Devir Margarida: narrativas de si em experienciafetos ** O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Brasil.

Rita de Cássia Maciazeki-Gomes Judit Herrera Ortuño Sobre os autores

Resumos

Neste ensaio rizomático, evocamos cenas, imagens e afetos acionados com a participação das mulheres trabalhadoras rurais da V Marcha das Margaridas. A experiência e a narração articulam ferramentas potentes na transmissão de histórias em sua singularidade, diferença e multiplicidade. A escrita demarca um registro possível, uma abertura para estar junto na produção de uma escuta implicada e sensível dos efeitos da experiência de um “devir Margarida”. O caminho percorrido irrompe entre fragmentos, recortes descontínuos, impregnado por experienciafetos em sua dimensão ética, estética e política. Com alegria e colorido, as mulheres vêm à público performatizar um ato-manifesto na luta contra os retrocessos e pela garantia de direitos. Em marcha, as margaridas protagonizam ações políticas em prol do bem viver de suas comunidades e questionam os estereótipos tradicionais de gênero.

Mulheres trabalhadoras rurais; Ação política; Movimento social; Experiência; Narração


Agosto de 2015. Ônibus. Viagem. Rasgar as estradas, percorrer mais de trinta e seis horas de viagem do ponto de partida – a cidade de Três de Maio – até o ponto de destino: Brasília. O que poderia parecer uma viagem cansativa, pela quantidade gigantesca de horas, durante um dia e uma noite, nem um pouco pesou na minha decisão [...]. Não tive dúvidas em aceitar um lugar no ônibus, e na mesma hora, confirmei minha presença na viagem em direção à V Marcha das Margaridas 11. Maciazeki-Gomes RC . Narrativas de si em movimento: uma genealogia da ação política de mulheres trabalhadoras rurais do sul do Brasil [ tese ]. Porto, Florianópolis : Universidade do Porto, Universidade Federal de Santa Catarina ; 2017 . . (p. 147)

Neste ensaio rizomático, evocamos cenas, imagens ccCréditos das imagens: as imagens foram produzidas pela primeira autora, Rita de Cássia Maciazeki-Gomes, na V Marcha das Margaridas, em 2015. e afetos acionados com a participação junto com as trabalhadoras rurais, da delegação da região noroeste do Rio Grande do Sul, na V Marcha das Margaridas, em Brasília, Distrito Federal. Este estudo é parte de um projeto maior que resultou na tese de doutorado intitulada “Narrativas de si em movimento: uma genealogia da ação política de mulheres trabalhadoras rurais do Sul do Brasil” 11. Maciazeki-Gomes RC . Narrativas de si em movimento: uma genealogia da ação política de mulheres trabalhadoras rurais do sul do Brasil [ tese ]. Porto, Florianópolis : Universidade do Porto, Universidade Federal de Santa Catarina ; 2017 . e no registro audiovisual “Margaridas, luta e pé na estrada” 22. Maciazeki-Gomes RC . Margaridas, luta e pé na estrada [ Internet ]. Youtube ; 2017 [ citado 17 Abr 2019 ]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8hhV0
https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8h...
. Ao evocarmos o território produzido pela Marcha das Margaridas (2015), contamos com a experiência e a narração como ferramentas potentes “na transmissão de histórias, em sua singularidade, diferença e multiplicidade” 11. Maciazeki-Gomes RC . Narrativas de si em movimento: uma genealogia da ação política de mulheres trabalhadoras rurais do sul do Brasil [ tese ]. Porto, Florianópolis : Universidade do Porto, Universidade Federal de Santa Catarina ; 2017 . (p. 22).

Experiência e narração como modos outros de falar, escutar, compartilhar e fazer reverberar os saberes periféricos, negligenciados pela história oficial. Existências minoritárias, presentes em uma oralidade cotidiana que, ao deixarem de ser contadas, passam a ser esquecidas. Experiência e narração tomam contornos políticos ao encarnarem os fragmentos de uma história que se-faz-sendo, não linear, mas recortada e (re)inventada na arte de narrar e dela fazer arte(sanato) 11. Maciazeki-Gomes RC . Narrativas de si em movimento: uma genealogia da ação política de mulheres trabalhadoras rurais do sul do Brasil [ tese ]. Porto, Florianópolis : Universidade do Porto, Universidade Federal de Santa Catarina ; 2017 . .

