponto de partida para acionar uma análise compreensiva das conversas. O livro de Calvino é um belo e singular manifesto sobre a literatura, capaz de conjugar: ética, estética e política conduzidos pela leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Um ensaio sobre o rumo da literatura no século XXI, mas que carrega lições que podemos traduzir para a vida, pois “há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar” 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. (p. 11). Produzimos, assim, a partir da roda de conversa, seis propostas para a formação em psicologia.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética, sob o número: 010226/2011-21.

Seis propostas para a formação em Psicologia

Leveza

A formação para a saúde, leve e articulada a processos de mudança na graduação, possui potência de mudar os serviços de saúde, contribuindo para que se tornem mais efetivos, integrados e sensíveis à realidade local.

A força de tecnologias dialógicas na saúde encontra eco em Calvino e, neste sentido, tudo pode assumir formas novas. A literatura nos ajuda a compreender que a mudança do modelo do trabalho para a saúde será conduzida nos microlugares, adotando referenciais outros que dissolvam o conhecimento compacto, distribuído pelas disciplinas e pelos modelos curriculares, e que possa fomentar territórios de encontros, borrar as fronteiras dos saberes, ver o invisível e compreender o imprevisível 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. .

“eu acho que o diálogo além de enriquecer o trabalho individual, digamos assim, enriqueceu também quando a gente levava para a comunidade”. (Estudante)

É a valorização da leveza, do diálogo, das conversas (que nunca são jogadas fora). São tecnologias leves que produzem materialidades a todo o momento, pois são vetores de informação, produzem efeitos e sentidos.

Calvino 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. associou a leveza à sua primeira proposta. Usa, para tal, associação à imagem da disputa entre Perseu e Medusa que, com seu olhar, a todos petrifica. Nessa disputa, Perseu utilizou dois estratagemas: o escudo de Atena (como um espelho, por onde via Medusa por tabela, sem mirá-la diretamente) e as sandálias aladas de Hermes. Perseu manteve o olhar indireto e se fez leve.

Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. . (p. 16)

Explorando a metáfora, a formação em psicologia precisa escapar do olhar petrificante do cientificismo, das tecnologias duras centradas no procedimento, e forjar-se no movimento do trabalho produzido em ato, operado por meio de um currículo vivo que potencialize os encontros, a construção coletiva e democrática do saber-fazer no campo da saúde.

Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos… 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. . (p. 19)

Sugerimos que a formação em psicologia e o trabalho para o SUS possam se abrir em infinitos caminhos a serem explorados, sugerindo sempre conservar três características: ser leve, estar sempre em movimento e ser vetor de informação 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. .

Rapidez

Uma das grandes conquistas do sistema brasileiro de saúde foi assumir a formação de seus trabalhadores como um ato político. Tal conquista representa um desafio ético-político vivo. Esse plano exige a passagem de um modelo bancário de formação hegemonicamente composto por blocos homogêneos de cursos, capacitações e consultorias, para uma política emancipatória.

Nesse sentido, o tempo se configura nas dimensões relacionais entre usuários-trabalhadores-gestores e a rede formadora que se interconecta entre eles:

“[...] Ninguém sabia exatamente o que fazer. A gente não sabia. E a nossa recepção nas unidades também não era assim a das melhores. A gente chegava lá e não sabia o que fazer. O nosso preceptor também não sabia o que fazer. E a gente, muitas vezes, se perdia nas atividades. Eu acho que as atividades começaram a se, mais ou menos se consolidar no segundo ano do PET. [...] Porque a gente lembra que no começo, como a gente ficou só na construção, na construção, construção. O PET começou a se dissipar. Todo mundo começou a sair. Tipo... tinha 30 pessoas, quando chegou na metade do ano só, acho, tinha 10 pessoas. Porque todo mundo começou a sair, ninguém tava mais aguentando ficar construindo só na teoria. Mas, foi muito engraçado porque a gente lutou tanto pelo campo e quando chegou lá ficou todo mundo... e agora meu Deus do céu? E agora a gente faz o quê? Vamos fazer o quê? (Estudante)

