Confiança: valor-fonte da experiência de usuários com o Programa Mais Médicos em um município catarinense

Trust: value sourced of users’ experience with the More Doctors Program in a city located in the state of Santa Catarina

Confianza: valor-fuente de la experiencia de usuarios con el Programa Más Médicos en un municipio del Estado de Santa Catarina

Davi Miranda Rita de Cássia Gabrielli Souza Lima Sobre os autores

Resumos

O artigo analisa a percepção de usuários da Atenção Básica de um município catarinense sobre eventuais mudanças imateriais tecidas no processo cotidiano de suas vidas após a chegada do Programa Mais Médicos. Trata-se de um estudo qualitativo, de abordagem humanística de análise da realidade, desenvolvido entre fevereiro e março de 2018 por meio de entrevistas semiestruturadas com 16 usuários indicados por agentes comunitários de saúde. Os resultados iluminaram a confiança como um valor-fonte da experiência de produção do cuidado, oportunizada pela valorização de um modo de fazer medicina de base que tem como farol o processo de rotina e a formação de vínculo. Concluiu-se que, sem um conhecimento prolongado, dirigido para relações simétricas, não se consolidam as garantias necessárias para a realização do tão caro encontro entre confiante (usuário) e confiável (médico) na Atenção Básica.

Confiança; Programa Mais Médicos; Clínica médica; Atenção básica


The article analyzes the perception of Primary Care users, in a city located in the state of Santa Catarina, about possible immaterial changes wove in the daily process of their lives after the implementation of the More Doctors Program. It is a qualitative study with a humanistic approach to the analysis of reality, developed in February and March 2018, by means of semi-structured interviews with sixteen users indicated by community health agents. The results revealed trust as a value sourced of the care production experience, enabled by the importance given to one way of providing primary care whose beacon is the routine process and the formation of bonds. The conclusion was that, without a long-lasting knowledge targeted at symmetrical relationships, the necessary guarantees to the fulfilment of the precious encounter between the one who trusts (user) and the one who can be trusted (doctor) are not consolidated in Primary Care.

Trust; More Doctors Program; Medical clinic; Primary care


El artículo analiza la percepción de usuarios de la Atención Básica de un municipio de Santa Catarina sobre eventuales cambios inmateriales tejidos en el proceso cotidiano de sus vidas después de la llegada del programa Más Médicos. Estudio cualitativo de abordaje humanístico de análisis de la realidad, desarrollado entre febrero y marzo de 2018 por medio de entrevistas semiestructuradas con dieciséis usuarios indicados por agentes comunitarias de la salud. Los resultados iluminaron la confianza como un valor-fuente de la experiencia de producción del cuidado, posibilitada por la valoración de una forma de hacer medicina de base que tiene como guía el proceso de rutina y la formación de vínculo. Se concluye que, sin un conocimiento prolongado, dirigido hacia relaciones simétricas, no se consolidan las garantías necesarias para la realización del tan deseado encuentro entre confiante (usuario) y confiable (médico) en la Atención Básica.

Confianza; Programa Más Médicos; Clínica médica; Atención básica


Introdução

Em 5 de outubro de 2019, a Constituição Federal completou ٣١ anos. A Carta Magna, chamada por Ulisses Guimarães de Constituição Cidadã11. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Senado Federal; 1988., fez sonhar milhões de brasileiros, em 1988, ávidos pelo despertar da nova república. Para os movimentos sociais e políticos que lutavam em defesa da redemocratização do Estado, especialmente para o Movimento de Reforma Sanitária, a Seção da Saúde do Capítulo da Seguridade Social reconheceu o desejo e a necessidade de saúde como direito de cidadania, manifestados pela sociedade brasileira na VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS)22. Brasil. Ministério da Saúde. Oitava Conferência Nacional de Saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 1986 [citado 15 Jun 2019]. Disponível em: bvsarouca.icict.fiocruz.br/sanitarista06.html
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, realizada dois anos antes. Ao dispor no artigo 196, inaugural da Seção da Saúde, que “[...] saúde é direito de todos e dever do Estado [...]”, os constituintes chancelaram saúde como direito social exigível do Estado33. Brasil. Constituição Federal Interpretada. 9a ed. São Paulo: Editora Manole; 2018., cujo caráter é, portanto, democrático e republicano.

No entanto, ao determinar, no mesmo artigo, que o direito à saúde seria garantido “[...] mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos”, ou seja, que seria garantido por medidas preventivas genéricas33. Brasil. Constituição Federal Interpretada. 9a ed. São Paulo: Editora Manole; 2018., a objetivação dos meios para realizar saúde como direito social acabou promovendo, no devir, um escoamento da boa dose da confiança sistêmica44. Luhamnn N. La fiducia. Bologna: II Mulino; 2002.

5. Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2009.
-66. Novelli JGN. Confiança interpessoal na sociedade de consumo: a perspectiva gerencial. São Paulo [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2004., presente no momento histórico. O conceito de saúde conquistado pela VIII CNS, de 198622. Brasil. Ministério da Saúde. Oitava Conferência Nacional de Saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 1986 [citado 15 Jun 2019]. Disponível em: bvsarouca.icict.fiocruz.br/sanitarista06.html
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, entende que “[...] saúde é, antes de tudo, o resultado das formas de organização social de produção que podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida” e foi substituído por saúde como resultante da “redução do risco de doença e de outros agravos”, o que acabou freando a intensidade da conquista socialmente vivenciada.

Além disso, ventos neoliberais sopravam o Brasil. A grande maioria dos países que haviam desfrutado de um Estado de Bem-Estar Social já sinalizavam, desde meados da década de 1970, que haviam rompido com o pacto estabelecido entre capital e trabalho77. Fagnani E. Política social no Brasil (1964-2002): entre a caridade e a cidadania. Campinas [tese] [Internet]. Campinas: Unicamp; 2005 [citado 22 Maio 2018]. Disponível em: neppos.unb.br/publicacoes/Politica%20Social%20no%20Brasil%20(1964-2002).pdf. Na década de 1980, esses países começaram a centrar forças em defesa da não intervenção do Estado na economia, inclusive no campo social, com base na organização política, conhecida como capitalismo financeiro-rentista ou neoliberal88. Bresser-Pereira LC. Capitalismo financeiro-rentista. Estud Av. 2018; 92(32):17-29..

A redução constitucional do conceito de saúde e a chegada do neoliberalismo no Brasil sinalizavam a possibilidade de alargamento dos abismos sociais, ainda que em horizonte democrático. Nesse contexto, entretanto, a confiança sistêmica44. Luhamnn N. La fiducia. Bologna: II Mulino; 2002.

5. Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2009.
-66. Novelli JGN. Confiança interpessoal na sociedade de consumo: a perspectiva gerencial. São Paulo [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2004. ganha novo fôlego com o encaminhamento do Projeto de Lei n. 3.110/8999. Brasil. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 3.110, de 1 de Agosto de 1989. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências [Internet]. Brasília; 1989 [citado 19 Jun 2019]. Disponível em: camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=209729 pelo Senado Federal ao então presidente Fernando Collor de Mello, dispondo sobre as ações, organização e funcionamento dos serviços de saúde. O projeto, ao definir saúde como bem jurídico e direito fundamental e ao defender a descentralização, o controle social e padrões de qualidade para a assistência, mostrava-se potente para agasalhar a luta do Movimento Sanitário pela redução das desigualdades sociais e regionais em saúde.

No entanto, o que era para ser parte de um amplo processo de transformação social da engessada situação sanitária acabou sendo massacrado no levante neoliberal imposto pelo governo Fernando Collor de Mello. Collor sancionou a Lei Orgânica da Saúde1010. Brasil. Presidência da República. Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 20 Set 1990; sec. 1, p. 18055., mas com inúmeros vetos (alguns posteriormente reassumidos em uma segunda Lei Orgânica); e acabou por aumentar a miséria e acentuar as desigualdades sociais, período assinalado por Fagnani77. Fagnani E. Política social no Brasil (1964-2002): entre a caridade e a cidadania. Campinas [tese] [Internet]. Campinas: Unicamp; 2005 [citado 22 Maio 2018]. Disponível em: neppos.unb.br/publicacoes/Politica%20Social%20no%20Brasil%20(1964-2002).pdf como o de contramarchas impostas aos direitos sociais, levando “ao desvirtuamento dos princípios constitucionais relativos ao Sistema Único de Saúde (SUS)": universalidade, igualdade e integralidade (p. 411).

Mas nem tudo nesses 31 anos do SUS foram trevas. Além de a sociedade brasileira conquistar a Lei 8080/90, entidades nacionais representantes dos Movimentos Sanitário, movimentos acadêmicos da Saúde Coletiva, movimentos sociais organizados e gestores municipais representantes de instâncias federativas de negociação mantiveram acesas as “‘chamas da utopia [...] os valores da Saúde enquanto direito de cidadania”1111. Santos NR. Desenvolvimento do SUS, rumos estratégicos e estratégias para visualização dos rumos. Cienc Saude Colet. 2007; 12(2):429-35. (p. 431). Vários programas e/ou políticas públicas setoriais foram criados e juntaram-se ao arcabouço constitucional e legal do SUS, por meio de uma segunda lei orgânica, portarias, decretos, medidas provisórias, normas, pactos, cadernos, contratos e leis complementares. Há que se destacar a implementação da “primeira política sistemática para a Atenção Básica”1212. Campos GWS, Pereira Júnior N. A Atenção Primária e o Programa Mais Médicos do Sistema Único de Saúde: conquistas e limites. Cienc Saude Colet. 2016; 21(9):2655-63. (p. 2656), composta por dois programas: o Programa Agentes Comunitários de Saúde e o Programa Saúde da Família, delineando condições para que o SUS se estruturasse de modo hierarquizado, conforme determinava o artigo 198 da Constituição Federal. Em 2006, os dois programas foram incorporados à Política Nacional de Atenção Básica1313. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2436/GM/MS, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2017 [citado 23 Mar 2019]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/MatrizesConsolidacao/comum/250584.html
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As posteriores temporalidades, confrontadas pelas realidades dramáticas de uma sociedade que há tempos sonha em ver o pagamento de seus impostos convertido em saúde como direito social, expuseram a necessidade de o Governo Federal enfrentar o desafio de promover a descontinuidade de duas realidades: a carência de formação de força de trabalho para a Atenção Básica do SUS e a necessidade de minimamente frear a histórica desigualdade distributiva de médicos na Atenção Básica1414. Pinto HA, Oliveira FP, Santana JSS, Santos FOS, Araujo SQ, Figueiredo AM, et al. Programa Mais Médicos: avaliando a implantação do Eixo Formação de 2013 a 2015. Interface (Botucatu). 2019; 23 Suppl 1:e170949..