O testemunho das narrativas das mulheres trabalhadoras rurais produz uma marcha-encontro-acontecimento ddEncontro-acontecimento, em uma inspiração foucaultina de acontecimentalizar como movimento analítico, em uma perspectiva genealógica, historicizar. . Em seus 19 anos de existência, a Marcha das Margaridas se consolidou como uma ampla estratégia de luta que agrega milhares de mulheres do campo, das águas e da floresta de todo o país. Com alegria e colorido, as mulheres vêm à público performatizar 44. Butler J . Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade . Rio de Janeiro : Civilização Brasileira ; 2015 . um ato-manifesto que reúne pautas, de norte a sul do país, na luta contra retrocessos e pela garantia de direitos. A força política de mobilização da Marcha rasga com os estereótipos de previsibilidade, calmaria, resignação e silêncio, muitas vezes destinados às mulheres no imaginário social.

No processo de elaboração e socialização desse registro muitos foram os desafios, entre eles como e quais as condições para se transmitir uma experiência 55. Benjamin W . Obras Escolhidas 1 - Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura história e cultura . São Paulo : Brasiliense ; 1994 . p. 114 - 9 . . Desde aqui, afirmamos como estratégia nossa disponibilidade em acompanhar, estar junto e nos colocar em movimento, abrindo espaços para uma escuta implicada e sensível dos efeitos das narrativas da experiência de um “devir Margarida” constituinte do processo de subjetivação dessas mulheres.

Olha Brasília está florida / Estão chegando as decididas / Olha Brasília está florida / É o querer, é o querer das Margaridas / Somos de todos os novelos / De todo tipo de cabelo / Grandes, miúdas, bem erguidas / Somos nós as Margaridas / Nós que vem sempre suando / Este país alimentando / Tamos aqui para relembrar / Este país tem que mudar! eeMúsica: O canto das Margaridas. Loucas de Pedra Lilás. Grupo Teatral de Mulheres de Recife, PE. .

A articulação de uma escrita-experiência-narração imprimiu a necessidade de uma contação coletiva. A escrita, como lâmina afiada para o corte e recorte da realidade, traz à tona não uma verdade, mas perspectivas singulares de uma história.

“A escrita emerge como um rasgo, em (com)posição, não dissociada da vida em seus mais variados atravessamentos” 11. Maciazeki-Gomes RC . Narrativas de si em movimento: uma genealogia da ação política de mulheres trabalhadoras rurais do sul do Brasil [ tese ]. Porto, Florianópolis : Universidade do Porto, Universidade Federal de Santa Catarina ; 2017 . . (p. 42)

Escrita-experiência-narração impregnada de afeto, como inspiração poética-política distante dos manuais prescritivos. O caminho percorrido irrompe entre fragmentos, recortes descontínuos, impregnado por experienciafetos em sua dimensão ética, estética e política. Experienciafetos conectados a inscrições múltiplas, desejantes, políticas, históricas, econômicas e institucionais 11. Maciazeki-Gomes RC . Narrativas de si em movimento: uma genealogia da ação política de mulheres trabalhadoras rurais do sul do Brasil [ tese ]. Porto, Florianópolis : Universidade do Porto, Universidade Federal de Santa Catarina ; 2017 . , 66. Fernández AM . Las lógicas colectivas: imaginários, cuerpos y multiplicidades . Buenos Aires : Biblos ; 2007 . . Experienciafetos como efeitos de um processo de produção de subjetividade atravessado por uma inteligência e afetividades coletivas 11. Maciazeki-Gomes RC . Narrativas de si em movimento: uma genealogia da ação política de mulheres trabalhadoras rurais do sul do Brasil [ tese ]. Porto, Florianópolis : Universidade do Porto, Universidade Federal de Santa Catarina ; 2017 . , 77. Fernández AM . Política y subjetividad: asambleas barriales y fábricas recuperadas . Buenos Aires : Biblos ; 2008 . .