Em outro ponto da conversa, a angústia sentida em função do tempo que escapa, encontra outras combinações possíveis nos espaços de encontro. A rapidez não se refere, necessariamente, a chegar primeiro em um local preestabelecido e, sim, a como chegar. E, nesse sentido, para os processos de trabalho na saúde, quanto mais tempo dedicamos ao planejamento e organização das ações, maior será o poder de capilarização e consistência nos encontros:

“[...] A palavra chave do PET-Saúde I era construção. A gente ouvia muito isso. Olha... não tem nenhum modelo pronto, vocês vão estar ajudando a gente a construir e tudo mais. Então a gente ficou muito tempo nisso. Na construção, formação, como era que ia ser. Na tentativa de fazer essa interdisciplina com os outros cursos, porque tinha alunos de outros cursos de saúde participando. Só que aí chegou um ponto que os alunos começaram a ficar meio saturados desta questão. Aí a gente meio que começou a fazer uma pressão para ir ao campo. Aí isso foi conversado entre os preceptores, com a tutora. Aí eu acho que demorou foi uma questão de cinco meses [...]. Cada aluno teve sua opção de escolha. De escolher para qual unidade queria ir [...]” (Estudante)

Enfrentar processos de mudanças exige a construção e a manutenção de espaços coletivos para encontros, debates e reflexões críticas, sobretudo, porque os desafios são muitos. O descompasso entre a ampliação da clínica, a articulação entre o individual e o coletivo, a construção da integralidade da atenção, do trabalho em equipes matriciais, por exemplo, estão postos, simultaneamente, como desafios para as escolas e para o sistema de saúde.

A institucionalização de programas como o PET-Saúde incide sob o currículo experiências que são capazes de produzir tensionamentos ao longo da formação. Para tornar o currículo vivo é desejável que esteja na pele das pessoas, encarnado em seus corpos, vivenciado e em constante processo de avaliação e mutação 11. Bernardes JS. O debate atual sobre a formação em psicologia no Brasil: permanências, rupturas e cooptações nas políticas Educacionais [tese]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2004.:

“Eu acho que umas das coisas fundamentais que a gente vê nessa experiência do PET, por isso que eu acho que isso [experiência prática] seja algo importantíssimo no currículo acadêmico, é justamente que a gente aprende a deixar que a própria realidade defina o agir do profissional.[...]. E também na grande maioria das vezes é a própria realidade que vai dizer como a gente vai agir. Independente de qual abordagem a gente tenha ou não. E para isso a gente tem que tá aberto e preparado para isso. Então, eu acho que estas experiências trazem essa preparação. E por isso que eu acho que elas são importantíssimas na graduação.” (Estudante)

Se, por um lado, as questões explicitadas apontam para uma dificuldade em determinado contexto, outras ações são apresentadas como cenário potente para o trabalho:

“[...] Para funcionar de uma maneira diferente, alguns temas e alguns processos estavam engatilhados. Pra gente dar seguimento, como da transdisciplinaridade, da educação popular em saúde, e alguns grupos, pra sair, a captação, a busca ativa, coletiva, do um público que não era muito trabalhado ali, [...] foi de mudar o sentido, do fazer da psicologia, de como eles podiam enxergar, o fazer deste profissional lá dentro. Muita coisa assim era: isso é coisa para psicólogo, esse tipo de grupo é mais a cara da psicologia, isso que se tá fazendo é saúde mental. Desmistificar um pouco, de sair um pouco desse lugar, olha isso é saúde mental porque é promoção da saúde.” (Profissional)

A formação para o SUS requer a produção de sujeitos ética e politicamente comprometidos na construção do SUS, contemplando os espaços ampliados para o planejamento de ações e a avaliação permanente de seus projetos pedagógicos, ou seja, um transitar pela rede que possibilite processos de convivência ampliados no cotidiano dos serviços. E essa é a maior característica que a rapidez pode apresentar, como diz Calvino 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990.: festina lente (apressa-te lentamente).