Nasceu o Programa Mais Médicos (PMM), em 2013. Instituído pela Medida Provisória (MP) 621, em 8 de julho de 20131515. Brasil. Presidência da República. Medida Provisória nº 621, de 8 de Julho de 2013. Convertida na Lei nº 12.871/2013. Institui o Programa Mais Médicos [Internet]. Brasília: Presidência da República; 2013 [citado 23 Jun 2019]. Disponível em: planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/mpv/mpv621.htm
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, convertida na Lei nº 12.8711616. Brasil. Casa Civil. Lei nº 12.871, de 22 de Outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos altera as Leis nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e nº 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. 23 Out 2013 [citado 20 Jun 2019]. Disponível em: planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12871.htm
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, em 22 de outubro de 2013, o programa pôs-se em marcha com a finalidade de formar força de trabalho na área médica da Atenção Básica, e com oito objetivos a serem cumpridos. Entre esses, cabe destacar o fortalecimento dos serviços de Atenção Básica por meio de provimento emergencial de médicos como resposta imediata à escassez de médico em áreas prioritárias do SUS. Da publicação da MP até maio do presente ano, foram publicados vários editais de adesão e de renovação, tanto de médicos como de municípios, com diferentes condições de elegibilidade1717. Miranda D. Programa Mais Médicos: uma política indutora de cidadania? [dissertação]. Itajaí: Universidade do Vale do Itajaí; 2018.,1818. Brasil. Programa Mais Médicos [Internet]. Brasília; 2019 [citado 18 Jun 2019]. Disponível em: maismedicos.gov.br
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Pesquisa de campo avaliativa desenvolvida em 32 municípios de todas as regiões do Brasil, além de análises sobre os 5.570 municípios brasileiros orientadas por bancos de dados do Ministério da Saúde, sinalizaram que o PMM corresponde a uma política indutora de mudanças na fixação de médicos na Atenção Básica1919. Santos WD, Comes Y, Pereira LL, Costa AM, Merchan-Hamann E, Santos LMP. Avaliação do Programa Mais Médicos: relato de experiência. Saude Debate. 2019; 43(120):256-68.. Estudos desenvolvidos sobre o PMM, na visão de usuários, apontaram para a produção de um cuidado qualificado porque humanizado e integral1919. Santos WD, Comes Y, Pereira LL, Costa AM, Merchan-Hamann E, Santos LMP. Avaliação do Programa Mais Médicos: relato de experiência. Saude Debate. 2019; 43(120):256-68.

20. Comes Y, Trindade JS, Shimizu HE, Hamann EM, Bargioni F, Ramirez L, et al. Avaliação da satisfação dos usuários e da responsividade dos serviços em municípios inscritos no Programa Mais Médicos. Cienc Saude Colet. 2007; 21(9):2749-59.

21. Liz RG, Lima RCGS. Percepções de usuários sobre o impacto social do projeto de cooperação do Programa Mais Médicos: um estudo de caso. Interface (Botucatu). 2017; 21 Suppl 1:1281-90.
-2222. Seixas CT, Baduy RS, Cruz KT, Bortoletto MSS, Slomp JH, Merhy EE. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170627.. Tais atributos têm potência para promover mudanças imateriais positivas em suas vidas.

Neste artigo, propõe-se analisar a percepção de usuários da Atenção Básica do SUS de um pequeno município catarinense sobre as mudanças imateriais tecidas no processo cotidiano de suas vidas, após a chegada do PMM. Na perspectiva assumida, o processo saúde-doença é um dos processos sociais constitutivos da cotidianidade.

Metodologia

O estudo é social-qualitativo, de abordagem humanística2323. Manacorda MA. Antonio Gramsci: l’alternativa pedagógica. Roma: Riuniti; 2012., aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade do Vale do Itajaí, Santa Catarina, Brasil, em 21 de outubro de 2017 (parecer nº 1.221.920), e desenvolvido em conformidade com a Declaração CNS 466/2012.