Escrita como experiência, ou da experiência da escrita, numa perspectiva foucaultiana, [...] leva em conta o respeito à alteridade de um devir-com, na ideia de que ser um é tornar-se com muitos, numa tentativa de desaprender quem se é, num rompimento com o autocentramento na escuta de diferentes histórias. Escrita como encontro-acontecimento, estratégia de resistência e criação, ruptura com o instituído. Escrita-experiência-narração da qual saímos transformados. Escrita-corpo, engendrada à construção de um plano coletivo da pesquisa, irradiador de experiências múltiplas de nós 11. Maciazeki-Gomes RC . Narrativas de si em movimento: uma genealogia da ação política de mulheres trabalhadoras rurais do sul do Brasil [ tese ]. Porto, Florianópolis : Universidade do Porto, Universidade Federal de Santa Catarina ; 2017 . . (p. 28-9)

Flor Margarida aprende que da semente / Nasceu o pão de cada dia na vida de sua gente / Mas a semente necessita ser plantada / E sem terra sua gente será sempre escravizada / Queremos terra, pois a terra é nossa vida [...] / Na fileira do seu povo ela foi plantar bandeira / O opressor ria dela sem temer / Quem já viu mulher sem nome enfrentar nosso poder / Um belo dia teve uma assombração / Margarida era mil, era mil, era um milhão [...] / Com sangue vivo ela assinou seu nome / Preferiu morrer na luta a ter que morrer de fome ffMúsica Ciranda para Margarida, Cida de Caiana dos Crioulos, Severina Luzia da Silva. .

Comemorar neste momento mais do que tudo essa força e unidade das mulheres que ousam construir essa marcha, é com muita ousadia que desde os nossos sindicatos nas nossas organizações, eu tenho certeza que muitas tiveram que travar um embate também para dentro para dizer que era possível que a gente iria chegar aqui com essa quantidade de mulheres 22. Maciazeki-Gomes RC . Margaridas, luta e pé na estrada [ Internet ]. Youtube ; 2017 [ citado 17 Abr 2019 ]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8hhV0
https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8h...
.

Dizer aqui para todas vocês por terem aceito esse desafio que é estarem aqui, unidas, firmes na Marcha das Margaridas que não vai terminar amanhã quando terminar a nossa marcha e nós enrolarmos a nossa bandeira e dizer chegou ao final a quinta marcha. Não! Nós continuaremos a marchar até que todos tenham saúde, até que todos tenham educação, até que todos tenham um pedacinho de chão para produzir. Esse é o desejo das nossas mulheres trabalhadoras rurais do Rio Grande do Sul, do Paraná e de Santa Catarina e com certeza de todo o Brasil! 22. Maciazeki-Gomes RC . Margaridas, luta e pé na estrada [ Internet ]. Youtube ; 2017 [ citado 17 Abr 2019 ]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8hhV0
https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8h...

A ação política [...] como potencialidade de agir e relacionar-se com o outro, como parte da vida. A ação política passa a ser entendida como posição intersubjetiva, diz das condições de apropriação e constituição de modos de vida em diferentes territórios (campo, florestas, sertão, deserto, cidade, familiares, amigos/as, companheiras/os de luta) 11. Maciazeki-Gomes RC . Narrativas de si em movimento: uma genealogia da ação política de mulheres trabalhadoras rurais do sul do Brasil [ tese ]. Porto, Florianópolis : Universidade do Porto, Universidade Federal de Santa Catarina ; 2017 . (p. 27)

Foi muito emocionante, nós não imaginávamos que seria assim, nós não esperávamos isso… a emoção é muito grande… dá um negócio na gente e nos mostra que a nossa luta não é em vão, que vale a pena nós lutarmos porque o povo está unido e está lutando pelo que quer! 22. Maciazeki-Gomes RC . Margaridas, luta e pé na estrada [ Internet ]. Youtube ; 2017 [ citado 17 Abr 2019 ]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8hhV0
https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8h...