Essa transição marca uma temporalidade, mas tal qual a leveza sustentada por Calvino 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. , o tempo da institucionalização da gestão do sistema e do cuidado “flui sem outro intento que o de deixar as ideias e sentimentos se sedimentarem, amadurecerem, libertarem-se de toda impaciência e de toda contingência efêmera” (p. 66). Para a literatura, o tempo é uma riqueza que se pode dispor com prodigalidade e indiferença. O tempo é movimento e a rapidez é a desenvoltura para percorrer os caminhos da escrita.

Estamos no século da velocidade. A informação é processada em milésimos de segundos. A relação do humano com a tecnologia jamais viveu período de tanta inovação. Entretanto, operar a valise produtiva do trabalho em saúde exige que outras inscrições, a respeito do tempo e do espaço, sejam problematizadas.

Exatidão

No campo da saúde e das ações transdisciplinares é fundamental que os modelos estejam junto às experiências. A singularidade de cada situação é produzida buscando continuamente os melhores modos de abordá-la, de forma que a constituição histórica das práticas seja avaliada permanentemente.

É na produção de uma política da “cumplicidade”, da produção de um novo tipo de interação entre os sujeitos e os modos de trabalho que a atenção sempre diferenciadora e vasta do viver singulariza a experiência pedagógica:

“[...] tem horas que você tem que saber manejar, talvez seja a palavra certa [...]. Eu acho que na graduação a gente, no trabalho mesmo, a gente aprende a seguir uma linha, seguir um padrão. E quando isso acontecia, no início tinha as meninas que já estavam há mais tempo. A gente ficava tranquila. Só que quando elas saíram. Foi aquela coisa, e agora? Quem vai ser a pessoa que vai tipo puxar se alguma coisa acontecer. E foi um aprendizado. Ai, depois a gente foi meio que: peraí, eu também quero fazer parte disso! Peraí não precisa ser tudo planejadinho.” (Estudante)

Essa interação demanda o prestar atenção às singularidades e aos saberes locais. Ser exato na relação com o outro, um estar atento que implica planejamento e avaliação. Segundo uma das estudantes, representa um desafio para programas como o PET-Saúde provocarem, nos cursos, a adoção das questões da saúde como tema transversal: “Então [...] é nesse espaço de diálogo que o PET propõe e que estas atividades, elas possam ser edificadas e possam ser eficazes também não só para a gente do PET, mas deixar esse legado para a própria unidade” (Estudante).

A busca da exatidão tem a ver com caminhos que se bifurcam: de um lado, a redução dos acontecimentos contingentes a esquemas abstratos traduzidos em cálculos e teoremas. Do outro, o esforço das palavras para dar conta do aspecto sensível das coisas, com a maior precisão possível 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. . Escapar à dualidade entre estes dois caminhos é o desafio para a singularidade, para a exatidão.

Em Exatidão, Calvino apresenta três chaves principais que servem não somente para a Literatura: 1) um projeto de obra bem definido e calculado; 2) a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis; 3) uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. (p. 71). O destaque nessas três chaves é dado aos detalhes. O próprio Calvino admite que ser exato é difícil, e que ele mesmo começa uma história e termina em outra bem diferente, pois as histórias estão eivadas de dispersões com seus mínimos detalhes. Assim, para Calvino, o justo emprego da linguagem é “aquele que permite o aproximar-se das coisas (presentes ou ausentes) com discrição, atenção e cautela” (p. 90).

Nesse sentido, como constituir processos formativos que valorizem a exatidão como uma composição minuciosa, mais precisa e singular possível, sem deixar-se conduzir pelas normas prescritivas que generalizam as experiências?

Visibilidade

É fundamental pensarmos a ciência a partir de parâmetros políticos, assim como exigir que a definição dos seus limites seja compreendida por meio de processos sociais amplos e democráticos.