A amostra foi do tipo intencional e constituída por usuários da Atenção Básica de um município de pequeno porte, situado na Região de Saúde de Laguna, sul do estado de Santa Catarina, Brasil. Em 2015, 24,4% da população local residia em domicílios com rendimentos mensais de até meio salário-mínimo por pessoa2424. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2019 [citado 16 Maio 2018]. Disponível em: cidades.ibge.gov.br/brasil/sc/braco-do-norte/panorama
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A escolha por este município se deu a partir de resultado gerado pela pesquisa estadual “Impacto Social do Programa Mais Médicos em Santa Catarina: realidades e perspectivas”, desenvolvida por pesquisadores do Programa de Mestrado em Saúde e Gestão do Trabalho da Universidade do Vale do Itajaí, Santa Catarina, no período 2015-2017. O mapeamento quantitativo de médicos da Atenção Básica catarinense (referência de março 2016), realizado pela pesquisa estadual1717. Miranda D. Programa Mais Médicos: uma política indutora de cidadania? [dissertação]. Itajaí: Universidade do Vale do Itajaí; 2018., havia diagnosticado que o referido município, com pouco mais de trinta mil habitantes, contava com oito médicos do PMM. Esse quantitativo de médicos lotados pelo programa, em um município de pequeno porte, em interlocução com resultados favoráveis gerados por pesquisas qualitativas com usuários2020. Comes Y, Trindade JS, Shimizu HE, Hamann EM, Bargioni F, Ramirez L, et al. Avaliação da satisfação dos usuários e da responsividade dos serviços em municípios inscritos no Programa Mais Médicos. Cienc Saude Colet. 2007; 21(9):2749-59.

21. Liz RG, Lima RCGS. Percepções de usuários sobre o impacto social do projeto de cooperação do Programa Mais Médicos: um estudo de caso. Interface (Botucatu). 2017; 21 Suppl 1:1281-90.
-2222. Seixas CT, Baduy RS, Cruz KT, Bortoletto MSS, Slomp JH, Merhy EE. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170627., motivou a realização do estudo. No reconhecimento do campo, realizado em outubro de 2017, constatou-se que o município contava com dez médicos do PMM, sendo que nove eram brasileiros(as) e um(a) era cubano(a).

Buscou-se, inicialmente, conhecer a organização da Atenção Básica local e identificar o quadro de agentes comunitários de saúde (ACSs), uma vez que o desenho metodológico havia previsto a escolha de usuários por meio da indicação de ACSs. As duas ações foram fundamentais para a construção da amostra. Em conversa com o gestor local, soube-se que a elegibilidade do município havia sido aprovada em 2013, na época de sua candidatura no primeiro edital do Governo Federal, e que, naquele mesmo ano, o município já havia recebido três médicos pelo programa. Nesse encontro, tomou-se ciência de que a Atenção Básica do município estava organizada em oito Unidades Básicas de Saúde (UBSs).

De posse do quadro de ACSs, fez-se um sorteio aleatório para eleger os(as) que seriam convidados para indicar dois usuários de cada UBS, com base nos critérios de inclusão: ser morador do município há pelo menos cinco anos – visto que a sua elegibilidade havia sido aprovada em 2013 – e receber atenção médica por um médico do PMM. Uma vez indicados os 16 participantes, os convites foram feitos, pessoalmente, em suas residências. Todos concordaram em participar.

Quanto ao perfil dos usuário(a)s que participaram do estudo, 90% apresentavam renda familiar mensal entre um e três salários mínimos; 60% eram do sexo feminino e 40%, do sexo masculino; 80% eram moradores da área urbana e 20%, da área rural; e 40% tinham o ensino médio completo e 60%, ensino médio incompleto, fundamental completo ou incompleto.

A coleta de dados aconteceu durante os meses de fevereiro e março de 2018, nas salas de atendimento médico das UBSs, com base em agendamentos prévios efetuados por ACSs, em horários indicados pelos usuários. As entrevistas, do tipo semiestruturada, foram precedidas por uma entrevista-piloto feita com uma usuária, para fins de eventuais readequações do instrumento. Constatadas a sua pertinência e representatividade, procedeu-se às entrevistas.

Seguindo um roteiro previamente orientado por questões temáticas, iniciou-se a entrevista com uma questão conjuntural, visando à exploração de elementos indicativos de como atualmente o usuário tem caminhado na andança da vida, como ele a percebe neste momento histórico. As demais questões abordaram: apropriação sobre o programa; sentimentos e valores gerados pela chegada de médicos pelo programa; relação UBS-usuário após a chegada de médicos pelo programa; motivação para mobilizar-se frente a situações adversas; e se e de que modo o fenômeno da violência se faz presente na realidade local.

As entrevistas foram gravadas em áudio; o anonimato do participante do projeto-piloto foi garantido por meio do uso das letras PP (participante-piloto) e o dos demais participantes foi garantido por meio do uso da letra P, seguida de números sequenciais. O material foi transcrito e organizado com o auxílio do software Atlas.ti®, em uma unidade hermenêutica nomeada MM Município Sul do Estado. Por meio de leituras sucessivas, foram selecionadas unidades de registro (menções/citações) para as quais foram atribuídos códigos (total=18), com base majoritária no referencial do estudo; em seguida, procedeu-se à categorização. Em virtude de optar-se por analisar o material em perspectiva humanística, para fins de diálogo entre a historicidade do objeto e suas tendências contraditórias2323. Manacorda MA. Antonio Gramsci: l’alternativa pedagógica. Roma: Riuniti; 2012., o procedimento analítico não foi realizado com o auxílio do software. Após a codificação do material, explorou-se o material transversalmente, visando à categorização, em um esforço de síntese2525. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 2014.. A categoria deflagrada foi: “Confiança: um valor-fonte da experiência de usuários com o Programa Mais Médicos”.