A gente quer que tudo que a gente já conquistou nesse tempo não tenha o retrocesso. Como até a própria aposentadoria que eles tão querendo mudar, a gente não quer isso! Porque uma coisa que com tanta luta e caminhada a gente conseguiu, que não pare e tenha um retrocesso… 22. Maciazeki-Gomes RC . Margaridas, luta e pé na estrada [ Internet ]. Youtube ; 2017 [ citado 17 Abr 2019 ]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8hhV0
https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8h...

[...] toda ação passa a ser considerada política, instaurada numa posição intersubjetiva (si-já-sendo-com-outro), ou seja, a prática do cuidado de si que leva em conta a relação com o outro e aciona processos de subjetivação política, constitutiva de um éthos, práticas perpassadas pela multiplicidade, diferença e singularidade. Modos de se relacionar consigo e com outro, pautado pelo desassossego e dissenso, e mesmo assim, na possibilidade de constituição de um lugar-comum, espaço de reconhecimento da alteridade 11. Maciazeki-Gomes RC . Narrativas de si em movimento: uma genealogia da ação política de mulheres trabalhadoras rurais do sul do Brasil [ tese ]. Porto, Florianópolis : Universidade do Porto, Universidade Federal de Santa Catarina ; 2017 . . (p. 27-8)

Agosto de 2019, Brasília recebeu a VI Marcha das Margaridas que teve como lema “Margaridas na luta por um Brasil com soberania popular, democracia, justiça, igualdade e livre da violência”. Em um cenário político e econômico nacional permeado por dúvidas, incertezas e ameaças de retrocesso de direitos conquistados, retomamos a mensagem-convite para mobilização de Nair: “Minha mensagem: eu quero convidar... participa que vale a pena participar do movimento das mulheres trabalhadoras rurais e é através dessas que nós vamos conquistar nosso espaço! É só lutar e pé na estrada!” 22. Maciazeki-Gomes RC . Margaridas, luta e pé na estrada [ Internet ]. Youtube ; 2017 [ citado 17 Abr 2019 ]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8hhV0
https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8h...

Agradecimentos

Agradecemos às mulheres que participaram da V Marcha das Margaridas e seguem em luta na VI Marcha das Margaridas (2019). A Têmis Nicolaidis e a Jefferson Pinheiro, pela parceria na edição do vídeo “Margaridas, luta e pé na estrada”. A Marcelo Gobatto, pela colaboração na edição das imagens.

Referências

  • 1
    Maciazeki-Gomes RC . Narrativas de si em movimento: uma genealogia da ação política de mulheres trabalhadoras rurais do sul do Brasil [ tese ]. Porto, Florianópolis : Universidade do Porto, Universidade Federal de Santa Catarina ; 2017 .
  • 2
    Maciazeki-Gomes RC . Margaridas, luta e pé na estrada [ Internet ]. Youtube ; 2017 [ citado 17 Abr 2019 ]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8hhV0
    » https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8hhV0
  • 3
    Foucault M . Ditos e escritos IV: estratégia, saber e poder . Rio de Janeiro : Forense Universitária ; 2012 . p. 328 - 44 .
  • 4
    Butler J . Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade . Rio de Janeiro : Civilização Brasileira ; 2015 .
  • 5
    Benjamin W . Obras Escolhidas 1 - Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura história e cultura . São Paulo : Brasiliense ; 1994 . p. 114 - 9 .
  • 6
    Fernández AM . Las lógicas colectivas: imaginários, cuerpos y multiplicidades . Buenos Aires : Biblos ; 2007 .
  • 7
    Fernández AM . Política y subjetividad: asambleas barriales y fábricas recuperadas . Buenos Aires : Biblos ; 2008 .

  • c
    Créditos das imagens: as imagens foram produzidas pela primeira autora, Rita de Cássia Maciazeki-Gomes, na V Marcha das Margaridas, em 2015.
  • d
    Encontro-acontecimento, em uma inspiração foucaultina de acontecimentalizar como movimento analítico, em uma perspectiva genealógica, historicizar.
  • e
    Música: O canto das Margaridas. Loucas de Pedra Lilás. Grupo Teatral de Mulheres de Recife, PE.
  • f
    Música Ciranda para Margarida, Cida de Caiana dos Crioulos, Severina Luzia da Silva.

  • *
    O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2019
  • Aceito
    11 Ago 2019
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br