Nas unidades de saúde, boa parte das vezes, a “Sala da Psicologia” é o lugar mais comum para identificarmos a psicologia distante dos processos políticos, coletivos e institucionais. Seus planejamentos e registros geralmente são de ordem individual de cada profissional.

Quando os processos de planejamento e avaliação dos serviços em saúde não são coletivizados, ao menos na psicologia, caracteriza-se a constituição de processos burocráticos, acionando sua “Caixa-de-Informações-Inacessíveis”. Em nossas conversas, percebemos quanto ela é presente nas instituições:

“E a psicologia meio que tinha não um problema, mas tinha uma questão. Porque os outros cursos já iam direto no que eles iam fazer. Tipo a medicina já ia lá, atender, ia pra sala atendia. A enfermagem ia lá fazia curativo. Mas a gente faz o que? Porque eles estão lá atendendo. O que é que a gente faz? Mas o psicólogo não tem sala! O que é que a gente vai fazer? Vai ficar lá fazendo o quê se não tem sala? Mas, foi um aprendizado bastante interessante, acho que a gente conseguiu ver a evolução do PET. A gente saiu dessa questão da sala, de parar de pensar que a gente tinha que atender, a chegar e desenvolver outras atividades, como os grupos. [...]” (Estudante)

A experiência da formação pouco tem explorado sobre os modos de produção em saúde direcionados para modelos de atenção que valorizem demandas e necessidades da população. Nesse sentido, outros caminhos se apresentam como trajetos possíveis:

“alguns processos de trabalho lá da unidade que não aconteciam porque havia uma fragmentação do trabalho. Apesar de ser uma equipe de saúde da família, mas ela era muito setorializada. Ainda num paradigma, muito tradicional [...]. Por outro lado, acho que a gente conseguiu levar assim muito forte a natureza do que é o grupo misto, do que tava sendo proposto enquanto eixo de trabalho, enquanto forma de trabalho. O controle social que a gente adotou e assim escolheu, que precisava fortalecer o conselho gestor, tinha a ver com a realidade de nossa unidade.” (Profissional)

Nas rodas de conversa foi apresentado o grupo misto como sendo um processo capaz de produzir espaços de visibilidade no trabalho de forma coletiva e cogerida. A visibilidade se apresenta como uma fenda aberta para a construção de um projeto mais amplo para a psicologia no campo da saúde.

Esse projeto pauta-se nos modelos democráticos de atenção à saúde, transversalizando a formação acadêmica a partir da aproximação com outros campos de saberes e, sobretudo, aos aspectos relacionados ao perfil profissional 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. .

Além da questão pedagógica do próprio processo de formação, existe, também, a transição dos modelos assistenciais. Percebemos que, de certa forma, a presença do estudante na rede de saúde aponta para outros movimentos possíveis no SUS, pois, em alguns momento, implica convite aos profissionais a revisarem seus modos de produção e, em outros momentos, inibem a circulação dos profissionais.

Assim, quais exercícios de visibilidades podem operar no cotidiano da formação e do trabalho para a saúde? O que se pode conhecer e o que não se pode conhecer estão intimamente ligados aos jogos de poderes. Visibilidade é, também, reconhecer estes poderes e circular entre eles. O jogo das profissões (do saber-fazer) está capturado nessa tessitura de produção do conhecimento. Visibilidade aponta para processos democráticos, coletivos, cogeridos, ou seja, outras formas de imaginar a formação e o trabalho em saúde.

Para a literatura, a valorização do mundo da visibilidade (imagens, fantasias e imaginação) é uma das características mais importantes a se preservar 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. . Se a literatura é um campo inacabado, a formação para o trabalho na saúde também o é, com a capacidade de renovar-se sempre a partir dos dispositivos vivos que operam nos espaços de visibilidade e conversação produzidos pelas propostas pedagógicas dos cursos. A visibilidade, para Calvino, 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. opera com o propósito de não perdermos a capacidade de “por em foco visões de olhos fechados (…) de pensar por imagens” (p. 107).