Resultados e discussão

Os resultados são apresentados avançando de uma contextualização inicial do cenário da atenção médica da Atenção Básica, antes da chegada do PMM, para a tentativa de aprofundar analiticamente a discussão, com referenciais teóricos da Atenção Básica e das Ciências Humanas.

Com essa opção de apresentação dos resultados, busca-se expor unidades de registro em diálogo com os referenciais e perspectivas correlatas dos autores, para fins de estruturação do caminho analítico.

A maior parte dos participantes expôs, a um só tempo, um desconhecimento sobre o PMM e a percepção de que em um dado momento começou a chegar médico no município que trabalhava de um jeito diferente, com mais paciência no trato com os usuários e sem a tendência natural – a de não estar presente regularmente no serviço: “[...] não conheço, não” (P1); “[...] não sei, mas que tá diferente o médico do postinho, tá” (P7). Entre o desconhecimento do PMM e a percepção de que algo se mostrava diferente na atenção médica local, reside uma questão eticamente questionável: o desrespeito para com o direito de acesso à informação pública.

Essa realidade expõe uma contradição que requer enfrentamento por parte das três esferas de governo: o desconhecimento da sociedade sobre políticas públicas e programas de governo. Esse enfrentamento, enquanto uma necessidade histórica, deve ser tripartite, pois a mesma Constituição que consagrou o SUS refundou o federalismo brasileiro como federalismo cooperativo. Reconhecendo os municípios como governo, com autonomia política e administrativa11. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Senado Federal; 1988., as relações intergovernamentais entre União, estados e municípios não podem prescindir, ao menos, de garantir o direito da sociedade à informação. Não se está colocando em questão a comunicação nas políticas públicas2626. Araújo IS. Mercado simbólico: um modelo de comunicação para políticas públicas. Interface (Botucatu). 2004; 8(14):165-78., mas simplesmente o direito à informação, sobretudo, à informação pública. Com isso, não se quer dizer que não haja produção de informações por instituições governamentais; ao contrário, há um rol robusto de produção de informações de interesse público, mas nem sempre elas são difundidas de modo a produzir conhecimento, a chegar no cidadão2727. Ribeiro CPP, Pereira ADS, Silva EA, Faroni W. Difusão da informação na administração pública. Transinformação. 2011; 23(2):159-71.. Considerando que o PMM foi planejado como uma ação política de interesse público, a qualidade de seu processo de execução depende do modo como são construídas as relações de confiança entre as partes interessadas e afetadas por suas decisões. Sem a produção de conhecimento, gerada pela informação, não se constrói relações de confiança2828. Oliveira JAP. Repensando políticas públicas: por que frequentemente falhamos no planejamento? In: Martins PEM, Pieranti OP, organizadores. Estado e Gestão Pública: visões do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: FGV; 2006. p. 189-204..

Um dos participantes que sabia da existência do PMM sinalizou que “[...] antigamente, quando tinha médico e não era deste programa, faltava muito” (P12). A realidade anterior ao PMM, portanto, mostrava-se restritiva para a construção de uma clínica médica ancorada na continuidade e na longitudinalidade da atenção médica, preceitos da Atenção Básica1313. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2436/GM/MS, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2017 [citado 23 Mar 2019]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/MatrizesConsolidacao/comum/250584.html
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Na relação com os dados, percebeu-se que a satisfação do usuário em relação à clínica médica na Atenção Básica é dependente de um ponto de partida fundamental: a existência de confiança (inter)pessoal no processo de trabalho médico comprometido com ele que, se incorporada na rotina das ações cotidianas, poderá resultar na produção de confiança sistêmica44. Luhamnn N. La fiducia. Bologna: II Mulino; 2002.

5. Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2009.
-66. Novelli JGN. Confiança interpessoal na sociedade de consumo: a perspectiva gerencial. São Paulo [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2004.. Nessa linha compreensiva, a produção de confiança sistêmica pressupõe a existência de rotinização, pois uma atenção médica torna-se confiável por meio de sua contínua reprodução; é preciso conhecimento prolongado, sem o qual não se consolidam as garantias necessárias para que uma pessoa se torne confiável na perspectiva do outro55. Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2009. (p. 70).