No que diz respeito à Psicologia, a “visibilidade” desdobra-se na questão de sua “caixa-de-informações-inacessíveis”. A tradição hegemônica da Psicologia está localizada como ciência natural e positivista, pelo trabalho fragmentado e solitário. Abrir-se ao coletivo e aos mecanismos de cogestão é fundamental na formação para a saúde.

Multiplicidade

Para a literatura, só é possível viver na proposição de objetivos desmesurados, mesmo para além de suas possibilidades de realização. Para nós, pensar a formação em psicologia aproximando-se de um projeto ousado (desmesurado) como o SUS, faz-se necessário para “tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralista e multifacetada do mundo” 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. (p. 127).

Esse é um desafio que caminha além das “junturas” produzidas na maioria dos espaços cotidianos de trabalho. As Equipes de Saúde da Família (ESF) ou os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), por exemplo, em sua grande parte, ainda funcionam operando uma lógica setorializada dos processos de trabalho, e acabam por perpetuar a fragmentação do atendimento prestado aos usuários, adotando uma divisão tácita de competências e práticas. Certamente, são implicações conjunturais e localizadas em um grupo específico. Entretanto, ao apresentarmos os participantes como interlocutores para a problematização, outras questões foram apresentadas:

“Uma das dificuldades para isso daí [o trabalho em equipe] é porque, primeiro que nenhum curso quer abrir mão. E, segundo, que os profissionais, nós mesmos, enquanto estudantes, os próprios profissionais, muitas vezes colocamos o nosso conhecimento científico e tal, como superior.” (Estudante)

A permanência de estudantes nos serviços é uma proposição que exige articulações entre as dimensões técnico-assistenciais e de ensino-aprendizagem, e atenta às condições de atendimento e às necessidades de saúde da população e ao controle social:

“Nem todo mundo quer sair da sua posição de superioridade. Então, essa noção de colocar os conhecimentos como complementares, e não como superiores ou inferiores, o conhecimento popular, tá colocado em pé de igualdade com o conhecimento que a gente tem.” (Estudante)

Estudantes e profissionais localizam a importância da formação para o campo da saúde como construção da educação em serviço que possa agregar o desenvolvimento individual e institucional, entre serviços e gestão setorial e entre atenção à saúde e controle social 1616. Ceccim RB, Feuerwerker L. Mudança na graduação das profissões de saúde sob o eixo da integralidade. Cad Saude Publica. 2004; 20(5):1400-10.:

“[...] A gente pensa que só se juntar, vai dar uma coisa interessante, um caldo bom, né?! [...] os alunos do curso poderiam tá com outro preceptor sem necessariamente do seu curso, sem ser necessariamente aquela referência natural.” (Profissional)

A multiplicidade parece ser, então, uma galeria de temas em que o conhecimento se amplia à medida que parte ao encontro um dos outros, constituindo-se na complexidade de sua produção, mas valorizando as dimensões locais de produção.

O conhecimento como multiplicidade é um fio que ata as obras maiores, tanto do que se vem chamando de modernismo quanto do que se vem chamando de pós-modernismo, um fio que — para além de todos os rótulos — gostaria de ver desenrolando-se ao longo do próximo milênio 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. . (p. 130)

Para Calvino, o romance contemporâneo deve apresentar-se como rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo, com a presença simultânea dos elementos mais heterogêneos. É, portanto, rede que se propaga a partir de cada um dos objetos. Na formação em psicologia, reconhecer a multiplicidade na dimensão do encontro inaugura uma fenda para problematizarmos a consistência, a última lição de Calvino.

Consistência – considerações finais

Infelizmente, Calvino não teve a oportunidade de escrever a sexta lição. Em função disso, algumas perguntas são lançadas: o que é consistência? O que diria Calvino sobre a consistência? O que seria o ato de consistir?