Usuários relataram que, antes da chegada do PMM, a Atenção Básica local convivia com um limite estrutural: a alta rotatividade de médicos. A troca rotineira de médicos – como mostra o relato “[...] ‘olha doutor, eu tô me sentindo assim, o problema é este’, aí chega outro: ‘ah este medicamento...’ aí você ficava sem saber” (P4) –, principalmente quando relacionada à ruptura na continuidade de um tratamento que carecia de um maior período, mostrou-se como uma fronteira à condição de “acostuma[r] com o médico” (P4). Esse relato denota que a falta de rotina alimenta a percepção de vulnerabilidade e, com efeito, a de ausência de confiança (inter)pessoal44. Luhamnn N. La fiducia. Bologna: II Mulino; 2002.

5. Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2009.
-66. Novelli JGN. Confiança interpessoal na sociedade de consumo: a perspectiva gerencial. São Paulo [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2004..

O que P4 parece revelar é a importância de regularidade na permanência do médico, reforçando o argumento de que um sistema confiável não prescinde de processo de rotina55. Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2009.;. “[...] sempre que eu venho, eu procuro ela [do Mais Médicos] [...] toda vida procurei por ela, vinha na parte da tarde, querendo ou não a gente pega aquela confiança no médico, né, [...] a gente acostuma com o médico” (P4).

Acostumar-se, em seu sentido semântico, significa tomar um costume, habituar-se. Do ponto de vista do filósofo Nicola Abbagnano, entretanto, acostumar-se e habituar-se têm distintos significados. Enquanto habituar-se constitui-se em um verbo pronominal introduzido na linguagem filosófica por Aristóteles como “uma disposição para estar bem ou mal disposto, em relação a alguma coisa, tanto em relação a si mesmo quanto a outra coisa”, acostumar-se corresponde ao “mecanismo de repetir frequentemente [uma] ação”2929. Abbagnano N. Dicionário de filosofia. 5a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2007. (p. 576).

Nessa lógica, o significado de ter por hábito dirigir-se à UBS em busca de médico frente a uma determinada indisposição é diferente do mecanismo deliberado exposto na expressão “a gente acostuma com o médico” (P4). No primeiro caso, está implícito um tipo de compromisso que pode representar também sofrimento (caso não haja médico); já o segundo não implica possível sofrimento, mas rotina. Essa rotina só é construída se a atenção se reproduz55. Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2009., isto é, se o profissional médico está na UBS para recebê-lo.

É fato que o limite estrutural de baixa fixação de médicos regulares não é exclusivo do município em questão, uma vez que esse limite é experimentado por outros municípios brasileiros, menos iluminados economicamente. Aqueles que convivem com a oferta do maior salário, imposta pelos municípios que têm uma melhor arrecadação desfrutam, assim, de liberdade para estabelecer tetos salariais mais atrativos. De todo modo, a chegada de médicos pelo PMM transformou a percepção de vulnerabilidade, inscrita na relação entre confiante (usuário) e confiado (médico)66. Novelli JGN. Confiança interpessoal na sociedade de consumo: a perspectiva gerencial. São Paulo [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2004., até então:

[...] sempre que eu venho, eu procuro ela [do Mais Médicos]. (P. 4)

[...] a doutora X tava ali, né, ela já sabe o que se passa comigo, aí vem outro médico já vai ter que iniciar tudo novamente, é complicado a pessoa já fica naquela dúvida, né, “Será que vai dar certo comigo?”. (P12)

Ainda que no período de lançamento (julho a setembro de 2013) o PMM tenha sido objeto de críticas por parte de entidades médicas filiadas a diferentes grupos de interesse na área da saúde3030. Silva VO, Rios DR, Soares CLM, Pinto IC, Teixeira CF. O Programa Mais Médicos: controvérsias na mídia. Saude Debate. 2018; 42(117):489-502.; e que diferentes governos tenham modificado as condições de elegibilidade de médicos e municípios, ao longo do desenvolvimento do programa, a realidade é de que o provimento do PMM se tornou, em pouco tempo, parte da rotina e da cultura de muitos municípios.

O movimento ético-político, engendrado por médicos do PMM lotados no município, com a finalidade de se constituírem parte da cultura local, resultou na composição de uma matriz pedagógica para a formação de profissionais médicos da Atenção Básica:

[...] quando implantaram este Programa Mais Médicos, isto foi uma coisa muito boa, não apenas pelo médico bom que veio, mas pelos nossos que melhoraram, entende? [...] quando o Dr. tava aqui, podia ter 20 fichas, podia dar 19 pra [ele] e nenhuma pro outro [médico regular]. Pensa bem se tivesse 20 pessoas, todos querem ele. (P6)

A fala de P6 aponta para uma mudança na relação entre usuários e médicos regulares contratados diretamente pelo município, em função da melhoria da qualidade da atenção médica. O usuário socializou, ainda, que um médico regular parecia se sentir o “bom da boca” por ser uma força de trabalho importante do “postinho”. Em seu depoimento, simulou uma cena: “[...] mas tu acha que tu é o bom da boca ali, porque não tem um reserva a tua altura, na hora que eles irem lá e trouxerem um cara bom, tu já fica com medo dele”.