Podemos imaginar que a consistência, de certa forma, seria a negação de todas as propostas anteriormente anunciadas. Pois, sendo a consistência um estado de firmeza, solidez e/ou coerência, como traduzir tais características para a literatura no século XXI, a partir da leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade?

Mas o próprio Calvino 66. Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990. não pretende excluir os valores opostos às temáticas escolhidas para as conferências: “(em) meu elogio à leveza, estava implícito o meu respeito ao peso” (p. 59).

Do ponto de vista textual hegemônico, a consistência é a estabilidade sintática e semântica de seus enunciados. Entretanto, para a literatura contemporânea, esse conceito se esvazia em seus sentidos, pois a predominância de diversas linguagens em um mesmo texto é o conceito que guia tais perspectivas.

Já na estatística, consistência interna é uma forma de medida baseada na correlação entre diferentes itens no mesmo teste. Ou seja, é a medida usada para calcular se diversos itens produzem resultados semelhantes. Consistência interna, portanto, tem a ver com a condição de replicabilidade do fenômeno por meio de novos instrumentos.

Mas, e para nós, qual seria o desafio da consistência? Justo o oposto à condição de replicabilidade, automatismo, produzir sempre do mesmo. No campo da saúde, seria a consistência o trabalho vivo produzido em ato 1010. Mehry E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2002. ? Uma potência política para a vida? Quais práticas estariam implicadas nesse processo para conduzir a formação para a saúde a partir de processos coletivos orientados para o SUS? Assim, apostamos na consistência ser significada como a intensidade com a qual as narrativas apresentam seus fundamentos.

Com o PET-Saúde, dois movimentos foram produzidos na esfera da micropolítica: estímulo às ações de extensão, sobretudo com a interação dos estudantes em sala de aula junto a outros estudantes que não participaram da experiência do programa; a presença de preceptores na Universidade, incentivando a interlocução entre ensino-serviço e os demais estudantes dos cursos.

Os profissionais visualizam tais avanços e também se apropriaram da proposta: “[...] a gente teve muitas palestras, muitas discussões, muitos encontros também. Em vários momentos, tanto para a psicologia quanto para o grande grupo. [...] principalmente o primeiro ano, era um encontro atrás do outro. A gente tava sempre na universidade” (Profissional).

Também apresentaram outras necessidades para se investir permanentemente na formação do trabalhador, sinalizando que é importante que a formação aconteça no contexto da ação. Os processos formativos para o SUS são campos de interseção de saberes que não são dados a priori. Surgem nos encontros cotidianos entre os saberes profissionais, possibilitando a prática interdisciplinar como território de experimentação, exposição e desestabilização de saberes:

“a impressão que dava era que se talvez não tivesse o preceptor, a experiência do PET ia tá servindo para que a gente, quando a gente se formasse e conseguisse atuar como psicólogo nessas instituições. [...]. Agora a experiência do PET a partir do momento que tem um preceptor, o conhecimento já faz modificar ali naquele exato momento, não espera aquela turma que teve aquela experiência se formar, para a ação começar a ser modificada. Não fica aquele distanciamento entre o conhecimento que a academia tem, o conhecimento que o preceptor tem e o estudante.” (Estudante)

A Educação Permanente é a via que parece potencializar a realização do encontro entre a formação e o trabalho, em que o aprender e o ensinar se incorporam ao cotidiano das organizações e ao trabalho 55. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação em Saúde. Política Nacional de Educação Permanente. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2008. (Série B. Textos Básicos da Saúde). . Esses são territórios fecundos para as novas experimentações pedagógicas e metodológicas que também produzem efeitos na produção do cuidado e na relação com o usuário.

É do apaixonamento e intensidades necessárias aos processos de trabalho do SUS, que precisa ser explicitada a necessidade de uma formação claramente comprometida e direcionada à concretização dos princípios da reforma sanitária. Um projeto em construção, mas que encontra eco nos processos formativos micropolíticos:

“[...] me chamou muito a atenção uma estudante de psicologia. Ela chegou com um tema que seria da monografia [...]. Já pelo ponto de vista da [...] análise dos trabalhadores de saúde no SUS, já imbuída de uma visão de que não aconteciam os processos no sistema porque os trabalhadores não queriam. Tudo era um problema da negativa dos trabalhadores, da carga horária deles, então, assim, sempre era algum problema relativo a ele. E quando ela vivenciou a experiência junto com a gente [...], das dificuldades lá, de quanto os trabalhadores poderiam estar ali envolvidos, dos que estavam tentando, dos que sorriam, choravam e se frustravam, por que não conseguiam por um lado, tentavam por outro né?! [...]” (Profissional)

O investimento nos princípios do SUS (universalidade, equidade e integralidade) se torna mais potente e possível quando os traduzimos nas experiências práticas do cotidiano e da formação. É na construção de redes, de processos de cogestão, de aumento do índice de transversalidade nas ações, do investimento em projetos que aumentem o grau de democracia e participação institucional, que alguns caminhos vão se tornando possíveis.

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas, pela bolsa de incentivo à pesquisa. Aos estudantes e profissionais do PET-Saúde/2011-2012 que compuseram nossa rede de interlocutores. Aos Grupos de Pesquisa PROSA / Psicologia (UFAL) e LAICOS (UAB), pelas leituras e discussões que ampliaram a capacidade analítica e de escrita durante todo o processo de investigação.

Referências

  • 1
    Bernardes JS. O debate atual sobre a formação em psicologia no Brasil: permanências, rupturas e cooptações nas políticas Educacionais [tese]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2004.
  • 2
    Rivero NE. Formação em psicologia e governamentalidade [tese]. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 2010.
  • 3
    Foucault M. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Editora Vozes; 2010.
  • 4
    Feuerwerker L, Almeida M. Diretrizes curriculares e projetos pedagógicos: é tempo de ação! Rev Bras Enferm. 2003; 56(4):351-2.
  • 5
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação em Saúde. Política Nacional de Educação Permanente. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2008. (Série B. Textos Básicos da Saúde).
  • 6
    Calvino I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras; 1990.
  • 7
    Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, ABRASCO; 2001. p. 43-68.
  • 8
    Barthes R. Aula. São Paulo: Cultrix; 2007.
  • 9
    Weinmann AO. Dispositivo: um solo para a subjetivação. Psicol Soc. 2006; 18(3):16-22.
  • 10
    Mehry E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2002.
  • 11
    Rose N. Políticas de la vida - biomedicina, poder y subjectividad en el siglo XXI. La Plata: Editora Universitária; 2012.
  • 12
    Deleuze G, Parnet C. Diálogos.: Ribeiro EA, tradutor. São Paulo: Escuta; 1998.
  • 13
    Universidade Federal de Alagoas. Projeto do PET-Saúde II / Saúde da Família – campus Maceió/UFAL. Maceió: Universidade Federal de Alagoas; 2009.
  • 14
    Bernardes JS, Guerda RAS, Silva LB. A “Roda de Conversa” como dispositivo ético-político na pesquisa social. In: Lang C, Bernardes JS, Ribeiro MAT, Zanotti SV, organizadores. Metodologias - pesquisas em saúde, clínica e práticas psicológicas. Maceió: EDUFAL; 2015. p. 13-34.
  • 15
    Nascimento VLV, Tavanti RM, Pereira CCQ. O uso de mapas dialógicos como recurso analítico em pesquisas científicas. In: Spink MJP, Brigagão JIM, Nascimento VLV, Cordeiro MP, organizadoras. A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2014. p. 247-72.
  • 16
    Ceccim RB, Feuerwerker L. Mudança na graduação das profissões de saúde sob o eixo da integralidade. Cad Saude Publica. 2004; 20(5):1400-10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2018
  • Aceito
    18 Nov 2018
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br