Utilizando-se de uma realidade futebolística na qual o titular do time luta para não perder o lugar para o reserva, e se não houver reserva, o titular tende a relaxar na posição que ocupa, o usuário parece flertar com esta realidade vivenciada antes da criação do PMM, sinalizando que a condição de “o bom da boca” pode ter sido gerada pela ausência de reserva para ocupar o seu lugar. A chegada do programa parece ter trazido outro tipo de atleta, não para disputar a posição, mas para somar-se ao quadro da força de trabalho da UBS. A vinda de médicos pelo PMM acabou movimentando profissionais médicos que já estavam na Atenção Básica, incitando-os a uma mudança na postura da atenção, melhorando, por consequência, a atenção médica. Essa função pedagógica reflete a finalidade do PMM1616. Brasil. Casa Civil. Lei nº 12.871, de 22 de Outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos altera as Leis nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e nº 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. 23 Out 2013 [citado 20 Jun 2019]. Disponível em: planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12871.htm
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/...
e traduz um fôlego de confiança sistêmica à comunidade local44. Luhamnn N. La fiducia. Bologna: II Mulino; 2002.

5. Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2009.
-66. Novelli JGN. Confiança interpessoal na sociedade de consumo: a perspectiva gerencial. São Paulo [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2004.:

Como eu peguei a confiança, a família inteira pegou, [...] muita gente fala muito desse Dr. Y, como um grande médico, eu sou parente do Dr. X, mas eu prefiro o Dr. Y. (P5)

[...] depois que começou a vir outros médicos [...] melhorou bastante em relação a medicamentos, exames, [...] eles são mais atenciosos com a gente em relação a isto. (P9)

Cabe reforçar que 90% dos médicos lotados pelo PMM no município em questão eram brasileiros, o que sinaliza a importância do programa na qualificação da atenção médica da Atenção Básica.

Refletindo que, a um só tempo, programas e políticas do campo da saúde cultivam uma cultura de desalinhamento em relação a metas de longo prazo e que o país ainda não apresenta um mecanismo de coordenação federativa para a fixação de médicos na Atenção Básica, a presença regular de médico pelo PMM, ainda que somente por um ano (conforme relatado por P4, supracitado, havia um ano que ele estava sendo cuidado por um médico do Programa: “a gente acostuma com o médico”), já faz a diferença para o usuário, pois, na continuidade ininterrupta da atenção, por esse breve período, floresce a confiança.

Em contrapartida, a baixa fixação e a alta rotatividade do profissional médico contratado pelo município, para a Atenção Básica, correspondem a “situações críticas” (p. 70), enquanto circunstâncias que “ameaçam ou destroem as certezas de rotinas institucionalizadas”55. Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2009. (p. 71).

“Olha, doutor, eu tô me sentindo assim, o problema é este”, ele me dá o medicamento, aí chega um outro que diz “Ah este medicamento não sei o quê”, aí você fica sem saber. (P12)

As falas aludidas revelam a importância da continuidade ininterrupta do relacionamento como ferramenta para a produção de confiança.

Na perspectiva de Bianchi e Liani3131. Bianchi L, Liani S. Fidarsi dela Fiducia?: uno studio sull’intensione del concetto. Quad Soc. 2017; 74:127-40., o relacionamento pautado na concessão e obtenção recíprocas de confiança fluidifica a complexidade cotidiana da vida e inscreve, nas pessoas envolvidas, o compromisso de não modificar os aspectos deflagradores da respectiva confiança estabelecida. P3 contextualiza essa linha de pensamento: “[...] quando a gente tem o médico da gente, a gente confia nele, ele já sabe qual é o jeito da gente e a gente sabe o dele”.

Embora o estabelecimento da confiança seja apontado pelos participantes como resultado “da gente [ter] o médico”, isto é, da permanência do médico do PMM na UBS por um período que rompe com o ciclo de rotatividade, torna-se necessário compreender a representatividade moral que a confiança assume na vida cotidiana de indivíduos, famílias e comunidades em situação de vulnerabilidade social.

Neste trabalho, a confiança foi apreendida como valor-fonte da clínica médica da Atenção Básica que se dispõe contínua e, por consequência, responsiva. Uma clínica guiada por um processo de rotinização55. Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2009., e que parece gerada entre iguais em sua condição humana, isto é, entre pessoa cuidadora e pessoa cuidada que se relacionam não de modo prescritivo, mas por meio de vínculo2020. Comes Y, Trindade JS, Shimizu HE, Hamann EM, Bargioni F, Ramirez L, et al. Avaliação da satisfação dos usuários e da responsividade dos serviços em municípios inscritos no Programa Mais Médicos. Cienc Saude Colet. 2007; 21(9):2749-59.

21. Liz RG, Lima RCGS. Percepções de usuários sobre o impacto social do projeto de cooperação do Programa Mais Médicos: um estudo de caso. Interface (Botucatu). 2017; 21 Suppl 1:1281-90.
-2222. Seixas CT, Baduy RS, Cruz KT, Bortoletto MSS, Slomp JH, Merhy EE. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170627. enquanto um dispositivo de revigoramento do cuidado. P3, por exemplo, relata ser diferente o “jeito do médico” do PMM e, se essa observação foi gerada, é porque houve acesso, isto é, o médico se fez acessar.

Pesquisa realizada em 2007 com médicos de família italianos, atuantes em municípios de diferentes portes, com o objetivo de compreender o modo como esses profissionais vivenciavam a relação entre saúde e sociedade na experiência de suas práticas, revelou distintas compreensões. No contexto metropolitano, havia a tendência de uma prática médica prescritiva, burocrática, cunhada na relação com o ser ontológico doença ou doente. No contexto urbano-industrial, aquele que dá ancoragem ao desenvolvimento da capital, a experiência da prática da medicina de família ora era atravessada pelo modelo burocrata, ora pelo modelo relacional. No contexto urbano-agrícola, entretanto, a prática ainda se mostrava solidária e pautada na vínculo, pois médicos de família reconheciam os usuários do Serviço Sanitário Nacional em sua inteireza, com dores e sabores para contar, implicados na determinação do processo saúde-doença e, com efeito, em demais processos sociais cotidianos3232. Lima RCGS, Verdi MIM. Reflexões sobre a relação entre saúde e sociedade no contexto italiano contemporâneo. Rev Bioet. 2011; 19(1):141-57..

Os dados do estudo ora apresentado foram analisados em um momento histórico nacional de grave crise política e econômica, e de ventos dramáticos de insustentabilidade de políticas públicas de acesso a bens essenciais, por exemplo, do PMM e do próprio SUS. Quando questionados sobre o fenômeno da violência, que vem ocupando um lugar central no debate contemporâneo3333. Lima LAA, Monteiro CFS, Júnior FJGS, Costa AVM. Marcos e dispositivos legais no combate à violência contra a mulher no Brasil. Rev Enferm Referência. 2016; serIV(11):139-46., uma participante expressou: “[...] pouco tempo agora, teve dois casos que o marido matou a ex-mulher, tem bastante também assalto nas casas [...] diz que é mais gente que vem de fora” (PP).

Esse contexto macro acabou participando das interpretações das falas e reforçando a compreensão, ainda que de modo inconformado, que são os momentos históricos que configuram o modo como uma dada corrente de pensamento em saúde se consolida. Se, de um lado, o barco parece à deriva, por outro, médicos advindos do PMM comunicaram, em um pequeno município catarinense, que uma atenção médica de qualidade não exige uma alta complexidade em sua prática, mas estar presente, fazer-se presente de modo rotineiro e responsivo para o outro que necessita de cuidado.

A chegada do Mais Médicos fez brilhar um novo horizonte, no município de estudo, no que se refere ao resgate do direito à atenção médica contínua da população local. A problemática aqui abordada não finda nessa socialização, nem mesmo tem-se a pretensão para tanto, mas aponta para a necessidade da existência de outros estudos, contextuais e abrangentes, que contribuam para o aprofundamento conceitual e para a criação de instrumentos operacionais capazes de captar o valor confiança na dinâmica das relações sociais.

Considerações finais

A relação com os dados sinalizou que as mudanças imateriais tecidas no processo cotidiano da vida dos usuários, residentes em um município catarinense socialmente vulnerável, após a chegada do PMM, convergiram para um cenário de segurança, no âmbito da regularidade da presença do médico – fazer-se presente –, em que pese o desconhecimento do programa.

A confiança se apresentou como um valor-fonte de satisfação e quatro apontamentos são destacados para a sua construção na realidade local.

O primeiro consiste na assunção de que a história e o contexto são elementos-chave. Antes da chegada do programa, havia uma construção local importante de absenteísmo e alta rotatividade. O município convivia também com o limite estrutural nacional de desinteresse de médicos pelo trabalho na Atenção Básica em municípios socialmente vulneráveis; um produto, entre outros, da ausência de um mecanismo de coordenação federativa para a fixação de médicos na Atenção Básica e, com efeito, da perpetuação do modelo hegemônico de atrair profissionais para os grandes centros, deixando os menos assistidos à mercê da sorte. O resultado era um cotidiano permeado de insegurança, pois usuários sentiam-se desprotegidos de atenção médica contínua, pela incerteza da presença do médico para atendê-lo no, então socialmente reconhecido, “postinho” de saúde.

O segundo apontamento é referente ao desconhecimento do programa. Usuários relataram que sentiram mudanças na atenção médica, mas não tinham conhecimento do Programa Mais Médicos.

O terceiro é que a produção de confiança, por meio da qual germina a relação salutar entre confiante (usuário) e confiável (médico), não se dá em cenário de alta rotatividade, por requerer um processo de rotinização e de formação de vínculo. A incorporação da confiança interpessoal na rotina das ações cotidianas poderá resultar em confiança sistêmica, fluidificando a pequenez moral que a ausência desse valor gera em indivíduos, famílias e comunidades em contexto de vulnerabilidade social. Confiança, portanto, como determinante de saúde.

Por fim, depoimentos sinalizaram que, ao fazer-se presente e ao inserir-se na cultura local, o médico do PMM afetou a conduta de profissionais contratados diretamente pelo município.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2019
  • Aceito
    05 Jun 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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